Revista entrelinha 1

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Entrelinha | JORNALISMO UP

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EDITORIAL

A Entrelinha faz uma viagem por diversos assuntos, mas a estrada principal desse trajeto não se delineou por acaso. Ela vem se formando com a busca das mulheres por seus direitos. As produções que você vai ver aqui seguem uma tendência presente em outras edições: a necessidade de trazer luz a temas envolvendo a questão feminina. Através dessa estrada você vai conhecer histórias de mulheres que experimentam as alegrias e angústias de tornar-se. A primeira edição de 2018 chega em março, mês que já foi dedicado quase exclusivamente as rosas e hoje é voltado, de forma mais contundente, à luta. Busca-se equidade social e econômica, segurança nas ruas e no ambiente de trabalho, saúde acessível e de qualidade. Busca-se respeito. Os obstáculos enfrentados por mulheres de diferentes cores, credos, orientações sexuais, entre outros, nunca serão exatamente os mesmos. Talvez mais indignadas que a Pagu cantada por Rita Lee, as mulheres estão expondo suas dores e seus desejos. Exaustas de serem subjugadas buscam o que é seu de direito. As denúncias vão das violências sutis e persistentes do cotidiano aos casos extremos. Das mulheres na Índia às de Hollywood, todas dizem: basta! O poder de escolha e decisão sob a própria vida é muitas vezes negado nos momentos em que as mulheres estão mais vulneráveis. Você vai entender a necessidade de se formar equipes médicas empáticas ao conhecer o sofrimento de mães que sofreram com a violência obstétrica. E que carregam cicatrizes físicas e psicológicas de um tratamento desumano. São pequenos atos de resistência que pavimentam o caminho para que a presença feminina nos mais diversos lugares deixe de ser exceção. Entre as ruas paralelas do caminho oferecido à você pela Entrelinha você vai poder ler sobre o equilíbrio, tão necessário, e a procura da felicidade, tão desejada. Também vão estar expostas histórias sobre diferentes formas de se relacionar. Para trilhar esse caminho exige-se apenas um item: respeito. Esperamos que a Entrelinha faça parte do seu caminho. Aproveite a leitura! Camila Abrão Ribas

SUMÁRIO A arte acima de tudo

Nômad

Rodrigo Botura

Kari

P. 4

A permanência no aqui, agora Ana Clara Colemonts P. 34

Mãe sim, sozinha nunca Nicole Smicelato P. 64

As lições de seu Zeca Luís Farias p. 94

As percep de um b

Luís F

“Eu só nã

Brayan

P


Freepik

des modernos na Sonaglio P. 10

pções de mundo banco de praça

Felipe Faria P. 40

ão faço sexo”

n Valêncio

P. 70

O poder das mulheres que viajam sozinhas Patricia Hoça

A arquibancada é delas

Procura-se a felicidade

Maria Stefani Aguiar

Ana Clara Faria

P. 22

P. 28

P. 16

Tormento da noite

A hora do parto

Uma relação de correntes e amarras

Patricia Sankari

Gabriela Jacomite

Kamila Deffert

P. 46

P. 52

P. 58

Com quantos Rafael você já saiu?

Judeu latino-israelense

Raul Daniel

Alex Biega

P. 76

P. 82

Coordenadora do Curso de Jornalismo Pró-Reitor de Planejamento e Operação Maria Zaclis Veiga Ferreira Professora-orientadora Ronaldo Casagrande Carlos Longo

Bruno Laurentino P. 88

Katia Brembatti

Projeto gráfico e edição Hannah Cliton e Luís Farias Capa Luís Farias

Imagem da capa Vecteezy

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Presidente da área de Ensino do Grupo Diretor da Área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas Positivo Roberto Di Benedetto Paulo Cunha Coordenador da Área de Comunicação Reitor e Design José Pio Martins Marcelo Gallina Pró-Reitor Acadêmico

O livreiro de Curitiba

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A ARTE ACIMA DE Rodrigo Botura


Rodrigo Botura

TUDO

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6 É início de manhã e o sol começa a derreter as gotas do orvalho, quando a primeira carreta deixa o terreno argiloso rumo à próxima praça. Na carroceria das carretas estão os equipamentos, figurinos, lonas e os materiais que fazem do circo algo único e peculiar. A rotina é a mesma para cada nova estreia: desmontar toda a estrutura, carregar e no próximo terreno novamente repetir o ritual que dará forma ao castelo de lona. Lembro-me de quando pequeno ser inserido neste mundo mágico que é o circo, meu pai, técnico em edificações, costumava assinar as ARTs (Anotação de Responsabilidade Técnica) para que os circos pudessem funcionar em Curitiba. Tais lembranças vêm em minha mente, à medida que consigo me recordar das minhas primeiras memórias neste universo. Nos fundos do circo, muito longe do glamour do picadeiro, os trailers enfileirados como um grande con-

domínio, as carretas estacionadas em volta da lona com a pintura estampando o nome do circo, faziam um grande outdoor sobre rodas. Passam-se os anos e os rituais são os mesmos; a chegada, ainda que pareça desorganizada, é pensada para que cada coisa fique no lugar correto. Aos poucos a fachada, com os luminosos que piscam em um sequencial de luzes, destaca o letreiro com o nome do circo. A lona recebe um cuidado especial por dois motivos: dar status ao circo e custa caro. O castelo de lona aos poucos vai tomando forma e ao fim do dia as bandeiras que balançam vagarosamente na ponta dos mastros indicam que ali naquele terreno, mesmo que por poucos dias, o público poderá viver momentos únicos sob a lona estrelada do circo. Quando me propus a realizar esta matéria, lembro-me de me pegar em um conflito de como poderia levar a você, leitor, todo o encanto do circo, os conhecimentos e mostrar que a arte ainda vive. Decidi então que contaria as histórias de algumas famílias circenses que fazem um papel crucial na difusão e na manutenção das artes do picadeiro. Alguns podem não saber, mas minha profissão de mágico me surgiu graças ao circo, foi desde pequeno que, ao assistir grandes mágicos no

“Passam-se os anos e os rituais são os mesmos; a chegada é pensada para que cada coisa fique no lugar correto”

picadeiro, decidi que faria da ilusão um ofício. Garra e força que fortalece o picadeiro Sempre tive contato com famílias tradicionais de circo, mas recentemente realizei um sonho que foi poder conhecer uma em particular que sempre me cativou. Conquistou não só a minha atenção, mas como de diversos veículos de imprensa, não só pelo talento e a qualidade do trabalho, mas pela garra e o ativismo em função do circo no Brasil. Estou falando da Família Zanchettini. A família com sede em Curitiba tem uma casa no tradicional bairro de Santa Felicidade, que é pouquíssimo visitada durante o ano. A casa mesmo é na estrada dentro das carretas, ônibus e trailers que foram modificados e preparados para se tornarem verdadeiras casas sobre rodas. A lona nova de cor amarela por fora e azul por dentro é enfeitada com estrelinhas brancas que fazem da cobertura um verdadeiro céu encantado. Chegados novamente em Curitiba há um ano, a família retorna de uma longa turnê pelo Centro-Oeste e Sudeste. O motivo é cuidar da saúde da matriarca da família, Wanda Cabral Salgueiro, a responsável por cultivar uma família que se irmana para manter vivo o circo que há anos vem sendo o sustento


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e o porto seguro das gerações dos Zanchettini. Esta história começa com a mãe de Wanda, que entrou ainda moça para o circo na década de 1940, trabalhou com a companhia do Circo Irmão Marques onde teve quatro filhos, todos muito renomados no meio circense Walter, Weimar, Walmor e dona Wanda, que, ao se casar com Primo Júlio Zanchettin, monta o Circo Teatro Gávea. No Circo Teatro Gávea, a família Zanchettin foi tomando forma; com muito trabalho e dedicação o circo foi crescendo. Em 1990, com a morte de Primo, a família decide mudar o nome da companhia para Circo Zanchettini. Segundo Erimeride Zanchettini, o nome veio em homenagem ao pai: “Nós mudamos o nome em homenagem ao pai, ele era Zanchettin, mas resolvemos incluir a letra i no final para abrir o nome e deixar mais encorpado”. Erimeide, Edilamar, Solange, Márcia, Marcio, Silvio Marcos e Amaury formam os irmãos Zanchettini, filhos de dona Wanda que revezam com os filhos, netos e sobrinhos a missão de passar a arte adiante. Toda a trupe soma 40 pessoas que se acomodam em 11 carretas, 3 trailers e 2 ônibus dentre materiais e casas. A volta da família para Curitiba se deu por acaso quando em 2016

recebeu o convite para montar a lona na Praça Santos Andrade para o evento do Circo da Democracia. Na época se preparavam para estrear em Toledo-PR, mas a saudade dos amigos, da terra e os convites para ficarem foram atendidos. O circo foi buscado às pressas no interior para uma estreia que marcaria a volta para Curitiba. O primeiro terreno em que tive contato com a família foi ao lado do terminal de ônibus de Santa Felicidade, tradicional bairro italiano de Curitiba e muito frequentado por turistas. Vale aqui ressaltar que é o bairro onde fica o Restaurante Madalosso, aliás, a família tem enorme prestígio com os Madalosso. Por ser o bairro onde a casa fixa da companhia fica, o lugar para estreia não poderia ser melhor. Em uma das nossas primeiras conversas conheci Erimeide Zanchettini, a locutora do espetáculo, gerente e a porta-voz da trupe. Logo quando entrei no circo percebi que era algo que mexia com minha nostalgia. A serragem, o cheirinho de pipoca e aquele ambiente que realmente me faziam sentir em um circo de verdade. Circo de verdade? Como assim? Poderia aqui contar quantas vezes ao longo desse tempo em que o circo está em Curitiba, passei horas e mais horas dentro da car-

“O circo no Brasil passa por uma crise de desencontros, que apesar de triste é necessário para chegarmos a um resultado”

reta moradia da matriarca reunido com as irmãs conversando sobre o que será do destino do circo no Brasil. Os Zanchettini são tradicionalistas, um circo que preza pelo cuidado em manter a tradição fiel do picadeiro. Erimeide ressalta: “O circo no Brasil passa por uma crise de desencontros, que apesar de triste é necessário para chegarmos a um resultado”. A principal causa desta crise segundo Erimeide é a perseguição das ONGs de proteção animal que fizeram um tumulto na vida dos circenses, que sempre levaram alegria para o público. E por parte de prefeitos, que muitas vezes não deixam o circo entrar na cidade por acharem que são “donos” das cidades e não quererem que o circo se instale no município. Segundo Erimeide, “a ignorância cega as pessoas”. Para ela, os prefeitos que embargam a entrada do circo na cidade estão tirando a oportunidade das pessoas de terem acesso à cultura e à arte. “Conheci-

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Rodrigo Botura

mento todos nós temos, os circenses poderiam muito bem estar em outra profissão como um posto de gasolina, um mercado ou muito bem colocados em um cargo de cultura. Mas estamos no circo porque amamos a arte acima das dificuldades”, finaliza Erimeide. Um por todos e todos por um Erimeide é engajada na causa dos circenses de reivindicar os direitos de trabalhos para o circo, e conta que a família Zanchettini é sempre requisitada quando tem alguma lei ou processo jurídico que envolve os circenses. Algo que Erimeide destaca é o fato de as leis de proibição de uso de animais no circo serem algo visionado pelas ONG’s de proteção de animais, e que causou um grande prejuízo aos circos nacionais. Muitos animais faleceram devido ao afastamento de seus proprietários, e alguns estão sendo devolvidos por não terem como ser abrigados em zoológicos ou santuários. O que existe no Brasil é um projeto de lei para regulamentar o uso dos animais, entretanto alguns municípios e estados brasileiros efetivaram a lei da proibição, em que os circos são totalmente proibidos de apresentarem os animais nos espetáculos. Erimeide e toda a família Zanchettini sempre são acionadas para defenderem

“Estamos no circo porque amamos a arte acima das dificuldades”

a causa e mobilizam toda a classe para participarem das decisões em favor da classe circense. Lamenta que em Curitiba foi aprovada a lei que proíbe os animais e diz: “Foi a gente virar as costas, e aprovaram a lei, nós estávamos em Minas Gerais e infelizmente não podemos defender todos os estados”. Contando com uma equipe de juristas, o Circo Zanchettini é umas companhias de maior expressividade na luta e já teve muitos ganhos pelo engajamento. Ela ressalta um caso que ocorreu na cidade de Vera Cruz-SP em que o circo precisou entrar na cidade com um mandado de segurança para trabalhar, e que no dia da estreia foi embargado pelo prefeito. Com a equipe de advogados, conseguiram a liminar para o funcionamento e conclui dizendo que a situação é recorrente. O preconceito com a classe vem também de instituições públicas de ensino, em que por lei todas as crianças de circo têm o direito a uma vaga na escola durante a temporada que permanecer no município. Erimeide destaca o fato de muitas vezes professoras e diretoras desdenharem as crianças circenses, e que muitas vezes é preciso acionar o conselho tutelar para que as crianças possam ter acesso à educação. Apesar das dificuldades, todos se

ajudam. “O circense é como uma grande família”, enfatiza Erimeide. Todos os circos têm um código de ética de acolhimento de um artista ou de alguém que passa por dificuldades, e é comum que alguns artistas desempregados peçam abrigo a uma companhia até que consigam um novo contrato. “O circo tem suas coisas boas, apesar das dificuldades, no nosso sangue corre o pó de serra”, conclui Erimeide. Viver é recordar Estamos na maior metrópole do Brasil, desembarcamos em São Paulo, a terra da garoa. Mais precisamente no Largo do Paissandu, no coração da cidade. O lugar que agora é ocupado pela simpática praça e pela igreja Nossa Senhora do Rosário já foi um dia o lar de muitos circos que ali instalaram suas lonas e apresentavam os espetáculos para a popula ção. É também o lar do Centro de Memória do Circo, ligado à Fundação Cultural de São Paulo. A presidente do Centro, Verônica Tamaoki, conta que o lugar escolhido para ser a sede do espaço foi simbólico, e de grande homenagem a todos os circos no Brasil. O Largo do Paissandu marca a história do circo no Brasil, o mais antigo registro que existe de um circo no Largo é da compa-


com muito trabalho de pesquisa, afinal, como reforça Tamaoki, “o centro é de memória, e precisamos da pesquisa, pois a história do circo no Brasil não está catalogada, escrita e publicada. Nosso trabalho é pesquisar, organizar e contar essa história. Se fosse somente para guardar material, seríamos um antiquário e não é esse nosso propósito”. Apesar do grande acervo, o Centro ainda está passando pela fase de catalogação dos objetos. Todos os materiais que já estão devidamente organizados ficam a disposição de pesquisadores mediante prévio agendamento. Verônica destaca ainda o acervo do Circo Garcia, considerado o maior e mais longevo circo brasileiro. O Centro de Memória do circo preserva o acervo que foi montado parte por Carola Boets, proprietária do Circo Garcia. Todo o material reunido consta a partir de 1955, porém a fundação do Garcia é datada de 1928, por Antolim Garcia, alfaiate que resolveu montar o próprio circo após fugir com a companhia do ator Benjamim de Oliveira, e que se tornaria um império dos picadeiros. Reconhecido como o Rei dos Circos, o Garcia é um dos mais importantes circos tradicionais do mundo. Chegou a contar, na época de ouro, com cerca de 400 funcionários, sendo o único

“O circense é como uma grande família”

circo no mundo a conseguir a reprodução de chimpanzés em cativeiro. A tradição do Garcia foi engolida pela crise financeira que arrebatava o país, pela mídia, e principalmente pelas dívidas, que somavam cerca de 1 milhão de reais. O majestoso circo fechou definitivamente as cortinas em dezembro de 2002. Após 75 anos de história, do que seria o maior circo brasileiro, restaram apenas lembranças. Os poucos animais que restaram foram vendidos para saldar as contas, a lona foi recolhida e vendida, os artistas que sobraram ainda permaneceram no terreno até encontrar outro contrato ou simplesmente serem engolidos pela cidade. Se a realidade do Garcia fosse isolada, seria ótimo para o circo brasileiro. A questão é que a cada dia muitas outras companhias lutam para manter viva a tradição da milenar arte do picadeiro. Uma arte que é considerada a mãe de todas as outras hoje vive uma crise. Porém, a cada novo espetáculo, a cada novo aplauso, os artistas reúnem forças, pois o espetáculo não pode parar.

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nhia Circo Irmãos Carlos, datado de 1887, completando, neste ano de 2017, 130 anos de tradição do circo no local. Verônica ainda ressalta que a época de grande auge foi com as temporadas do Circo Alcebíades, até os anos de 1930. O circo Alcebíades trazia em seu elenco aquele que seria escolhido como o símbolo do circo no Brasil, o palhaço Piolin. “Ocorre nesta época uma aproximação dos artistas modernistas para com Piolin, como Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral”, diz Tamaoki. O Largo do Paissandu se tornou muito mais que um lugar onde o circo montava, se transformou em um ponto de encontro de artistas e, principalmente, um sítio histórico do circo brasileiro. No Largo ocorria toda segunda-feira o encontro de artistas, empresários e pessoas do meio que se reuniam no Café dos Artistas em busca de contrato e muitas vezes para encontrar os colegas. Os encontros ocorriam sempre nas segundas, pois era o dia de folga das companhias. O Centro surge como um meio de manter viva a memória da tradição do circo, preservando um acervo com mais de 80 mil peças dentre figurinos, documentos, aparelhos e materiais que contam a história do circo no Brasil. Todo esse arsenal histórico é mantido

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NÔMADES M

Karina Sonaglio


Dariusz Sankowski/Unsplash

MODERNOS

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12 12 Bzzzz. Bzzz. Alarme toca. Cinco horas da manhã. Levanta rápido da cama, vai ao banheiro, escova os dentes. Irmã acordou? Acordou. Desce, toma o último café naquela cozinha. Sobe, pega a mala. Uma não, duas. Enormes. A irmã com outras duas. Desce a escada. Mãe com lágrimas nos olhos. Namorado também. Acomoda as malas na parte traseira do carro. Abre a porta, entra e se acomoda. Seriam cerca de quarenta minutos até o aeroporto para a despedida daquela manhã. O destino? Longe. Do outro lado do oceano. Uma vida não programada e ainda inexistente. Zero amigos. Zero família. Apenas um apartamento que haviam alugado em um lugar ainda desconhecido em uma rua jamais vista antes. Aquele abraço na mãe e no namorado foram os últimos de uma longa jornada que se iniciara. Os braços ao entorno dos dois seres amados vão demorar para se repetir. Se a saudade bater, os membros se entrelaçarão na irmã gêmea, que assim como no ventre, esteve sempre a poucos centímetros. Após um dos dias mais longos de suas vidas, o status de cidade atual no Facebook já podia ser alterado para a francófona Toulouse. Mônica e Monique Sperandio não têm nomes semelhantes à toa. A igual data de nascimento que consta

“O destino? Longe. Do outro lado do oceano. Uma vida não programada e ainda inexistente”

em suas certidões é apenas a primeira de eternas similaridades em suas vidas. Gostar de ler? As duas. Escrever? As duas. Fazer Letras na Universidade Federal do Paraná? As duas. Aprender francês? Impossível titubear ao responder. E decidir largar tudo na capital paranaense para ir à Europa? O esgotamento da rotina no Brasil já não fazia mais sentido na cabeça das meninas com sobrenome que lembra a esperança – talvez de uma vida melhor longe dali. “Terminamos a faculdade de Letras e estávamos em um trabalho que não nos inspirava. Por várias vezes nos perguntamos se era assim que a vida seria. Ficar todos os dias em um escritório sonhando com a vida que acontecia lá fora”. Em vez de ver a vida acontecer pela janela, o pedido de demissão foi o primeiro passo para deixar de sonharem com os momentos “lá de fora” e passarem a vivê-los. A jornada de trabalho não foi sozinha o fator determinante para uma decisão drástica de partir para o velho mundo. O Brasil passa por uma das piores crises de todos os tempos. O PIB retraiu quase 4% em 2016. O desemprego já atinge mais de 12% da população. E o jovem brasileiro que sai da faculdade e encontra um cenário às avessas entra em de-

sespero. Na política, a Operação Lava Jato já dura mais de três anos. Quase duzentas prisões e aproximadamente quarenta fases deflagradas. “A situação econômica e política no Brasil pesa em qualquer decisão. O governo rouba até não poder mais, e isso reflete na nossa sociedade. Transporte público caindo aos pedaços, violência, medo de andar na rua, desemprego e pessoas esperando durante anos para serem atendidas em hospitais”. Com a internet, o fácil compartilhamento de informações tem fomentado a criação de blogs e canais no YouTube de quem se arrisca a ir para outro canto do m u n d o. C o m a s


gêmeas foi assim – que alimentam os canais das Gêmeas Escritoras – e também a Camila Pereira, uma nômade, como ela se autodefine, com o blog Casal Wanderlust. Enquanto Mônica e Monique ajudam brasileiros a se estabelecerem no sul da França, Camila se prepara para enfrentar um dos seus maiores desafios ao lado do marido Lázaro: uma volta ao redor do mundo.

