Educação do campo: reflexões políticas e teórico metodológicas.

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Elmo de Souza Lima Keylla Rejane Almeida Melo Organização

EDUCAÇÃO DO CAMPO:

REFLEXÕES POLÍTICAS E TEÓRICO-METODOLÓGICAS

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Editora da Universidade Feral do Piauí Reitor: Prof. Dr. José Arimatéia Dantas Lopes

Conselho Editorial Prof. Dr. Ricardo Alaggio Ribeiro (Presidente) Prof. Dr. Viriato Campelo Profª. Drª. Teresinha de Jesus Mesquita Queiroz Prof. Dr. José Machado Moita Neto Prof. Dr. Solimar Oliveira Lima Prof. Dr. Antonio Fonseca dos Santos Profª Francisca Maria Soares Mendes Campus Universitário Ministro Petrônio Portela Teresina/Piauí – CEP: 64.049-550 www.ufpi.br/editora

Equipe Técnica: Diagramação e Arte Final: Ivonaldo da Silva Sousa Revisão: José Wanderson Torres Sistema de Processamento Técnico da Universidade Federal do Piauí Biblioteca Comunitária Jornalista Carlos Castello Branco E24

Educação do campo: reflexões políticas e teóricometodológicas / Organização Elmo de Souza Lima e Keylla Rejane Almeida Melo. - Teresina: EDUFPI, 2016.

260 p.: il.

ISBN: 978-85-7463-977-2

1. Práticas Pedagógicas 2. Educação do Campo. 3.

Currículo. I. Lima, Elmo de Souza. II. Melo, Keylla Rejane Almeida. III. Título.

CDD: 370.19

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SUMÁRIO Introdução - Os percursos políticos e teórico-metodológicos da educação do campo Elmo de Souza Lima Keylla Rejane Almeida Melo

1. A dimensão política da educação do campo: apontamentos para vigilância da prática educativa Pedro Pereira dos Santos 2. Fundamentos e concepções do ensino em escolas no/do campo: contribuições da pedagogia histórico-crítica Jânio Ribeiro dos Santos Raphael dos Santos

3. A organização interdisciplinar do currículo nas escolas do campo: os dilemas políticos e pedagógicos Elmo de Souza Lima

4. Educação do campo e currículo: articulação de saberes da cultura camponesa dos conhecimentos escolares Raimunda Alves Melo Maria da Glória Soares Barbosa Lima 5. Prática educativa no contexto da educação do campo: as possibilidades de transformação social Maria Sueleuda Pereira da Silva Elmo de Souza Lima

6. O ensino de matemática na educação campo sob a perspectiva da etnomatemática Cláudia Lúcia Alves 7. Educação e diversidades nas escolas do campo: a construção de práticas educativas interculturais Elmo de Souza Lima

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8. A infância do campo: das garantias legais à materialização do direito à educação infantil Keylla Rejane Almeida Melo Janaina Gomes Viana de Souza 9. A interface entre Educação de Jovens e Adultos e Educação do Campo: tensões e perspectivas Luiz Jesus Santos Bonfim 10. A formação docente como instrumento de ressignificação das práticas educativas em escolas do campo em áreas quilombolas Linconly Jesus Alencar Pereira Maria do Socorro Xavier Batista Dados dos Autores

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INTRODUÇÃO OS PERCURSOS POLÍTICOS E TEÓRICO-METODOLÓGICOS DA EDUCAÇÃO DO CAMPO Elmo de Souza Lima Keylla Rejane Almeida Melo As políticas educacionais implementadas historicamente no Brasil foram concebidas a partir do modelo de sociedade urbano-industrial, associado ao desenvolvimento de conhecimentos e competências necessárias ao processo de industrialização, portanto, vinculadas aos projetos de educação que atendem aos interesses do sistema capitalista.

Nessa perspectiva, as políticas de educação oferecidas aos povos do campo constituíram-se uma extensão desse modelo urbano, pautado em concepções e valores urbanocêntricos que ignoram e/ou negam os modos de vida dos camponeses, seus saberes, valores e práticas culturais. Assim, a história da educação brasileira traz a marca da exclusão e da negação dos povos do campo ao direito básico à educação, tendo em vista que somente no final do século XX houve, de certa forma, a universalização do direito à educação básica no Brasil.

Todavia, a garantia do direito dos povos do campo à educação ainda é marcado por inúmeros desafios. Primeiro, enfrentamos dificuldades com relação ao acesso à escola, acentuadas nos últimos anos, com o fechamento das instituições de ensino no campo e o deslocamento de crianças e adolescentes aos centros urbanos e/ou às comunidades pólos localizadas no meio rural, fato que traz diversos problemas de ordem política, pedagógica e cultural, tendo em vista que os educandos são obrigados a deslocarem-se dos seus territórios, enquanto espaços de referência na produção do conhecimento e desenvolvimento da cidadania.

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Segundo, convivemos ainda com propostas pedagógicas e curriculares que ignoram o campo como espaço de construção de conhecimentos, culturas e saberes; e os educandos enquanto sujeitos históricos e protagonistas na produção de diferentes saberes vinculados às suas práticas culturais e suas relações com/no mundo. A negação deste contexto sociocultural e dos conhecimentos neles produzidos constitui-se um grave equívoco pedagógico e epistemológico, uma vez que todo conhecimento consolida-se, legitima-se e torna-se significativo na medida em que se articula com as práticas sociais, desdobrando-se em novas perspectivas de leitura e reinterpretação do mundo.

Diante desse contexto, os movimentos sociais do campo começaram, a partir da década de 1980, a discutir sobre as políticas de educação implementadas nas escolas do campo, questionando suas concepções pedagógicas, bem como os conhecimentos e valores disseminados nos seus projetos educativos e curriculares. Na visão dos movimentos sociais, as práticas educativas instituídas nas escolas do campo, por serem descontextualizadas e ignorarem as experiências e os processos políticos e organizativos vivenciados pelos sujeitos do campo, pouco contribuem na formação crítica dos camponeses e na construção de conhecimentos que possibilitem uma releitura do mundo rural, desvelando as relações de poder e opressão constituídas neste contexto, responsáveis pelo processo de exclusão e negação de direito da população.

Por esta razão, os movimentos sociais do campo assumiram o compromisso político de aprofundar as discussões e os estudos acerca do projeto político de educação a ser implementado nas escolas do campo, em diálogo com os processos políticos e organizativos das comunidades, vislumbrando novas perspectivas de socialização e construção de conhecimento que favoreçam o empoderamento dos camponeses e o fortalecimento do projeto de sociedade que tenha estes sujeitos como protagonistas.

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Os debates políticos construídos pelos movimentos sociais, juntamente com os educadores e pesquisadores da área da educação do campo, a partir de conferências e encontros nacionais realizados pela Articulação Nacional Por uma Educação do Campo, trouxeram inúmeras contribuições à construção deste projeto de educação do campo pautado em novos referenciais políticos e pedagógicos, que tenham a realidade e a cultura dos sujeitos como ponto de partida e de chegada dos processos educativos.

Dentre os princípios políticos que norteiam este projeto de educação, destacam-se a vinculação do projeto pedagógico e curricular da escola com o campo, que se materializa pela garantia do direito às crianças e adolescentes de estudarem em suas próprias comunidades. Significa que estes projetos educativos estejam enraizados na cultura dos povos, articulados aos seus processos políticos e organizativos. Além disso, que se constituam em sintonia com o projeto de sociedade e de ser humano que se deseja construir/formar, tendo como base as utopias e os sonhos que movem as lutas e a vida no campo, almejando a construção de uma sociedade democrática e justa.

Este projeto de educação do campo, que se institui enquanto projeto político vinculado ao modelo de sociedade democrático e igualitário, traz em seu arcabouço pedagógico e teórico-metodológico um conjunto de princípios que devem reafirmar, através de seus percursos teóricos e práticos, a prática da solidariedade, da cooperação, da organização coletiva, do respeito ao ser humano e à vida, que se materializa a partir de uma perspectiva de trabalho coletivo e cooperativo, pautado no uso sustentável do meio ambiente e na produção da vida saudável.

Diante desse cenário, observamos que as lutas travadas pelos educadores e movimentos sociais do campo pelo direito à educação trazem inúmeros desafios às universidades e instituições de ensino, associados à necessidade de se repensar os aportes políticos e teórico-metodológicos que norteiam as 9

práticas de ensino, pesquisas e extensão, problematizando-as com o propósito de identificar a capacidade destas instituições e de suas propostas teórico-metodológicas em acolher e dialogar com os saberes e com as experiências políticas e pedagógicas construídas pelos sujeitos do campo.

Os diálogos construídos entre os movimentos sociais do campo e as universidades em torno da proposta de educação do campo revelam os desafios que estão postos para ambos os sujeitos com relação à superação/ruptura com o modelo de ciência e das práticas acadêmicas instituídas nas universidades. A cultura acadêmica construída nas instituições e centros de pesquisas fundamenta-se em projetos políticos e de sociedade que negam as diversidades de experiências e saberes que não se articulam com os padrões culturais e científicos eurocêntricos e/ou norte-americanos.

Nessa perspectiva, os saberes e as práticas sociais dos povos do campo, dentre outros grupos sociais “minoritários”, sempre estiveram à margem dos debates políticos e culturais instituídos no âmbito acadêmico. Os conhecimentos produzidos pelos povos do campo, bem como os indígenas, quilombolas, dentre outros, foram sempre ignorados e/ou silenciados no meio acadêmico, como forma de consolidar um modelo hegemônico de conhecimento científico, pautado em referenciais políticos e culturais vinculados às matrizes eurocêntricas e aos projetos políticos e econômicos do sistema capitalista.

