Invasão ao Esquecimento: um ensaio entre o tempo, a ruína e a arquitetura

INVASÃO AO ESQUECIMENTO Um Ensaio entre o Tempo, a Ruína e a Arquitetura

Arq. Luan H. L. Vieira

FOTO: Hélène Binet

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SUMÁRIO

FOTO: Hélène Binet

1. TEMPO E TEMPORALIDADE................................................................................8 - 15 2. VALORES A UM BEM HISTÓRICO MATERIAL......................................................16 - 23 3. MASSAS EDIFICADAS PREEXISTENTES E INTERVENÇÕES..................................24 - 43 4. ANALISE DE PROJETO......................................................................................44 - 51 5. CONCLUSÃO ..................................................................................................52 - 53

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RESUMO

O objetivo deste artigo é de, inicialmente, compreender o modo ao qual o discurso filosófico e arquitetônico da percepção do tempo, como vetor do pensamento de vanguarda, fora moldado e como isso repercutiu na dialética e esclarecimentos frente aos edifícios em estado de ruina a partir de referências dentro da disciplina de arquitetura, outrossim no meio da filosofia, arte e o que mais auxiliar numa melhor compreensão sobre o assunto.

Num segundo momento, tendo uma noção mais apropriada da valorização do edifício degradado, discorreremos quanto às frentes que temos nas escolas teóricas que envolvam a arquitetura histórica, precisamente, ao edifício em estado de ruinas e permearemos sobre as brechas e situações que nos permitirão discorrer e valorizar seguramente sobre as intervenções de maior valia e decoro no bem imóvel.

O resultado final consiste na análise de projetos que valorizem tanto o bem preexistente quanto sua intervenção posterior, em diferentes escalas, ressaltando o caso do Museu da Catedral de Hedmark, um projeto na cidade de Hamar, Noruega.

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INTRODUÇÃO

O objetivo dessa pesquisa é analisar edifícios em estado de ruinas a qual, após discorrida a conjuntura de salvaguarda, abandono material ou negligencia de proteção, foram utilizados como uma base construtiva arquitetônica preexistente de pouca valorização cultural, social ou arquitetônica apta a ser ressignificada ou revalorizada sem que sua linguagem ou identidade seja apagada. Serão abordados aqui elementos palpáveis e não palpáveis, uma vez que dissertaremos sobre conceitos, ideias e teorias dentro da filosofia e física tanto quanto elementos tangíveis. Portanto, trata-se de um trabalho de cunho descritivo e explicativo onde exporemos interpretações seguindo alguma base teórica a fim de propor uma abordagem qualitativa à questão aqui dada.

Justifica-se o estudo da intervenção em edifícios em estados de ruinas nas obras apresentadas para que se compreenda diferentes modalidades de investimentos e pontos de vista em locais de difícil recuperação integral, cultural e histórica, remoldando assim o envolvimento historiográfico de interação do individuo com o meio em que habita, sem que sejam feitas releituras históricas ou apropriações indecorosas com o bem material de cunho social, histórico e cultural.

Será utilizada uma metodologia de caráter analítico e crítico para criar uma pesquisa de procedimentos bibliográficas e principalmente experimentais, embasada em teóricos das áreas da restauração, arquitetura e filosofia, além de outros trabalhos acadêmicos e palestras.

Essa pesquisa de natureza fundamental resultará no estudo de intervenções arquitetônicas em ruinas no meio da produção arquitetônica, tal qual

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ao favorecimento de campos do conhecimento de cunho historiográfico edificado ou não, tal qual a filosofia, museologia, arte e restauração.

A restauração e Conservação tem maior envolvimento com o traçado público por ainda compreender um uso social e arquitetônico, fatores comumente ausentes nas ruinas, que se mantém por valores culturais e históricos e que, as quais têm, como futuro, a demolição ou criação de museus ou campos arqueológicos.

Busca-se, com esta pesquisa, abranger e conhecer outros métodos de incentivo ao interesse na história local ou arquitetônica propondo métodos que aproximem os edifícios mais longevos à rotina contemporânea salvo a criação de museus, centros de exposições, etc.