“Um fator primordial a quem deseja viajar pelo mundo é o desapego”

mila e o nomadismo voltou à cena. Um fator primordial a quem deseja viajar incessantemente pelo mundo é o desapego. Afinal, como carregar consigo dez calças, vinte blusas, cinco casacos quentes e todos os sapatos em uma mochila de no máximo vinte quilos? Impossível. Mas se o problema fosse apenas roupas... “Quando o processo de vendas (dos eletrodomésticos) começou, eu ainda estava com aquela dor no coração, sabe? Mas com o avançar do tempo a casa foi deixando de ter ‘cara’ de casa, e no final de tudo eu já nem ligava mais, só pensava na viagem e em como eu queria ter essa experiência”. O resultado foi econômico: apenas três malas cheias de roupas e alguns livros que carregarão junto a cada quilômetro percorrido. O casal Camila e Lázaro estão chamando casa (temporária) a África do Sul, de onde, há poucos dias, deram uma fugidinha até a pouca comentada Suazilândia – o segundo país da volta ao mundo e a última monarquia absolutista do continente africano. Camila considerou a população amigável, mas um detalhe sobre esse pequeno território no sul da África não passou despercebido. Por lá, o rei e sua mãe são soberanos a todas as leis, e a cada ano o rei se casa com uma nova

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“Sou nômade desde criancinha. Minha mãe faleceu quando eu tinha 4 anos e, desde então, estou me mudando de casa de tempos em tempos”. Sua casa já foi, por exemplo, em uma cidade no Moçambique, onde encontrou em Lázaro não apenas o amor mas também a companhia para um dos seus maiores sentimentos, o da palavra estranha chamada wanderlust. Wandern = caminhar; lust = desejo. O desejo intrínseco de viajar e conhecer novos destinos. A palavra de pronúncia complicada vinda do alemão se multiplicou ao ser dividida com a nova companhia. De volta ao país de origem, o novo lar foi a região Norte. Mais especificamente Porto Velho, capital de Rondônia, que não se tornou um l a r - d o c e - l a r. “Eu não me adaptei ao clima quente da região, além de querer muito voltar a morar perto da minha família. Ou seja, nós sabíamos desde o início que não iríamos morar lá para sempre”. Dois anos e meio se passaram, um anel passou a fazer parte do dedo anelar da mão direita de Ca-

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14 mulher. Por enquanto, o Rei Mswati III tem apenas 14 esposas aos seus 49 anos – “apenas”, porque ainda vai demorar 56 primaveras para alcançar a marca de 70 esposas do antigo rei, seu pai. Segundo Camila, em 2016, “mais de 100 mil jovens meninas participaram” do processo seletivo para se casar com o soberano, já que esse casamento é o sonho da vida de boa parte delas. Um pouco mais para o lado asiático do Planeta Terra, em El Nido, nas Filipinas, o recém-formado em marketing Caio Ramon encontrou um hostel para trabalhar e chamar de lar. Sem destino definido, Caio decidiu realizar um sonho antigo e viajar durante meses pelo Sudeste Asiático. “Por conta do estágio e trabalho me sentia muito preso à rotina e pensei: quando eu me formar e tiver que sair do meu estágio vou realizar meu sonho”. Com o apoio da família, em janeiro de 2017 ele comprou apenas a passagem de ida com destino à Tailândia. Em sua conta no Instagram, que já existia, começou a postar fotos da beleza natural dos lugares por onde passava e o resultado foi maior do que o imaginado. Aliado ao seu carisma, suas fotos renderam mais de quarenta mil seguidores, que o acompanham diariamente do Brasil. O Sudeste Asiático tem

“Sem destino definido, Caio decidiu realizar um sonho antigo e viajar durante meses pelo Sudeste Asiático”

se tornado um dos destinos mais procurados por jovens que buscam uma longa jornada no exterior. Os fáceis vistos, o preço de vida extremamente baixo – se comparado com o Brasil – e a fama de ser um local de encontro de mochileiros do mundo inteiro são só alguns dos fatores que levam a agitada capital Bangkok a ser um destino certo entre os jovens.

internet e avisam: “Foi a melhor experiência da minha vida”. Com uma geração em busca de experiências, esse é o melhor incentivo. Uma das redes que unem essas pessoas é o Facebook, em um grupo fechado intitulado “Mochileiros”. Mais de 370 mil pessoas são adeptas a ele, e em uma breve passada de olho pelas publicações fica fácil enten-

d e r o avanço Para Caio, a onda de mochileiros brasileiros se encontra em crescimento, motivado principalmente pela busca de seguir seus sonhos. “Muitas pessoas estão vendo que é melhor fazer o que realmente gosta e deseja do que ter aquele pensamento de que ‘preciso me formar, fazer faculdade e já logo encontrar um emprego fixo’”. As redes sociais também fazem parte desse processo. Assim como Caio, outras centenas de viajantes compartilham suas experiências na


desse movimento no Brasil. “Cinco viagens baratas de até R$500 partindo de São Paulo”; “Em setembro irei para o Rio de Janeiro só com a passagem de ida para tentar me estabilizar lá. Ainda não consegui encontrar um lugar para me hospedar. Alguém me dá uma dica?”; “Mochileiros, venham para o Camboja.

O clima de cooperativismo e compartilhamento de experiências fica mais do que claro nesse ambiente. E quem está fora do país se mostra extremamente aberto a auxiliar quem está em busca de informação. Esse movimento migratório tem se tornado pauta em grandes jornais, especialmente após a divulgação de dados da Receita Federal, no fim de junho

Q u a l quer dúvida me chama”.

“Segundo os dados, o adeus à terra natal tem um perfil específico: jovens recémformados de classe média ou um alto executivo”

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deste ano. “Com a crise, número de brasileiros que deixam o país quase dobra”, diz a manchete do jornal O Globo. Segundo os dados, o adeus à terra natal tem um perfil específico: jovens recém-formados de classe média ou um alto executivo. Entre os motivos, aqueles que inundam as mídias diariamente, como corrupção, desemprego e, em específico para os jovens, o imediatismo de resultados positivos que não alcançaram no Brasil. As Sperandio não têm previsão

de volta para Curitiba. Apesar dos desafios encontrados no novo território, a busca por viver a vida vista anteriormente da janela segue firme. Já Camila e Lázaro pouco decidiram sobre o futuro distante. “Não vamos negar que a atual situação do país nos entristece muito, mas não é isso que nos move”. O casal wanderlust acredita que, durante essa viagem, até então sem data definida para acabar, suas percepções sobre as próprias vidas vão mudar completamente, sendo impossível distinguir qual lugar do mundo adotarão como casa por um período indeterminado. Um desejo, no meio desse turbilhão de conhecimentos, não será esquecido: “Gostaríamos muito de voltar para um Brasil melhor”. Caio volta para São Paulo em breve – mas com um trabalho novo. “Muitas empresas estão procurando influenciadores digitais para promover seus produtos e serviços porque é uma forma de passar confiança para o público”. A sua conta na rede social de postagem de fotos parece cada vez mais se tornar o ambiente de trabalho do recém-formado, seja no Brasil ou em uma ilha qualquer das Filipinas.

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O PODER DAS M VIAJAM S

Patricia H


Slava Bowman/Unsplash

MULHERES QUE SOZINHAS

Hoรงa

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18 Pés enterrados na areia, a coluna e a mochila recuperando o fôlego para mais algumas horas de caminhada. Sentindo o vento no rosto e, talvez, um pouco de saudades de casa, seu olhar se perde no horizonte. Embora não estivesse procurando por uma linha de chegada, uma resposta ou solução, ela sentia que havia encontrado tudo o que sempre precisou: liberdade. Esse poderia ser o início de mais um romance best-seller, uma citação diagramada em tipografia decorada (pronta para ser compartilhada em alguma rede social) ou as primeiras palavras de um roteiro daqueles filmes românticos, que fazem o melhor gênero água-com-açúcar. Mas, na realidade, representa o sentimento de cada mulher que, pelo menos uma vez em sua vida, quis deixar de lado os padrões sociais e provar que viajar sozinha está bem longe de ser sinônimo de medo, solidão ou um mero capricho juvenil. Para algumas pessoas, viagens desacompanhadas nunca estão nos planos. Ou as férias são milimetricamente organizadas pela família, com datas e horários agendados pelas grandes agências turísticas da cidade, ou existe alguém ao seu lado nos ônibus, carros e trens, falando sobre a condição das estradas, o terror das

“Ela sentia que havia encontrado tudo o que sempre precisou: liberdade”


mo afinco tanto em sua cidade quanto em qualquer lugar do mundo, as mulheres viajantes são as responsáveis por uma vida feita de momentos que as permitem organizar, planejar, conhecer e jogar o corpo (e a alma) em uma jornada que, para Maria Thereza, representa a autodescoberta. Quando viajou sozinha pela primeira vez, a tradutora curitibana foi da França a Verona, na Itália, para assistir a um show. A agência responsável pelo seu intercâmbio não daria o suporte ou financiamento necessário para aquele tipo de viagem; então, foi com seu próprio dinheiro e força de vontade que ela encontrou o assento correto no ônibus, dormiu na estação para não perder o retorno no dia seguinte nem para precisar pagar um albergue e, por lá mesmo, fez amizade com pessoas tão iniciantes quanto ela na situação, mas que não se intimidavam pela novidade. Anos depois, ela continua viajando pelo mundo e, recentemente, fez uma mochigrinação pela América Latina. Essa última experiência despertou, em Maria, um sentimento libertador. “Desde criança, a gente é muito condicionada a sempre estar com alguém, e nessa viagem foi o que mudou, porque eu tinha isso enraizado em mim. Eu senti que, depois

“A viagem representa um rito de passagem, uma maneira diferente de ver o mundo”

que eu voltei, estava muito mais tranquila até para andar por aí. Estar acompanhada não é uma obrigação”. Para ela e outras mulheres que compram e embarcam na ideia, a viagem representa um rito de passagem, uma maneira diferente de ver o mundo. “Eu lembro que, no começo, estava com bastante medo, mas fui mesmo assim. Quando a gente chega num lugar novo, dá aquele medo do desconhecido e você percebe que é algo que, se fosse um cara sozinho, não passaria pela cabeça. Mas depois eu comecei a conversar com as pessoas e vi que não é um bicho de sete cabeças”, complementa Maria. Essa jornada de empoderamento e autoconhecimento se inicia nas primeiras pesquisas sobre o destino. Com as passagens compradas ou não, a arte de explorar sites, curtir fotos e analisar infográficos sobre o tema nas redes sociais, criar listas de atividades e decidir o que fazer ao longo da viagem é um processo que permite à mulher sentir-se mais segura, desperta um sentimento de proatividade e faz com que ela se coloque, verdadeiramente, como protagonista das suas histórias pessoais. Ao viajar sozinha, uma garota ganha espaço e autonomia para dizer a si mesma quando, onde e como pretende ir aos luga-

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turbulências e emitindo opiniões sobre qual deverá ser o plano de fundo das próximas fotos. Mas existe um grupo de mulheres – cada vez maior, de acordo com dados do Ministério do Turismo – que ousaram se colocar em uma direção contrária ao vento, levando a bagagem como única companhia. Elas começaram devagar, com uma viagem interestadual para assistir a um show ou visitar um amigo distante, passando a fazer parte da porcentagem que planeja viajar sozinha em algum momento. Tais passeios, em pouco tempo, se transformaram em longas trilhas e até mesmo em rotina, com as finanças diretamente relacionadas ao seu estilo de vida – como é o caso de pessoas como Cassandra De Pecol (a primeira mulher a viajar todos os países do mundo, aos 27 anos) e Maria Thereza Moss, tradutora e fundadora do blog Travel Monster. Essas mulheres foram capazes de afastar os fios de cabelo do rosto com coragem, prontas para lutar contra os questionamentos dos pais, amigos, namorados e desconhecidos céticos, que dão opiniões com desdém e carimbam passaportes com expressões preconceituosas no rosto. Sejam elas motoristas que rodam por puro prazer ou nômades digitais que trabalham com o mes-

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20 res que sonha conhecer. Ela se torna a responsável pelo planejamento de cada etapa e por estar naquele restaurante típico no horário reservado, por ficar até mais tarde caminhando pela praça principal ou deixar para lá a fila do maior ponto turístico para tomar um café na rua lateral – tudo isso sem que alguém tente modificar os planos ou vender um pacote que não inclui os passeios que pretendia fazer. Abrir mão de companhia ou da segurança oferecida pelas agências de viagem não é uma tarefa fácil, mas simboliza força e independência para aquelas que decidem viajar sozinhas por seu estado, pelo país ou pelo mundo. O site de Maria Thereza, o Travel Monster, surgiu, justamente, por ela gostar da expectativa até a chegada, do momento em que se vive a viagem antecipadamente. A iniciativa começou como um projeto pessoal, pela vontade de criar algo que fosse além de seu âmbito profissional, e se mostrou uma forma de compartilhar experiências, ajudando quem também quer dar os primeiros passos em uma nova cidade antes mesmo de estar na estrada – quase como uma questão de sobrevivência para essas viajantes. Aprender a sobreviver também é um dos principais sentimentos liberados por

“Aprender a sobreviver também é um dos principais sentimentos liberados por estar sozinha em uma cidade estranha”

estar sozinha em uma cidade estranha. Quando Maria participou do festival Burning Man, nos Estados Unidos, percebeu que as viagens que realizava eram uma forma de aprender a cuidar de si mesma e dos outros, pelo momento que viveu pensando em como contribuir com as diversas tribos que se reúnem no deserto de Black Rock (no estado de Nevada) com o objetivo de viver de forma alternativa, em uma contracultura de um experimento social focado em arte, comunidade e autossuficiência. Maria disse que os dias que passou por lá, em 2015, mostraram que é possível sair de sua bolha, trabalhar as habilidades sociais, expandir a mente e contar com os próprios aprendizados para levar a vida adiante – seja no meio do deserto, em um projeto, apoiando uma causa social ou fazendo algum tipo de loucura. Uma loucura, inclusive, que a designer Franci Kaucz precisou enfrentar com mais força do que imaginava. Ela conta que, logo em suas primeiras viagens, escolheu os destinos mais atípicos para as mulheres: Marrocos, Rússia e Leste Europeu – países com culturas bem divergentes em relação ao papel e imagem feminina na sociedade. E foi pouco antes de embarcar para o Marrocos que essa ficha caiu: Franci estava sozinha, prestes a co-

locar os pés em uma aeronave que a levaria para longe de casa, dos seus costumes, da possibilidade de andar à noite, de estar desacompanhada ou usar saias e shorts curtos quando bem entendesse. Roendo as unhas com aflição, ela ligou para a irmã, recebeu o incentivo que faltava e engoliu as lágrimas, transformando-as em energia para despachar as malas, carimbar o passaporte e seguir o sonho de conhecer um novo país. “Não ia perder uma experiência incrível só pelo fato de eu ‘ser mulher’. Mas eu, que sempre fui a favor do empoderamento feminino, com ‘meu corpo, minhas regras’ e ‘da minha vida cuido eu’, nunca me senti tão vulnerável”. Para a designer, que já esteve na Irlanda, Holanda, Espanha, Itália e outras localidades da Europa, o choque cultural inicial e os temores não impediram que a viagem à terra do norte africano fosse ainda melhor que o esperado. Mesmo sentindo na pele todas as coisas contra as quais lutava no conforto de casa, ao falar de empoderamento, Franci teve a certeza de que viajar sozinha permite superar limites e escapar de vez daquela típica zona de conforto. “É aprender e mostrar que somos corajosas, que damos a cara a tapa e que não temos medo do desconhecido”. Ela ainda afirma que, em-


sozinha te faz aprender a aproveitar ainda mais a sua própria companhia”, afirma a arquiteta. Para Ariane, a sensação de passar a tarde em um parque estrangeiro, aproveitando a paisagem, ou caminhar à noite sentindo a cidade, sem ficar preocupada com a segurança, compensam as dificuldades de quem mora (e não só passeia) fora do Brasil, como enfrentar voos desgastantes, ter que lidar sozinha com problemas financeiros e se virar para entender o idioma local – situações que a menina precisou enfrentar, mas que permitiram sentir mais, aprender mais e trabalhar melhor a própria saúde mental, colaborando para a autoconfiança. “Mesmo que você batalhe, trabalhe e seja dona da sua própria vida, viajar sozinha te empodera e te faz sentir que você pode mais e mais. Cada pequeno detalhe e cada decisão, seja de virar em uma esquina ou na próxima, te fazem sentir que você pode, que você escolhe e que ninguém mais é dono do seu próprio destino e vida além de você mesma”. E é a favor dessa liberdade para agir nas próprias vidas que cada uma das mulheres viajantes – tanto quem carrega um passaporte repleto de carimbos quanto aquelas que apostam em rotas tímidas nos arredores da cidade – precisam lutar ao

sair caminhando pelo globo. Em toda a história, são muitos anos de: – Você não tem medo? – A sua família deixou? – Não tem mesmo ninguém para ir com você? – Não é seguro viajar desse jeito, mocinha.

“Ela ainda af irma que, embora sozinha para carregar a mochila, a solidão nunca se fez presente”

Frases que ainda se repetem todos os dias, vindas de pais, amigos, funcionários de empresas e hotéis, amigas, mães e avós, representando a forma como a sociedade ainda encara o universo feminino: frágil, delicado, com necessidade de proteção. E, embora a Federação Brasileira de Albergues da Juventude afirme que as mulheres representam 55% dos hóspedes desacompanhados, muitos continuam a pensar que aquelas que viajam sozinhas só podem sofrer de um imenso descaso com a própria segurança, quando, na verdade, é uma forma de crescer e aprender com as suas escolhas. Viajar por conta própria é se recusar a perder oportunidades e saber que, se quem tem boca vai à Roma (usando a versão errônea e mais popular do ditado), é possível encarar qualquer desafio em nossa sociedade. Felizmente, o amor pelas viagens supera os preconceitos e as mulheres, daqui para a frente, vão caminhar por seu próprio Brasil, Itália, Cana-

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bora sozinha para carregar a mochila, a solidão nunca se fez presente: em suas viagens, não deixa de conhecer pessoas novas, de todos os cantos do planeta, e, mesmo sem ter alguém próximo para ouvir reclamações e lamentações, sente que o vazio ajuda a superar adversidades e seguir o trajeto da maneira que quiser, permitindo-se fazer coisas que, entre amigos, poderiam ficar bem mais limitadas – por vergonha, por falta de vontade do grupo ou tempo para reunir todos com um mesmo objetivo: viver intensamente. E nas vivências da arquiteta Ariane Santana pelo mundo, o que não falta é intensidade: ela fez sua primeira viagem por conta própria aos 19 anos, quando morou na casa de uma família canadense durante o intercâmbio. Em seguida, fez alguns passeios e passou um período investindo seu tempo na faculdade aqui no Brasil, até que decidiu, em 2015, retornar pela segunda e terceira vez a Montreal, na América do Norte, já com a vontade de viver novas experiências. Mas foi logo depois, ao colocar a mochila nas costas e pegar um ônibus até New York e Washington, nos Estados Unidos, que ela sentiu que estava conhecendo o mundo com os próprios pés. “Apesar de eu ser uma pessoa muito independente, acho que viajar

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A ARQUIBANCADA É DELAS Maria Stefani Aguiar

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24 Em uma típica noite curitibana, com a temperatura que beirava os 9 graus, o Estádio Durival de Brito e Silva, ou Vila Capanema, para os mais chegados, era palco do duelo entre Coritiba versus Vasco da Gama, em jogo válido pela 11° rodada do Campeonato Brasileiro desta temporada. Nos arredores do estádio, torcedores se aglomeravam em grupos, se cumprimentavam e em seguida iniciavam conversas empolgadas enquanto bebiam suas cervejas e outras substâncias de origens duvidosas. O clima era amistoso e os torcedores estavam animados, talvez em virtude do efeito do álcool ou devido à expectativa da partida que aconteceria logo mais. Faltando cerca de uma hora para o jogo começar, chega a torcida organizada do clube mandante, Império Alviverde, escoltada pela Polícia Militar. Este é um procedimento padrão feito pela PM; quando uma torcida tem que se deslocar em grande número para outro lugar, é feito um acompanhamento durante o trajeto, com o auxílio de viaturas, motos, cavalaria e, dependendo da demanda de torcedores e importância do jogo, helicópteros. Devidamente caracterizados com roupas alusivas à agremiação esportiva, a grande massa chega can-

“Nos arredores do estádio, torcedores se aglomeravam em grupos, se cumprimentavam e em seguida iniciavam conversas empolgadas”

tando e carregando seus materiais e bandeiras. Observando mais atentamente, podemos ver um número significativo de mulheres entre eles. Algumas estão acompanhadas dos namorados/maridos, outras caminham em duplas, trios, e tem aquelas que vão sozinhas. Entre elas, está Valéria dos Santos, 36 anos. Valéria tem uma longa história na torcida alviverde, é uma participante ativa há 19 anos, desde que conheceu Reimackler Graboski, seu marido, também membro da agremiação. Nesse meio tempo, contabiliza que já realizou mais de cem viagens para jogos fora de casa, e incontáveis ações sociais, das quais participa mensalmente. Questionada sobre como a sociedade vê uma mulher que participa de torcida organizada, Valéria explica: “T.O nunca foi vista pelo lado do bem, sendo homem ou mulher, sempre irão falar mal”, inclusive no ambiente entre os próprios torcedores, o machismo e a intolerância ainda imperam. Ela conta que em muitas reuniões que são feitas internamente, para discutir questões pontuais sobre viagens, festas, clássicos, entre outros assuntos, a participação de mulheres é barrada, assim como existem muitos integrantes que não aceitam o ingresso feminino para tocar na bateria da torcida, por

exemplo, ou para ajudar com a manutenção e organização dos materiais, como bandeiras e faixas. Em relação aos prós e contras de ser uma atuante de uma T.O, Valéria expõe as vantagens. “As coisas boas são as amizades que você conquista dentro e fora do estado, e as festas em dias de jogos”. Mas ela confessa que também tem o lado ruim, que é o risco que os torcedores estão submetidos em jogos de “guerra”, como clássicos ou partidas de maior rivalidade. Ela relata que já passou por várias situações de risco. “Uma vez, em um clássico atletiba, quando estávamos indo para o jogo, chegando no terminal do Fazendinha, havia uns cem atleticanos nos esperando no tubo. Quando chegamos, a porta do ônibus se abriu e nossa torcida foi defender nossas cores, então eles começaram a jogar muitas bombas caseiras em nós”. Felizmente ninguém se feriu. Apesar de conviver em um ambiente predominantemente masculino, a torcedora acredita que, ao longo dos anos, a mulher veio conquistando seu espaço e muita coisa mudou. Segundo Valéria, antes as mulheres não podiam fazer viagens em jogos contra torcidas rivais; hoje, se quiserem, vão sozinhas, apesar de estarem cientes dos riscos. O vestu-


be, Mancha Azul. São nove anos de dedicação à agremiação, incluindo cerca de vinte e cinco viagens para todo o Brasil e colaboração na realização de uma dezena de ações sociais, que na maioria das vezes é organizada por mulheres. As ações sociais são feitas mensalmente, em orfanatos e instituições carentes, onde são distribuídos presentes e alimentos, que são arrecadados pelos próprios membros. O principal motivo que levou Maria Tomázia a ingressar na Mancha Azul foram as lindas festas na arquibancada e o apoio que a torcida proporciona ao clube em dia de jogos, “empurrando” e incentivando, do início ao apito final. Ela confessa que no início não foi bem recebida. “Inclusive pelas próprias mulheres, havia muita desconfiança, muitas vezes acham que a gente está ali por causa de homem, mas estão muito enganados, pois mulher também ama futebol”. Apesar dos benefícios, como conhecer vários lugares e pessoas, Maria já passou por várias situações de perigo ao longo dos jogos que participou. Certa vez, em uma partida entre Joinville e Avaí, pelo Campeonato Catarinense, o ônibus em que ela estava foi apedrejado por torcedores do time local, recepção “comum” em jogos deste porte, devido à rivalidade entre os