Diante desse contexto, as lutas construídas pelos movimentos sociais do campo explicitam sua posição política de combate aos projetos de educação e de ciência pautados na lógica da colonização científica e cultural, bem como nas lógicas de opressão e exploração instituídas pelo modelo de sociedade capitalista, centrado na exclusão e na concentração de riqueza.

Desse modo, o projeto de educação do campo instituído a partir das proposições políticas dos movimentos sociais traz em sua essência a dimensão politizadora da educação, 10

situando-a enquanto instrumento de humanização, libertação e emancipação dos sujeitos do campo. Construídos a partir da problematização deste modelo de ciência e sociedade que nega o campo enquanto espaço de possibilidades, a proposta de educação do campo busca dialogar com a realidade de exclusão e negação dos povos do campo, instigando-os a assumirem sua condição de protagonistas das lutas pela transformação social, tendo a educação enquanto processo de desvelamento da realidade, de apropriação crítica de novos conhecimentos que irão possibilitar a construção coletiva de novas alternativas de desenvolvimento, tendo a cultura, o trabalho e a cooperação entre os sujeitos como elemento central deste processo de construção de uma sociedade democrática.

Neste percurso trilhado pelos movimentos sociais, ainda são muitos os desafios a serem superados na efetivação de uma política de educação do campo. Entretanto, os embates travados em torno da concepção política e pedagógica da educação do campo têm garantido conquistas significativas, principalmente com relação às políticas de formação de educadores para atuar nas escolas do campo. O Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), criado em 1998, vinculado ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), trouxe contribuições relevantes na construção dos marcos político pedagógico e teórico-metodológico da educação do campo e, principalmente, da formação de educadores do campo, devido seu diálogo com as demandas e proposições dos movimentos sociais.

Os cursos de graduação e pós-graduação apoiados pelo Pronera têm oportunizado a construção de novos caminhos e perspectivas na formação de educadores na medida em que são forjados a partir das experiências de formação e mobilização social dos camponeses, entrelaçando-se com seus saberes e práticas sociais, oportunizando a construção de conhecimentos acerca da realidade sócio-histórica, política e cultural do campo que se articulam e dão novos rumos aos processos educativos desenvolvidos nas escolas do campo.

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Com o propósito de superar as marcas autoritárias e colonizadoras comuns no meio acadêmico, estes projetos de formação são construídos de forma coletiva, em diálogo com os movimentos sociais e os demais sujeitos do campo, numa perspectiva de problematizar o campo enquanto espaço/território de possibilidades, de lutas, de conquistas e produção de diferentes modos de vida. Por outro lado, é oportunizada também a construção de projetos alternativos de educação e de escola do campo que estejam a serviço da classe trabalhadora e das lutas dos próprios camponeses em defesa da construção de um modelo de sociedade que tenha os sujeitos sociais como protagonistas, contemplando seus sonhos, desejos e utopias.

De fato, as experiências instituídas no campo da formação docente a partir do Pronera foram fundamentais para que os movimentos sociais reforçassem as suas lutas em defesa de um projeto mais amplo na área da formação que pudesse comprometer as universidades públicas brasileiras com as políticas de formação dos educadores do campo. Com isto, tivemos, em 2010, a implementação do Programa de Apoio à Formação Superior em Licenciatura em Educação do Campo (PROCAMPO) e, posteriormente, das Licenciaturas em Educação do Campo de caráter regular, como uma conquista histórica dos educadores e camponeses, dado o significado político destas conquistas na ampliação e o fortalecimento do processo de formação de educadores do campo. Atualmente temos 44 cursos de Licenciatura em Educação do Campo, envolvendo 28 universidades federais e 04 Institutos Federais em 20 estados brasileiros.

Neste cenário, a Universidade Federal do Piauí (UFPI) implantou, em 2013, quatro cursos de Licenciatura em Educação do Campo: um no campus de Teresina e os demais no Campus de Bom Jesus, Floriano e Picos. Estes cursos de licenciatura são estruturados a partir de habilitações específicas vinculadas às áreas de conhecimento. Desse modo, no Campus de Bom Jesus, optou-se por oferecer a habilitação 12

em Ciências Sociais e Humanas; nos demais Campus, o estudo de demanda apontou para a necessidade de cursos na área de Ciências da Natureza.

Com o propósito de ampliar o debate sobre a educação do campo na UFPI, foi criado em 2013 o Núcleo de Estudos, Pesquisas e Extensão em Educação do Campo (NUPECAMPO) com a finalidade de fomentar novos estudos e pesquisas referentes aos pressupostos políticos, pedagógicos e epistemológicos da educação do campo. Neste caso, o Núcleo faz a articulação de diferentes pesquisadores, educadores e estudantes de graduação e pós-graduação, bem como de lideranças de movimentos sociais, para pensar em estratégias de fortalecimento das políticas de educação do campo no Piauí.

Com a implementação das Licenciaturas em Educação do Campo nas universidades, novos desafios institucionais surgiram no ambiente acadêmico, associados ao modelo de gestão dos processos educativos e político pedagógico, vinculados ao campo acadêmico e científico. Isto por que estes cursos são pensados a partir de outras matrizes políticas e epistemológicas, contrapondo-se em grande medida aos modelos convencionais de ensino, pesquisa e extensão instituídos historicamente nas universidades.

A partir das provocações dos movimentos sociais, em torno dos modos de pensar a educação e a construção do conhecimento, inúmeras reflexões emergem deste diálogo na perspectiva de visualizarmos novos processos de articulação teoria/prática e de produção de práticas educativas que se constituam enquanto práxis, tendo as vivências e as experiências políticas e culturais dos sujeitos como elementos a serem problematizados e ressignificados no processo de construção de outros conhecimentos acerca do mundo.

Deslocando-se dos modelos clássicos da pedagogia e da própria filosofia da ciência, pautados no positivismo e no neotecnicismo, os processos educativos constituídos a partir deste diálogo com os movimentos sociais e suas pedagogias transgressoras permitem pensar outras alternativas políticas e 13

pedagógicas que favoreçam a articulação entre as práticas sociais e políticas dos povos do campo com os conhecimentos escolares, colocando estes últimos a serviço do processo de desvelamento e compreensão crítica da realidade e reconhecimento dos sujeitos sociais como protagonistas do processo de transformação social.

São processos educativos que têm a realidade do campo como espaço de construção do conhecimento e os sonhos e utopias destes sujeitos como elementos motivadores e impulsionadores dos caminhos a serem trilhados na construção de novas perspectivas de vida, que tenham a sustentabilidade e a solidariedade, assim como as experiências de cooperação e construção coletiva, como dimensões balizadoras deste projeto de sociedade.

Nessa perspectiva, os diálogos e enfrentamentos instituídos a partir da inserção dos sujeitos do campo nas universidades públicas brasileiras, a partir da implementação das políticas de educação do campo, têm demarcado novos caminhos e estratégias na construção dos processos formativos e das práticas de pesquisa e produção dos conhecimentos implementados nas instituições de ensino superior. Estes caminhos trilhados pelos sujeitos que fazem a educação do campo têm desvelado novos contextos, vozes e compreensões do mundo, ausentes nas narrativas e práticas sociais instituídas no meio acadêmico.

Diante desse contexto, as reflexões propostas nesta obra buscam contribuir para a construção de novas alternativas políticas e teórico-metodológicas que fomentem transformações nos modos de pensar a produção do conhecimento e as práticas educativas nas instituições de ensino superior e, principalmente, nas escolas da educação básica do campo.

São reflexões e proposições teóricas que emergem das experiências e práticas educativas, assim como das inquietações políticas e pedagógicas vivenciadas pelos diferentes educadores e pesquisadores a partir de suas intervenções na área da 14

educação do campo, em diálogo com os sujeitos do campo e com as experiências dos movimentos sociais.

Nesse sentido, esta coletânea está composta por dez textos, reunindo reflexões de estudiosos de diferentes instituições educativas, com o intuito de possibilitar o fortalecimento das discussões sobre educação do campo.

No primeiro artigo, A dimensão política da educação do campo: apontamentos para vigilância da prática educativa, Pedro Pereira dos Santos traz uma reflexão sobre a dimensão política da educação do campo, evidenciando o papel exercido pelo educador na construção de práticas educativas que instiguem a formação ético-política dos educandos, associada à capacidade de atuar coletivamente em torno do bem comum. Neste caso, defende a necessidade de pensarmos numa educação comprometida com a humanização e a emancipação dos camponeses, reafirmando, portanto, sua condição ontológica de “ser mais”, capaz de construir as possibilidades de transformação social a partir do cultivo de novos sonhos e utopias, alimentados pelo desejo de transformação de si e do mundo.

No segundo artigo, Fundamentos e concepções do ensino em escolas no/do campo: contribuições da pedagogia histórico-crítica, os autores Jânio Ribeiro dos Santos e Raphael dos Santos discutem, a partir de uma concepção de educação e de escola do campo numa perspectiva contra-hegemônica, o que ensinar nas escolas no/do campo tendo como referência os princípios da Pedagogia Histórico-Crítica. Defendem a necessidade de seleção e organização de conteúdos de ensino baseados no projeto de sociedade defendido pela classe trabalhadora do campo e da cidade, cuja fundamentação está em uma reflexão pedagógica crítico-superadora.