Apesar disso, o Brasil é apontado, pelo guia da semana, ocupando o decimo segundo lugar no ranking de países com maior número de patrimônios mundiais pela UNESCO e, com isso, as ruinas, donde pretendemos abordar nossa dialética para intervenções pontuais. [...]amiúde as intervenções nos objetos arquitetônicos arruinados - degradados ao ponto de não ser mais possível capturar sua “primeira” unidade em potencial - pressupõem o enaltecimento de seu próprio e fascinante aspecto de ruína, no qual as ínfimas, delicadas e silenciosas intervenções apenas facilitam os agenciamentos para uso e visitação de seus espaços. (BAETA e NERY, 2017).

As intenções aqui apontadas deverão ser analisadas individualmente onde iremos compreender ocasiões em que a necessidade de uma instalação física incisiva se torna necessária.

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TEMPO E TEMPORALIDADE

O capitulo primo subsidiará o embasamento filosófico e teórico das práticas arquitetônicas que levarão essa pesquisa adiante. Abordaremos aqui distintas leituras dos principais pensadores que nos auxiliarão a compreender as divisórias de reflexões frente ao direcionamento do que vemos como propulsor para a evolução laboral da arte de vanguarda, no caso, a arquitetura.

Ao iniciarmos essa pesquisa, precisamos estar cientes de que o discurso frente a ruinas não se trata de um discurso de fácil desenvolvimento, uma vez que tratamos de bens imóveis representantes de um status quo, representantes de uma era, de um modo de vida e de uma formação de personalidades que, muitas vezes, tal qual as próprias edificações, não estão mais presentes para nos propor tal experiencia de uma vivencia em outros séculos. A perenidade de uma ruina se forma tal qual uma ilustração das ações do tempo, e para tanto, como tal precisamos compreende-la como a passagem do tempo, ou um resquício desta.

A multidisciplinaridade dessa tese convém que seja limitado o grau de profundidade, uma vez que, ao inaugurar, trataremos da acomodação da percepção do tempo para que nossos conceitos tenham melhor atuação. O tema primordial para a explicação de nossa vivencia no tempo vem da entropia que, explicando por Stephen Hawking, se traduz em: O aumento da desordem ou entropia através do tempo é um exemplo do que se chama uma seta do tempo, algo que distingue o passado do futuro, dando a direção do tempo.

Existem pelo menos três setas do tempo. Primeiro há a seta do tempo em que a desordem ou entropia aumenta. Depois há a seta psicológica do tempo; esta é a direção em que sentimos o tempo passar, a direção em que nos lembramos do passado, mas não do futuro. Finalmente existe a seta cosmológica do tempo, que é a direção do tempo em que o universo se expande mais do que se contrai. (HAWKING, 1988, p.201)

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FOTO: German Lorca

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Portanto, compreendemos que, fisicamente, observamos o tempo como uma constante vetorial que aponta para alguma direção, no caso, concordamos com a seta psicológica de Hawking, visando o futuro como a pretensão do tempo, porém não é o que acontece quando apontamos outros objetos de estudo como massa motriz, tal qual as artes que, por serem produções humanas, está apta a ter propostas e partidos distintos da realidade, reforçando com o que dirá Walter Benjamin (2017, p. 95), muitas formas de arte surgiram e desapareceram. A tragedia surge entre os gregos para apagar-se com eles e renascer depois de séculos.

Com isso, podemos afirmar que a percepção artística de tempo não caminha junto com sua definição teórica, afinal, a relação em que nos colocamos dentro destes conceitos são mutáveis e contestáveis. O professor, mestre e doutor Peter Pál Pelbart afirma, em uma de suas palestras, que a relação que temos com a percepção da temporalidade vem mudando há décadas quando diz que: “nossa relação com o passado, nossa ideia de futuro, nossa experiência do presente, a própria tripartição do passado, presente e futuro, a nossa vivencia do instante, até mesmo a nossa fantasia da eternidade, tudo isso sofreu uma grande reviravolta nas últimas décadas. Para dize-lo com os termos mais antigos e mais contemporâneos, a nossa navegação no tempo ganhou aspectos inusitados[...]” (PELBART, 2007)

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Reforço o pensamento de Pelbart quando insisto que esse novo modo de pensar sobre a passagem do tempo acompanha o homem desde a modernidade do século XX, onde o sentido temporal deixou de ser direcionado a um passado nostálgico para termos outras colaborações com sua serventia e aplicação.