“Nota-se que o machismo está presente não somente entre os homens no ambiente de uma torcida organizada”

times. Nota-se que o machismo está presente não somente entre os homens no ambiente de uma torcida organizada, mas também entre as próprias mulheres, o que é bem pior. E a maioria delas não enxerga como preconceito de gênero, e sim como “regras” a serem seguidas, e acabam se submetendo a elas para se manterem na organização. Acabam criando um clima de rivalidade entre elas, criando até punições para quem não seguir as proibições impostas (como se relacionar com torcedores rivais, por exemplo, o que não é questionado quando um homem o faz) como expulsões, suspensões ou até agressões físicas e verbais. Enquanto isso, em um bar da Lapa, um dos pontos turísticos do Rio de Janeiro, Kiti Abreu e Penelope Toledo, duas torcedoras organizadas, discutiam futebol, em uma conversa informal, regada a muita cerveja gelada. Os assuntos iam surgindo e então começaram a falar sobre o papel da mulher nas T.O’s, o que despertou o interesse em outras meninas também. O acontecido repercutiu em um grupo feminino no Whatsapp e, quando se deram conta, outras quinze mulheres se juntaram a elas na discussão. O que iniciou em um encontro casual foi o pon-

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ário oferecido às torcedoras também sofreu modificações ao longo dos anos, no começo não davam atenção ao público feminino, faziam apenas roupas com características masculinas, camisetas grandes e calças largas; atualmente as mulheres contam com opções variadas de roupas, como regatas, leggings ou blusas, por exemplo. Desde sempre, o brasileiro é conhecido mundialmente por uma paixão nacional: futebol. Mas há aqueles que não se contentam em ser meros telespectadores ou simpatizantes, tem que sentir, acompanhar o time de perto, frequentando estádios e participando do dia a dia do clube. No entanto, será que isso se resume aos números? Segundo dados do IBGE, 90% dos brasileiros não têm o hábito de ir a estádios de futebol, e o número de mulheres é ainda maior, 94%. Florianópolis é uma cidade marcada por ter belas praias. O que muitos não sabem é que Santa Catarina é um dos estados que conta com mais participações femininas na arquibancada. Os principais clubes da capital, Avaí e Figueirense, contam com um grande número de fiéis seguidoras. Maria Tomázia Farias da Silva, 23 anos, é torcedora do Avaí e faz parte da maior torcida organizada do clu-

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26 tapé inicial de um projeto histórico. Após meses de planejamento, elas tiveram a iniciativa de criar o “I Encontro de Mulheres de Arquibancada”, evento que reunisse o maior número de torcedoras de clubes de todo o Brasil. Após conseguirem o apoio do Museu do Futebol, localizado no Estádio do Pacaembu, em São Paulo, o encontro finalmente aconteceu, no dia 10 de junho, e contou com a participação de aproximadamente 300 mulheres, sejam admiradoras comuns ou de T.O’s, de treze estados brasileiros (Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul, São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Ce-

“Após meses de planejamento, elas tiveram a iniciativa de criar o ‘I Encontro de Mulheres de Arquibancada’”

ará, Espirito Santo, Goiás, Minas Gerais, Pará, Distrito Federal e Pernambuco). “O que vi foram mais de 300 mulheres cansadas dos julgamentos e preconceitos, se unindo em prol de algo maior: respeito”, afirma Kiti Abreu, uma das organizadoras do evento. Segundo a torcedora da Raça Rubro Negra, organizada do Flamengo, os principais assuntos que estavam em pauta foram relatos de machismo, vivência na bancada, luta diária por espaço e respeito em todos os espaços de atuação, defesa da obrigatoriedade do policiamento feminino capacitado nos estádios, cobrança da criação de uni-

formes femininos oficiais, proposta de uma delegacia da mulher nos palcos dos jogos, para denunciar e coibir o assédio sexual e moral nas arquibancadas, defender o direito à liberdade para escolher quais roupas e acessórios usar, além de cobrar a representação de mulheres na ANATORG (Associação Nacional das Torcidas Organizadas). Cada representante teve a oportunidade de se apresentar e abordar temas a serem discutidos. O encontro foi divulgado através de grupos no Whatsapp e pela página oficial Mulheres de Arquibancada – Resistência e Empoderamento, que já conta


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com mais de 2.200 curtidas no Facebook. A expectativa, segundo Kiti, é que isso seja apenas o começo. “ Nossa intenção é um encontro nacional por ano, até mesmo para dar tempo para as meninas se planejarem para irem. O próximo será na região do Nordeste, só não foi definido o local exato ainda, esta-

mos promovendo encontros regionais e estaduais para manter as meninas unidas”, completa. Neste momento, a união prevaleceu, assim como a sororidade, acima de qualquer rivalidade. Kiti Abreu conta que torcedoras de times rivais sentaram lado a lado e entenderam que a luta de uma é a luta da outra, inclusive fizeram até uma “vaquinha” para que meninas de torcidas de regiões distintas conseguissem ir ao encontro. E os frutos desse acontecimento já vêm aparecendo: torcedoras organizadas de Flamengo, Vasco, Botafogo, Fluminense e Corinthians se uniram

“Neste momento, a união prevaleceu, assim como a sororidade, acima de qualquer rivalidade”

para a distribuição de sopa, pão, suco e água para moradores da zona norte do Rio de Janeiro, e agora meninas do interior de São Paulo e da região do ABC paulista estão arrecadando leite para doar a diversas instituições. Finalmente elas entenderam que, para combater o machismo lá fora, o primeiro passo é combater os problemas internos. O sucesso do evento evidenciou o empenho, necessidade e urgência dos temas abordados no encontro, iniciativa pioneira nacional.

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Ana Clara Faria

PROCURA-SE A FELICIDADE Ana Clara Faria

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30 A voz do cantor havaiano Israel Kamakawiwo’ole na versão de Somewhere Over the Rainbow/What a Wonderful World ressoa no rádio de bolso do cobrador do tubo de ônibus em frente ao Museu Oscar Niemeyer. Os dois passageiros que aguardam o ligeirinho da linha Boqueirão/Centro Cívico dentro do tubo permanecem em silêncio, sérios, absortos nos próprios pensamentos – ou talvez, como eu, prestando atenção na trilha sonora. Começa a tocar, então, It Must Have Been Love, hit da banda sueca Roxette nos anos 80. “But it’s over now”, a vocalista canta, o que me faz inevitavelmente pensar, por alguns segundos, na minha própria vida amorosa. Mais dois passageiros entram no tubo – entre eles uma mulher de cabelos compridos e escuros, que depois de alguns instantes começa a cantar, baixinho, junto com a música. O ônibus, enfim, se aproxima do tubo. Agradeço mentalmente ao cobrador – que tamborila os dedos distraidamente sobre o caixa – pelo breve momento de inspiração e relaxamento proporcionado por aquele rádio sintonizado em uma emissora FM da capital paranaense. Entro no ônibus com fome e resignada ao sono – típico de uma estudante que dorme tarde porque termina os trabalhos na véspera da entrega. Mas

“ Ser feliz tenha sempre sido um dos objetivos mais procurados nesses mais de 200 mil anos de nossa existência”

entro feliz. Em todo o trajeto da linha do tempo da humanidade, é possível que ser feliz tenha sempre sido um dos objetivos mais procurados nesses mais de 200 mil anos de existência da nossa espécie. Feliz, o adjetivo, refere-se ao que é “favorecido pela boa sorte; que tem felicidade interior; que sente satisfação por uma obra bem realizada, por um desejo atendido etc.; que é conveniente, oportuno; de bom augúrio; que foi bem pensado ou imaginado; que goza da graça ou da proteção de Deus”, prega o dicionário Michaelis. No entanto, felicidade é matéria complexa para ser entendida com a objetividade de um livro técnico. Isso nunca impediu, porém, que muitos a estudassem. Na Grécia Antiga, Aristóteles definia a felicidade como a finalidade última das ações humanas – que poderia ser alcançada através da satisfação dos prazeres, da participação na vida política ou, então, da adoção de uma postura contemplativa, de observação racional da realidade. Na Idade Média, a noção de felicidade se estendeu para a esfera teocrática; segundo os filósofos do período, Deus era o caminho para o indivíduo alcançá-la. Na sociedade contemporânea, as ciências têm procurado estudar os diversos aspectos relacionados ao


máximos, que vivemos para buscar: “De maneira geral, a felicidade é uma condição, um desejo, uma ambição, uma necessidade humana. E cada um vai configurando essa experiência e definindo particularmente o seu próprio conceito de felicidade”, pondera. Era uma vez... a felicidade ilusória “Temos ouvido muito que antes éramos mais felizes, que as crianças eram mais felizes, que as condições eram mais favoráveis”, comenta Maria Marta. A visão nostálgica da vida é, de fato, recorrente no meio social: você certamente já ouviu – ou já disse a outra pessoa – que antigamente, em algum momento passado da sua história ou da história alheia, era-se mais feliz. “Eu penso que a vida é evolutiva”, observa a psicóloga. “Cada período, cada ponto da nossa trajetória tem as suas necessidades, progressos, revoluções, evoluções e, até, as suas involuções”. Maria Marta diz que, além da armadilha do passado, a pressa em viver o presente também é um obstáculo ao alcance da felicidade. “A velocidade ganhou uma importância muito grande: os veículos de comunicação, as tecnologias favoreceram com que as coisas fossem feitas com maior rapidez”. Segundo a psicóloga, apesar

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“Na prática, a felicidade não pode ser concretizada por um estado de alegria e satisfação constante”

sentimento de felicidade; a psicologia positiva, movimento desenvolvido pelo professor norte-americano Martin Seligman na década de 90, tem como um dos principais enfoques a análise dos meios pelos quais o ser humano pode buscar a felicidade e o bem-estar. “Temos muitas maneiras de definir a felicidade”, diz a psicóloga Maria Marta Ferreira. “A psicologia, em si, parte de um pressuposto muito importante que é a individualidade, o contexto particular de cada sujeito, a sua história de vida, as lentes que essa pessoa usa para ver o mundo, as condições em que ela encara e percebe sua própria existência”. Na prática, no entanto, a felicidade não pode ser concretizada por um estado de alegria e satisfação constante; Maria Marta destaca que altos e baixos são parte essencial da vida. “Estar bem sempre não é uma condição humana. São condições da vida os percalços, os momentos de dor. Muitas vezes, acabamos confundindo felicidade com prazer, como se você permanentemente precisasse viver em um estado de prazer, de plenitude, de extrema felicidade, e isso não é uma possibilidade na natureza humana”, justifica. A psicóloga completa seu raciocínio concluindo que, de qualquer forma, ser feliz é um dos nossos ideais

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32 dos pontos positivos de toda a velocidade dos tempos modernos, “somos levados a pensar que a vida acontece agora; temos um marketing que enfatiza a importância de você viver tudo no hoje”. Desde a criação da World Wide Web nos anos 90, o mundo vive um processo crescente de conexão entre os cinco continentes. Hoje, mais de 3 bilhões de pessoas têm acesso à internet, conforme pesquisa divulgada pela União Internacional das Telecomunicações – vinculada à Organização das Nações Unidas (ONU). Mas, na rede planetária, algumas conexões ainda levam mais do que apenas milésimos de segundos. “Nem tudo acompanha a tecnologia: o nascimento de uma criança requer tempo; a construção de uma carreira requer tempo; a construção de um relacionamento requer tempo”, diz Maria Marta. “Essa tem sido, também, uma armadilha muito presente: relacionamentos superficiais, utilização das pessoas como objeto de satisfação temporária”, acrescenta. Fonte da felicidade – como bebê-la? Pesquisadores da Universidade de Harvard estudam, há 79 anos, os fatores que levam uma pessoa à felicidade. No ano passado, o psiquiatra estadunidense Robert Waldinger compar-

“O sentimento de amor pelo próximo e por si mesmo é fundamental para que possamos encontrar essa tal felicidade”

tilhou com o público, em uma palestra, os resultados da pesquisa transgeracional desenvolvida pela universidade. Um dos segredos para ser feliz, segundo o estudo, é relacionar-se com outras pessoas – e manter a qualidade desses relacionamentos. “Penso que a amizade seja uma das âncoras mais importantes para a produção da felicidade – não só porque precisamos dos outros para o nosso desenvolvimento, mas também porque precisamos compartilhá-lo com os outros”, reflete Maria Marta. A poucos dias de entregar esta matéria, criei no Google Forms um questionário de apenas duas perguntas: “O que é felicidade para você?” e “Se felicidade fosse uma cor, qual seria?”. A intenção era fazer um levantamento rápido e simples das características às quais as pessoas mais costumam associar o conceito de felicidade. Também tive a curiosidade de saber como esse sentimento seria representado visualmente, segundo os participantes da pesquisa, através de uma cor. Compartilhei o questionário no Facebook e obtive 28 respostas. A cor campeã foi o azul, escolhida oito vezes – com variações de tonalidade – como a representante da felicidade. O amarelo ficou em segundo lugar, com sete votos, seguido do verde,

escolhido por seis pessoas. “É a espontaneidade no aprendizado, no viver, no agir que é legal”, comenta a psicóloga Giovana Tessaro. “É preciso deixar que as criatividades do dia a dia estejam bem protegidas, bem seguras, para que dessa maneira consigamos ser cada dia um pouco melhores. Isso traz felicidade”, conclui. “A calibragem da nossa autoestima é fundamental para qualquer possibilidade de felicidade: se eu não conseguir ser gentil, generoso, solidário e grato por minha história e minhas conquistas, fica improvável conseguir ser feliz”, ressalta Maria Marta. “O sentimento de amor pelo próximo e por si mesmo é fundamental para que possamos encontrar essa tal felicidade”. Contudo, ela não pode ser vista meramente como uma recompensa a ser conquistada apenas ao fim da jornada por sua busca. “A felicidade pode ser encontrada no processo, no caminho, na capacidade de investimento, na fé de que aquilo que eu estou construindo vai dar certo”, diz Maria Marta.


O que é felicidade para você?

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27 respostas: “É poder acordar cedo e saber que estou vivo” “Se sentir amado, acolhido e leve” “Felicidade para mim é ver quem eu amo feliz, tirar um sorriso das pessoas, estar com a família e amigos e fazer o que eu gosto” “Ver minha filha feliz” “Ser reconhecido por fazer o certo” “Chegar em casa e ver meu cachorro feliz” “Liberdade” “Liberdade, em todos os sentidos” “Estar bem comigo mesmo” “Estar junto de Deus” “Família, amigos e saúde (mesma ordem de importância)” “Estar vivo todos os dias, e ter pessoas que me amam por perto e poder retribuir” “Felicidade, para mim, é me permitir não fazer absolutamente nada. Separar trinta minutos do meu dia para sentar no chão, fechar os olhos. É fazer uma limpeza na minha mente, me desprendendo do conjunto de todas as angústias das semanas, das preocupações, do ponteiro que não para. Acender um incenso e respirar fundo. É apenas me concentrar no momento presente e perceber que este é o instante em que tudo é possível. Não ontem, nem semana passada, nem cinco minutos atrás. Felicidade é estar plenamente consciente do aqui e do agora” “Amigos” “Felicidade é fazer o que gosta, estar perto de quem se ama, compartilhar coisas boas com todos que estão a sua volta. Fazer o bem, ajudar, ser quem você realmente é, e, se possível, sempre fazer isso buscando colocar um sorriso no rosto das pessoas, não importa quem seja” “Estar bem comigo mesmo” “É um estado de espírito que mistura paz, silêncio e liberdade (um vinho ajuda)” “É estar viva, rodeada de pessoas agradáveis. Poder viajar para lugares ensolarados ou ficar curtindo o frio. Felicidade é ser livre para viver, amar, sentir” “É se amar! Quando você se ama, tudo ao seu redor fica mais bonito e feliz!” “É saber enxergar o valor das coisas simples da vida a ponto de com elas se alegrar e sentir segurança para seguir em frente” “Sorrir até o maxilar doer e os olhos lacrimejarem” “Praia com os amigos, família e ‘mozão’!” “Estar com quem se ama, em uma situação boa” “Eu poder ser eu mesma, sem julgamentos” “É se sentir completa. Em todos os sentidos. ” “É me sentir livre de fazer o que tenho paixão e me dá a sensação de estar vivo” Participe da pesquisa acessando o link http://goo.gl/forms/VmqR74bysjRcBsUF2

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A PERMA


André Luiz Moraes

ANÊNCIA NO “AQUI, AGORA” Ana Clara Colemonts

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Apoiando o seu corpo na beira da escada de incêndio, Giovana Godoi observava a vegetação local enquanto acendia um cigarro. Seus grandes olhos castanhos percorriam pelas flores que se negavam a desabrochar. Os dias se alastravam, cravados em uma terrível monotonia. A paleta de cores escassas alertava que a primavera não iria nos presentear com seus dias graciosos. Depois de um inverno rigoroso, sua pele ansiava pelos raios calorosos do sol. Com vinte e um outonos de existência, Giovana tinha cabelos lisos que escorriam até seus ombros e bochechas que saltavam em seu rosto toda vez que ela sorria. Seus lábios grossos sempre ficavam em evidência, usando algum batom de cor forte com bastante frequência. Perambulando sozinha pelo campus, sempre me parecia querer passar despercebida, procurando se dissolver entre os azulejos brancos e o caos alheio. Entrava na sala de aula faltando dez minutos para a aula começar, dificilmente chegando mais cedo para a universidade. Durante a aula, sentava-se afastada dos demais, inclusive das próprias amigas. Ao acabar a aula, era uma das primeiras a se retirar da sala. Nos encontrávamos pelos corredores, na maioria das vezes, nossa comunicação era baseada

“Necessitava de uma âncora, um ponto de equilíbrio”

em uma troca de sorrisos. As conversas ficavam para os dias em que havia tempo, ou quando tínhamos a última aula. Os dez minutos do intervalo eram preservados para as conversas complexas e para acender um cigarro. Na escada de incêndio, Giovana falava sobre as pinceladas desconexas que cobriam a sua vida com angústia. As discussões corrosivas com seus pais, que sucediam-se em ciclos intermináveis, sem previsão de atingir um possível consenso. O silêncio amargo que marcava a espera de um mísero telefonema, que poderia anunciar uma entrevista para uma vaga de estágio. A falta de dinheiro para gasolina. As responsabilidades acadêmicas acumuladas ao longo do curso de Jornalismo fermentavam uma sensação de exaustão extrema. A vida não parecia lhe ceder uma bandeira branca. Nessa dança descompassada com a vida, ela precisava com urgência de um caminho que lhe trouxesse paz. Mesmo tendo começado um tratamento psicológico, ainda sentia uma falta dentro de s i . Necessitava de uma âncora, um ponto de equilíbrio. Precisava se conectar com uma força maior. Ela me

contava sobre como a espiritualidade a ajudou, trazendo alívio durante momentos difíceis e como estava distante de tudo aquilo. “Eu estou pensando em ir ao terreiro ou meditar, sabe?”, diz. O assunto estranhamente captou a minha atenção naquela conversa; mesmo não tendo qualquer envolvimento espiritual no passado, perguntei para ela sobre as sensações que eram despertadas enquanto meditava. A nos-


sa conversa, que era fluida e espontânea, seguia um ritmo diferente agora. Por instantes, ela parava e se concentrava buscando uma resposta mais elaborada. Me disse como a meditação é uma experiência muito peculiar, íntima e complexa para explicar. Para ela, era uma forma de desacelerar diante do ritmo frenético do cotidiano, um momento para se permitir relaxar e purificar a sua mente. Sua descrição, assim como a incapacidade de explicar plenamente todos os aspectos da experiência, aguçaram minha curiosidade.

“Carregou consigo as palavras que eram pronunciadas repetidamente durante a meditação: ‘Eu sou livre’”

a meditação me trouxe sentimentos positivos, me ajudou a desfazer uns nós de energias ruins que eu estava carregando”. A partir da experiência, Giovana carregou consigo as palavras que eram pronunciadas repetidamente durante a meditação: “Eu sou livre”. Estendendo um velho colchão de ioga no chão, me sentei sobre uma almofada e decidi que iria tentar dar uma chance para a experiência. O meu corpo parecia relutante em sentar na posição tradicional da flor de lótus, com as pernas cruzadas e costas eretas. Não demorou para sentir cãibras e dores musculares, mas a voz feminina que estava conduzindo o ritual me alertava sobre essas possíveis situações. Em um timbre muito calmo e suave, a misteriosa mulher me aconselhava a focar minha atenção na forma que a respiração acontecia dentro de mim. Sentindo o trajeto que o oxigênio realiza, subindo pelo meu nariz e descendo pelo resto do meu corpo. O início das técnicas meditativas começam com um exercício de respiração, com o objetivo de relaxar o corpo e induzir a mente para um estado meditativo. Com olhos fechados, as inspirações são mais profundas em relação às respirações que fazemos automaticamente no cotidiano. Normalmente, as inalações devem ser

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No meu ponto de vista, dedicar um momento do dia para me concentrar em absolutamente nada parecia uma receita pronta para a frustração. Ela concordou comigo e disse que o começo é sempre desafiador, mas a meditação é como um exercício, sendo aperfeiçoada com o tempo. “Tem que começar assistindo aqueles vídeos de meditações guiadas no Youtube”, afirmou. Na semana seguinte, lembrando da nossa conversa, Giovana percebeu sentir novamente a necessidade de conexão. “Senti um impulso, senti isso me puxar e eu precisava fazer alguma coisa espiritual”. Naquela tarde, a chuva a impediu de comparecer ao terreiro que normalmente visita, o Terreiro do Pai Maneco, localizado em Colombo, região metropolitana de Curitiba. Decidiu que isso não iria atrapalhá-la e meditou em casa. Procurando pela internet, acabou encontrando uma meditação guiada no Youtube. Ela havia me mandado o endereço do vídeo, contando com felicidade o quanto isso havia lhe tranquilizado. Disse que durante o ritual sentiu vários calafrios, como se pudesse sentir a vibração natural de seu corpo. Se sentiu íntegra, em sintonia consigo mesma. “Senti que

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mais curtas que as exalações. Se você respira por quatro segundos, o ar deve permanecer em seu pulmão pela mesma quantidade de tempo e ser exalado por pelo menos cinco segundos. Ao longo das expirações, o peso parece se desprender do corpo, dissolvendo aos poucos a sua percepção, até o momento em que não é mais possível sentir suas extremidades. Não é possível estabelecer um limite entre o que é ou não o seu corpo. O caminho percorrido pelo ar deixa um rastro suave de conforto. A minha mente batalhava constantemente para permanecer focada, mas novamente, trago a atenção para a respiração. A visualização desse processo facilita a concentração, imaginando uma luz branca entrando por seu corpo e limpando o seu interior. O fio do pensamento vagueia por cantos dispersos enquanto vejo luzes coloridas dançando dentro dos meus olhos, sem um padrão ou

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“Foco para o aqui, agora. Único momento possível para viver sua vida”

forma, jorrando como uma corrente sem direção. Uma das partes mais importantes da prática meditativa é o mergulho dentro de si. Aceitar as imagens, sensações e pensamentos que invadem o seu ser, recebendo-os e os liberando, deixando-se fluir. Focar demasiadamente nos pensamentos incessantes, ou tentar bloqueá-los dificulta a conexão com o momento atual e prejudica o processo de relaxamento. No fim da meditação, a consciência retorna para a sua casa, entrando lentamente no corpo, tomando contato novamente com as extremidades, experimentando as pontas dos dedos, contorcendo os pés, trazendo o peso para a cabeça. Me sentia como se meus pés dessem seus primeiros passos na areia, após um revigorante banho de mar, pronta para seguir o meu dia, desprendida e renovada ao mesmo tempo.