No terceiro artigo, A organização interdisciplinar do currículo nas escolas do campo: os dilemas políticos e pedagógicos, Elmo de Souza Lima discute sobre as disputas e confrontos que permeiam a construção do currículo escolar, evidenciando a relação intrínseca entre o projeto curricular e 15

as perspectivas implicadas na construção do modelo de sociedade e o tipo de sujeito a ser formado no contexto do campo. Por fim, faz uma reflexão sobre o processo construção do currículo numa perspectiva interdisciplinar, desenvolvido por meio da pesquisa-ação na Escola Municipal Liberato Vieira, em Ipiranga do Piauí, voltado à construção de um currículo contextualizado com as experiências sociais, políticas e culturais dos camponeses, pautado na investigação crítica da realidade.

No artigo Educação do campo e currículo: articulação de saberes da cultura camponesa aos conhecimentos escolares, as autoras Raimunda Alves Melo e Maria da Glória Soares Barbosa Lima discutem sobre o currículo, fundamentadas na concepção de que, em contextos culturais diversificados, como as escolas do campo, o currículo, o conhecimento escolar e a cultura se destacam por assegurar o direito de educandos e educadores no que concerne ao desenvolvimento de competências cada vez mais necessárias no cotidiano e no mundo contemporâneo. O estudo é parte de uma investigação realizada com professores de Ensino Fundamental que atuam em escolas do campo, cujo objetivo era compreender como esses professores articulam os conhecimentos escolares com os saberes da cultura camponesa.

No texto Prática educativa no contexto da educação do campo: as possibilidades de transformação social, os autores Maria Sueleuda Pereira da Silva e Elmo de Souza Lima dialogam sobre a prática educativa nas escolas enquanto espaço de reflexão e produção coletiva de conhecimentos acerca da realidade sociocultural e política do campo. A partir da experiência na Ecoescola Thomas a Kempes, em Pedro II no Piauí, os autores destacam as contribuições das práticas educativas no processo de reflexão crítica das condições de vida dos jovens do campo, contribuindo na tomada de consciência de suas condições históricas, na melhoria da autoestima 16

dos educandos e na reafirmação da identidade camponesa, bem como na construção das alternativas de transformação social.

No artigo O ensino de matemática na educação do campo sob a perspectiva da etnomatemática, a autora Claudia Lúcia Alves questiona a concepção de matemática como um conjunto de técnicas e/ou um conhecimento pronto e acabado a ser repassado aos educandos de forma mecânica como verdade absoluta. Para tanto, aprofunda a compreensão sobre os princípios que orientam as experiências educativas embasadas na Etnomatemática, apresentando alternativas didático-pedagógicas que poderão ser desenvolvidas pelos professores de matemática das escolas do campo numa perspectiva contextualizada, construídas a partir de situações reais do cotidiano, que fazem parte do contexto sociocultural do aluno.

No artigo Educação e diversidades nas escolas do campo: a construção de práticas educativas interculturais, Elmo de Souza Lima discute sobre as variedades de experiências e conhecimentos que permeiam as práticas educativas nas escolas do campo, oriundas das práticas sociais dos educandos construídas nas suas relações com/no mundo.

Neste contexto, discute sobre a necessidade de pensarmos em projetos educativos que tenham a capacidade de acolher e dialogar com estes diferentes conhecimentos e saberes, problematizando-os com o intuito de evidenciar contradições e potencialidades, tendo em vista o desenvolvimento de processos políticos e organizativos associadas à emancipação e à transformação social.

No artigo A infância do campo: das garantias legais à materialização do direito à educação infantil, as autoras Keylla Rejane Almeida Melo e Janaina Gomes Viana de Souza refletem sobre a situação histórica da infância do campo, dentro de um duplo processo de exclusão: a infância como categoria social não reconhecida como sujeitos de direitos; e a infância do campo enquanto parte dos povos historica17

mente concebidos como atrasados, em extinção. Nesse contexto, analisam as garantias legais, a ampliação das discussões teóricas em torno da infância do campo, ao longo das últimas décadas, no tocante ao direito à educação, e algumas experiências de Educação Infantil do campo que concebem as crianças como sujeitos sociais, protagonistas do processo educativo.

No artigo, Um olhar contra-hegemônico sobre a formação de professores/as na educação escolar quilombola, os autores Linconly Jesus Alencar Pereira e Maria Socorro Xavier Batista analisam uma proposta de formação continuada de educadores/as de escolas de comunidades quilombolas no Contexto Potiguar, tendo como referência empírica o Curso de Aperfeiçoamento em Educação Escolar Quilombola realizado pela Universidade Federal Rural do Semiárido – UFERSA. Para tanto, partem da reflexão sobre a escravidão e seus reflexos no racismo e nas desigualdades sociais, econômicas, políticas e culturais, situações vivenciadas pela população negra no Brasil, com destaque para as comunidades quilombolas do Rio Grande do Norte (RN) e a luta por terra, escola e políticas públicas.

Por fim, o texto A interface entre educação de jovens e adultos e educação do campo: tensões e perspectivas, de autoria de Luiz Jesus Santos Bonfim, discute sobre os dilemas políticos, pedagógicos e metodológicos enfrentados pela educação de Jovens e Adultos no Brasil, principalmente os projetos implementados nas comunidades rurais. O autor denuncia a ausência de uma proposta pedagógica e de materiais didáticos compatíveis com a realidade sociocultural dos educandos, bem como a omissão do estado no desenvolvimento de uma sólida política de formação de educadores, específica para os profissionais que atuam nesta modalidade de ensino.

O fato é que as políticas de educação de jovens e adultos pouco têm contribuído para a formação crítica dos educandos, oportunizando, a partir do acesso à escola, novas possibilidades de vida.

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As reflexões políticas e teórico-metodológicas desenvolvidas pelos diferentes autores que compõem este livro sobre a educação do campo e as possibilidades de reinvenção do fazer educativo nas escolas trazem contribuições significativas para o delineamento das políticas e práticas na educação básica do campo. São contribuições que buscam apontar diferentes caminhos e possibilidades de organização do trabalho pedagógico a fim de que favoreça a produção coletiva do conhecimento, a problematização da realidade do campo, o reconhecimento dos diferentes saberes dos educandos e a articulação entre os saberes sociais dos camponeses e os conhecimentos escolares, visando à construção de uma nova leitura do mundo, revelando novas possibilidades de luta e de vida no campo.

Acreditamos que esta coletânea possa instigar educandos e educadores a ousarem trilhar novos caminhos na produção do conhecimento na área da educação do campo, caminhos que não estão dados, mas podem ser construídos coletivamente, tendo as teias da cultura e os sonhos dos camponeses como elementos que movem a vida e podem dar novos sentidos e significados às práticas educativas e sociais no meio rural. Como dizia Raul Seixas “Um sonho que se sonha só, é só um sonho que se sonha só, mas sonho que se sonha junto é realidade”. Que a educação do campo seja um sonho coletivo a ser compartilhado e construído por várias mãos e em diferentes contextos, contribuindo na produção e realização de novos sonhos, desejos e utopias. Viva o campo e a educação do campo!

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A DIMENSÃO POLÍTICA DA EDUCAÇÃO DO CAMPO: APONTAMENTOS PARA VIGILÂNCIA DA PRÁTICA EDUCATIVA Pedro Pereira dos Santos 1 Um diálogo que se inicia: parece que no nosso tempo histórico tudo está já dito, mas mesmo assim ainda ousamos perguntar O tema deste diálogo que se inicia sobre a dimensão política da educação do campo é algo tão comum que, num primeiro momento, parece-nos que o que é necessário saber já o sabemos de forma antecipada. Assim, apressados ao olhar o título, poderíamos dizer que já sabemos o que é política, o que é educação do campo e o que significa prática educativa.

Assim, já sabendo do que se trata, o tema tornar-se-ia tão óbvio que pouco despertaria nossa atenção.

Todavia, entendemos que uma das tarefas de quem trabalha mais especificamente com a filosofia da educação é instigar, provocar, problematizar o ordinário, o comum, o banal, o dito de antemão, aquilo que de tão óbvio nos isenta de reflexão. Desse modo, como participantes de uma teia de relações sociais, aprendemos muito pelo que o outro pensa, diz, age e faz.

Nessa direção, Aristóteles (1973) em Ética a Nicômaco entende que um dos elementos para que aprendamos agir de forma ética numa sociedade é o exemplo, pois este fortalece o que se anuncia como agir virtuoso do cidadão1 na vida política da pólis. Assim, numa sociedade aprendemos em com1 Ressaltamos que a cidadania na Grécia antiga era limitada na medida em que apenas 10% da população eram considerados cidadãos, excluindo mulheres, crianças, metecos os estrangeiros e escravos. Mesmo assim, o filósofo grego, no seu tempo histórico, contribui de forma significativa no sentido de possibilitar a compreensão de que o homem é um animal político que jamais se realiza sozinho, mas na relação com outrem.

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panhia de outrem, participando ativamente das decisões em prol da realização da felicidade do homem2 na vida social. E o modo de agir do outro, o seu testemunho pela ação exerce certo poder sobre os outros no sentido de incentivá-los, também, a se realizarem na sociedade da qual participa.

Com este intuito, o autor supracitado parte do pressuposto de que a arte, a investigação, a escolha e a ação visam um bem qualquer. Se assim o é, deve existir um bem mais elevado que qualquer outro tipo de bens, a saber, a felicidade que é o bem supremo que orquestra um conjunto de virtudes como a temperança, a liberalidade, a coragem, a magnificência, a magnanimidade, dentre outros.