No próprio meio arquitetônico costumamos secionar, na história da arquitetura, as obras que tinham como referencia o mundo antigo, clássico ou romano, denominando-as como Arquiteturas Historicistas, que tiveram seu declínio com os discursos de vanguarda principalmente decorridos do movimento moderno, desafiando o mundo antigo. “alguns teóricos, recentemente, chegaram a dizer que o tempo deixou de ser vetorizado pelo futuro para centrar-se inteiramente no presente[...] portanto, segundo esses teóricos, com o declínio do projeto moderno, o futuro teria deixado de aparecer como o topo do tempo, os riscos dessa absolutização do presente, são vários, entre eles, como expressou, por exemplo um amigo de Deleuze, Jean-François Lyotard, estaria a abolição da dimensão de futuro, da dimensão do advento, do imprevisto, em suma, da dimensão do próprio acontecimento?” (PELBART, 2007)

Portanto, é importante para nós, que enxerguemos essa ruptura histórica no contexto arquitetônico no que tange a valorização do passado como máxima de construção intelectual e estilística num mundo pósmoderno. O que experimentaremos no estudo a seguir trata-se de, não uma valorização do pós-edifício, porém uma reconstrução de seu simbolismo após uma negação analítica de certos valores de importância social.

FOTO: Maurits Cornelis Escher

VALORES A UM BEM HISTÓRICO MATERIAL

FOTO: Giovanni Battista Piranesi

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A interpretação do futuro pós-moderno na arquitetura é importante para uma boa condução do método teórico que adotaremos a partir de então, afinal, as praticas de salvaguarda pré-modernas se constituíam em conservação (anti-intervencionista), escola artística predominante na Inglaterra, liderada por John Ruskin, e a restauração (intervencionista), escola atuada com grande força na franca, liderada por Eugène Viollet-le-Duc. Marcelo Augusto Paiva Pereira , Arquiteto, Urbanista e colunista do jornal Cruzeiro do Sul, ao discorrer sobre os pensadores, afirma que, para Le-Duc, A restauração deveria identificar o pensamento pioneiro da obra, os acréscimos e modificações tempestivas (readaptação e reformulação) e redesenha-la sem estas intervenções posteriores, a fim de obter a unidade estilística (reformulação ideal) da obra.

(PEREIRA, 2022)

Ou seja, afirma que, para a restauração, o destino da obra é o de se manter em nível inaugural, mesmo que anacronicamente ou contando com intervenções não efetuadas, mas previstas. Um exemplo de restauração de natureza intervencionista é a catedral de Notre Dame, em Paris que, de acordo com Andrea Imaginario , no século XIX, teve a adição de uma agulha por le-Duc em substituição de uma antiga tipo sino que havia sido posta por volta do ano de 1250 e que foi danificada no incêndio de 1871.

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FOTO: Viollet Le Duc

Em contrapartida, focando numa integralidade anti-intervencionista, Marcelo explica a escola teórica com o exemplo e o ideal passado por Ruskin John Ruskin defendia a preservação da integridade das obras no estado de conservação em que estivessem. Deveria haver o respeito absoluto à matéria original, sem nada remover.

A ele a restauração era intervenção que descaracterizava, retirava a autenticidade, porque o novo estado da obra pertencia a uma nova época. (PEREIRA, 2022)

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FOTO: William Daniell

A conservação arquitetônica inspirada por Ruskin, independentemente de sua integridade, teve um apelo estético de alto valor durante o romantismo, entre os séculos XVIII e XIX. muitos exemplos de obras são encontrados na Grã-Bretanha com certa facilidade, inspirando diversas personalidades das artes, tal qual a abadia da cidade litorânea de Withby, inspiração para a criação do romance “Dracula”, de Bram Stoker ou as ruinas da cidade de Roma do século XVIII, inspiração para os desenhos e delírios de Giovanni Battista Piranesi.