Os ponteiros avançam dentro do relógio, anunciando a cada tique o encurtamento do seu percurso dentro da esfera. O tempo corre desgovernado. Uma piscada, uma mudança no caminho e ficamos para trás. A comida é dilacerada, o café desce num único gole, o barulho dos passos acelerados ecoam pela rua amanhecida. Os carros cortam o silêncio das avenidas como um copo quebra no chão. A vida moderna tornou-se uma corrida contra o tempo, um trabalho de Sísifo. Escolher abraçar o momento atual, rejeitando agir no piloto automático, é como nadar contra a corrente, diante de tantos ruídos, de tantas distrações. Não é impossível, porém é extremamente desafiante e necessário para viver de uma forma melhor. A filosofia da meditação é baseada no direcionamento total do foco para A consciência do mo- o aqui e agora, o único momento presente mento possível para viver a


sua vida. A atenção em sentimentos ou momentos sobre passado ou futuro nos distancia das experiências que estão acontecendo no momento atual. A técnica também busca trazer o olhar para os as pequenas coisas do dia a dia, cultivando a gratidão para os acontecimentos, quaisquer que sejam. O treinamento da percepção afeta os padrões cerebrais, diminuindo o estresse e a ansiedade, além de aumentar a concentração e a produtividade, deixando as pessoas com um estado emocional mais estável, segundo o neurocientista norte-americano Mark Williams. Lutando com a depressão e com as crises de ansiedade acontecendo com maior frequência, a fotógrafa Danielle Serejo morava em Almirante Tamandaré e cursava Comunicação Institucional na Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). Lidando com o declínio de sua saúde mental, ela se via desinteressada

nos estudos, assistindo sua vida realizando caminhos indesejados. Ela procurava por tratamentos alternativos que pudessem silenciar todos os seus pensamentos, assim como controlar o seu psicológico. Danielle já conhecia a técnica e tinha interesse em meditar eventualmente. O contato aconteceu de fato quando, enquanto tinha uma crise de ansiedade, acabou encontrando um vídeo de meditação no Youtube, e desde então tem recorrido à prática. Para ela, foi na meditação que encontrou a claridade que buscava em sua vida. “Me ajudou bastante a me compreender melhor, ter mais paciência e me acalmar”. Ela conta que, com a meditação, ela tem aprendido a valorizar mais a sua vida, assim como as coisas que lhe fazem bem. A prática lhe deu a coragem que precisava para aventurar-se por outros cantos do país, deixando Curitiba e mudando-se para Brasília, onde está trabalhando com

a fotografia. Semanalmente ela visita uma casa de meditação na capital do Distrito Federal, que traz leveza para o seu dia e ajuda a colocar seus pensamentos em ordem. Sentindo-se mais estável e alegre, a meditação tornou-se um estilo de vida. “O autoconhecimento é uma fonte inesgotável de alegria”.

“A prática lhe deu a coragem que precisava para aventurarse por outros cantos do país” Entrelinha | JORNALISMO UP

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UM BANCO DE PRAÇA E SU


UAS PERCEPÇÕES DE MUNDO Luís Felipe Faria

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42 Fica estranho começar dizendo que sou um banco de praça, inimaginável. Perfis humanos valerão a pena serem lidos, até porque, humanos são livres para fazer o que bem entendem, são de carne, são móveis. Eu sou só um banco, sem sentimentos ou reações. Porém, assim como os humanos, eu tenho uma história mesmo não sendo protagonista dela, eu sempre estive ali. Aos que se interessam por todas as peças da cena vou descrever meu ambiente: meus pés estão sobre Petit-Pavé sujos e desbotados, à minha esquerda temos um pipoqueiro e andando um pouco à direita temos uma banca de revistas. Em minha frente, resta-me analisar pernas subindo e descendo dos ônibus circulares e atrás de mim, grama com algumas árvores representam um terço da Praça Carlos Gomes. Quando cheguei aqui? Não lembro ao certo. Esse lugar já sofreu muitas mudanças drásticas, sempre uma tragédia por causa da chuva ou um nome para homenagear algo. Para um banco, sou velho, mas para tudo que está em minha volta, posso dizer que sou uma das coisas mais recentes. Sei que a praça já teve o nome de Praça Sete de Setembro e Praça da Proclamação. Como Curitiba tinha uma forte influência da região com campineiros, decidiram

“Minha base é de ferro, o assento e o apoio são duas madeiras”

mudar o nome para homenagear o compositor de “O Guarani”. Isso foi em 1880. Entendem como eu sou jovem? Aqui também foi a primeira praça a ganhar essa tecnologia que as pessoas andam tropeçando e derrubando moedas nas frestas, chamada Petit-Pavé. Aqui já teve até um palco feito para apresentações e ensaios teatrais, porém, também destruído devido a alagamentos e a fortes chuvas. Calma, chegaremos nesse ponto que vocês estão pensando. Acho que todos devem ter a imagem de um banco no banco de imagens mental, mas vou me descrever um pouco, talvez precisem mudar algumas coisinhas para poder me imaginar. Sou inteiro verde-escuro, ou fui, já que o tempo descascou minha cor. Minha base é de ferro, o assento e o apoio são de madeira. Duas madeiras para sentar (mesmo que uma esteja solta porque caíram os parafusos), três para apoiar as costas. Mesmo o tempo apagando minha pele, tenho uma tatuagem em lettering escrito em verde também: Império Comando Norte. Não, não tenho nenhum time do coração, fizeram isso em mim. Assim como a pichação que não consegui entender ao lado da tattoo. Gostaria de dizer ainda um segredo sobre bancos: sabemos ler. Para um objeto, minha


mexe no celular ou conversa com algum conhecido pela praça. Ela está há apenas quatro anos neste serviço, muito mais recente que eu na praça. Ela tem quarenta e um anos e é mãe de cinco filhos. Fala com várias pessoas, e isso me fascina. Comunicação é a palavra. Tem o outro figura ali que também citei acima, o pipoqueiro. Beirando os quarenta, Fábio Pasquale está a vinte anos na praça, aprendeu a fazer pipoca com o pai. Ele também tem andando cabisbaixo, não sei o que lhe aflige. É mais um consumido pela tecnologia, fica o dia inteiro no celular, mal sabe vender sua “arte”. Assim como eu, Pasquale já viu muita coisa acontecendo nessa praça: assalto, tiroteio, morte, perseguição. Só coisas ruins que até me assustam. Eu e Pasquale até temos uma parceria, compra-se a pipoca dele e senta no meu assento. Imploro de todo meu interior revestido de madeira que não deixem lixo ou pipoca caída sob meus pés. A praça já está cheia de pombos que fazem muita sujeira enquanto passam voando. O que me resta? Esperar chover para lavar e me descascar ainda mais. Banco também é vaidoso. Acho que vocês devem estar se perguntando: Como os bancos sabem ler? Bom, de tanto observar vocês, obviamente. Antigamente, ali na

“Acho incomum ver as pessoas sentadas em um banco por mais de uma hora com tanta coisa pra se incomodar”

Carlos Gomes, existia uma parceria que se transformou em amizade. Éramos quatro bancos que passavam dia e noite conversando. Como a praça é meio dividida em eixos, decidimos ser o eixo de bancos mais informados do lugar, sempre compartilhávamos o que aprendíamoscom as conversas das outras pessoas. Logo, elas liam em voz alta e esqueciam o jornal em cima do assento. Fomos praticando e aprendemos. A parceria ficou ainda mais forte quando o banco da ponta teve a ideia de ler os jornais pendurados e repassar as informações para nós. Não é sempre que um jornalista tem tempo para sentar ali e relaxar, mesmo que a redação da Gazeta do Povo seja bem pertinho. Acho que a amizade com os bancos foi o que mais me aproximou de uma relação humana, mesmo me relacionando com eles todos os dias indiretamente. Mais uma vez, o destino quis intervir em minha “felicidade”, mandando um extenso período de chuvas fortes, aumentando a correnteza do Rio Ivo que possui galerias embaixo de nossos pés, fazendo com que o chão da praça cedesse. O buraco que abriu levou um dos nossos amigos sabe-se lá para onde. Nunca mais o vimos. Rolou uma histeria das pessoas pelo fim do mundo e pela abertura de um portal

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vida é bem movimentada. De dia, muitos senhores param para ler jornal ou jogar conversa fora em cima de mim. Gosto quando comentam as notícias e de tentar entender o ponto de vista deles. Muitas senhoras tricotam, muitos casais sentam aqui e colocam o assunto em dia, muitos param para procurar alguma conta para pagar, tem uma Caixa ali na esquina. Tem espaço até para os doidos varridos que perambulam pelo local enquanto são motivo de chacota pelos mais “sadios”. À noite, só os mendigos e alguns maloqueiros usam de minha pessoa. É uma vida que não para. Ultimamente tenho me preocupado com o porteiro daquele prédio cinza do lado da farmácia. Ele anda nervoso, se descabelando e olhando freneticamente para o celular trincado a fim de saber que horas são. Ouvi falar que seu filho está com alguma doença grave e que ele não quer se distrair com nada. Sua hora de almoço dura apenas dez minutos mais cinquenta de desespero. Coitado. Acho incomum ver pessoas sentadas em um banco por mais de uma hora com tanta tecnologia, comtanta coisa para se incomodar. A Elisângela Silva, cobradora da linha Solitude aos sábados, espera uma hora a cada volta que o ônibus dá. Senta e fica, lê uma revista,

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44 do inferno, já que até então ninguém sabia de nada. Não sei como o diabo reagiria ao ver os quatro bancobrothers super-informados como a primeira coisa da sua volta para a terra. Foi tudo muito confuso. O Eriksson Denk da Gazeta foi um dos primeiros que noticiou. Estava perto e fácil ali. Logo a notícia se espalhou e a cratera virou um lugar turístico. As pessoas passavam ali e soltavam um “vixi”, senti algo que imaginei ser vergonha, acho. Aquela sensação de casa bagunçada ou quando te encontram sem as calças. Ali virou um lugar perigoso e ninguém podia passar. Era dia 22 de junho de 2016 e no dia seguinte, o lugar já estava todo isolado e a prefeitura começando a operar. O buraco tinha em torno de cinco metros de largura e dois metros de profundidade, dava um jeito ruim de olhar e uma dúvida pairava sobre o ar isolado de nossas cabeças “aonde isso nos levaria?”. Do alto, podíamos ver o rio passando com toda a sua fúria logo abaixo de uma camada de terra recheada com canos partidos, já que muitos rios são canalizados por baixo de Curitiba. No mesmo dia que se abriu a cratera, lembro que o atual prefeito, Rafael Greca, usou esse acontecimento para atacar o até então prefeito Gustavo Fruet. Greca

falou da má administração e de o que Curitiba virara nas mãos de Fruet, como se ele estivesse arrastando a cidade para o buraco, começando pela praça, começando pela gente. Sendo sincero, não acho que a prefeitura seja culpada pelo infortúnio, pelo contrário, achei eles bem responsáveis e comprometidos para tapar o buraco, até fizeram um comunicado oficial explicando o que acontecera na praça. Talvez Greca só quisesse atacar, já que o Petit-Pavé que ele ama tanto, tinha ido rio abaixo. Houveram muitas piadinhas também sobre a construção do metrô, várias montagens de internautas que gostam de fazer o circo pegar fogo. Passamos quinze dias olhando o buraco. Pior era meu amigo que estava pendurado e não se aproximaram para tirar com medo que o chão despencasse. O coitado ficou umas duas semanas pendurado até o período chuvoso passar. Imaginei que os cinco primeiros dias dele na beira o matariam do coração, se ele tivesse um. Por sorte, o tiraram antes que a coisa piorasse, já que o buraco estava aumentando cada dia mais, correndo risco de ir para a rua e atrapalhar o tráfego, lembrando que tem pontos de ônibus à alguns metros dali. Elisângela não pôde gastar seu tempo ali, teve que ir para o outro lado da praça. O pipoqueiro ficou

uns dias afastados também, não tinh como trabalhar. Só os caras da banquinha tiveram que continuar pois não tem como colocar a banquinha em um carrinho de mão e levar. Nem os três ali conseguiriam. O jovem de 23 anos, Guilherme Lucas que trabalha há apenas quatro anos na praça, não acreditou no que viu e temeu que sua banca de revistas caísse dentro do buraco. Ele sabe como é a movimentação do local. Apesar de trabalhar em uma local onde só se vende revistas, ele estuda mecânica, ouvi ele conversar com seus amigos perto de mim uma

Foto tirada no dia 22 de junho de 2016, quando a cratera se abriu na Praça Carlos Gomes

vez.

Passados dois meses, lá estava a prefeitura recolocando o piso de Petit-Pavé. as pessoas ainda tinham medo de passar pelo local que ficou torcido, cheio de ondas e lombadas, quase formam pequenos lagos quando chove. Mesmo assim foi um trabalho bem feito. O que eu não gostei é que nunca mais vi meus amigos. Os caras da prefeitura colocaram eles em caminhão com tudo o que seria considerado lixo e consumiram com aqueles pobres bancos de praça, o que só aumentou ainda mais meu trauma. Podem me vi-

Ga


azeta do Povo

so código. Como forma de rebeldia, fiz questão de arrancar o meu. Reluzi a plaquinha de metal na cara de um vândalo que usou o canivete da chave para retirar minha identificação. Acho que ele tenha exagerado ao arrancar a primeira madeira do meu assento com um chute. Não sinto dor, só fico cada vez mais feio, vandalizado. Sinceramente não ligo para quem ou o que está me usando, só quero me sentir útil. Pareço um herói de guerra de tanta cicatriz e manchas que tenho em meu corpo. Eu não me canso. Acho que lembrarei de-

Foto tirada no dia 22 de junho de 2017, um ano depois do acontecido. Local permanece sem os bancos

les por toda minha existência porque a gente revolucionou a ordem das coisas. De onde imaginariam que bancos trocavam autoconhecimento e informações sendo que não possuem poder para modificar o meio em que vivem? Estudos revelam a comunicação dos bichos, as plantas que tem sentimentos e tal. Assim como depositam fé em objetos religiosos, deveriam pensar mais nas hipóteses, nas teorias. Precisei ter amigos para sentir que poderia ser mais, mesmo não conseguindo ser. Me sentia humano com a comunicação

Luís Felipe Faria

e com as ideias que formavam meu conjunto. Éramos uma sociedade à beira da praça. Vida de Banco é sofrida, estática e desrespeitada. Queria eu evoluir para uma vida de banqueiro. Por enquanto, sou só observador. Como considerações finais, gostaria de dizer que vejo as pessoas tropeçando na calçada e depois tropeçando na própria merda. Sinceramente, não sei de onde virão os maiores tombos. Metade das chuvas que presenciei foram lágrimas. As pessoas estão assustadas, como se esperassem algo acontecer e influenciá-las. Olha, já vi várias situações ruins por aqui. Falta um direcionamento, talvez um empoderamento que eu, como ser estático, gostaria de ver para que a sociedade evolua e não venha a ser só mais pares de pernas correndo para lá e para cá. Eu não sinto nada, sou um menino de madeira e as pessoas são tão vivas à minha volta. Quilos e quilos de carne se estacionam em mim, todos com problemas e glórias, situações dúbias. Talvez isso seja minha principal angústia, minha limitação em não ser mais. Se eu ainda fosse um banco de ônibus, ou então, um banco 24 horas, me sentiria mais valorizado.

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sitar aqui na Carlos Gomes, estou sozinho. Como banco, não achei que sentiria a perda de coisas tão próximas, que sentiria um remorso, uma tristeza, não sei definir. No depósito, vários bancos voltavam destruídos e eram reformados para circular novamente, quer dizer, para existirem novamente. A reciclagem já ressuscitou muitos. Isso que não se sabe o que fizeram com as árvores e aquelas grades que protegem o jardim. Não temos nomes, temos números. Costumávamos chamar um ao outro pelo número inicial do nos-

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TORMENTO DA NOITE Patrícia Sankari


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48 O chinelo virado para a cama é a única coisa de que ela precisa. De cócoras, com os dedos finos e compridos apoiados nas telhas do telhado, ela observa as pessoas da casa. Com os olhos vermelhos rubi sempre atentos, procura e analisa quem da casa vai dormir com a barriga mais cheia. Fitando sua presa, ela apenas espera que ele tire os chinelos antes de dormir e os deixe virados para a cama. Com sorte, as pontas dos chinelos estão alinhadas com a cama e essa é sua porta de entrada. Junto com o sono calmo, de manso ela chega. Os olhos vermelhos reluzem no escuro e seguem fixados na vítima. Os pés magricelos se encaixam e se adaptam perfeitamente ao chinelo. O peso dela não condiz com a aparência física. As gargalhadas estridentes ecoam pelo quarto, enquanto a Pisadeira sufoca e paralisa a vítima. A lenda da Pisadeira é uma das diversas explicações para o distúrbio conhecido como paralisia do sono. Olhos abertos, estagnados. Força. Nada. Força. Nada. Agonia. Vulnerabilidade. Força. Nada. Agonia. Agonia. Vulnerabilidade. Medo. Falta de ar. Agonia. Medo. Falta de ar. Falta de ar. Falta de ar. E quando o últi-

mo resquício de oxigênio se vai, o som que traz Thais de volta é o de sua mão batendo na cama, liberando toda a força que estava contida em seu corpo. Thais Ramos, 19 anos, já teve paralisia do sono diversas vezes e mesmo assim não sabe como controlar e sempre fica muito perturbada. “A primeira vez que eu tive, eu era muito nova e foi na noite que assisti ‘O Chamado’, eu fiquei com muito medo, achei que a Samara ia me pegar ou algo assim (risos). É uma sensação horrível, é como se você estivesse vulnerável a qualquer coisa”. A lenda urbana da Pisadeira é arrepiante. E assusta ainda mais se juntarmos aos diversos depoimentos disponíveis na internet em que as vítimas contam suas experiências. Os relatos destoam em um fato: nem todos veem a Pisadeira. Mas, no geral, as vítimas citam que estavam acordadas, mas não conseguiam se mexer. Completamente paralisadas. “Eu deitei para dormir, mas não dormi, foi questão de dois minutos ou algo assim”, de canto de olho Henrique Alves, 22 anos, viu alguém espiando pela porta entreaberta, mas quando se deu conta já estava paralisado. “Era uma coisa muito pequena, uma espécie de gnomo maligno. Era pequeno, mas as características me fizeram che-


funcionamento da mente. E foi constatado que o ser humano possui duas funções mentais: o consciente, que é a parte racional, que está relacionado com a atenção, decisão, raciocínio, compreensão; e o subconsciente, que pode, de diferentes maneiras, bloquear ou perturbar a tendência natural à saúde e à vida e, assim, desencadear diferentes doenças ou distúrbios como a paralisia do sono”, afirmou Eder. Mas não é apenas a lenda popular e a ciência que explicam o fenômeno. Os pesquisadores que estudam espiritualidade têm sua opinião sobre por que esse fenômeno acontece. Segundo Bruno Gimenes, que estuda a espiritualidade sem cunho religioso, existe uma linha espiritual que liga a alma à matéria, portanto, nossa alma “passeia” enquanto dormimos e, na hora de despertar, ela volta ao corpo. Bruno explica em seu canal do Youtube que o nosso corpo dorme e nossa alma se expande. Quando a paralisia acontece, nós acordamos a matéria e o corpo espiritual ainda não se reacomodou dentro do corpo físico. Isso pode ocorrer de duas formas diferentes: lúcida ou não lúcida. Normalmente as pessoas acor-

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gar à conclusão de que era algo ruim ou no mínimo algo não muito agradável”. De capuz, com passos curtos e rápidos, o ser pequeno atravessou o quarto correndo, parou atrás do ombro de Henrique e sentou. “Eu não conseguia ver o que era, mas sabia que estava ali”, a ânsia de se mexer aumentava cada vez mais, mas não pelo fato de estar paralisado, afinal essa já era a terceira vez que isso acontecia, mas por não conseguir ver o que era, apenas enxergava a pontinha do capuz preto. “Eu tentei chamar minha irmã, mas não consegui. Do nada, tudo voltou ao normal”. Segundo Eder Araújo, parapsicólogo clínico e hipnoterapeuta, a paralisia do sono é uma condição caracterizada por uma paralisia temporária do corpo imediatamente após o despertar ou, com menos frequência, imediatamente antes de adormecer. Alucinações auditivas ou visuais podem acompanhar o distúrbio. Pessoas ouvem coisas estranhas, veem figuras bizarras e sentem presenças incomuns. Para ajudar as pessoas com esse tipo de distúrbio, é necessário fazer uma análise na história de vida da pessoa para compreender a origem e causa do problema. “Na Parapsicologia Científica Sistema Grisa, foram realizados vários estudos para entender o

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dam “não lúcidas”, ou seja, não sabem o que está acontecendo e ficam com medo. Isso faz com que o corpo físico secrete adrenalina, acelerando o metabolismo, o que ‘força’ o corpo espiritual a se conectar de novo ao corpo físico, acabando com a paralisia. Já a forma lúcida é quando a pessoa tem a noção do que está acontecendo. Dessa maneira, ela se mantém calma, e consegue controlar a situação. Sendo assim, a pessoa consegue dominar seu princípio vital, sair do material e explorar o espiritual. Esse fenômeno tem diversos nomes, como projeção astral, viagem astral, emancipação da alma e desdobramento astral. “Percebe-se que está fora do corpo, sente e enxerga o corpo físico. Esse fenômeno é estudado há muitos anos, por escolas de mistérios como na Índia e no Egito. Aqui no Brasil, nós temos alguns expoentes desse assunto, como Waldo Viera e Wagner Borges. Se você começa a treinar isso, com bastante técnica e concentração, é