Assim, o homem, movido pelo desejo de conquista da felicidade, pela busca de ser feliz, não só conhece as virtudes entendidas como princípios, meios e disposições que o movem na busca daquilo que se deseja como bem maior, mas exige do cidadão que quer se realizar enquanto tal o exemplo para que crianças e jovens aprendam o caminho mais adequado para se tornarem felizes.

Porém, ser cidadão na pólis não se resumia apenas a aprender pelo exemplo de outrem, pois cabia ao homem aprender a se espantar no mundo em que vive. É do seu espanto e da necessidade de compreender o porquê do espanto é que oriunda a filosofia. Por isso mesmo, ela é um tipo de conhecimento próprio do homem espantado, antes familiarizado com seu cotidiano, e que a partir de então adota uma atitude de busca pra explicar o que lhe parecia habitual. É essa postura de espanto que emergiu quando nos deparamos com o tema desse diálogo sobre educação do campo. Diálogo, porque ao escrever não nos restringimos a nós 2 O termo é utilizado pelo filósofo e será mantido sempre que nos referirmos ao seu pensamento, mas por compreendermos que estamos situados num contexto histórico que traz demandas diferentes daquele de Aristóteles, adotamos o termo ser humano como o mais adequado para contemplar o modo de ser do gênero masculino e feminino..

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mesmos, mas nos estendemos a outrem que ao leem o que escrevemos tem todo direito de criticar, de sugerir, de refazer o que fazemos. E que lendo os que nos criticam e sugerem, podemos também fazer o mesmo que fizeram de forma rigorosa, científica e ética.

Por outro lado, o tema é assustador por ser polissêmico, pois traz em si mesmo diversos significados construídos historicamente conforme as múltiplas correntes de pensamento.

E como estamos acostumados a pensar de forma superficial o mundo em que vivemos, quando adentramos no estudo de um determinado tema e o admiramos de dentro para fora e vice-versa, esforçando-nos para compreender o seu emaranhado de significados, tornamo-nos assustados, pois o familiar, o ordinário, passou a exigir um olhar indagador para poder humildemente explicá-lo melhor. É com esse olhar problematizador que elaboramos como pressuposto deste trabalho a compreensão de que toda educação tem como fim a formação de um sujeito conforme uma determinada orientação política prevalente. Tal afirmação exige então que respondamos a três indagações epistemológicas, a saber: • se a educação se destina a formar, quem é o sujeito a ser formado por ela?

• se a educação tem um sujeito a ser formado, o que é a educação e, especificamente, a do campo?

• e se esta se destina a formar alguém de acordo com uma orientação política prevalente, quais suas pretensões?

Enfatizamos que estas questões são complexas e existem inúmeras respostas de acordo com as teorias adotadas pelos pesquisadores. Além disso, o percurso a ser seguido por nós pode ser construído de forma diferente por outrem. Porém, optamos por esse caminho por entendermos que a partir de uma discussão, mesmo que embrionária, sobre o sujeito, 23

poderíamos entender melhor a educação do campo e sua dimensão política.

2 Sujeito da educação: o criador e plasmador de fins A educação no seu sentido lato é uma criação do próprio ser humano a fim de que ao longo da sua existência, ele possa se apropriar e recriar o acervo cultural construído pela humanidade para que possa intervir criticamente no mundo em prol da sua humanização.

Desse modo, como a educação é criação humana, pois emerge do próprio processo interventivo do sujeito na história, partimos então do sujeito como criador de si e dos meios para se humanizar.

O humano é um ser que, num primeiro momento, intervém na natureza por meio do trabalho e dela obtém a matéria-prima para garantir as condições básicas de sua sobrevivência. Desse modo, entendemos que a primeira necessidade humana foi travar uma luta intensa com a natureza para se manter vivo e perpetuar sua espécie (MARX, 2007).

Todavia, o processo de intervenção do humano na natureza não é unilateral, mas sim dialético. Pois, ao intervir na natureza, o humano necessitava idealizar, projetar mentalmente, o que pretendia executar e plasmar posteriormente no objeto de sua intervenção. Mas, ao projetar de forma antecipada o que pretendia realizar, o ser humano se deparou com as peculiaridades do objeto a ser modificado, o que lhe exigiu a criação de conhecimentos, o domínio de técnicas, dos meios, a capacidade de previsão de resultados, como também de avaliação da sua ação no mundo (VÁSQUEZ, 2011).

Desta forma, o humano como interventor no mundo para obter as condições básicas para sobreviver, constrói concomitantemente as relações sociais, a necessidade de repro24

dução e a linguagem, o que demonstra que ele supera o seu ciclo vital e se afirma no mundo como ser social e cultural.

Nesse sentido, Freire (2005) no início da Pedagogia do Oprimido, antes mesmo de adentrar nos temas educação, opressão e liberdade, preocupa-se em explicitar a sua compreensão sobre o homem3, sujeito do processo educativo libertador.

Dialogando então com Marx dos Manuscritos Econômicos e Filosóficos (2010), Freire na obra supracitada compartilha do entendimento de que o homem é um ser que se diferencia do animal pela sua capacidade de intervir no mundo e, ao mesmo tempo, pelo fato de ser consciente tanto de si mesmo quanto do mundo objetivo em que participa.

Nessa direção, o humano como ser histórico, porque traz em si as marcas do passado, do presente e do futuro, sai de si, do seu ciclo vital, biológico, conserva-o em certa medida, mas se define de forma essencial como sujeito social.

Desse modo, não há uma negação absoluta da esfera biológica da vida, mesmo porque ela é o suporte, a base da existência humana e por meio dela adaptamos ao meio natural e social do qual fazemos parte.

Todavia, o ser humano diferente do animal transcende à adaptação e se torna presença no plano da sua inserção crítica no mundo. Esta se torna possível, porque o humano é ser de atividade que põe finalidades construídas pela sua consciência, fins esses que visam materializar-se como produto da ação humana. Assim, destaca Freire (2005, p.103) que os seres humanos [...] ao terem consciência de sua atividade e do mundo em que estão, ao atuarem em função de finalida3 O termo homem referindo-se ao gênero masculino e feminino foi conservado neste trabalho por uma questão de referência à obra do autor. Mas, entendemos que ele mesmo percebeu o forte teor do poder masculino presente no supracitado termo. Ciente disso, o autor em diversas obras posteriores, dentre elas, A Pedagogia da Esperança (1992), ao refletir sobre a relação de gênero defendeu que o termo ser humano era o mais adequado no sentido de possibilitar o fortalecimento da luta política em prol da valorização tanto do homem como da mulher.

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des que propõem e se propõem, ao terem o ponto de decisão de sua busca em si e em suas relações com o mundo, e com os outros, ao impregnarem o mundo de sua presença criadora através da transformação que realizam nele, na medida em que pode separarse e, separando-se, podem com ele ficar, os homens, ao contrário do animal, não somente vivem, mas existem, e sua existência é histórica.

Desta feita, entendemos em companhia de Freire que o próprio da condição humana é a consciência criadora de fins e o compromisso para efetivá-los. Para tanto, o humano torna-se um ser que diferente do animal, pois mesmo condicionado pelos fatores econômicos, políticos, sociais e culturais, distancia-se deles pelo processo reflexivo e cria conceitos não só para interpretação do mundo, mas para transformá-lo numa nova ordem social em prol da realização da sua vocação ontológica, entendida como processo de humanização do sujeito histórico.

Do exposto, então, podemos destacar algumas marcas peculiares do ser humano. Dentre elas, a sua capacidade de intervir no mundo para garantir as condições básicas da sua existência, a consciência que emerge como faculdade de criação de fins e meios para realização do seu ato, o distanciamento reflexivo do objeto intencionalizado tanto para abstraí-lo como para intervir nele, a transformação do objeto e do sujeito dialeticamente e a decisão e o compromisso do sujeito social para efetivação das escolhas feitas por ele.

Dessas características do ser humano, outras ainda podem ser acrescidas conforme os escritos freireanos, como a autonomia, compreendida como afirmação do sujeito no seu tempo histórico, tornando-se capaz de refletir criticamente, de decidir, de fazer escolhas por meio do diálogo com o outro, mas sem se sacrificar a favor dele nem negá-lo em prol de si mesmo.

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Tal autonomia é relativa4 e construída na interação com o mundo, com o outro e consigo mesmo. Nela, o que está em jogo é a afirmação do sujeito social como ser capaz de herdar a cultura dos antepassados, adquirir aquilo que é produzido no seu tempo histórico e, sobretudo, recriar de forma crítica o herdado e o adquirido de outrem a fim de promover e garantir a humanização que pressupõe a conquista e a realização do sujeito nas esferas econômica, política, social e cultural.

Isso significa que a humanização pressupõe o desenvolvimento omnilateral, entendido como a potencialização e a efetivação da vida nas dimensões física, intelectual, afetiva, social, moral, ambiental, ética e estética. Assim, a autonomia exige respeito pelo saber do outro que também deseja se humanizar, a solidariedade e a luta individual e coletiva como forma de construção de uma nova sociabilidade para além da sociedade capitalista vigente.