Concluímos então que, ao centrar na arquitetura direcionada ao âmbito historicista pré-moderno, deparamo-nos com metodologias distintas e quase opostas de proteção ou conservação para com essas edificações como atividades mais propensas a sua salvaguarda.

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Já no século XIX, retomando aos pensamentos de Pelbart, o tempo deixou de ser vetorizado pelo futuro para centrar-se inteiramente no presente e temos essa clareza notória em ideias de teóricos como Camillo Boito e Cesare Brandi, que tinham um discurso intermediário entre a restauração e a conservação. Estes assentam a pratica de que, em uma intervenção, a obra feita posteriormente a contemporaneidade do bem deve ser distinguível e reversível, mantendo sua integridade e respeitando seus limites temporais, assim como consta no artigo 12º da carta de Veneza de 1964, utilizada até os dias de hoje como guia para a intervenção em bens históricos.

Conseguimos sintetizar a teoria crítica brandiana ao ressaltar sua preocupação com a originalidade não somente da peça, mas de sua época, sem cometer falsos históricos, quando Cesare Brandi discute sobre a restauração dizendo que:

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A restauração, para representar uma operação legítima, não deverá presumir nem o tempo como reversível, nem a abolição da história. A ação de restauros, ademais, e pela mesma exigência que impõe o respeito da complexa historicidade que compete à obra de arte, não se deverá colocar como secreta e quase fora do tempo, mas deverá ser pontuada como evento histórico tal como o é, pelo fato de ser ato humano e de se inserir no processo de transmissão da obra de arte para o futuro. (Santos, Ubida, Borges apud BRANDI, 2008, p. 61)

Por fim, apoiando na teoria critica brandiana, compreendemos que, apesar dos modos clássicos de salvaguarda arquitetônica, encontramos meandros que nos permitam fluir por caminhos que levem ao apreço de uma conservação que ainda nos possibilita reutilizar a obra independente de seu estado de degradação física ou histórica. Brandi nos impõe uma possibilidade de trabalhar e brincar com o que fora, em outras eras, uma atrocidade na arquitetura e no tempo, sem que distorçamos valores intrínsecos à obra.

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FOTO: August Fischer

MASSAS EDIFICADAS PRÉEXISTENTES E INTERVENÇÕES

Até o presente momento estudamos como nossas percepções de passagem do tempo se projetaram nas linguagens de salvaguarda na arquitetura. Passamos por uma noção de que o movimento moderno firmou os olhos para uma vanguarda mais próxima e visada ao futuro, abdicando de uma nostalgia de um passado clássico, mas antiquado.

A partir de então, exploraremos os níveis de intervenção em edifícios em estado de ruina, onde ao admitirmos o descuramento de usufruto ou contenção de degradação, esbarramos em possibilidades mais agressivas em que a ação humana incúria converte um edifício a um estado de ruinas.

Iniciamos os conceitos com a defesa de Cesare Brandi quando afirma que a ruina se faz presente em situações negligenciadas pela restauração, restituindo então à conservação a única saída, mesmo que paliativa, uma vez que o espirito do tempo do bem imóvel não mais o acompanha suficientemente para que sua restauração completa seja válida ou legitima. […] devemo-nos limitar a aceitar na ruína o resíduo de um momento histórico ou artístico que só pode permanecer aquilo que é, caso em que a restauração não poderá consistir de outra coisa a não ser na sua conservação, com os procedimentos técnicos que exige. A legitimidade da conservação da ruína está, pois, no juízo histórico que dela se faz, como testemunho mutilado, porém ainda reconhecível, de uma obra e de um evento humano (BRANDI, 2004, p.67).

De fato, como dirá Brandi, como obra de um evento humano, muitas vezes a permanência material de uma edificação construída está num estado de deformação tamanha que sua restauração torna-se invalida, restando então sua conservação como manejo de uma memória documentada.

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Apesar disso, a conservação irrestrita de uma ruina leva outros quesitos de valorização, não somente histórica, mas social.