“Eu não cheguei nem a dormir, eu sabia o que estava acontecendo”

possível que consiga aperfeiçoar essa capacidade. Tem pessoas que estudam cinco, dez anos para conseguir esse fenômeno”. Para Gimenes, esse é um processo natural da fisiologia e da alma. “É um processo que está relacionado ao ser humano, que está sempre em evolução”. “Novamente, eu não cheguei nem a dormir, eu sabia o que estava acontecendo, porque já era a segunda vez que isso acontecia comigo”. Paralisado, de novo. Só que dessa vez, ao contrário da primeira, a experiência de Henrique foi mais espiritual. Leve, cada vez mais leve, não só fisicamente, mas emocionalmente. E de repente estava tranquilo e a melhor parte: flutuando. O desespero estava longe de tomar conta quando ele se deparou com seu próprio reflexo deitado na cama. Ele estava fora do corpo. O único sentimento que ousou despertar naquele momento era um tipo de curiosidade. Saiu do quarto, mas não pela porta, atravessou a parede, passeou pela casa. “Eu

tinha certeza de que estava ali”. Sem nenhum motivo aparente, e muitos mistérios por trás, ele voltou ao quarto e entrou no corpo. “Aí tudo voltou ao normal! Com certeza é uma experiência que eu queria ter novamente”. Segundo Eder Araújo, a paralisia do sono acontece durante o sono R.E.M, que é quando estamos tendo nossos sonhos mais vívidos. Durante essa fase, os olhos movem-se rapidamente e a atividade cerebral é similar àquela que se passa nas horas em que se está acordado. “Quando você está sonhando, seu corpo libera alguns hormônios para ele ficar paralisado. Isso acontece para que você não corra de verdade caso sonhe com alguma coisa terrível e comece a correr no sonho”. A transição normal para o despertar envolve duas grandes mudanças no cérebro: o retorno da consciência e a volta do controle muscular. Apesar de essas duas funções estarem em locais diferentes do cérebro, elas são ativadas


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Segundo Eder, algumas das explicações para o distúrbio acontecer é a pessoa não estar dormindo bem, não ter regularidade no sono, utilização de drogas, cansaço, estresse ou algum trauma ou sofrimento profundo. A paralisia não tem cura, mas existem formas de tentar evitá-la. Algumas das sugestões de Eder são fazer exercícios físicos, tentar dormir sempre no mesmo horário, encerrar as atividades do dia sempre um tempo antes de ir deitar, tentar relaxar e não levar os problemas para a hora de dormir. “Mas tem pessoas que realmente não conseguem dormir direito, têm insônia, não conseguem ter regularidade no sono por causa de problemas e tudo mais. Então, ela pode procurar um profissional. Como eu sou hipnoterapeuta, eu sei que esses profissionais vão procurar quais são as desarmonias e o que está acontecendo com a pessoa, tanto naquele momento específico, quanto durante a vida dela, para achar o que pode ter desen-

cadeado esse tipo de distúrbio”. Uma ferramenta que Eder utiliza muito no tratamento da paralisia do sono é fazer a pessoa entender como funcionam, de fato, algumas coisas. Por exemplo, se a pessoa tem algum medo ou angústia isso pode ser tratado por meio da hipnose, isso ajuda a entender os fatos de outro ponto de vista, o que, segundo Eder, tem dado muitos resultados no tratamento da paralisia.

“Como nas outras duas experiências, foi só deitar e estava paralisado”

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simultaneamente quando acordamos, normalmente. “Na paralisia do sono, um atraso ocorre entre o retorno da consciência e a ativação do controle muscular. Então a pessoa ‘acorda’, mas fica paralisada por segundos ou minutos”, afirmou Eder. Como nas outras duas experiências, foi só deitar e estava paralisado. Tentou se mexer. Tentou com mais força. Tentou com toda sua força. Tentou gritar. Nada. Como num sonho em que não temos força, só que real. O desespero tomou conta de Henrique, afinal, era a primeira vez que acontecia. “Aquela sensação foi terrível. Passaram várias coisas na minha cabeça, que eu estava morrendo, que tinha tido um derrame, achei que estava acontecendo alguma coisa bem ruim. Mas do nada voltei, tudo tranquilo, tudo bem”. Henrique afirmou que as suas três crises aconteceram depois dos 17. As duas últimas foram em situações bem parecidas: tensão pré-vestibular e autocobrança elevadas ao extremo.

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A HORA DO PARTO Gabriela Jacomite

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“Na hora de fazer o filho não sofreu, né?”, “Pare de gritar!”, “Vou deixar você sozinha”, “Seu filho vai morrer se você não obedecer”. Já pensou ter que escutar frases desse tipo do profissional que está realizando o seu parto, o momento que deveria ser um dos mais importantes da sua vida? Essa é a realidade de uma em cada quatro mulheres, segundo a pesquisa da Fundação Perseu Abramo. Qualquer procedimento feito no corpo da mulher em trabalho de parto sem autorização é considerado violência obstétrica, e a mãe, doula, terapeuta holística e ativista do feminismo, Amanda Nunes afirma: “Qualquer pessoa que é agressiva, deixa aquela mulher acuada ou faz algum ato que não foi autorizado comete esse tipo de violência”. Porém, ela não é apenas física, e pode ser também verbal, psicológica ou até mesmo sexual, segundo Amanda. “Tudo que não permite que a mulher seja protagonista daquele momento é considerado violência obstétrica”. A mais comum de todas é a verbal com frases do tipo as que foram citadas no início da reportagem. Nesse momento, quem vai dar à luz deve se sentir à vontade para andar, ficar na posição mais confortável, tomar água, enfim, o profissional da área da saúde,

na teoria, deve oferecer as melhores condições para a mulher se sentir bem. Entretanto, não é bem assim que funciona. Entre os casos mais comuns de violência obstétrica, a doula cita a episiotomia (corte cirúrgico feito na região entre a vagina e o ânus), mesmo sendo comprovado que é totalmente desnecessário, a Manobra de Kristeller (empurrar o fundo do útero para facilitar o nascimento do bebê), deixar a mãe em jejum, não permitir que ela tome água e se alimente e não deixar que tenha acompanhante o tempo todo, desde a preparação para o parto até a recuperação. Porém, de acordo com a Lei Federal nº 11.108/2015, a RDC 36/2008 da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), é direito da mulher ter um acompanhante na hora do parto. A enfermeira obstétrica Marcelexandra Rabelo conta que isso está relacionado ao préjulgamento da mulher. “A história do parto é muito cultural no sentido em que não se fala de sexualidade e de sexo, o que acaba transformando em um tabu, e o parto nada mais é que a extensão da sexualidade da mulher”, afirma a enfermeira. Através dessa cultura, surge o pensamento de que o parto precisa ser sofrido, pois a mulher optou

Vecteezy


Vecteezy

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filha, os atendentes falaram que ela tinha ido embora do hospital e por rede social a mãe dela começou a surtar e me xingar, foi terrível! Como eu não tinha experiência e não sabia o tempo de bolsa rota, o médico disse que ia demorar mais para o bebê nascer e encaminhou a gente até o Fátima (Hospital Nossa Senhora de Fátima) porque lá era o plantão seguinte dele. Ao chegarmos, ela entrou sozinha e, além de não nos deixarem entrar (Amanda e o namorado de Elisa), induziram o parto, ficando eu e o namorado dela na recepção. Ele só conseguiu ver a namorada apenas quando o bebê estava nascendo. Antes de entrar em trabalho de parto, Elisa disse que não queria que fosse feita a episiotomia. A médica que estava de plantão olhou pra ela e falou ‘Agora eu já fiz’, mas, para piorar a situação, esse corte inflamou e a nova mamãe ficou a madrugada inteira sozinha gritando de dor e a médica só mandava ela calar a boca, a gente (Amanda e o namorado de Elisa) lá na recepção sem poder fazer nada, foi assim... terrível, uma história supertraumatizante no meu primeiro parto”, contou Amanda. A ideia de “mãe perfeita” e idealização da mulher criam a cultura de que a maternidade é muito cor de rosa, um momento feliz no

“A nova mamãe f icou a madrugada inteira sozinha gritando de dor”

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de produzir. A enfermeira ainda reforça que, pensando biologicamente, o corpo da mulher foi feito para parir sendo então natural o parto normal. A Organização Mundial da Saúde (OMS) mostra que cerca de 15% é o indicativo de cesárea, então isso significa que 85% das mulheres são capazes de terem seus filhos por parto normal. Amanda Nunes já teve várias experiências nas quais viu casos de violência obstétrica, mas o que mais deixou marcado foi o primeiro parto. “Eu tinha acabado de fazer formação de doula e era um trabalho voluntário. A bolsa da Elisa, quem eu estava acompanhando, já havia estourado há algum tempo e eu não tinha conhecido ela ainda, nos conhecemos no Santa Cruz e queriam interná-la para fazer uma cesárea. Por ter recusado, a enfermeira foi extremamente grosseira com a mãe dizendo: ‘Olha, se você quer ter o seu filho aqui é para fazer uma cesárea, se não pode ir embora’ batendo até a porta quando saiu do atendimento. Então saímos atrás de hospitais particulares, até que encontramos um médico humanizado no Hospital Nossa Senhora das Graças e isso já eram 3 horas da manhã. A mãe de Elisa, preocupada, ligou para o Santa Cruz e perguntou da

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por viver a sexualidade dela e ser mãe, ou seja, tudo aquilo é a consequência por ela ter feito sexo. Outro ponto que pode causar essas agressões, segundo Marcelexandra, é o modelo tecnocrático oferecido pela obstetrícia que traz as intervenções feitas no parto como se a mulher fosse um objeto. “Esse modelo é como se fosse uma ‘fábrica de nenéns’, se o bebê nasceu bem é o que importa, a mulher não precisa de uma atenção e um cuidado integral”, afirma a enfermeira obstétrica. O que não parece ser uma agressão é a utilização da ocitocina, um hormônio que estimula as contrações durante o parto, mas, pelo contrário, se for sem necessidade, é uma violação ao corpo da mulher. Segundo Marcelexandra, é um hormônio que tem a função de facilitar nas contrações musculares na hora do parto e na amamentação. Por mais que o corpo da mulher produza o hormômio, se ela está em uma situação de vulnerabilidade e insegurança, o que é muito comum em um ambiente hospitalar no qual a mulher não conhece ninguém, ela não fabrica a ocitocina. Por esse motivo, quem está dando à luz precisa se sentir segura na hora do nascimento do filho e não receber esse hormônio por qualquer motivo como se fosse incapaz

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qual só tem amor, mas na realidade não é bem assim. Amanda Nunes afirma que, além do quesito físico, existem outros pontos que desmascaram a maternidade cor de rosa. “A questão hormonal, a privação do sono e o blues puerperal (melancolia nos primeiros dias após o nascimento do bebê) são situações exaustivas para a mãe e às vezes totalmente ignoradas”. As propagandas de fralda, por exemplo, sempre mostram aquela coisa bonita, a mãe toda maquiada, arrumada e feliz amamentando, mas a realidade é bem diferente disso. “É logico que a gente tem esses momentos de amor intenso, mas a maternidade é bem louca (risos), acima de tudo somos seres humanos”, enfatiza Amanda. Mesmo que ser mãe não seja um mar de rosas, teoricamente, a protagonista desse momento deve ser a mulher, porém nem sempre isso acontece. Mariana, que já é mãe há 1 ano e meio, acabou tendo seu filho em casa, não por opção, mas sim porque não teve tempo de chegar ao hospital. “Eu estava indo para o hospital com o meu marido, mas quando vi meu filho já estava nascendo, então o Rafa chamou a ambulância para me levar até a emergência. Chegando lá eles me ignoraram totalmente e, ainda por cima, falaram que

tinha feito o parto em casa propositalmente então eu que me virasse. A médica irritada disse: ‘Vou ter que dar mais de 20 pontos internos nisso ai’, mas até hoje não temos certeza se precisava de tudo aquilo mesmo. Depois disso fui mandada para o CO (centro obstétrico) e fiquei quatro horas sozinha, sem meu filho, marido e quando eu chamava a médica ela dizia: ‘Agora que você quis fazer seu parto em casa, vai esperar, para mim você é invisível’, enfim, fiquei quatro horas sozinha e sendo invisível. Eu até entrei com um processo judicial, porém, além de dores nas relações sexuais que eu sinto até hoje, nunca ninguém vai conseguir tirar as cenas da minha cabeça do momento que deveria ser o mais bonito da minha vida”, contou emocionada Mariana. Em casos como esse é muito importante que as mulheres entendam que passaram por uma situação de violência obstétrica, entretanto nem todas sabem caracterizar isso como agressão. A doula Amanda afirma que a maioria das mulheres não compreende que sofreu na hora do parto. “Os maiores casos de violência obstétrica estão no SUS e é aquela coisa, a mulher pobre e preta é as que mais sofre com violência obstétrica e acha aquilo normal. As pessoas


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obstétrica, mas não querem mexer com aquilo porque já passou ou não querem reviver novamente o que aconteceu. Eu acredito que essa realidade pode mudar, é um passo de cada vez, mas se todas as mulheres procurarem esses meios e denunciarem conseguimos material palpável e provas para combater essa violência”, afirma a doula. Mesmo que existam formas de prevenir e meios aos quais a vítima pode recorrer, o trauma que a violência causa não tem como reparar totalmente, seja ele físico ou psicológico. A Manobra de Kristeller, por exemplo, pode quebrar a clavícula da mulher. Também tem a questão emocional, o que vai ficar marcado no inconsciente dessa criança também. É muito cruel saber que o seu filho chegou ao mundo através da violência, além dos traumas que podem ser causados inclusive para o bebê.

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leigas no assunto acreditam que o médico é o seu doutor e acabam endeusando o profissional pela cultura brasileira que está enraizada na sociedade, uma triste realidade”, lamenta a terapeuta holística. A principal forma de prevenir esse tipo de violência é buscar informação, procurar saber dos direitos e a quem recorrer caso situações como as retratadas aconteçam. Geralmente quem opta pelo parto humanizado tem o conhecimento sobre o que é e como funciona. Amanda explica que, por ser algo relativamente novo e ainda pouco conhecido pela sociedade, tem pouca visibilidade e, consequentemente, o custo é maior. “Um parto domiciliar hoje custa em torno de 5 mil reais e em hospital, com um médico humanizado, você vai gastar um pouco mais que isso, pois tem a disponibilidade da suíte, do pediatra, da doula, enfim, entre 5 a 10 mil”, conta Nunes. Por mais que muitas pessoas não saibam, as vítimas de violência obstétrica podem ligar na ouvidoria da maternidade, denunciar através do 156, do Ministério Público ou ainda recorrer ao CRM (Conselho Regional de Medicina). “O problema é que algumas mulheres não denunciam mesmo sabendo que sofreram violência

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UMA RELAÇÃO DE 51


E CORRENTES E AMARRAS Kamila Deffert

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60 60 Enquanto se observava no espelho pela última vez, antes de sair de casa para encontrar Bruno*, Ana* repassava na sua cabeça cada palavra que diria a ele naquela noite. Ela trocou de roupa sete vezes e no último momento, ao se maquiar, optou por não usar batom. Ela havia tomado uma decisão, colocaria um fim no relacionamento dos dois. Estava cansada das brigas, desculpas, promessas e pressões psicológicas. Estava cansada de um relacionamento abusivo. Era sábado, faltavam apenas vinte minutos para cinco horas da tarde, seu celular não parava de tocar, era Bruno questionando a sua demora. Quando chegou ao encontro, por um momento, Ana repensou no que faria naquela noite. Entretanto, sabia que aquela decisão não poderia esperar. “Boa noite, amor”, disse Bruno encolhido na cadeira, esperando que ela o beijasse. Aquele minuto parecia não terminar. Ela sabia que o amava, mas não podia mais continuar. Na noite anterior, Bruno havia agredido verbalmente Ana. Ela tinha saído com seu melhor amigo. Enquanto ele havia saído com os amigos. Ao som de “Don’t go Away”, do Oasis, música preferida da garota, o rapaz apareceu de “surpresa” no lugar onde ela estava. “O outro lugar estava cheio”, disse ele. “Eu

“No começo, seu relacionamento era como qualquer outro”

estava no auge da minha felicidade, estava tocando a minha música. Levei alguns milésimos de segundos a mais para perceber quem era e me virar”. Antes mesmo que falasse algo, ele agarrou seu braço e saiu empurrando todos que estavam na sua frente, arrastando-a para fora do lugar. “Não acredito que você fez isso comigo sua vagabunda, garanto que ficaria com qualquer um. Você nem ligou que um cara chegasse por de trás de você”, gritava ele. Ela tentava explicar a situação, mas a única coisa que ele sabia fazer era gritar, xingá-la e fazê-la se sentir mal. A briga do dia anterior não havia sido a primeira. Bruno já havia agredido Ana em várias outras situações, principalmente quando estava chapado. O rapaz sempre que usava substâncias ilícitas arrumava alguma desculpa para bater na garota. A jovem tem uma tatuagem de flor no braço direito, logo abaixo carrega uma cicatriz, resultado de uma das tentativas do namorado de tentar agredi-la. “Outro dia que ele estava chapado e queria me bater sem nenhum motivo, eu o empurrei de leve para me defender. Ele puxou o meu braço com as unhas tão forte que ficou uma cicatriz”. No levantamento realizado pelo Instituto Avon com parce-

ria do DataSenado, apenas 2% das mulheres vítimas de relacionamentos abusivos declaram ter registrado boletim de ocorrência. Ana faz parte desses números. Ela nunca denunciou as agressões do ex-namorado. Ana sentou-se à mesa em frente ao rapaz, tomou coragem e soltou aquelas palavras com firmeza “Precisamos conversar. Eu quero terminar o nosso namoro”. Bruno respondeu com desdém, achando que ela estava brincando “Amor, não tem graça, não gosto de brincadeiras”. “Não estou brincando. Estou cansada dos seus jogos, sua pressão psicológica, nossas brigas, suas proibi...”, mas antes que Ana pudesse terminar a frase, o rapaz levantou o tom de voz e começou a gritar. “Você não tem noção do quanto é escrota, cada dia que passa eu pego mais nojo de você. Garanto que quem colocou essa ideia na sua cabeça, que precisamos terminar, foi a sua mãe e suas amigas. Elas ficam falando que estamos em um relacionamento abusivo. O nosso relacionamento não é abusivo, entendeu?”. Durante um ano, Ana permaneceu em relacionamento abusivo. Essa foi apenas uma das tentativas de colocar um fim na relação dos dois. Ela conheceu Bruno em um clube de livros. Eles compartilhavam do mesmo gosto literário e

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reto, que desde o começo do ano trabalha com mulheres vítimas de relacionamento abusivo, o principal ponto é focar que existe alguém que está manipulando a relação, às vezes inconscientemente. “Ele não sabe que está manipulando, mas há controle na relação, o que faz com que a mulher viva a vida dele e não a dela”. A psicóloga também reforça que os relacionamentos abusivos não acontecem apenas com casais heterossexuais, mas também com homossexuais. Ana não pensou duas vezes; enquanto Bruno gritava, ela levantou da mesa e se despediu. Percebeu que não havia conversa com o namorado. “Você vai me deixar aqui, falando sozinho?”, questionava ele. Por um instante ela pensou em voltar, mas sabia que, se fizesse aquilo, assim como as outras vezes, ele continuaria agindo do mesmo jeito. Na tentativa anterior de colocar um fim no relacionamento, a jovem não conseguiu. O rapaz a convenceu a mudar de ideia. Ele fez promessas e juramentos: “Eu vou mudar, prometo”, “Se eu for abusivo, você me fala que eu mudo”, “Não vou controlar seu facebook e suas amizades”. As promessas duraram dois meses e as brigas voltaram a acontecer, dessa vez piores. Depois daquela noite, Ana e Bruno terminaram.