Ainda outra característica marcante do ser humano é a sua curiosidade que pode se elevar da ingenuidade para a criticidade. Gramsci (1999) nos Cadernos do Cárcere, dentre eles o de número 11 (1932-1933), define o ser humano como herdeiro da cultura, mas também capaz de refletir criticamente sobre ela, compreendendo os diversos condicionamentos que limitam a luta emancipatória da classe trabalhadora.

Com a intenção de fortalecer o processo de construção da emancipação humana, Gramsci (1999) defende a filosofia da práxis como pensamento filosófico par excellence que tem 4 Autonomia relativa é compreendida como processo de afirmação do ser humano no mundo objetivo, subjetivo e intersubjetivo. Isto é, para que o sujeito seja o que deseja ser, precisa entender que se encontra numa teia de relações que envolvem a natureza, as condições materiais, as relações sociais e o seu próprio poder de decisão. Nesse emaranhado, o sujeito que decide fazer algo jamais consegue efetivar plenamente o que tinha planejado, porque ao elaborar previamente o que pretende efetivar, depara-se com um conjunto de fatores de natureza econômica, política, social e cultural que podem, de certo modo, contribuir com o fim desejado, como também anular parte do que foi construído mentalmente. Assim, o termo expressa a iniciativa humana para conquistar o que pretende, mas condicionada pelos fatores de um determinado contexto histórico.

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como uma das tarefas promover o transitar do senso comum à consciência crítica, tida como esforço intelectual e moral na busca de compreensão da totalidade do real que traz em si mesmo um conjunto de especificidades.

Com esse intuito, o filósofo compreendia que a revolução que tinha como sujeitos privilegiados os ‘simples’, os trabalhadores industriais e os camponeses italianos, era possível, mas desde que existisse uma profunda transformação nas bases de sustentação da sociedade, no que se refere à esfera econômica, social, moral e intelectual.

Noutras palavras, a revolução para construção de uma nova sociabilidade, exigia como um dos elementos importantes a transição de modelos de pensamento conservador e que valida o modus vivendi da classe dominante para a consolidação do pensamento filosófico crítico, comprometido com a elevação cultural do povo para que lutem pela superação da sua desumanização.

Todavia, a tarefa revolucionária exigia a formação educativa dos próprios sujeitos que a pretendiam, pois como preconiza Marx (2007) nas Teses sobre Feuerbach, o educador revolucionário que se propõe educar para transformar, precisa também se educar, porque caso contrário, reproduz de forma inconsciente as mazelas sociais.

Opondo-se à validação do pensamento da classe burguesa e em defesa dos interesses emancipatórios, Gramsci (1999) preconizava a superação do senso comum - o saber fragmentado, construído de forma convencional, herdado e adquirido sem análise crítica e que valida os interesses de quem domina - pelo conhecimento peculiar da filosofia da práxis que visa compreender criticamente o presente sem descartar o passado, desvelar as situações desumanizadoras e instigar os sujeitos a lutarem para superá-las.

Nessa direção, Freire (2011) aproxima-se de Gramsci no sentido de que defende que o humano é condicionado, mas não determinado pelos condicionamentos do contexto em 28

que vive. Assim, embora diante de diversos obstáculos postos pela sociedade, o sujeito se explicita também pela curiosidade tanto ingênua como epistemológica.

Por curiosidade ingênua, Freire a define como visão de superfície do mundo. Por meio dela, os sujeitos explicam o real pela aparência sem compreender as suas razões de ser.

Nessa direção, quando o autor propõe a alfabetização de adultos, o ponto de partida é a leitura de mundo dos alfabetizandos, a sua consciência ingênua, o que aprenderam pela experiência cotidiana.

Mas, no processo de codificação e descodificação, os educandos se esforçam para transitar da leitura imediata do mundo para a compreensão mais crítica, rigorosa, sistemática e desveladora do real que é possibilitada pela consciência crítica. Desse modo, há certo recuo da ingenuidade e maior avanço da criticidade em prol da transformação do mundo dos sujeitos sociais.

3 A educação como processo a favor da humanização dos sujeitos sociais Pelo exposto, demonstramos então algumas marcas prevalentes do gênero humano, como capacidade cognoscitiva de pôr fins no mundo e de efetivá-los, de se comprometer consigo e com outros para plasmar no mundo o previamente intencionalizado, de dialogar com o outro, de curiosidade, de inserção crítica no mundo, de esperança, de autonomia, de reflexão e de transformação.

A partir dessa compreensão sobre o humano é que compreendemos a educação no seu sentido lato como processo de produção, de apropriação e de recriação do acervo cultural com a intenção de promover a transformação do sujeito e do mundo em que vive. Entendida assim, a educação como produção e apropriação, exige o estudo rigoroso, metódico, 29

global e amoroso daqueles que nos antecederam, pois o que somos depende também do que já foi construído historicamente.

Por esse motivo, Freire (2011) destaca a importância da humildade do educador no sentido de respeitar os saberes dos educandos, saber ouvi-los, como também apropriar-se de forma ética dos autores, sem distorcer o que disseram, criticá-los conforme seu contexto histórico e superá-los. Assim sendo, a apropriação não é para cultuar os valores do passado, nem para abandoná-los como se fossem arcaicos, mas para construir uma visão de totalidade do presente para que não sejamos reprodutores de um passado opressor. Dessa forma, a educação é uma construção humana para apropriação do acervo cultural herdado e adquirido de uma determinada sociedade.

Porém, a educação não se restringe apenas à apropriação do que foi produzido culturalmente, porque o processo formativo exige a recriação do objeto cognoscível aprendido pelos sujeitos que aprendem. É por meio da recriação que o sujeito cognoscente reelabora o que lhe advém de outrem e se afirma como sujeito autônomo e transformador.

Assim, pelo ato da recriação, aquele que aprende o objeto de conhecimento, modifica-o como também se modifica dialeticamente, o que demonstra que a subjetividade é modificada também ao apreender o objeto cognoscível. Nesse sentido, a educação já não se limita apenas à apropriação daquilo que foi construído historicamente, pois promove também a transformação do próprio sujeito do conhecimento.

Entendemos, ainda, que além de garantir a apropriação do acervo cultural, a recriação do objeto cognoscível e do sujeito cognoscente, a educação visa também contribuir na transformação substantiva da sociedade. Noutro termos, o processo educativo, sistemático, dinâmico e metódico, que tem como horizonte a humanização dos sujeitos sociais se de30

fine pela capacidade de promover a apropriação, a recriação e a transformação tanto no plano subjetivo como objetivo.

Sendo assim, o que entendemos como processo educativo exige uma profunda sintonia com a promoção e realização do humano, concebido por nós como ser de atividade consciente, curioso, reflexivo, dialógico e transformador radical do mundo.

Desta feita, defendemos que toda proposta que se denomine educativa, mas não promove essas qualidades peculiares da natureza humana, deve ser analisada, criticada e superada pelos educadores e demais profissionais do campo educacional. Pois o ato educativo que nega a curiosidade, a ousadia, a autonomia, a esperança e a luta pela construção de uma nova sociedade, torna-se desumanizador na medida em que despotencializa o sujeito histórico na busca individual e coletiva de realização no mundo em que vive.

A educação contrária à natureza humana, porque a silencia, nega a voz dos que perguntam curiosamente, critica os que denunciam as situações limites do contexto social, conserva os interesses dos que dominam e transmite o conhecimento de forma acrítica, Freire (2011) define-a como conservadora e desumanizadora.

Parece-nos, então, que é essa educação da distorção da humanização que tende a prevalecer no contexto da sociedade capitalista, o que demanda uma rigorosa vigilância epistemológica, ética e política tanto dos profissionais docentes atuantes nas escolas e nas universidades, como dos educadores e educadoras engajados politicamente na educação do campo.

Quanto à necessidade de estarmos vigilantes às artimanhas da educação conservadora do poder de mando das classes dominantes, Leher (2007) alerta-nos de que a educação é um dos componentes da estratégia política de um país.

Portanto, ela é geralmente compromissada com os grupos do31

minantes defensores das propostas políticas neoliberais que foram fortalecidas no período do governo Fernando Henrique Cardoso, na década de 90 no Brasil.

Tal governo defendeu uma estratégia política para o país alinhada às orientações do Banco Mundial, do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD), o que ocasionou o enfraquecimento do sindicalismo docente, como também deslocou o foco do campo político para o de gestão da qualidade do ensino. Nesse sentido, a ênfase dada não é nos problemas estruturais do país, mas na incapacidade dos gestores em promover uma educação de qualidade.

Para compreendermos melhor tal questão, o pensamento de Apple (2002) torna-se relevante na medida em que ele relaciona a educação ao processo de produção e acumulação capitalista. Com esta intenção, o autor demonstra que sendo a educação conectada aos interesses do mercado, forma tanto os agentes para atuarem nele como também produz capital cultural que atende aos interesses econômicos.

Nesse sentido, a escola torna-se uma das instituições que alimenta a lógica de reprodução capitalista, porque constrói conhecimento e forma agentes com capital cultural apropriado aos imperativos da divisão social do trabalho. Tendo esta função, o papel da educação é criar, de forma latente, agentes ajustados detentores de conhecimentos válidos para a sociedade capitalista, como também aqueles considerados desajustados, não detentores de um arquivo de competências exigidas pela economia vigente.

Todavia, a escola não valida apenas o conhecimento de status da cultura hegemônica, porque contribui também no processo de legitimação de um novo conhecimento da classe emergente que se situa na arena social e objetiva construir e consolidar a sua contra-ideologia em prol de uma nova sociabilidade.