Uma vez que a obra não abraça uma aproximação cultural documental, sua importância popular pode vir a torna-la um grande obstáculo urbano, resultando em atrocidades históricas que, assim como afirma Yuri Borges Loyola , muitos blocos de pedra foram retirados do Coliseu abandonado e utilizados como material de construção para outros edifícios de Roma. A arquiteta Brenda Dánae Cinta Manifacto afirma que não basta haver uma obra de importância cultural se esta não tem um reconhecimento popular para que haja um respeito direto e próximo à obra. […]Sin embargo la permanencia del patrimonio no depende únicamente de los recursos económicos que se invierten en su conservación, la pérdida del patrimonio está ligada también a un factor determinante: el desconocimiento de su valor por parte de la sociedad.

Cuando el sentido arraigo y apropiación hacia el patrimonio se encuentra desgastado o es inexistente significa que la población no reconoce el valor cultural, histórico o artístico de este, y la conservación del mismo puede verse amenazada llefando incluso a daños irreversibles, como podrían ser el saqueo y la pérdida de estos inmuebles testigos de la historia.

(MANIFACTO, pag.10-11)

É muito comum encontrarmos edifícios em estado de ruina que tenham pouco valor social, diferente de seu valor arquitetônico, histórico e cultural, que muitas vezes impulsiona sua presença para a nossa contemporaneidade, mas criando pouco apelo de curiosidade popular.

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Um caso que bastante se aproxima de uma intervenção onde, apesar do apelo estético, a comoção social foi quase inexistente é o projeto de 1973, de autoria de Ricardo Bofill “The Factory”. Trata-se de uma antiga fábrica abandonada (quase em estado de ruina) com traços surrealistas adaptada para um complexo do arquiteto que conta com, além da residência do arquiteto, o escritório Taller de Arquitectura (RBTA). Nela contempla-se oito silos com escritórios, um laboratório de modelo, arquivos, uma biblioteca, uma sala de projeções e um espaço conhecido como “A Catedral” para eventos culturais.

A magnificência deste projeto está justamente na mescla entre opostos tão cuidadosamente articulados para um equilíbrio aconchegante de estranheza.

As formas agressivas e pesadas se soltam num pé direito anormalmente alto em ambientes contornados de cortinas brancas finas e repletos de cores claras em meio ao concreto aparente fabril. Portas e janelas afinadas reforçam a percepção de altura do local. A reconstituição interna minimalista e de formas simplificadas, enquanto que, por fora, a vegetação toma conta de uma fortaleza de concreto, reforçam a ideia de ambiguidade harmônica exalada pela obra.

FOTO: Richard Powers

Embora que a pratica da reutilização seja, para alguns pensadores mais conservadores, agressiva em demasia como meio de conservação de um patrimônio que fora outrora testemunha de um passado cultural, social, económico e filosófico distinto, sua reconstituição como obra trouxe maior visibilidade cultural para a peça, mesmo sacrificando sua utilidade originária.

FOTO: Richard Powers

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FOTO: Richard Powers

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FOTO: Lori Zimmer

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Andrade Junior declara que, em certas ocasiões, investidas arquitetônicas podem potencializar valores históricos e culturais a partir de uma ressignificação do edifício.

Parece-nos importante alertar para a possibilidade de, em determinadas situações, preservar as ruínas enquanto tal e, ao mesmo tempo, incorporá-las em novas construções que possam lhes agregar um valor instrumental (utilitário), desde que respeitando os valores históricos e de antiguidade inerentes ao seu estado de ruína. [...]

Estamos nos referindo àqueles casos de criação de híbridos arquitetônicos, nos quais a ruína - “resíduo de um monumento histórico ou artístico”, nas palavras de Brandi - aparece como peça construtiva, como elemento arquitetônico, como ponto de partida do projeto de uma nova arquitetura, e não como ponto de partida para o restabelecimento da unidade potencial da edificação original (ANDRADE JUNIOR, 2008, p.11).