“Ele puxou meu braço com as unhas e f icou uma cicatriz”

Mesmo com o fim do relacionamento, o rapaz mandava mensagens com pedidos de desculpas e querendo reatar. “Eu evitava responder, mas nos encontramos algumas vezes e eu disse que não voltaria. Ele me machucou muito, fiquei depressiva e precisei fazer terapia. Não foi fácil. Ele saiu falando para os amigos que arruinei a sua vida e dizia que o problema da nossa relação era eu, que era louca e inventava algum motivo para as nossas brigas, mas o problema na relação é que ele nunca aceitou que estávamos em uma relação abusiva”. Pressão psicológica Érica apressava os passos para chegar no horário na aula. Ela havia saído atrasada do serviço e sabia que seu namorado a esperava na entrada. A jovem não teve tempo de trocar de roupa antes de sair do escritório e sabia que isso poderia ser um motivo para Diego discutir com ela. Era sexta-feira e, como os dois teriam apenas uma aula, haviam combinado de ir a uma festa depois com alguns amigos. Era aniversário do melhor amigo de Diego e eles queriam comemorar. Érica começou a pensar em desculpas para dizer ao namorado, porque estava toda maquiada e de vestido, pensou em usar a

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tinham amigos em comum. No começo, seu relacionamento era como qualquer outro. O rapaz a tratava bem, fazia surpresas, buscava nos lugares, só para ela não precisar voltar sozinha de ônibus. Acompanhava até sua casa, mesmo que isso significasse pagar duas passagens e a tratava bem na frente da família. Contudo, as coisas começaram a virar de cabeça para baixo. A garota se viu obrigada a apagar pessoas do seu facebook, pelo simples fato de o namorado não gostar da pessoa. Foi impedida de falar com qualquer pessoa relacionada aos seus relacionamentos anteriores. Foi proibida de usar certas roupas e usar maquiagem, principalmente batom. E se viu contrariando os valores pregados na sua casa, porque não eram os valores da casa dele. “Fui fazendo tudo, achando normal, achando que eu era uma péssima namorada e devia me adequar aos costumes dele”. O caso de Ana está longe de ser apenas mais um. No país, 66% das mulheres sofreram violência ou controle do parceiro, sendo que 51% afirmaram ter sofrido ameaças e perseguições, segundo a pesquisa realizada pelo Datasenado no ano de 2014. O relacionamento abusivo se caracteriza pelo domínio do parceiro. Para a psicóloga Hemanuelle Bar-

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desculpa do aniversário, mas sabia que aquilo não daria certo. “Você está atrasada”, falou com tom de bravo. “Eu sei, desculpe, meu chefe pediu para ajudar a atender os clientes na sala de reunião”, explicou. Diego olhou a namorada dos pés à cabeça. “Você foi trabalhar vestida assim?”, questionou ele. Érica preferiu não responder, tentou pegar na mão do namorado, dizendo que já estavam atrasados para a aula. Diego largou a sua mão e começou a gritar com a garota. Era mais uma das suas crises de ciúmes e controle. A jovem evitava usar vestido, shorts, saia e qualquer maquiagem desde que começou a namorar o rapaz. “Ele queria controlar o que eu vestia. Eu amava usar saias, shorts e batons coloridos, porém começou a se incomodar com as minhas escolhas. Ficava questionando a minha roupa e meu comportamento, mas no começo achava que era normal”. A briga do começo da noite não foi a única. Depois da aula, a jovem queria voltar para casa, mas o namorado a pressionou para que ela saísse com ele e os amigos. Na festa, Érica não estava se sentindo à vontade. Todos estavam bebendo e alguns usando substancias ilícitas; seu namorado era um deles. “Toda vez que ele fumava maconha, ou usava LSD e a garota se recusava

“Você foi trabalhar vestida assim?”

a usar, ele fazia pressão psicológica na jovem, fazendo ela se sentir mal até ceder a sua chantagem.” Toda vez que me recusava a usar maconha, ele ficava bravo, me deixava pra trás, xingava ou ficava emburrado. Depois a mesma coisa com LSD, mas tivemos uma conversa séria e pedi pra ele parar de ficar me oferecendo. Quando eu não queria usar, ele ficava falando para todos que eu não sabia aproveitar e que só estragava os rolês dele, embora ele jurasse que não ia mais fazer isso depois da nossa conversa, a situação sempre se repetia. “Só dessa vez, por favor, se não você não vai aproveitar, é a última vez que eu peço”, “Você não sabe aproveitar os rolês, sempre que você pede algo eu faço, mas comigo você sempre nega”. Érica começou a perceber que a relação só lhe fazia mal. A cobrança e pressões psicológicas realizadas pelo namorado foram deixando a jovem deprimida. Nos fins de semana, a única coisa que ela queria fazer era ficar deitada, chorando sem sair ou fazer algo e inventava desculpas para não ver o namorado. E o rapaz fazia cada vez mais ela se sentir culpada pela situação do namoro dos dois. “A manipulação e pressão psicológica é a principal arma do abusivo, ele se aproveita da fragilidade da mulher para fazer com


“Eu amava usar saia, shorts e batons coloridos, porém ele começou a se incomodar com as minhas escolhas”

que ela ache que a culpa de a relação estar dessa forma seja da vítima, mesmo que ele não queira agir assim, ele age de forma inconsciente, porque entra em um círculo vicioso, uma dependência emocional de ambas as partes, que todo mundo que é a vítima, mas na verdade é o comportamento de um que acaba afetando os dois”, revela a psicóloga Hemanuelle Barreto. A jovem começou a perceber que havia algo de errado. Quando ela curtiu um post chamado “15 sinais de que seu relacionamento é abusivo” e ele veio reclamar

dizendo “Para de curtir essas coisas, tem muita coisa nessa lista que acontece no nosso relacionamento, mas o nosso namoro não é abusivo, entendeu?”, foi quando suas amigas e seus familiares perceberam que havia algo de estranho. “Todos me falaram que eu devia terminar, que isso era abuso psicológico, eu não era louca, como ele dizia, e nem burra, o errado era ele e decidi colocar um fim no nosso relacionamento”. Quando terminaram, Diego não aceitou muito bem o fim da relação, e a jovem ainda precisou se livrar

da dependência emocional que havia com o ex-namorado. “Depois do término, acabamos nos encontrando e ficando algumas vezes e ele quis voltar, mas me mantive forte, eu precisava me afastar, o nosso relacionamento não nos fazia bem”. A psicóloga Hemanuelle Barreto destaca que é preciso trazer a vítima para a realidade e fazê-la perceber que ela não precisa de alguém que a maltrate. Algumas pessoas querem sair dessa forma de relacionamento, mas não conseguem por causa dessa

Como identificar se a sua relação é abusiva? Ciúmes e controle: o ciúme dentro de uma relação é algo bem comum, o problema é quando ele se junta com a possessividade. Dentro de um relacionamento abusivo, o parceiro tenta te isolar e controlar, acusa você de traição ou de flertar com outros homens, mexe nas mensagens do seu celular e nas das redes sociais. Ele controla suas atividades e com quem você conversa. Não te deixa sair e define os seus amigos. Não gosta que você seja independente. Para o manipulador, você deve dedicar-se apenas a ele.

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Mudança de humor e violência: ele te agride verbalmente, fisicamente e faz ameaças, mas muda de humor muito rápido, de agressor e abusivo, para humilde e amoroso, tentado se desculpar. Além disso, faz promessas de que vai mudar, porém os abusos continuam.

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Superioridade e manipulação: usa táticas para te diminuir, fazendo com que se sinta culpada pela situação. Para o abusivo, ele sempre estará certo e você errada. Ele justifica suas ações, mostrando aos outros que é o certo na relação. Ele procura fazer com que a mulher se sinta fraca, ou ache que está ficando louca e faz pressão psicológica.

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Arquivo pessoal

MĂƒE SIM, SOZINHA NUNCA

Nicole Smicelato

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Irati, Paraná. Maio, 2011. Seis e dez da manhã. Bianca Andrade desliga o despertador. Mais um dia começa na pacata e resfriada cidade, mais uma vez o cheiro do café fresco entra por debaixo da porta do quarto e se encontra com a brisa gélida de mais um outono. Esfrega o olho e veste a pantufa enquanto ouve os talheres batendo na louça lá na cozinha. Espera o pai desligar o chuveiro para ter sua vez no único banheiro da casa e se olha no espelho. O que vê é o mesmo de ontem: 17 anos, cabelos volumosos e o rosto “amassado”. Mas essa quarta-feira tão típica teve uma reviravolta quando, lá pelas seis e meia, ela escuta passos no terreno sem muros. Seu então namorado chega na hora combinada com a sacola combinada, e a joga pela janela do banheiro. Dentro, um teste de gravidez, o mesmo que ela pediu estritamente, pois segundo uma amiga, aquele sim era bom. Os três minutos que indicam na caixa e no manual de instruções parecem durar três horas, e nem uma música que toca no celular consegue ajudar a acalmá-la. Olha para baixo, duas listras, pensa, raciocina e procura nas instruções se aquilo era realmente o que ela estava pensando. Sim, era. Olha para o espelho novamente e o que vê agora é: 17 anos, cabelos volumosos e grávida.

“Olha para o espelho novamente e o que vê agora é: 17 anos, cabelos volumosos e grávida.”

“E agora, o que eu faço?” Londrina, Paraná. Junho, 2014. Quatro horas da tarde. Grazi* entra no carro e fecha a porta com força. A frustração é tão grande que nem consegue se concentrar para colocar o cinto de segurança e se atrapalha toda. Decide parar numa padaria famosa da cidade. Para o carro em frente do estabelecimento e por segundo ela repensa a decisão por alguns fatores: a falta de dinheiro, a diabetes tipo 2 e o movimento devido o horário. Tudo isso passa quando sente o cheiro na nega-maluca favorita vindo pela porta e lembra que acabara de ser demitida. Decide descontar a raiva naquele pedaço generoso de bolo com muito chocolate, assim como ela precisava naquele momento. Quando chegou em casa, algumas horas depois, percebeu que não estava se sentindo bem, um pouco tonta e com náuseas. “Acabei de atacar minha diabetes!”. No pronto socorro várias perguntas e exames para poder medicá-la. Às vinte horas daquele dia toda a vida dela mudou quando a doutora lhe apresenta o exame HCG positivo. Olha para baixo, exame com o hormônio muito superior a 25,0 mUI/ml, para, pensa, não consegue raciocinar. 25 anos, desempregada, solteira e grávida. “E agora, o que eu faço?” São Paulo, capital. Ja-

neiro, 2017. Nove horas da manhã. Vane Almeida acorda num domingo caloroso com muita preguiça. Pensa se precisa levantar da cama, se vai tomar café na hora do almoço ou almoça na hora do café. A vida continua pacata como ontem e todas as outras semanas. O gato arranha a porta para sair na varanda do quarto. Ela decide atender o pedido e aproveita para ir ao banheiro. Para espantar a moleza vai para o banho e embaixo da água quente pensa em tudo que conquistou: dinheiro, casa, viagens e amigos. Mas se sentia tão vazia ao mesmo tempo, como se um buraco estivesse ficando cada vez mais fundo no seu peito e não havia dinheiro e oportunidades na vida que o completassem. Sempre queira ser mãe e havia decidido que iria ser agora, assim mesmo, sem ninguém para dividir a tarefa. Sozinha. Por opção. Com 32 anos a facilidade já não é mais a mesma, mas os exames e coletas apontavam que estava tudo certo. Naquele domingo calorento ela atende o telefonema que tirou seu trem da vida dos trilhos. “Desculpe a hora, mas eu sei que você quer muito essa resposta”, diz a doutora. A primeira tentativa de todo o processo de FIV (Fertilização in vitro) feito há um mês atrás deu certo. “Você está grávida!”. O calor lá fora se transferiu para den-


tro do peito. Olha para baixo, mãos tremendo de alegria, para, raciocina e tudo o que ela conseguia pensar era “E agora, o que eu faço?”. Ouvimos muito dizer a máxima “mãe é mãe”, estamos acostumados a ela pois a maioria de nós temos as nossas como a maior referência de comportamento materno, mas a verdade é que nunca paramos para pensar o que isso quer dizer. Você se tornou mãe? Você gostaria de ser mãe? E principalmente, você é a mãe que a sociedade pede? Se suas respostas foram unanimemente negativas, não tem problema. Nossa sociedade deseja moldar nossos comportamentos, principalmente quando se trata do assunto. Não há igualmente problema algum em desejar essa dedicação na sua vida, e isso independe dos seus motivos. Porém, aquelas que saem da curva, ou melhor, entram pela tangente nessa estrada que dura a vida toda, são por todo tempo julgadas. “A maternidade por si só já é completamente assustadora e complexa, imagina quando existem mais mil olhos de águia vigiando seus passos e decisões sobre sua vida.”afirma Grazi.

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“Você se tornou mãe? Você gostaria de ser mãe?”

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“Sozinha, sem apoio da família por não constituir uma história acompanhada de alguém só agrava a minha situação.”. Grazi conheceu o pai de seu filho, João*, de dois anos, numa festa universitária. Por anos aconteceram encontros e desencontros, até que um dia o destino decidiu, como ela mesma diz, “sacanear a brincadeira” do casal, e ela engravidou. “Eu não queria, não precisava e não tinha como. Feliz eu não fiquei mesmo.”. A situação muda na história da Bianca em apenas alguns detalhes “eu namorava o pai da Gabriela desde os meus 15-16 anos. Engravidei e no meio da gestação, separamos. Voltamos quando ela fez 1 ano. Separamos e voltamos novamente. Até que no ano passado decidi terminar de vez essa relação e hoje somos só eu e ela.” A vida da Vane nunca favoreceu um relacionamento duradouro que ela desejasse constituir uma família com alguém. Traçou seu próprio destino sozinha e alcançou seus objetivos. Estava no auge da carreira pessoal quando decidiu ser mãe, e desacompanhada. “Eu precisava de alguém comigo, um filho. E não queria dividir minha tarefa de criação com ninguém. Tudo sozinha, como fiz minha vida toda. Minha primeira tentativa em FIV deu positivo e, agora sim, posso continuar mi-

“O Brasil tem 67 milhões de mães. Desse percentual, 31% são solo”

nha vida feliz.” Todas essas mulheres, mesmo com realidades e histórias diferentes, possuem semelhanças de vida muito fortes e que vão além da maternidade. Tem ligação com a sociedade, ou melhor, o pior que a sociedade faz. Todas elas são sozinhas e solteiras. O que não é semelhante é o estado civíl em que se enquadram com a maternidade em que vivem. Solteira, do dicionário: Adj. Diz-se da mulher que ainda não se casou. Diz-se das fêmeas (de animais) que não têm filhos. Sub. feminino “Mulher que ainda não se casou”. Sinônimo de donzela. Mãe, do dicionário: Sub. feminino Aquela que gerou, deu à luz ou criou um ou mais filhos. Fêmea de animal que teve cria(s) ou oferece proteção ao filhote que não é seu. “Aquela oferece cuidado, proteção, carinho ou assistência a quem precisa.”. Nem na gênese das palavras é possível encontrar conformidade entre elas. Mas mesmo assim, a sociedade insiste em adjetivar esse substantivo que não precisa de caracterização. Por esse motivo, a maternidade solo vem com tudo para ensinar como devemos tratar o assunto, além de se mostrar como uma rede de apoio para todas as mulheres que enfrentam essa batalha sozinhas. “Eu vi a maternidade solo como uma chan-

ce de realizar meu sonho, de mergulhar de cabeça nisso e viver intensamente. Mas não é isso que acontece com todas. Hoje, grávida, eu ainda não posso dizer como vai ser, quais serão meus problemas e dificuldades, nem minhas alegrias. Mas o que eu posso dizer é que quero continuar nessa teia de amor e empatia para aquelas que escolheram ou não essa missão.” afirma Vane. Essa realidade, inclusive para quem a escolhe, é reflexo do comportamento social do país em pressionar a mulher para exercer a função, enquanto o pai fica isento de qualquer cobrança. Isso aparece na pesquisa realizada em 2015 pelo Instituto Data Popular que aponta que o Brasil tem 67 milhões de mães. Desse percentual 31% são solo. Esses efeitos também se apresentam quando o homem é socialmente colocado como superior no levantamento, já que 55% das mães acha que o papel principal do homem é trazer dinheiro para dentro de casa e 60% delas acham que as tarefas domésticas são dever da mulher. “Eu por muito tempo aceitei minha posição subordinada ao meu namorado, mas acho que como algumas outras mulheres, a gente não tem muita paciência e logo manda embora.” diz Bianca. “Eu falei com o pai do João* sobre a gravidez, cla-


12,1% para pessoas que vivem sozinhas. Essa realidade é nada trágica ou preocupante, como muitos pensam. A maternidade solo ,assim como todos esses outros números positivos sobre a maternidade, mostram apenas o ressurgimento da mulher na sociedade e como ela pode e é forte. Mas então, e agora, o que eu faço? Bom, a vida continua, planejada ou não, sonhada ou não e ideal ou não. Da tarefa árdua que pouco de nós conhecemos, essas mães sabem de cor e salteado o que fazer. E o mais incrível: sozinhas e fortes.

Vane gosta de passar as tardes pensando em como será seu bebê e diz “Eu não precisei de relacionamentos, para realizar meu sonho, como é o comum. Eu não precisei de um papel de comunhão de bens, reconhecido em cartório, para dizer que eu sou uma cidadã responsável pelas minhas escolhas. E por esse motivo, eu não sou mãe solteira. Eu sou mãe. E é assim também com todas as outras que tiveram um parceiro amoroso e disso veio os filhos. Não é necessário um ‘bambolê’ no ane- lar esquerdo

para ser mãe. E é isso que somos. Mães! E somos mulheres, guerreiras e livres de rótulos.” *Nomes fictícios para proteger a imagem dos entrevistados

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ro. E obviamente ele não quis saber. Mas eu não baixei a cabeça. A melhor coisa é criar meu filho sozinha, mesmo com todas as milhares de dificuldades. Quando me perguntam de quem ele é filho, eu encho a boca para falar: é meu!” O problema para elas não é carregar o filho na barriga durante nove meses e depois no colo por anos. O que realmente as atormenta é ter que carregar a culpa de uma gestação, que em muitos casos não é planejada, e principalmente, a escala social de mãe desquitada. Ser solteira no mundo social da maternidade é ser rebaixada para “não segurou o macho” ou “abriu as pernas agora aguenta”, segundo Grazi “eu ouvi de tudo desde que tive o João, desde coisas mais pesadas, até que eu deveria dar um pai para ele logo antes que ‘tudo fique caído de vez’.” Essa classificação carrega junto a função feminina dentro da família tradicional brasileira, ou seja, a família constituída por pai, mãe e filhos -todos héteros-. Mas isso não é mais uma obrigatoriedade na viwda delas. O CENSO 2010, em uma comparação com os últimos levantamentos, apresentou um aumento de famílias tendo a mulher como responsável de 22,2% para 37,3% e 9,2% para

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“EU SÓ NÃO

Brayan Va

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Freepik/Patricia Sankari/André Luiz Moraes

O FAÇO SEXO”

alêncio

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“Tenho 21 anos, sou estudante universitária e moro em Recife. Bom, eu… eu nunca senti nada por ninguém. Por mais que tentasse, que saísse com as pessoas, eu não sentia nada. Eu achava isso estranho, afinal, o “normal” era sair, era ficar”. Maria Eduarda teve uma adolescência difícil. Nada se enquadrava. As amigas conversavam sobre as paqueras, sobre as primeiras experiências sexuais. Planejavam futuros e imaginavam os nomes dos filhos com o menino mais bonito da turma. Mas, para Maria, tudo aquilo era muito estranho. Toda aquela futilidade era desinteressante. Muito mais que desinteressante, era nojento. Maria Eduarda sentia nojo quando as amigas insinuavam que algum menino estava interessado nela. Parecia que só sabiam conversar e pensar nisso. Não tinha um único dia que a conversa na roda de amigas não era sobre um ficante de uma delas, um ex que ainda não aceitou o término ou um gato do ensino médio que, segundo boatos, estava “pegando” a chatinha da sala. Poderia ter sido só coisa da idade mesmo. Talvez uma falta de hormônios ou puberdade tardia. Maria poderia estar se descobrindo lésbica. Poderia ser um período de aceitação e maturação do próprio corpo e mente. Poderia, mas não era.

“Poderia ser um período de aceitação e maturação do próprio corpo e mente. Poderia, mas não era”

Desde que começou a entender sobre sexualidade, Maria Eduarda percebia que havia algo de diferente com ela. No começo ela desconfiou que sua repulsa por qualquer ato afetivo significasse uma homossexualidade gritando liberdade. “Eu percebi que o mesmo sentimento de desprezo que sentia pelas relações afetivas entre homens e mulheres, eu sentia também quando via ou imaginava um casal homoafetivo”. Foi aí que, no auge dos seus 16 anos, Maria Eduarda resolveu entender quem ela era. Procurou diversas pessoas em quem confiava e relatou sua “fobia” a qualquer relação amorosa. Para todo mundo que a adolescente tentou expor seu drama, tudo não passava de uma fase. “É normal você se sentir um E.T.”, “logo passa, tudo isso é coisa da idade”, “você deveria experimentar dar uns beijos em alguém. Como pode dizer que acha nojento se nunca experimentou?”, eles diziam. Maria Eduarda não está sozinha: 1% da população mundial também se descobre avessa a relacionamentos. Segundo um estudo canadense, 7,7% das mulheres e 2,5% dos homens do mundo não sentem falta de sexo. Mas esse dado está relacionado a pessoas que, pelo menos uma vez na vida, mantiveram relações sexuais. Para Maria Eduarda,

era difícil entender sua condição. Era pior do que ser a ovelha negra. Era ser um alguém diferente, mas tão diferente a ponto de nunca ouvir falar em nada que se pareça com aquilo que ela sentia. “Foi mais ou menos em 2013 que ouvi falar da assexualidade. Eu estava assistindo televisão e uma reportagem falava sobre os novos gêneros da geração Y. Segundo a reportagem, todo mundo poderia ser o que quisesse, já que estava cada vez mais comum as pessoas não se reconhecerem apenas como homem ou mulher. Existiam pessoas que estavam muito acima daquilo que o gênero as obrigava a ser. Foi aí que eu percebi que eu não precisava gostar de homem ou de mulher. Então eu comecei a pesquisar e me encontrei”. Apesar de hoje entender e se aceitar, Maria Eduarda prefere se manter no anonimato. A fase de ficar tentando se descobrir e buscando ajuda ouvindo conselhos dos outros já passou. Hoje, bem resolvida, a recifense é apenas uma “solteira” aos olhos de parentes e amigos. Ela prefere não divulgar sua condição, apesar de saber que acharão estranho o fato de que ela nunca irá aparecer com um(a) parceiro(a). “Não comento abertamente porque acho muito desgastante. Sei que alguns


Segundo o Instituto Datafolha, que mediu as preferências políticas do brasileiro na atualidade e divulgou os resultados no último dia 02 , a aceitação do casamento gay na sociedade cresceu de 64%, em 2014, para 74%, em 2017. Esses 10%, como relata a pesquisa, representam o aumento do apoio a ideais de igualdade e está diretamente relacionado ao grande número de informações sobre o tema. Portanto, quanto mais se dá atenção a um assunto considerado tabu na sociedade, mais ele acaba se desmistificando. Cristian entende que sua condição sexual ainda está longe de ser tratada como a homossexualidade, mas para ele essa pouca divulgação da assexualidade é uma estrada de dois caminhos. No primeiro caminho, por ser uma condição não muito conhecida, abre-se pouca oportunidade para que surjam movimentos radicais contra as pessoas que se identificam como assexuais, o que resulta em uma quantidade baixíssima de preconceito sofrido pelo grupo. Já o outro caminho, que não é nada positivo, também está ligado à falta de conhecimento sobre o tema por parte da grande maioria da sociedade. Sem informação, surgem o senso comum e a ignorância. E, para Cristian, a pior situação que ele se obriga a viver – mas que não con-

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“Alguns acham que sou hétero, outros acham que sou bi, outros, lésbica, mas ninguém se deu ao trabalho de perguntar”

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costumam interpretar que, por não terem companheirxs, eles são homossexuais. Por isso, é necessário que haja uma diferenciação entre a homossexualidade e a assexualidade. “A homossexualidade trata-se da identidade sexual do indivíduo em relação ao sexo que ele sentirá atração. Um heterossexual sente atração por alguém do gênero oposto, um homossexual sente atração por alguém do mesmo sexo, um bissexual se sente atraído sexualmente por pessoas que sejam do gênero masculino ou feminino, sem qualquer restrição, já o pansexual é a pessoa que trafega entre todos os universos possíveis das relações amorosas. A assexualidade não envolve sexualidade ou atração sexual”, explica Bianca. O servidor público Cristian Henrique, 39 anos, sempre se viu diferente. A adolescência foi sua pior fase, mas o preconceito sofrido sempre foi pequeno, principalmente pela pouca visibilidade que sua condição recebe da mídia. Para ele, as pessoas estão pouco abertas ao diferente, mas aos poucos essa barreira pode ser quebrada. Um exemplo disso é a homossexualidade, que cada vez mais vem sendo entendida como natural, mesmo para as pessoas que se consideram mais tradicionais e mais ligadas à religião.