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Por tal motivo, entendemos a escola como instituição contraditória que ora fortalece o status quo dos grupos mais privilegiados, todavia dependendo das tensões do jogo de poder dos agentes sociais, ora pode incluir também no seu projeto político parte dos interesses das classes menos privilegiadas.

Com esta compreensão da instituição educacional, Apple (2002) opõe-se tanto à teoria do capital humano quanto à teoria da alocação. A primeira delas entende a educação como um instrumento capaz de maximizar a produção do conhecimento técnico legítimo a fim de potencializar a administração da produção capitalista.

Conforme este intuito, a referida teoria defende que os agentes atuais se situam numa sociedade capitalista avançada e que exige deles um tipo específico de capital cultural, denominado por Apple (2002) de conhecimento técnico-administrativo. Por esta razão, as escolas devem então garantir um conjunto de competências a fim de que os sujeitos atendam as demandas do mercado capitalista.

Desse modo, a teoria do capital humano vincula diretamente educação e desenvolvimento econômico, o que faz das escolas um lócus da produção de sujeitos aptos para o mercado, além de produzirem um tipo de conhecimento válido para a sua inserção conforme os ditames da economia em vigor. Essa teoria ainda defende que a escola é uma instituição formadora de agentes competentes e que pode promover a mobilidade deles na sociedade, porque de posse do capital cultural, obtém cargos de maior status na divisão social do trabalho.

Com base em tal propósito, o desemprego, os baixos salários e o subemprego são entendidos como resultado tanto da incompetência dos sujeitos que não obtiveram ao longo da sua formação a qualificação exigida pelo mercado, como também da ineficiência das organizações educacionais que 33

não garantiram os conhecimentos demandados pela hierarquização do trabalho. Como resultado ainda desse entendimento, conforme Ramos (2001), constrói-se o sentimento de culpa que envolve o trabalhador e os profissionais da educação responsáveis pela formação dos sujeitos sociais.

Dessa forma, a supracitada teoria gera algumas consequências para o fortalecimento do discurso educacional crítico, pois não enfatiza a incapacidade do mercado de trabalho em absorver todos profissionais formados pelo campo educacional, concebe os sujeitos educandos e os profissionais das instituições educacionais como incapazes de atingir as metas estabelecidas pelos órgãos oficiais e cria um sistema de reconhecimento de mérito capaz de fragilizar a categoria profissional, porque a divide entre competentes e incompetentes.

Afirma Apple (2002) que opondo à teoria do capital humano, emergiu a teoria da alocação que entende a escola como lócus negador da mobilidade social e da distribuição generalizada do capital cultural de maior valor para todos os agentes sociais. Neste caso, a instituição escolar é tida como validadora dos interesses dos grupos mais privilegiados e, para tal fim, inculca nos seus destinatários os propósitos daqueles que detém maior poder.

Os defensores dessa teoria compreendem que a escola é uma instituição de classificação, porque transmitem um conjunto de normas, saberes, valores e disposições morais oriundos das classes privilegiadas e que devem ser internalizados pelos educandos a fim de torná-los eficazes e eficientes para atenderem as demandas do mercado de trabalho.

Sendo então a escola uma transmissora da cultura de elite, ela valida o seu poder e o introjeta nos grupos menos privilegiados a fim de dominá-los. Nesse sentido, a escola antes tida como instância de desenvolvimento do capital humano, transforma-se num lócus de potencialização apenas de alguns educandos mais privilegiados.

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Comparando as duas teorias, percebemos então que a primeira delas sustenta-se numa crença de que o sistema educativo é distribuidor de capital cultural que empodera todos os sujeitos, o que os torna competentes para atenderem as demandas do mercado capitalista; enquanto a segunda teoria inaugura uma descrença no sistema educativo, pois o compreende como espaço restrito que promove o êxito de alguns sujeitos sociais em detrimento da maioria deles.

Das relações entre as teorias, compreendemos que a primeira delas torna-se ingênua na medida em que atribui um poder exacerbado à escola, concebendo-a como mola propulsora do desenvolvimento econômico e social. Porém, se tal propósito não for efetivado, nega-se essa confiança tanto na instituição escolar como também nos profissionais que nela atuam, denominando-os de incompetentes.

Tal postura dos defensores da teoria do capital humano demonstra a ausência de uma perspectiva relacional, pois desconsidera que o espaço educativo seja interligado a fatores externos e que, por tal motivo, a escola sozinha não tem o poder de promover o conjunto de demandas que lhe são atribuídas.

Já a segunda teoria supera a ingenuidade da primeira, porque demonstra que a escola é condicionada pelos fatores econômicos, sociais e culturais e, por tal motivo, não consegue promover a distribuição justa do capital cultural nem a mobilidade social. Porém, tal entendimento tende a fortalecer um pessimismo acerca do papel político da escola e dos profissionais da educação, tidos como validadores dos poderes instituídos.

Diante do exposto, entendemos que as duas teorias são reducionistas. A primeira aposta demasiadamente no poder individual a ser desenvolvido pelas instituições educativas a fim de que garantam a ascensão econômica e social. Nessa direção, a tarefa primordial da escola é potencializar o sujeito para atender demandas do mercado de trabalho. Por outro 35

lado, a segunda enfatiza o poder exacerbado do social sobre a instituição escolar e pouco destaca as forças projetivas dos seus agentes educativos.

Desse modo, depreendemos que as duas teorias, de certo modo, fragilizam a discussão sobre a educação como processo dialético de formação política dos sujeitos sociais para a sua imersão crítica e transformadora do mundo. Conforme essa perspectiva, a educação não se reduz apenas a formar para o mercado e nem deve restringir-se a validar o status do quo dos grupos mais privilegiados. Ela é processo dialético que, dependendo das forças de embate na arena social, pode se transformar também numa máquina de enfrentamento a favor dos grupos oprimidos que lutam em prol da conquista da sua humanização.

Em sintonia com este entendimento, Brandão (2002) acrescenta que por meio da educação os seres humanos podem apropriar-se da cultura do seu tempo histórico, recriando-a para se tornarem sujeitos comprometidos com a transformação social. Porém, alerta ainda que numa sociedade de classes, nem toda educação sustenta-se em propósitos emancipatórios, pois os grupos mais privilegiados se apossam das instituições educativas a fim de produzir e reproduzir os seus interesses.

Desta forma, a escola e outros espaços educativos que deveriam lutar pela superação das desigualdades sociais, podem também validar e perpetuar a dominação. Contrário a esse propósito, o autor defende a educação escolar e extraescolar como condição de desenvolvimento integral dos sujeitos sociais, tornando-os capazes de construírem um novo projeto pessoal, social e cultural de emancipação humana.

Dessa maneira, entendemos então, que todo ato educativo é político, porque defende um conjunto de interesses que ora pode validar o poder instituído dos grupos dominantes, ora pode instituir estratégias de luta emancipatória daqueles sujeitos que se encontram em situação de marginalização.

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4 Educação do campo como processo de fortalecimento da luta pela humanização De acordo com a perspectiva dialética, concebemos a educação do campo como um processo de inserção crítica do sujeito no mundo por meio do qual se tem acesso ao acervo cultural para elevação do seu nível intelectual, moral, ético, social e afetivo em prol da realização do projeto de humanização e de construção de uma nova sociedade.

Com este fim é que entendemos essa educação como um processo de criação e recriação crítica da cultura nos seus aspectos material e imaterial do povo campesino, não só para a conquista dos seus direitos na sociedade capitalista, mas como uma das ferramentas de superação dela em prol de uma nova forma de sociabilidade.

Desta feita, educa-se os sujeitos sociais tanto para produzir os bens materiais necessários a sua subsistência como também para se tornarem criadores da sua própria epistemologia, entendida enquanto um conjunto de conhecimentos peculiares do povo do campo que lhe possibilita identificar, analisar, interpretar e modificar criticamente os problemas que impedem o seu desenvolvimento enquanto sujeito histórico.

Nesse sentido, preconizamos que a educação do campo tem como uma das tarefas a superação do silêncio dos povos camponeses, como ribeirinhos, indígenas, afrodescendentes, agricultores familiares, assentados, acampados, pescadores, meeiros, trabalhadores assalariados, dentre outros (REIS, 2011). Todos eles foram concebidos historicamente no Brasil como feixes de carências em relação àqueles sujeitos que viviam na cidade, tidos como referências de civilidade e de desenvolvimento.

Assim, os citadinos elaboravam, a partir da sua situação de classe, propostas educacionais para aqueles que tinham o campo como lócus de morada e de subsistência. Como havia 37

o distanciamento tanto geográfico quanto cultural e de classe entre eles, a educação elaborada pelos primeiros despotencializava a identidade dos destinatários camponeses (SOUZA, 2006).

Esse tipo de educação, que se define a partir dos remetentes da cidade para os destinatários do campo é denominado de educação rural cujo propósito era validar e garantir a prevalência dos interesses da elite fundiária em detrimento dos valores, crenças e saberes do povo campesino (ARROYO; CALDART; MOLINA, 2009).

Nesse cenário social, a educação do campo emerge como uma estratégia de luta pela valorização, reconhecimento e promoção da cultura do povo camponês e, sobretudo, potencialização e consolidação da forma de produzir os bens necessários a sua subsistência via agricultura familiar. Além disso, a referida educação visa tanto denunciar as diversas situações negadoras da humanização dos sujeitos do campo, como também criar condições de superação delas por meio da solidariedade camponesa, dos símbolos e da mística que os une na luta pela conquista da terra e garantia de vida digna.