Apesar de contraditório, a defesa do mantimento da ruina em seu estado natural debate com a possibilidade de intervenções, uma vez que seus períodos históricos sejam evidentes.

Um bom exemplo ocorre na biblioteca do Centro Cultural Escuelas Pías de Lavapiés, em Madrid, na Espanha, obra derivada de um concurso ganho em 1996 (inaugurado em 2004) por José Ignacio Linazasoro. O projeto consiste em dois setores, o pavilhão novo, e uma reutilização de uma igreja do complexo, foco de nosso interesse. A nova biblioteca, como dito, é o resultado da ressignificação de uma igreja destruída em um incêndio em 1936 durante a guerra civil espanhola.

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FONTE: Miguél de Guzmán & Rocío Romero

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FONTE: Linazasoro & Sánchez

A nave central cedeu espaço à região de leitura principal, enquanto que as outras naves tiveram separações com a instalação de dois patamares.

Grande parte das intervenções, sendo essas, forros ou mobília, foram desenvolvidas em madeira para harmonizar com a rusticidade das paredes de tijolo aparente, além de metal em corrimãos e lustre central.

O respeito para com a obra surtiu certas dificuldades tal qual a iluminação, priorizando as entradas de luz naturais e zenitais. Apesar dessa prioridade, o projeto buscou certa elegância a não limitar as reminiscências de aberturas em janelas ou deixando frestas de luz natural através do forro de madeira, mantendo a integralidade do que era a ruina e deixando inteiramente identificável parte da nova arquitetura, independente da rusticidade.

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FONTE: Miguél de Guzmán & Rocío Romero

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FOTO: Jake Woll

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FOTO: August Fischer

FOTO: August Fischer

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O professor Nivaldo Andrade Junior nos auxilia a tomar ciência de que certas vezes o valor utilitário é mais considerável que o valor histórico, atribuindo em nosso conceito, (indiretamente por ele tratado) a ressignificação que, apoiado por Rodrigo Baeta e Juliana Nery, trazem as ruinas como uma massa base arquitetônica preexistente a ser reutilizada como parte de uma nova obra.

Apesar de a ruína ser um estado de degradação do edifício ou do espaço urbano no qual não é mais possível a apreciação de sua condição artística preexistente, muitas vezes o processo de arruinamento acaba gerando uma nova obra de arte mais interessante que a própria massa edificada “original” (BAETA e NERY, 2017).

Concluindo o capitulo com dois exemplos de um mesmo arquiteto, o ganhador do Pullitzer de 2009, Peter Zumthor é comumente celebrado por dialogar materialidades e sensações com maestria, criando constantemente ambientes catárticos e impactantes. O primeiro, a ser aqui tratado é também um dos projetos iniciais do arquiteto suíço, o Abrigo para Ruinas Romanas, de 1986, em Chur, na Suiça.

O projeto constitui dois silenciosos invólucros sítios arqueológicos compostos de fachadas semiabertas feitas de ripas horizontais vazadas de madeira e chapas de metal.

Há, como passagem, um corredor suspenso que se apoia somente na estrutura externa ligando um pavilhão a outro, em cada sitio, um acesso por meio de uma escada única.

O centro da obra é um conjunto de três remanescentes de ruinas romanas, sendo uma dessas, somente um canto. Há, próximo as ruinas, uma serie de objetos encontrados junto a elas como potes e utensílios, expostos tal qual acervo museológico.

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FOTO: August Fischer

A obra encanta por sua leveza nos usos dos materiais. O peso e rusticidade das ruinas junto do clima gélido fizeram com que o autor apelasse à leveza na plasticidade dos materiais que, não obstante, haviam de combinar com a premissa originaria da obra.

A cobertura permite a entrada cruzada natural da ventilação e auxilia na iluminação, vinda majoritariamente desses vãos nas paredes, de claraboias centrais feitas de metal e de iluminação artificial a partir de poucos pendentes direcionais. A delicada estrutura treliçada da passarela e suas finas placas de metal repousam cautelosamente em cada superfície de destino, uma vez que o contato com as salas internas é feito em dois pequenos apoios no degrau final enquanto as entradas nas extremidades compõem um objeto uno, fino e flutuante que não mantem contato com o solo.