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nem ‘acreditam’ que a assexualidade exista. Não contei para a minha família, mas sinto que minha irmã desconfia, algum dia falarei para ela – e só pra ela. Já os amigos? Ah, alguns acham que sou hétero, outros que sou bi, outros que sou lésbica, nenhum nunca se deu ao trabalho de me perguntar. Fazer o que se eles preferem comentar com os outros? Deixo pensarem o que querem. Não ligo”. A descoberta da sexualidade é única e individual. Cada pessoa, no seu mais perfeito absolutismo, se entende como singular – e ao mesmo tempo membro de um coletivo – através de suas próprias vivências. Mas, diferente de entender que você prefere uva a morango ou morango a uva, descobrir que, na realidade, você não gosta de fruta nenhuma, pode ser uma tarefa mais difícil do que parece. Para a psicóloga Bianca Elizabeth de Mello Hascalovici, que atua na área de terapia sexual, os assexuais não sentem atração sexual por nenhum tipo de pessoa, porém podem sentir atração romântica normalmente. Para a maior parte do assexuais, o maior problema está nas poucas informações sobre essa condição sexual, pois sem o conhecimento surgem os preconceitos, as dúvidas e as informações desencontradas. As pessoas

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sidera preconceito – são as diversas interpretações que as pessoas tomam ao descobrirem que ele nunca casou, nunca quis ter filho e que, se pudesse escolher, não teria perdido a virgindade, afinal, a experiência aconteceu porque ele se viu obrigado a transar, já que todos os amigos dele já tinham feito aquilo e ele precisava logo “perder o cabaço”. Hoje, esses mesmos amigos já são pais, casaram, constituíram família e Cristian mantém sua vida independente e individual. Cristian Henrique é completo na sua forma de ver a vida. Para ele não falta nada e imaginar uma vida a dois é algo fora de cogitação. Seus dias se baseiam em sua profissão e em sua diversão, mas, apesar de seus planos serem outros, Cristian já se viu ao longo da vida em alguns relacionamentos amorosos. “Para mim não existem barreiras que impeçam a felicidade, desde que haja o respeito e o entendimento de que sexo não rola. Por que eu não posso namorar? Eu já namorei uma sexual e foi tudo ótimo. A gente terminou porque eu achei que estava privando ela de viver a sexualidade dela. Eu não faço sexo e entendo que, assim como para mim não é uma escolha, ela também tem os desejos e prazeres dela. Fazer ela ficar comigo significaria tirar dela todas

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“Eu também sei amar, eu também sei dar carinho”

as possibilidades de relações sexuais que ela poderia experimentar. O que eu preciso que as pessoas entendam é que eu tenho sentimentos, eu também sei amar, eu também gosto de carinho. Eu só não faço sexo – e isso não é de outro mundo”. Hoje, com a diversidade de conteúdo que a internet possibilita ao usuário, conhecer e entender a assexualidade tornou-se uma tarefa muito mais fácil. Grupos fechados e fóruns de discussão são constantemente alimentados por grupo de assexuais que buscam ajudar outras pessoas que ainda não entenderam sua real condição. Uma dessas comunidades utiliza o slogan “você não está sozinho” e agrega membros de todas as regiões do Brasil. São três mil cadastrados e quase cinquenta mil publicações sobre o tema. A digitadora Lisa de Castro, hoje com 27 anos, se viu perdida em grande parte da sua vida. Logo no início dos anos 2000, a sexualização das mulheres era muito forte nas mídias tradicionais. Meninas de biquíni eram colocadas em banheiras e desciam até o chão “na boquinha da garrafa”. Lisa sempre achou aquilo estranho mas nunca ousou criticar ou questionar, afinal, todo mundo parecia gostar muito. Lisa passou grande parte da vida sem contar para ninguém sobre o que

não sentia. “Eu, desde a adolescência, sabia que era diferente das outras pessoas da minha idade. Quando muitas outras meninas começavam a ‘ficar’ com pessoas do sexo oposto, eu não sentia vontade nenhuma de fazer isso. No início, achava que era apenas por eu ser muito tímida. Depois, durante algum tempo, cheguei a me preocupar, e pensei que eu precisava ‘ficar’ ou namorar para ser normal. Aos 22 anos, encontrei uma comunidade no extinto site de relacionamentos Orkut que falava sobre assexualidade. Li os depoimentos de várias pessoas nos tópicos da comunidade e me identifiquei, então passei a me considerar assexual”. Hoje, Lisa pode contar para os outros aquilo que sente ou deixa de sentir. Ela é uma das membras da comunidade virtual que busca acolher os assexuais. Além de conversar com pessoas que entendem o seu dilema moral, Lisa também pode se sentir menos só. “Aqui você vai ser menos E.T.”, disse uma das primeiras pessoas que acolheram Lisa no grupo. A responsável por acolher Lisa, apesar de 8 anos mais nova que a digitadora, é tão determinada a entender a si mesma como qualquer outro membro daquele fórum. Maria Eduarda foi


uma das primeiras pessoas a dialogar com Lisa. Hoje ela é uma das membras mais ativas da comunidade, que também tem Cristian Henrique como administrador. Lisa, Maria Eduarda e Cristian passaram pelas mesmas situações e encontraram no mesmo espaço uma chance de ser eles mesmos. Ser diferente nunca foi um problema. Hoje eles descobriram que o diferente é mais do que normal para um montão de gente. E ambos percebem que suas missões só aumentaram. “Antes eu buscava me aceitar e entender quem eu era, hoje eu preciso mais do que nunca mostrar que não é problema você não gostar de sexo. Hoje o meu objetivo é ajudar outros assexuais a se aceitarem”. Apesar da fala contundente, ainda existe muito

trabalho a se fazer, como aponta Lisa de Castro. Uma publicação de um novato no fórum chamou a atenção da digitadora por representar uma situação que ocorre com diversas pessoas que não entendem sua assexualidade. “Tenho muitos pensamentos suicidas. Queria não ter nascido. Me descobri assexual faz pouco tempo. Minha tristeza, talvez uma depressão nunca diagnosticada, é causada por eu me sentir preso. Meus pais nunca me deram muita liberdade, e privacidade é quase um palavrão, sempre sofri muita pressão de todos os lados para ser sociável. Tenho medo de admitir que gostava de coisas consideradas femininas porque meus pais são machistas e homofóbicos. passei a infância sufocado, sem saber o que era

“Hoje eu preciso mais do que nunca, mostrar que não é problema você não gostar de sexo ”

liberdade e hoje eu não sei o que posso fazer. Eu ainda não consigo me enquadrar nesse mundo”. Lisa, Cristian, Maria Eduarda e diversos outros membros responderam o tópico criado pelo jovem desesperado e buscam contornar a situação. Eu tentei entrar em contato com o menino. Apesar de ter uma foto aberta a qualquer visitante do seu perfil no fórum, o garoto não quis se identificar e prefere o anonimato.

* O nome dos entrevistados foi alterado para a preservação da identidade individual de cada um dos ouvidos.

SÍMBOLOS USADOS PELA COMUNIDADE ASSEXUAL

Ás do baralho: em inglês, ás é ace, que também é uma forma abreviada de chamar uma pessoa assexual. Por esse trocadilho, o ás se tornou uma referência para a comunidade assexual. FONTE: www.assexualidade.com.br

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Bandeira assexual: A bandeira assexual, usada na página anterior, é composta por listras em tons de preto, cinza, branco e roxo e representa a união dos grupos assexuais e os identifica com um padrão visual. O roxo é a cor padrão das comunidades assexuais, enquanto o preto, o branco e o cinza representam a gradação no espectro da sexualidade humana.

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COM QUANT

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Neon Brand/Unsplash

TOS RAFAEL VOCÊ JÁ SAIU? Raul Daniel

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78 78 E aí, de boa? Tudo certo. A fim de quê? Ver o que rola. E você? Sexo. É esse o roteiro dos aplicativos de pegação. Depois vem o encontro marcado, o coração começa a disparar, lembro dos conselhos de mãe para não falar com estranhos, mas elas nunca disseram nada sobre transar com eles. Banho tomado e chuca* feita. O interfone toca: “Ei, seu amigo está subindo pode ser?” – diz o porteiro. “Pode ser, obrigado!” – eu disse com voz apreensiva. O elevador demora alguns minutos para subir. São só 14 andares, penso em passar mais um pouco de perfume antes que ele chegue. Nos últimos momentos penso em desistir, onde já se viu

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“Onde já se viu um menino de dezesseis anos ir atás de sexo casual?”

um menino de dezesseis anos ir atrás de sexo casual? Ok, mas deve ser normal ficar assim no primeiro encontro. Enquanto estou sentado no sofá da maneira mais heterossexual que eu conseguiria reproduzir, ouço o barulho das portas do elevador abrindo e chegando ao meu andar. Só pode ser Rafael, o cara com quem conversei por alguns minutos num desses aplicativos de pegação. A campainha toca, eu tento engrossar a voz, estufo o peito e vou até a porta. Abro porta e vejo um homem grande, uns vinte e seis anos, com barba desajeitada, cabelos e olhos negros, pele bonita e um leve diastema nos dentes frontais. É um cara atraente, seu cheiro é amadeirado e forte, sua camiseta vermelha escura combina com o tom de cor

dos sapatos. Em seu perfil no aplicativo conta com a descrição “procurando alguém interessante, não venha sem rosto ou leva block”. Não sei o que ele faz, onde mora ou nada disso, penso ao ficar frente a frente com ele. Mesmo assim, cumprimentei o moço e o convidei para entrar no apartamento, que é pequeno, paredes brancas e arejado. Na sala, um sofá que combina com as cortinas, aquele pedaço de tecido que cobre a janela da sacada tem estampas em desenhos de Londres, Paris e algumas destas cidades as quais nunca visitei, mas que poderiam servir para puxar algum assunto caso fosse necessário. Sento ao lado de Rafael, eu estava tentando parecer confortável perto da situação. Solto um suspiro e pergunto


Ele solta um sorriso e começa a olhar em meus olhos. Eu já tinha entendido o recado. Vejo que ele está bem próximo de mim, observo os pelos na panturrilha de Rafael e encosto minha perna, já sinto parte de meu corpo roçando aos dele. O final da história você já sabe, fomos para cama e transamos. Eu nunca mais tive contato com ele. Os aplicativos de pegação podem te ajudar a conseguir aquela “fast-foda”. É prático, rápido e movimenta sua vida sexual. Os mais populares do meio LGBT, além do Tinder (que é para héteros também) e por algum motivo que não sei dizer qual é, este é muito comum nos smatphones

de todos e ninguém tem vergonha de assumir que realmente usa. Os que são exclusivamente gays, como o Hornet e Grindr, funcionam como um açougue. E você entra no aplicativo, escolhe um pedaço de carne da sua preferência e leva pra casa. Pronto! Abrindo o programa, você se depara com uma interface bem divertida, são várias fotos pequenas, como se fossem de um perfil no Facebook, organizadas por ordem de proximidade. O Hornet tem a opção de colocar mais de uma foto, assim que você tocar no moço que mais te interessa; além disso, ter imagens bloqueadas (que você só consegue ver o conteúdo se a pessoa liberar) é sinônimo de nudes. Esse era um dos meus hobbies preferidos, sair solicitando a foto de todos e depois não puxar assunto, mesmo que

me agradassem.

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“E aí, achou fácil?” “Sim, eu estava no Shopping Curitiba”

“Hoje não carrego vínculo com nenhum dos homens que saí”

O fogo que as pessoas têm nesses apps é engraçado. Eu conversei com alguns dos meus amigos sobre isso, cheguei à conclusão de que houve uma época que conversávamos com mais de cinco caras em alguns momentos e isso era cool. Eu nem sempre pegava o nome deles, talvez o do mais bonitinho. Hoje não carrego nenhum vínculo com nenhum dos homens com quem saí ou conversei. Nesse meio, você encontra todo tipo de gente: o cara que é casado e é gay, o menino que quer um namorado, aquele que realiza os fetiches desde a chuva dourada (xixi) até podolatria (curte pés). Nunca saí com nenhum destes por falta de interesse em fetiches. Minha antiga cidade, na

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80 80 qual vivi até meus 16 anos, tinha pouco mais de 20 mil habitantes. Era um ou outro cara no aplicativo, na cidade vizinha a mesma coisa. Não é que existem poucos gays em cidade pequena, tem muito, só não era comum os meninos saírem do armário. Vir para a cidade grande me deu a oportunidade de me descobrir no mundo LGBT, descobrir minha sexualidade.

muito fáceis de agradar, desde que você dê a eles o que eles querem.” No longa, conhecemos Elaine Parks, uma bruxa viúva marcada por decepções amorosas; ela sai de São Francisco para recomeçar sua vida Sendo assim, ela se relaciona com vários homens para superar seu ex-marido. Em sua nova cidade, ela dá o que eles querem – sexo – e com sua mágica, consegue fazer com que os homens a amem e morram, literalmente, de amor por ela. É assustador, porque, de certa forma, me identificava com Elaine e ao mesmo tempo gostava de não fazer parte disso; não, não é a parte de assassinar pessoas.

Ainda há quem diga que essa “cultura da transa” é uma das maiores causas do aumento de DST’s em nossa comunidade. De fato é, fiz sexo sem camisinha várias vezes, felizmente, posso dizer que não sou portador de nenhuma doença. Mas segundo dados divulgados pelo Ministério da Saúde, o número de pessoas que contraíram o vírus dobrou entre os jovens na faixa de idade dos 20 aos 24 anos. Três anos depois de marcar incessantemente estes encontros, percebi que estava criando experiências frágeis. Quero dizer, é gostoso comer aquele cachorro quente da esquina depois da balada, mas nunca vai ser aquele saboroso prato preparado em casa com tempero especial e amor. Isso me faz lembrar uma fala da protagonista do filme “The Love Witch”: “Homens são como crianças, eles são

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Luís Farias

O que realmente mata os homens do filme é que eles não conseguem lidar com os próprios sentimentos. O problema de estar em um relacionamento é que eles, ao mesmo tempo, também podem nos tornar inseguros, carentes e dependentes. Além de nos tornar vulneráveis, segundo a protagonista. Logo no começo do filme, a bruxa está jogando tarô e tira o três de espadas, que significa desencanto, tristeza e lágrimas em relação a resultados idealizados. A carta é sobre as concepções equivocadas que nos fazem sofrer e a cura para este sofrimento é nos livrar delas, segundo a definição do livro


Curso Completo de Tarô, do Nei Naiff.

ponderamos isso ao fato de que irão cortar a parte boa nossas vidas: a liberdade.

Encontrei outros moços como Rafael durante muito tempo. Sempre acreditei ser bom para autoestima, sentir-se desejado é ótimo, sentir tesão é gostoso, sentir satisfação depois do sexo é melhor ainda. Mas quando eles batem a porta para ir embora, tudo isso vai junto. Mesmo assim, nunca senti necessidade de ter alguém do meu lado ou estreitar relações. Porque assim como o sociólogo polonês Zygmunt Bauman comenta no livro Amor Líquido, ninguém tem interesse em firmar relações, sendo assim, não precisamos desenvolver ou procurar interesses em comum, está ótimo com o que já se tem.

Assim, como o seu celular, você coloca um prazo de validade nas pessoas e as torna descartáveis. Relações líquidas são isso, não se entregar nas relações

Hoje, me pergunto o quão interessante eu fui para Rafael e para outros caras com quem já me encontrei, se fui suficiente para os entreter por alguns minutos, assim como eles foram para mim. Quantas pessoas pelas quais você se sentiu atraído fisicamente e intelectualmente, mas seu instinto achou um prazo de validade e não as aceitou por completo?

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Não sabemos mais como nos relacionarmos, isso se deve ao fato de que estamos mais online em redes sociais. E quando aparece alguém que consideramos valer a pena,

“Sentirse desejado é ótimo, sentir tesão é gostoso, sentir satisfação depois do sexo é melhor ainda”

Eu saí com você porque te achei atraente, assim como já saí com outros caras. Nunca pensei em relacionamentos, muito menos conhecer alguém assim pelo Hornet, mas aprecio muito quem conseguiu. Na verdade, um casal de amigos se conheceu por lá e moram juntos. É meio estranho, já saí com muitos caras de lá, não sei o nome deles e nem o que fazem, foram encontros que duraram 15 minutos ou no máximo 2 horas, só o tempo de transar, né? Hoje, não me sinto arrependido. Mas penso que poderia ter conhecido muita gente interessante, que poderia realmente agregar algo em mim. - comenta Pedro.

Para o sexólogo curitibano Chrystiano Nogueira Dos Santos, muita gente faz sexo por sentir atração física, desejo e isso é completamente normal. E isso é muito saudável para quem procura aliviar o estresse e aumentar a autoestima. Mas assim como qualquer coisa, tem um limite que, quando é ultrapassado, pode ser sinônimo de solidão e carência. Precisamos de amor próprio.

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A qualidade das reações diminui de forma muito rápida e nós temos a tendência de compensar isso com uma quantidade exagerada de parceiros. Por exemplo, quantos amigos você tem no seu Facebook? Uns 500, talvez. Algo que é impossível para uma relação do dia a dia com qualidade, como diz Bauman.

Saí com um cara chamado Pedro ano passado, ele tem 23 anos e é estudante de arquitetura. Conheci no Hornet, transamos e desde então não voltamos a conversar, até o dia que o entrevistei para esta matéria. Ele disse que estava confortável em responder algumas perguntas.

entre pessoas que são conviventes com você. Ninguém disse que é errado fazer sexo casual.

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Arquivo pessoal

JUDEU LATINO-ISRAELENS Alex Biega

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As duas manchas escuras, com tamanho de moedas de 25 centavos e incrustadas na lateral esquerda da cabeça já sem cabelo são resultados de oito anos de trabalho militar duro no deserto do Neguev, em Israel. Quando chegou ao país em 1985, Igal não sabia o porquê da mudança drástica de cultura. Apenas ouvia de seus pais, dois judeus ortodoxos radicais, que morar em um novo lugar e servir o exército israelense seriam indispensáveis para um garoto que, até então, apenas conhecia as pracinhas do Juvevê e as brincadeiras que fazia com os amigos de condomínio no fim da Rua Almirante Tamandaré. Seu endereço agora é outro. Igal mora em um apartamento relativamente grande em Kerem Hatemanim, no subúrbio de Tel Aviv. Os 450 metros quadrados estão divididos em dois quartos, dois banheiros, uma sala e um “porão”, local onde se esconde com o filho e a esposa durante o toque dos alarmes que avisam ataques aéreos vindos de Gaza. Quando chegou ao exército em 1993, seus colegas de quartel lhe avisaram que, ao ouvir o barulho das sirenes, deveria encontrar abrigo o mais rápido possível. “Minha mãe contava que Israel era o único lugar do mundo onde os prédios tinham porões para nos escondermos quando precisássemos. Eu

“Ouviu de um agente em sua terra natal que a vida em Israel seria mais fácil”

ria dela e achava aquilo maluquice completa. Hoje eu vejo que ela estava mais certa do que nunca”. Dona Elisabeth ainda mora ali perto. Igal desce as escadas escuras do prédio de cinco andares, anda mais 500 metros em ruas claras e cobertas de folhas secas de carvalho que caem no frio inverno israelense, e logo já está na frente da casa branca onde sua mãe mora com o esposo e mais dois gatos de estimação. É quase um rito sagrado. Ele entra, toca o Mezuzá com a mão direita, beija os pais, liga a televisão no canal 25 e conversa com os dois sobre carros antigos e a doença do filho. Seu filho Li-Shay é um garoto tímido. O único que Igal teve com uma moça brasileira, com quem teve um breve relacionamento em Israel. Nasceu em 2001 em Tel Aviv durante uma semana tensa de conflito árabe-israelense. Seu sonho é conhecer um estádio de futebol brasileiro, mas não troca sua velha bola laranja de basquete por uma amarela de futebol do Brasil que ganhou do pai. Seu rosto é marcado pelos lábios grandes e pelo nariz com pequena cicatriz que ganhou aos sete anos durante um ataque de epilepsia. O garoto tem autismo, transtorno de desenvolvimento grave que prejudica a capacidade de se comunicar e interagir.

Li-Shay passa quase todo o dia na escola, exceto aos sábados, dia sagrado para os judeus. Durante o tempo livre, ele fica em casa ajudando Mavic, esposa de Igal que ainda briga na lei para conseguir sua cidadania israelense.

Arquivo pessoal

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Haifa, cidade montanhosa a 93 km da capital Tel Aviv, em 2003. Ouviu de um agente em sua terra natal que a vida em Israel seria muito mais fácil. Por incrível que pareça, ela realmente foi. Mavic ainda tem dificuldades no hebraico,

“Igal f icou 13 anos no exército”

mesmo trabalhando em um restaurante diariamente desde que chegou ao país. Foi lá que conheceu Igal. “Ele entrou fardado. Botas, armamento... Na hora já senti uma atração forte. Nas Filipinas não temos homens desse tamanho

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Ela, de pele morena, olhos castanhos puxados e o nariz arrebitado que não escondem os traços asiáticos, nasceu nas Filipinas, onde o pai tinha um pequeno comércio de peixes e a mãe sobrevivia vendendo e costurando roupas velhas. Chegou a

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“Granadas de fumaça, facas e pistola eram a continuação de seu corpo cheio de cicatrizes”

subdivisão de infantaria de Tel Aviv, Netza Yahuda. O serviço militar em Israel sempre foi obrigatório. Homens entram aos 18 anos e precisam ficar pelo menos três anos servindo as forças de defesas. Já as mulheres entram aos 18, mas a obrigatoriedade é de dois anos. Hoje, o exército contém mais de 189 mil soldados ativos e outros 590

mil reservistas. Igal ficou 13 anos no exército. Os cinco primeiros foram em campos de treinamento em Gilat, onde a pressão psicológica e os exercícios físicos diários eram incessantes para o que viria a seguir. Nos oito anos seguintes, patrulhas em Gaza e em zonas de combate na fronteira com a Cisjordânia viraram rotina.