Desse modo, como a educação destina-se a promover a qualidade de vida do povo camponês, ela se vincula diretamente à produção dos meios básicos de subsistência via trabalho, à saúde, à cultura, à formação política, ao respeito à diversidade, dentre outros (BRASIL, 2002).

Destarte, o grande desafio a ser enfrentado por essa educação e pelo sistema educacional brasileiro é que a proposta de formação dos sujeitos é universal, pois tem como fim efetivar um conjunto de direitos em prol da realização humana. Mas, para tal propósito se materializar necessita de uma política econômica que se alicerça numa lógica particular defensora da acumulação de riquezas.

Essa tensão se manifesta de forma explícita quando percebemos a expansão do agronegócio, que se sustenta na 38

aquisição e utilização de tecnologias interventoras no meio ambiente a fim de maximizar lucros obtidos pelos latifundiários. Neste caso, o foco não é o compromisso com a humanização do sujeito, mas a concentração de riqueza pelos defensores do agronegócio.

Farias (2011) entende que essa política no Estado do Piauí contribuiu para a concentração de terras pelo latifúndio e o empobrecimento acentuado dos camponeses, que sem terra, tornaram-se submissos aos ditames dos grandes proprietários rurais. Estes consolidaram o seu poder político e econômico na medida em que financiavam campanhas para elegerem representantes dos seus interesses. O autor acrescenta como consequência dessa mentalidade política, a destruição da vegetação nativa e das áreas rurais em prol da monocultura da soja, do eucalipto, da cana-de-açúcar, dentre outros.

Esses empreendimentos conforme a lógica do agronegócio, ocasionaram ainda outros problemas, a saber, a redução das propriedades dos agricultores familiares responsáveis pela produção dos alimentos nos municípios; a degradação dos recursos naturais; o desrespeito à diversidade cultural do povo do campo; o predomínio da produção agrícola artificial e o enfraquecimento da agricultura familiar; o desemprego, devido muitos trabalhadores rurais não terem conhecimentos técnicos exigidos pelas tecnologias utilizadas na agropecuária e agronegócio e o alto índice de analfabetismo dos camponeses criticado por Arroyo e Fernandes (1999).

Diante dessa realidade, a educação do campo precisa se fortalecer cada vez mais como estratégia de luta contra a desumanização do sujeito social e construção de um novo modelo de sociedade, na qual a lógica prevalente defenda a economia como meio e não fim da existência humana.

Para tanto, faz-se necessária a defesa da luta pela reforma agrária, tida como possibilidade de democratização da posse e do uso da terra para a produção e distribuição justa de alimentos para todos. Esta intenção relaciona-se aos direi39

tos dos habitantes do campo como moradia, educação, saúde, transporte, participação política dentre outros (LIMA; SILVA, 2011).

Conforme constatamos nas Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas escolas do Campo (BRASIL, 2002), a supracitada educação fundamenta-se num conjunto de princípios. O primeiro deles é que o sujeito do campo é um ser potente capaz de intervir no mundo de forma individual e coletiva para modificá-lo.

Caldart (2004) afirma que o sujeito do campo é uma construção social e que se afirma na luta pela superação dos condicionamentos que negam a efetivação dos seus direitos.

Nessa direção, o humano é tido como um ser de decisão, capaz de conquistar a terra como lócus da produção material e cultural. Nela, os campesinos produzem tanto os bens materiais necessários a sua subsistência, como também um conjunto de crenças, valores e saberes constitutivos da sua identidade.

Dessa forma, o ser humano enraíza-se na terra a que pertence e nela se torna solidários a outros que lutam para que seus direitos se efetivem. Essa luta permanente pela humanização demonstra que o povo do campo é enraizado, mas não aprisionado pelas correntes do seu tempo histórico.

Acrescenta ainda a autora, que o humano é um ser indignado, contestador inventivo e criador de estratégias de luta para se tornar presença enraizada no mundo. Tal enraizamento lhe possibilita ser filho da terra, molhado na cultura do seu tempo, todavia com capacidade de romper as algemas condicionantes para conquistar novos modelos de desenvolvimento social, político, econômico e cultural.

Dito isto, ressaltamos que a dimensão política da educação do campo deve cada vez mais se comprometer com a humanização do sujeito social, o que significa potencializar as qualidades peculiares da natureza humana.

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Com esta intenção, apreendemos a dimensão política da educação do campo como um conjunto de intenções, quais sejam, contribuir no processo de transformação da sociedade vigente; instigar a curiosidade dos educandos; valorizar e promover a cultura como possibilidade de inserção crítica dos sujeitos não apenas no campo, mas para que transitem noutros espaços sociais; fortalecer a luta organizada, sistemática e rigorosa dos movimentos sociais do campo; defender a agricultura familiar e criticar de forma contundente à política do agronegócio e democratizar o acervo cultural apropriado historicamente pelas classes mais privilegiadas, para que os sujeitos do campo tenham acesso e se fortaleçam na luta pela transformação social.

De acordo com estes fins políticos, a prática educativa exige a busca permanente do educador do campo para garantir maior consistência teórica, técnica e científica para contribuir no processo formativo dos educandos. Esta finalidade pressupõe do educador do campo situado numa sociedade de classes que responda na sua atividade educativa as seguintes indagações: • que concepção de sujeito defendemos na prática educativa? É o da curiosidade, da crítica projetiva transformadora da sociedade, da autonomia e da esperança?

• a metodologia que adotamos potencializa a aprendizagem dos educandos como problematizadores do mundo em que vivem?

• considerando que vivemos numa sociedade constituída por interesses antagônicos provenientes das classes sociais, educamos a favor de quem e contra quem?

• que concepção de sociedade propagamos como horizonte que desejamos alcançar?

• para que fazemos o que fazemos?

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• com quem podemos contar como parceiros para fazer o que aspiramos?

• que condições materiais temos para efetivação do que pretendemos?

• por fim, de onde provém os recursos que financiam as atividades educativas? Quais os interesses dos financiadores e dos que são financiados? E quem tem poder maior de decisão e de influência?

Tais questões podem nos ajudar a ampliar a compreensão acerca da prática educativa, situando-a numa perspectiva de totalidade, particularidade e singularidade. Desse modo, o educador intelectual e militante do campo, ao realizar a sua atividade educativa com os educandos, compreenderá que ela se situa no âmbito local, mas se encontra também influenciada por fatores econômicos, sociais e culturais nas esferas global, nacional e regional.

Tal compreensão não é motivo para desânimo do educador, nem negação da esperança de transfomação da sociedade atual, o que poderia levá-lo à postura pessimista. Pelo contrário, o que enfatizamos é o mais contundente realismo utópico, capaz de identificar os desafios, criticá-los e superálos.

Com este intuito, destacamos que a prática educativa é constituída de elementos imprescindíveis, como o sujeito que ensina e aprende, outro que aprende e ensina, os conteúdos cognoscíveis, definição clara dos objetivos, metodologia, recursos didáticos e avaliação contínua do ensino e da aprendizagem. Enfatizamos ainda que todos esses elementos da atividade educativa devem estar a serviço da humanização do sujeito histórico, que é o imperativo ético-político de toda educação a favor da promoção da dignidade humana.

A vinculação da prática educativa ao propósito humanizador é o que a tornará vigilante para que não valide a ló42

gica peculiar das classes sociais dominantes, além de intensificar a luta pela superação da sociedade capitalista, condição sine qua non para efetivação da liberdade humana.

Considerações finais Este trabalho resulta do nosso esforço para compreender melhor a área da educação do campo e que esperamos contribuir no processo reflexivo de homens e mulheres campesinos, que se dedicam à tarefa de educar num país ainda marcado fortemente pela desigualdade social.

Neste contexto, compreendemos que os educadores e educadoras do campo não podem ser vistos como redentores da sociedade, mas podem fazer muito pela consolidação da aprendizagem dos educandos e pela construção de uma nova sociedade na qual podemos viver dignamente.

Este sonho jamais pode ser negado, mesmo diante de diversos fatores que nos fragilizam, como situações precárias das escolas, pouco reconhecimento social, defasagem salarial, desestímulo dos educandos, o longo percurso a ser percorrido por eles da sua casa para a escola, dentre outros.

Consideramos que a educação não pode fazer tudo, mas pode fazer o que lhe cabe como função social para que muitos educandos e educandas continuem sonhando e concretizando os seus sonhos por meio da luta individual e coletiva.

Em defesa dessa possibilidade, escrevemos este texto que tem como marco inicial a discussão sobre o sujeito, o que possibilitou posteriormente a compreensão da educação num sentido amplo e a do campo num âmbito mais estrito, bem como, sua dimensão política, entendida como fins em prol da realização humana e da tessitura de um novo cenário social.

De acordo com esta pretensão, entendemos que o educador e a educadora do campo podem fortalecer a sua área de atuação, contribuindo no sentido de possibilitar a compre43

ensão do trabalho como atividade de produção da existência humana; diferenciar o desenvolvimento social, econômico e ambiental propagado pelo agronegócio daquele defendido pela agricultura familiar; discutir criticamente sobre a identidade do povo do campo e a necessidade da luta coletiva; instigar o entendimento sobre os limites da cidadania na sociedade capitalista; rememorar com as comunidades campesinas os nomes de diversos militantes mortos na luta pela conquista da terra, tendo-os como referência de luta na construção da liberdade, dentre outras.