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FONTE: https://www.iurban.in.th/

O segundo projeto do arquiteto é, coincidentemente, também retratado a partir de ruinas romanas, porém de maior escala, na cidade de Colônia, na Alemanha. Abrigando a coleção de arte da arquidiocese católica romana, que se estende por mais de mil anos, a obra foi executado entre os anos de 1997 e 2007 utilizando antigas ruinas de uma igreja gótica preexistente arruinada durante bombardeios na segunda guerra mundial.

Apesar do projeto minuciosamente planejado, será dada ênfase na abordagem a qual o arquiteto atuou em meio as ruinas. Utilizando um método próximo ao que fez no projeto anteriormente mencionado, Zumthor molda sua obra com uma releitura moderna de certos aspectos da catedral em ruinas, tal qual o pé direito alto, colunas esbeltas e aberturas altas, porém, apesar de muito mais sutil, uma vez que se dão por meio de blocos vazados.

Porém, o que proporciona maior interação com o bem arruinado é uma passarela que permeia a ruina e faz, dos escombros, uma peça a ser admirada e percebida como resíduo histórico e documental.

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A passarela se destaca por alguns atributos, por ser limitada pelos pilares e permissões do solo repleto das ruinas da antiga igreja e por pilares, mas também principalmente por sua materialidade. O passeio de madeira escura remete a antigos mobiliários de madeiras mais densas, muito comuns durante o período barroco que, diferente da passarela, costumava ter sua valorização a partir de ornamentos e detalhes curvilíneos. Ao reto e escuro passeio acompanha um guardacorpos ripado de mesmo material. Suas cores, apesar de escuras, se destacam do resto da obra sem que o protagonismo seja roubado pois sua elegância reforça um caminho a ser traçado de modo pragmático em meio as paredes rochosas, piso e teto claros.

Ate dado ponto, permeamos sobre as possibilidades teóricas de se intervir em um bem tombado, sendo esses, métodos intervencionistas ou não. Progredimos para então uma contribuição menos conservadora na teoria critica da arquitetura, abrindo espaço para o que seria, em outras eras, um desrespeito para com a história, mas com métodos que influem na continuidade da obra em sua era de utilização pública.

Apesar de ser um tema bastante abrangente e de discussão farta em polemicas na teoria e na pratica, buscamos por compreender diversas atividades arquitetônicas que as envolvessem direta ou indiretamente.

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FOTO: Jose Fernando Vazquez

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ANALISE DE PROJETO

MUSEU HEDMARK

FOTO: Hélène Binet

No capítulo findo desta tese, abrangeremos a análise de uma obra que, a partir da consolidação dos pesadores e exemplos abordados, fora escolhida como representante de um decoro arquitetônico em um meio de resíduo edificado histórico.

Até o presente momento, os projetos arquitetônicos analisados abarcavam grande parte da concordância teórica no que se refere aos conceitos brandianos e que se presume na carta de Veneza de 1964, todos continham certo nível de distinguibilidade ou reversibilidade nas intervenções posteriores a era originária da obra, alguns mantendo e outros revivendo a função do meio edificado.

Apesar da variedade funcional dos projetos apresentados (casas, museus ou supostas recomposições), a moderação para com a utilização de um bem como resquício de uma obra arquitetônica é de difícil confecção.

Outrossim, a busca por uma reafirmação de si por meio de uma terceirização do ser edificado é uma busca deveras delicada.

Comumente a intervenção histórica realça e remodela a massa edificada para que esta tenha, além de uma função diversa de sua originaria, uma afirmação distinta de si como obra, mas sim como pedaço desta.