Metralhadoras Colt M1642, granadas de fumaça, facas e pistolas eram a continuação do seu corpo cheio de cicatrizes e marcas da guerra. Voltou pra casa com duas cirurgias na fíbula, uma marca de tiro no ombro esquerdo e uma jaqueta verde-musgo que usava na noites frias de Kfar Saba, além das histórias que conta todas as

noites para Li-Shay antes de dormir. Aos sábados, a família cumpre seu ritual religioso como todo cidadão judeu israelense: Shabat, o descanso judaico em menção ao sétimo dia da criação. O dia é reservado ao descanso e ao jejum, que se inicia no pôr do sol de sexta-feira e termina ao pôr do sol do sábado, com um grande banquete conhecido como Kidush. Igal voltou apenas uma vez para o Brasil desde que se mudou para o Oriente Médio. Foi em 2003, quando passou uma semana na casa de um amigo no centro de Curitiba. “Senti bastante falta do país, principalmente da comida. Eu nasci e cresci aqui. Mas, se me pedirem p a r a

voltar para eu morar com minha família, vou dizer não”. Veio para rever os amigos, a antiga casa que hoje virou em um prédio comercial e comprar um fardo com Guaraná Antártica. “Lá não tem esse refrigerante. Você não sabe a falta que senti dele durante esses quase 15 anos”. Em uma gaveta escondida em um armário da sala, as fotos da trajetória de vida estão expostas dentro de um álbum verde marinho. Recordações que ficaram dos amigos que o visitaram, das viagens para Haifa e Yafa, dos serviços militares em Gaza e em Jerusalém e do nascimento e juventude de Li-Shay. “Minha vida está aqui. Meus amigos estão aqui. Israel está aqui. Só vou embora se construírem uma nova Tel Aviv em outro planeta”.

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Bruno Laurentino

O LIVREIRO DE CURITIBA Bruno Laurentino dos Santos

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Brasil. Paraná. Curitiba. Alto da Glória. Rua General Carneiro. Livraria do Chain. Sentado na cadeira de sua sala, no segundo andar da livraria, ouvindo La Gazza Ladra, de Gioacchino Rossini, lá se encontrava Aramis Chain. Do alto de seus 75 anos, com uma simples calça e uma camisa social de tecido mais quente, o livreiro nos recebeu no local onde passa boa parte de seu dia. Rodeado por livros, seu Aramis vive o que muitos podem pensar ser um sonho. Mas, de forma tenebrosa, a atual geração não pensa mais que viver rodeado por livros possa ser um sonho. Para muitos é pavoroso e tedioso, o que chateia, e muito, Aramis Chain. Curitibano, Chain se orgulha de ser filho de estrangeiros. Recebeu-nos em frente a sua livraria, ao lado de um dos vários recortes de jornais que estampam as paredes do estabelecimento. Apontando para uma matéria sobre o voto de minerva de Gilmar Mendes no julgamento da chapa Dilma Temer, Chain, sarcástico, ria ao falar para nós. “Olha só. Vocês sabem qual a mãe mais xingada no Brasil?”, por um momento, confusos, ficamos olhando para seu Aramis, quando percebemos a relação da pergunta com o fato de muitos xingarem Gilmar Mendes de “Filho da P#*@”,

“Você não deve estar atrás do balcão e sim, em frente”

lá estava ele feliz. E assim foi sua recepção à nossa equipe. A CASA DOS LIVROS Desde 1967, a Livraria do Chain já faz parte do cotidiano curitibano. Se passou a boêmia, chegaram os cinemas, passaram-se os videogames, terminou-se com os celulares. Curitiba se reinventou, atualizou. Se reimaginou. Mas a pequena, modesta, aconchegante e rica livraria continua viva no coração da cidade, envolta por um trânsito barulhento, caótico; às sombras de prédios e edifícios de luxo, lá ainda vive a Livraria do Chain, lá ainda vive a paixão pela literatura. Lá ainda vive a sabedoria. “Eu cheguei aqui em 1967, era o ano em que eu terminei o curso de História na Universidade Federal do Paraná, mas fui convidado a montar uma livraria de livros importados, pois era a época que começaram os cursos de graduação e mestrados no Paraná”. Escondido sob arranha-céus, o pequeno estabelecimento escuro é mantido desde o início por Seu Aramis. Com poucos funcionários, o velho livreiro, como assim gosta de ser chamado, abre e fecha sua livraria todos os dias da semana, vivendo seus dias dentro de uma sala pequena rodeado por revistas e jornais. Lá estava a última edição da VEJA em sua mesa, em meio a dois recortes orgulhosos de jornais. À sua

frente, uma edição da Folha de S. Paulo de 1993 e, atrás de sua mesa, uma Gazeta do Povo, também de 1993. Em ambos os jornais, a manchete que destacava a Livraria do Chain como a melhor livraria do país. “Não tem essa história de marketing disso ou daquilo. Você não deve estar atrás do balcão, mas sim na frente. Não devemos ter empregados, devemos ter funcionários, que vem do verbo funcionar”. A paixão com que seu Aramis manuseava e nos mostrava seus livros era apaixonante. Com um zelo e cuidado incrível, a livraria é uma pequena fenda no tempo moderno que nos transporta a uma dimensão atemporal e translúcida, que transpassa a linha da imaginação e nos traz lembranças doces e incríveis. A ALMA Chain, sempre orgulhoso de sua história, aos pés de uma estante com livros didáticos, com sua voz rodeada pelas óperas nos alto-falantes da livraria, foi enfático ao explicar o que encontramos em sua livraria. “Aqui as pessoas podem encontrar a alma, que é a parte mais importante do ser humano. E essa alma tem que estar provida do melhor agasalho, que é o conhecimento. Sem o conhecimento, o indivíduo é nada”. A alma de seu Aramis está presente em toda a


“Aqui as pessoas podem encontrar a alma, que é a parte mais importante do ser humano”

filha do casal espanhol nasceu, a família visita frequentemente a livraria em busca de autores espanhóis e livros em castelhano. Chain, em espanhol, explica vários livros, como se tivesse lido todos. E se realmente tivesse? Dono de uma editora, Chain já divulgou diversos livros e também assinou a autoria de vários outros. Um dos livros favoritos que seu Aramis mostra à família e à nossa equipe foi “O Homem Moderno”, de Enrique Rojas, escritor espanhol. O LIVREIRO E A LIVRARIA Envoltos pelo carinho de seu Aramis, nos tornamos pessoas da casa. Conturbado

e capitalista, o atual momento da literatura deixa Aramis receoso com o comércio de livros. Entrando em sua livraria, soterrados pela quantidade de livros que ali se encontram, subindo as escadas, passando degrau por degrau, após deixar a bandeira brasileira para trás e atingir o segundo andar, nos deparamos com uma área mais didática de sua livraria. Enquanto no primeiro andar encontramos livros infantis e infantojuvenis, no andar superior os cursos universitários nos invadem e nos sentimos em uma biblioteca de uma universidade. Um esqueleto

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sua livraria. Cuidando-a a todo momento, desde a hora de abrir até a hora de fechar, as escolhas pelos títulos e por um ambiente muito intimista, a livraria do Chain com certeza é um dos lugares que melhor nos passa a sensação que o dono do local colocou lá. PESSOAS DO MUNDO INTEIRO Não só curitibanos frequentam a livraria. Durante nossa visita, lá estava uma família espanhola, com sua pequena filha. Carinhoso, como foi com nossa equipe, Chain recebeu a família de braços abertos. Descobrimos, então, que desde que a

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em tamanho real reside no canto da sala, entre diversas prateleiras de livros que formam um caminho entre os cantos do andar. Ao fundo encontramos uma sala pequena escondida entre os livros. É a sala do proprietário, onde ele passa seus momentos mais relaxantes lendo revistas e se atualizando das notícias diárias. Mas nada de celular; para Chain a praticidade do jornal ainda é a mais escolhida. Seu Aramis, em tom de brincadeira, ainda nos demostra seu patriotismo, dizendo que não aceita que nenhum funcionário beba Coca-Cola em suas dependências, já tendo demitido funcionário que duvidou do aviso. Para

“É uma pena que a atual geração não tenha o costume de ler”

Chain, a única bebida popular que aceita é o Guaraná Antárctica. Gentil com as visitas, Aramis nos convidou a comparecer qualquer dia para tomar um café e estudar, ou realizar trabalhos, em um local calmo e silencioso. Infelizmente, fica a tristeza de ser um local desdenhado pelas pessoas que estão passando pelas redondezas. Com um ar de tristeza, Aramis nos conta que é uma pena que a atual geração não tenha o costume de ler, e as universidades têm uma porcentagem nisso, pois elas deveriam ser, segundo ele, o caminho do ensino. Saudosista, Chain, conhecido entre diversos artistas paranaenses, não

esconde sua amizade com personalidade conhecidas do público. Paulo Leminski, que era um grande amigo de Chain, não foi esquecido na conversa. “Nos últimos dias de vida dele ele vinha todo dia, ficava numa mesinha sentado, vendo livros e depois ia embora. Tomava seu café e depois conversávamos um pouco. Ele tinha um grande apego à literatura. Uma excelente pessoa”. Como não poderia ser deixado de lado, o Vampiro de Curitiba, Dalton Trevisan, conhecido por ser recluso, não aparecer na mídia e não querer ser reconhecido, já se tornou pauta nas conversas com Aramis Chain. Amigo próximo do lendário escritor, Chain desconversou e


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A ENTREVISTA Brasil. Paraná. Curitiba. Campo Comprido. Rua Prof. Pedro Viriato Parigot de Souza. Universidade Positivo. Recebemos seu Aramis no estúdio de gravação do curso de jornalismo. Como já deu para perceber

Bruno Laurentino

“Chain, conhecido entre diversos artistas paranaenses, não esconde sua amizade com personalidade conhecidas do público”

pela personalidade dele até aqui, não seria nada surpreendente se eu falasse que ele levou vários livros e objetos sem pedirmos. Pois foi o que aconteceu. Seu Aramis chegou trazendo vários livros e objetos para exemplificar sua fala. Tímido, alegre, sorridente, de camisa social e um colete por cima, Chain chegou à Universidade Positivo e chamou nossa atenção como ele havia se preparado para aquela entrevista. Bem arrumado, sua gentileza e zelo com uma entrevista universitária fez a gente perceber como a vida poderia ser alegre até nos momentos mais simples. Entre os objetos que trouxe e exemplificou, uma latinha de cerveja e uma embalagem de cigarro serviram de personagem para mais uma de suas comparações com a leitura. “Nós temos uma carteira de cigarro, uma lata de cerveja e um livro. O que o brasileiro compra antes? Ele compra o cigarro, ele compra cerveja e depois... ele volta o cigarro, ele volta a cerveja”. Por fim, em uma conversa agradável, Aramis se mostrou uma pessoa única, não só pelo título de livreiro, como pela personalidade e cuidado com os livros, que se tornaram uma parte essencial de sua existência. Seu Aramis se despediu, nos despedimos, mas com

a certeza de que, se um dia precisarmos, sabemos onde encontrar um grande amigo para tomar um café, conversar e ter um espaço calmo para estudar ou ler um livro. Hoje, se estou sentado escrevendo sobre sua história, é muito porque, de alguma forma, seu Aramis nos cativou, me cativou e irá cativar muitos outros que com ele encontrarem. Seja pela paixão pelos livros, seja pelo amor pela arte, seja pela simpatia. Aramis foi, é e sempre será aquele que manteve viva a tradição da literatura no coração fervoroso, tecnológico e moderno de Curitiba.

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brincou. “É um bom amigo e só. Apenas isto. E tem outra, você já viu vampiro alguma vez na vida? Não dá nem para tirar foto. Vampiro é um personagem que não existe. Ele está entre nós”. Pouco antes de nossa saída, feliz, Chain chegou junto a nós, nos dando um livro em mãos e dizendo “Leia-o em voz alta para todos, essa página”. Assim fizemos. Um trecho antigo que falava sobre o poder do executivo, que, juntamente, com a empolgação do velho livreiro já pudemos perceber que, de fato, ele era uma pessoa muito engajada politicamente. Nos despedimos de seu Aramis e nos encaminhamos para casa com a certeza de ter aprendido muito mais e termos tido uma aula de cultura. Mas sabíamos que um novo encontro ainda estava por vir. Na mesma semana, Aramis nos concedeu uma entrevista em estúdio onde, novamente, contou-nos sua paixão pelo livro e se lamentou pela cultura brasileira não literária.

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José Sebastião de Oliveira, ou então, Seu Zeca levanta para mais um dia de trabalho. São seis e meia da manhã de uma terça-feira qualquer em 1967 no município de Vila Branca, interior do Paraná. Sua profissão: Professor. Um meio de ganhar a vida diferente dos demais habitantes da região rural. A cidade é de difícil acesso já que não existem estradas, apenas viagens a cavalo são aceitas. Arruma os materiais, penteia os cabelos, olha para o céu e tenta entender se vai chover. A escolinha não é longe, para sua sorte. Calça as botinas e sai às sete em ponto. O dia letivo começa às oito, por isso, tudo devia estar nos conformes: as carteiras alinhadas, o chão limpo, giz e claro, o achocolatado que servia de merenda para os alunos. A Escola Rural Municipal de Vila Varzeão era apenas uma sala grande com dois quadros negros, duas fileiras de seis mesas que cabiam três crianças lado a lado. Um fogão levado por Zeca era a única coisa que destoava do ambiente amadeirado. Dava mais uma revisada no conteúdo do alto de sua mesa e esperava os alunos chegarem. Maria Edinair Gabriel mora longe, numa região conhecida como Feixo. Todo dia acorda cedinho, toma banho e vai para a aula acompanhada da irmã

Rosilda Gabriel. A estrada é de chão batido e não favorece muito a caminhada. Para a infelicidade delas, a chuva as espera no meio do caminho. O que fazer? Continuar andando ou voltar para a casa? Por sorte, uma caminhonete passa cortando a cortina chuvosa e oferece-lhes carona até o centro da cidade onde fica a escola. Encharcadas, não conseguem nem sentar no banco. Os cadernos ficavam na sala de aula, por isso não correram o risco de perder o material. Fica à cargo delas levar uma canequinha para se servirem do famoso achocolatado. “E já era gostoso aquele negócio!” Diz Maria sobre a bebida feita pelo professor. “lembro que a Rosilda

“A escolinha não é longe, para sua sorte. Calça as botinas e sai às sete em ponto”

ganhou uma caneca verde bem bonita. Começou a se exibir para os irmãos e não deixava ninguém tocar. Foi estrear com o Nescau do Seu Zeca e o fundo da canequinha caiu porque estava muito quente” lembra acompanhando muitos risos. Dina, como todos chamavam, gostava muito de estudar, ao contrário de sua irmã. Tudo era festa. Lembra com saudade do caminho enorme que percorriam. Recorda ainda de uma vez que viram uma cobra e fizeram o percurso em menos tempo de tanto que correram. Chegaram pálidas, mas cedo. Zeca era professor de terceira e quarta série e as fazia na mesma sala e no


mesas tinham suporte para os objetos. Além disso, faltava muito material didático para os alunos, e Seu Zeca se virava como podia. Ia para o Cerro Azul que era a cidade mais próxima para se atualizar e buscar materiais. Uma viagem a cavalo para o Cerro durava um dia inteiro, ia para posar. Pior ainda quando vinha para Curitiba, ida e volta durava quase uma semana. O trajeto era assim, ir cavalgando até o Cerro, posar na casa de alguém para no outro dia pegar ônibus em direção à capital. Lá se iam mais algumas horas já que as estradas faziam longos desvios, por outras cidades que nem entram no percurso nos dias de hoje. Morou um tempo em Curitiba para estudar e se especializou em Cerro Azul no curso de professor normal regional. Esse caminho nos dias

“Zeca e os demais moradores de lá não viram a ditadura”

atuais pode ser feito em três horas e a estrada é asfaltada até Cerro Azul. A cidade que era conhecida como Vila Branca, hoje em dia se chama Doutor Ulysses em homenagem ao anticandidato da Ditadura militar que morreu em um acidente aéreo. Vila Branca era um nome totalmente racista, já que se deu na separação de terras de uma família negra de outras famílias brancas. A praça principal que fica no pequeno município tem um busto de Doutor Ulysses. Zeca e os demais moradores de lá não viram a Ditadura. Informação sobre o que se passava no Brasil não era dada pelos meios de comunicação, aliás, nem se falava sobre nos próprios meios devido a censura. A história que estava sendo construída por ali não interessava as crianças que queriam aprender sobre a história do Brasil. Histórias atuais da época que não voltavam na bagagem do professor em suas viagens. Terça-feira, alunos do terceiro ano resolvem problemas matemáticos enquanto Seu Zeca explica algo sobre português para o quarto ano. Eles terão que fazer uma redação enquanto o terceiro corrige a tarefa auxiliados pelo professor. Dina não gosta muito de português, sempre foi da parte de exatas. Talvez

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mesmo horário. Terceira para um lado, quarta para o outro. Entendido que o tempo é pouco, escreve em um quadro negro para uma turma e pede para algum aluno mais “entendido” do quarto ano copie as lições no outro quadro. Explicações de um lado, explicações de outro. Repetia a maneira de lecionar as cinco matérias: Português, Matemática, Estudos Sociais, Ciências e Educação Moral e Cívica. “Às vezes conseguia intercalar as matérias” relembra com um sorriso de canto de boca. Português sempre foi o mais difícil de ensinar. Não existiam canetas por lá e os alunos escreviam com penas e tinteiro. As próprias

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demore mais que as outras crianças para escrever algumas linhas, não mais que João do Oriel (Oriel era pai de João e as pessoas se chamavam assim por lá). João sempre apontava para os outros e em um ato cômico acusava quem quer que seja de estar copiando dele. “ooo psor, olha aí ó, tão me cupiando”, frase clássica dele que virava chacota. Todos terminavam seus textos e João continuava tentando esconder sua folha dos demais olhares. Agora é a vez do quarto ano corrigir a tarefa. Zeca passa de mesa em mesa lendo os trabalhinhos. João ainda não terminou. Começa então alguma algazarra por nenhum motivo aparente e o professor tem que se impor, pega a régua e dá umas batidinhas na mesa. O silêncio volta à turma. Antigamente, como as coisas eram mais rígidas, os pais tinham um certo tratamento na educação dos filhos, usando de algumas chineladas ou a famosa vara de marmelo para “educar”. Os filhos tinham total respeito pelos seus criadores, temiam alguma situação assim. A frase “vou falar pro teu pai” que o orientador dizia servia para conter o mau comportamento. Outra coisa que também resolvia era um chacoalhão no desobediente. Seu Zeca não era de muito de usar

palmatória, mas de vez em quando distribuía umas reguadas para que a atenção voltasse, porém, com aval dos pais, preferia resolver na conversa acompanhada de um aumento no tom da voz. João ainda não terminou. Reza a lenda que ele ficou um bom tempo na quarta série. O método de ensino utilizado na escolinha de Varzeão era de uma prova por bimestre para cada matéria e depois um teste final. Esse teste servia para mostrar como o estudante estava absorvendo aquele conteúdo. Para uma melhor compreensão de como andava o ensino rural, um professor corrigia as provas dos alunos de outras escolas e esse consenso se dava em uma reunião geral no Cerro Azul. Caso o aluno passasse no teste final com média sete, ele era aprovado. Não se tinha um ensino médio por lá, só em grandes cidades e, caso quisesse continuar estudando precisaria se mudar para alguma delas. Quem não tivesse interesse em aprender, podia ajudar o pai na lavoura ou a mãe nas tarefas domésticas. Era comum um guri de catorze anos virar bóia fria e uma menina de doze saber fazer todas as tarefas domésticas, até cuidar de crianças. Dez horas e o intervalo começa. As crianças correm de um lado para o outro,

brincam com o que tem, inventam, conversam e é aquela gritaria só. Seu Zeca aproveita a meia hora para corrigir tarefas de casa e para descansar a cabeça um pouco. O tempo nublado não assusta as crianças que tentam não se sujar nas poças de barro. Escondeesconde, pique-pega e várias brincadeiras eram ilustradas por grandes sorrisos infantis, percebia-se até de costas. Não se tinha muito mas tudo aquilo se bastava. Dez e meia e todos voltam em fila, mãos para trás e camisetas suadas. Até o ano de 2.000, no Brasil, 5% das população total ainda residia em ambientes rurais, das quais, 40% eram analfabetas e o restante tinha de três a quatro anos de estudo na vida. Hoje, a escola de Doutor Ulysses conta com várias salas, quadras para a prática de esportes, materiais e oferece estudo até o ensino médio, deixando o sonho de um curso superior para ser resolvido nas grandes metrópoles. Porém, um dado importante que assusta é que o município tem o pior IDHM (Índice de Desenvolvimento Humano Municipal) do estado do Paraná. Este índice se dá por meio da qualidade do ensino, longevidade, saúde e renda, em um gráfico de zero à um, no qual, quanto mais próximo do zero, pior

“A frase ‘vou falar pro teu pai’, servia para conter o mau comportamento”


o IDHM e o seu estava em 0,546 no ano de 2013. A aula durava até meio-dia. Zeca ia para o sítio que tinha para cuidar das plantações. Era uma maneira de tirar uns trocados a mais já que salário de professor nunca foi realmente compensador. Na mesma noite, corrigia umas tarefinhas de casa e separava o conteúdo do dia seguinte. “Hora ou outra, dava pra combinar de comer um frango com uns companheiros, jogar um truco e colocar o assunto em dia” frase que lhe remete à boas lembranças. Dina e

Rosilda iam ajudar a mãe em casa, sempre tinham afazeres domésticos enquanto seus irmãos brincavam. Eram sete no total, mas Dina e Rosilda sempre lavavam a louça, ou então, varriam o chão. Todo final de semana de Zeca era movimentadíssimo. Festas, bailes, caçadas, botecos, pescaria, truco, futebol. Sempre tinha algo pra fazer. Em tempos de Copa do Mundo, as crianças podiam sair mais cedo ou nem irem pra aula. A rapaziada se reunia no morro, único lugar que

pegava sinal, instalavam a tv preto e branco e torciam pela Seleção Canarinho. Viram Pelé ganhar o mundo através daquele aparelho sem cor. “Tudo era divertimento”, comenta. Hoje, aos 72 anos de idade, restam algumas fotos e muitas recordações para Seu Zeca. Os cabelos brancos e as rugas mostram seus feitos. Olha para as fotos e ensaia um sorriso, vê a casa de madeira e aponta um à um dos alunos, confundese um pouco. “Essa foi minha primeira turma”, diz segurando fotos em preto e

branco pouco antes de olhar alguém chamando na frente de casa. Tenta achar mais fotos, porém, sem sucesso. “Tenho saudade daquele tempo. Eu gostava de dar aula, aprendi a gostar quando vi a necessidade desse povo.” Se orgulha ao lembrar que lhe fizeram até um abaixoassinado para que estudasse e começasse a dar aula. “Não comecei porque quis mas fui ficando, fui gostando e me aposentei como professor do estado. O salário não era dos melhores mas dava pra viver, né?”

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