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FOTO: Hélène Binet

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FOTO: Hélène Binet

Edificado entre os anos de 1973 e 1980, o museu Hedmark, na cidade de Hamar, na Noruega é obra do arquiteto norueguês Sverre Fehn, ganhador do Pritzker de 1997 (pelo Pavilhão Nórdico na bienal de Veneza). O projeto consiste em duas partes, a primeira, aqui abordada, inaugurada em 1980, sendo um complexo sobre ruinas de um antigo mosteiro do século XIII, e a segunda, inaugurada em 2005, uma cúpula de vidro sobre ruinas da antiga diocese local do século XVIII. Sem embargos que a costumeira busca por uma materialidade que traga decoro com o objeto a ser instalado seja aqui também trazida, Fehn não se dispõe a trabalhar com uma política de composição de compensações, tal qual fizera Zumthor ao faze-lo com uma plasticidade mais esbelta, aqui o autor, não obstante utilizando materiais rústicos, o faz com abundancia e dimensões generosas, porém, o que prevalece como ponto de interesse no projeto é o modo ao qual essa arquitetura fora desenhada.

O projeto, composto por uma extensa galeria em formato de “U”, possui 3 pavimentos na região interna mais uma rampa externa (desembocando no terceiro pavimento). Todo o trajeto é uma grande região de exposição museológica sem um caminho definido a seguir, dando ao transeunte uma liberdade para vagar em regiões, alas e pontes sem que se sinta pressionado a finalizar o percurso.

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FOTO: Hélène Binet

A aplicação da materialidade escolhida por Fehn não destoa das ruinas originais, muito pelo contrário, aparentam fazer parte de uma mesma época, porém levantadas em eras distintas, principalmente a estrutura do telhado, composta de diversas ripas, tesouras e caibros espessos e com telhas aparentes, alternando em regiões com telhas translucidas, acalentando o ambiente com as tonalidades amadeiradas vindas do reflexo de parte da estrutura, esta que, além de engastada em poucos pilares, é assentada também por parte do beiral, delicadamente apoiado em parte das paredes das ruinas.

Quanto ao mais, os caminhos, trajetos, algumas paredes e salas provindas da intervenção são completamente feitas por concreto aparente. Trabalhando com movimentos minimalistas e crus, o autor instrui leveza ao mostrar longas formas pesadas que se perdem ao longo do edifício. Apesar de rústicos, os momentos, ou salas, quadrados e sem abertura não ancoram nas paredes ou no teto, mas em delgados pilares únicos a cada uma dessas câmaras. Os corredores, apesar de estreitos, são compridos e sem contato com o solo, mas de abertura que, assim como a rampa externa, curva e longa, compõem um calmo e respeitoso caminhar por meio de ruinas quase milenares sem que lhe permita tocá-las e sem impeditivo para tanto, salvo a distancia e altura. Apesar da iluminação natural zenital e de algumas poucas janelas remanescentes, Fehn aproveitou-se de alguns orifícios nas paredes para fazer dessas aberturas janelas com a simples instalação de vidros pelo lado de fora da obra.

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FONTE: https://www.architectural-review.com/

Como máxima do respeito em uma intervenção em ruinas, Sverre Fehn traça uma viagem no tempo sem influir na originalidade ou funcionalidade da obra, abstraindo suas características para projetar, com formas minimalistas, compridas e elegantes, uma interferência arquitetônica que mescla com a massa edificada preexistente sem exigir protagonismo.

O museu Hedmark, de Sverre Fehn é foi escolhido para compor este capitulo como estudo de caso que se encaixa com melhor homogeneidade dentre os conceitos de intervenção em arquitetura histórica até aqui compreendidos e estudados e o caso, por se tratar de uma composição democrática e homogênea dentre as partes de diferentes tempos culmina, com maturidade, num exemplo de compostura coerente.

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FOTO: Hélène Binet

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FOTO: Tom Parson

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Conclui-se, com essa pesquisa, que a abrangência do estudo de intervenções arquitetônicas em edifícios em estado de ruina abrange uma serie de fatores históricos, filosóficos e arquitetônicos que limitam ou que libertam a valorização da massa edificada como elemento a ser reutilizado ou valorizado e que este último, ao ser reafirmado em outro campo temporal, deve ser feito com enorme cautela para que o protagonismo da obra ainda seja pertencente à obra de maior valorização social, arquitetônica ou cultural.

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Muito Obrigado.

Contato: (11) 98802-0233 luanvieira0001@gmail.com facebook.com/luan.vieira.965/