Nesse sentido, a tarefa educativa torna-se desafiadora, porque exige do educador e da educadora do campo uma sólida formação para lidarem com um conjunto de demandas emergentes no seu contexto de atuação, dentre elas, destacamos a valorização e a conservação crítica dos valores, crenças e saberes dos educandos e familiares camponeses situados numa sociedade que preza pelo imediato, pelo descarte da tradição e o endeusamento daquilo que é transitório.

Nessa sociedade, não são apenas os valores descartáveis, mas o próprio ser humano que os cria é transformado numa mercadoria paga, quando muito, pelo salário que recebe para manter-se vivo e reproduzir a lógica capitalista. Na contramão, defendemos a lógica da realização do ser humano como centralidade, o que não descarta o valor da economia, da cultura, da dimensão social e histórica. Pelo contrário, tais dimensões são importantes já que emergem da própria existência humana, pois o sujeito histórico as criou como condições para sua criação, preservação e transformação do mundo.

Todavia, o que criticamos é a supremacia do pilar econômico sobre o humano, o que acarreta a sua metamorfose de sujeito para objeto de outrem que compra a sua força de trabalho e o domina para acumular riquezas. Nesse contexto, a educação e, especificamente, a do campo não podem, por 44

si mesmas, mudar a sociedade vigente, mas devem contribuir cada vez mais para que a humanização do sujeito histórico torne-se o centro tanto dos discursos educacionais, quanto de outras esferas sociais. Humanização esta que não se efetiva apenas no campo subjetivo, porque exige também profundas transformações objetivas. Temos muito a fazer. Façamos.

Referências APPLE, Michel W. Conhecimento técnico, desajustamento e Estado: a mercantilização da cultura. In:_____. Educação e poder. Porto Alegre: Artes Médicas, 2002.

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FUNDAMENTOS E CONCEPÇÕES DO ENSINO EM ESCOLAS NO/DO CAMPO: CONTRIBUIÇÕES DA PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA Jânio Ribeiro dos Santos Raphael dos Santos 1 Introdução Em que pese alguns avanços conquistados nas últimas décadas, o atual contexto da educação pública brasileira, incluindo a escola do campo, evidencia grandes problemas de ordem conceitual e estrutural. Segundo Santos, Paludo e Oliveira (2010) a educação do campo enfrenta problemas relacionados à teoria educacional e teoria pedagógica desvinculada de um projeto de educação e sociedade que atenda aos interesses históricos dos trabalhadores; além disso, sofre com altas taxas de analfabetismo, dificuldade de acesso e permanência dos alunos, baixo nível de escolarização de professores e infraestrutura das escolas em situação precária.

Soma-se a essa problemática o crescente movimento de fechamento das escolas no campo baseado, principalmente, na lógica custo/benefício. De acordo com o Censo Escolar do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), nos últimos 15 anos, mais de 37 mil estabelecimentos deixaram de funcionar no campo. Somente em 2014, foram fechadas mais de 4.084 escolas. Por região lideram as estatísticas o Norte e o Nordeste. A Bahia é o Estado que aparece em primeiro lugar com 872 escolas fechadas, seguido pelo Maranhão com 407 e Piauí com 377.

Além disso, o resultado da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - PNAD de 2009 revelou acentuada discrepância em nível de escolarização entre as populações urbana e rural, pois do total da população rural no país entre 49

15 anos ou mais de idade, 22,8% eram analfabetas; na área urbana essa taxa correspondia a 7,4%.

A partir desse contexto, expressão do acirramento da luta de classes no campo, visamos discutir neste texto sobre os fundamentos e concepções do ensino nas escolas no/do campo, com base nas contribuições da Pedagogia Histórico-Crítica. Entendemos que essa discussão se faz necessária por não se tratar apenas de uma questão pedagógica, mas acima de tudo política, pois legitima a luta dos trabalhadores por uma educação que atenda às especificidades do campo. Para tanto, estruturamos este texto em três tópicos: no primeiro tópico, discutimos a concepção de educação e de escola do campo numa perspectiva contra-hegemônica. No segundo, tratamos sobre o que ensinar nas escolas no/do campo a partir das contribuições da Pedagogia Histórico-Crítica. E, por fim, apresentamos as considerações finais.

2 Concepção de educação e de escola do campo A concepção de educação e escola do campo está explicitada nas Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo - Resolução CNE/CEB nº 01/2002; nas Diretrizes Complementares, Normas e Princípios para o Desenvolvimento de Políticas Públicas de Atendimento da Educação Básica do Campo - Resolução CNE/CEB nº 2/2008 e no Decreto nº 7.352/2010, que dispõe sobre a Política de Educação do Campo. A concepção de educação preconizada nas Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo - Resolução CNE/CEB nº 01/2002 é a seguinte: A educação do campo, tratada como educação rural na legislação brasileira, tem um significado que incorpora os espaços da floresta, da pecuária, das minas e da agricultura, mas os ultrapassa ao acolher em si os espaços pesqueiros, caiçaras, ribeirinhos e extrativistas. O campo, nesse sentido, mais do que

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um perímetro não-urbano, é um campo de possibilidades que dinamizam a ligação dos seres humanos com a própria produção das condições da existência social e com as realizações da sociedade humana (BRASIL, 2012, p. 5).

Em se tratando da concepção de escola do campo a legislação supracitada, no Art. 2º, Parágrafo único, diz que: A identidade da escola do campo é definida pela sua vinculação às questões inerentes à sua realidade, ancorando-se na temporalidade e saberes próprios dos estudantes, na memória coletiva que sinaliza futuros, na rede de ciência e tecnologia disponível na sociedade e nos movimentos sociais em defesa de projetos que associem as soluções exigidas por essas questões à qualidade social da vida coletiva no país (BRASIL, 2012, p. 30).

Com relação aos princípios da educação do campo a legislação indica que “as escolas do campo e as turmas anexas deverão elaborar seu projeto político pedagógico, na forma estabelecida pelo Conselho Nacional de Educação - CNE” (BRASIL, 2010, p. 1). Nesse sentido, na Resolução nº 4 de 13 de julho de 2010, que define as Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais para a Educação Básica, especificamente, no capítulo II, seção IV, é possível analisar a concepção de educação do campo.

Art. 35. Na modalidade de Educação Básica do Campo, a educação para a população rural está prevista com adequações necessárias às peculiaridades da vida no campo e de cada região, definindo-se orientações para três aspectos essenciais à organização da ação pedagógica: I - conteúdos curriculares e metodologias apropriadas às reais necessidades e interesses dos estudantes da zona rural; II - organização escolar própria, incluindo adequação do calendário escolar às fases do ciclo agrícola e às condições climáticas; III - adequação à natureza do trabalho na zona rural.

Art. 36. A identidade da escola do campo é definida

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pela vinculação com as questões inerentes à sua realidade, com propostas pedagógicas que contemplam sua diversidade em todos os aspectos, tais como sociais, culturais, políticos, econômicos, de gênero, geração e etnia.

Parágrafo único. Formas de organização e metodologias pertinentes à realidade do campo devem ter acolhidas, como a pedagogia da terra, pela qual se busca um trabalho pedagógico fundamentado no princípio da sustentabilidade, para assegurar a preservação da vida das futuras gerações, e a pedagogia da alternância, na qual o estudante participa, concomitante e alternadamente, de dois ambientes/situações de aprendizagem: o escolar e o laboral, supondo parceria educativa, em que ambas as partes são corresponsáveis pelo aprendizado e pela formação do estudante (BRASIL, 2010, p. 12).

Embora o texto evidencie a necessidade da construção de propostas pedagógicas respeitando a diversidade dos aspectos sociais, culturais, políticos, econômicos, de gênero, geração e etnia, a legislação não apresenta claramente uma concepção de organização do trabalho pedagógico para a escola do campo. O texto menciona apenas que a educação para a população rural deve contemplar adequações necessárias às peculiaridades da vida no campo e de cada região.

O que precisa ser definido é uma concepção pedagógica articulada aos interesses da classe trabalhadora. É incoerente materializar um projeto político pedagógico sem antes a comunidade escolar entender que a possibilidade de construção de uma educação comprometida com a formação humana dos trabalhadores parte da constatação e análise crítica do projeto histórico5 que fundamenta uma determinada teoria pedagógica (SILVA et al, 2010).

Não é qualquer teoria educacional e teoria pedagógica que vai garantir a organização do trabalho pedagógico da esConforme Santos, Paludo e Oliveira (2010, p. 15), “projeto histórico deve ser compreendido como o esforço para transformar, isto é, construir uma nova forma de organização das relações sociais, econômicas, políticas e culturais para a sociedade, que se contraponha à forma atual de organização e de relações, que é a capitalista”.

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cola do campo e a defesa dos interesses históricos dos trabalhadores. Quando não há essa compreensão, corre-se o risco de inconscientemente desenvolver uma proposta pedagógica que ao invés de emancipar a classe trabalhadora acaba por intensificar o processo de marginalização.

Nessa perspectiva, conforme sinaliza Santos, Paludo e Oliveira (2010), é preciso compreender que a educação do campo representa a expressão de luta dos trabalhadores que vivem no e do campo organizados em movimentos sociais.

Concebida a partir de um projeto histórico que tem como fundamento a superação do modo de produção capitalista, a educação do campo materializou-se na perspectiva do enfrentamento aos projetos educacionais influenciados pelo modelo de educação rural, comprometendo-se com a formação humana e política da classe trabalhadora.

A educação do campo nasceu tomando posição no confronto de projetos de educação contra uma visão instrumentalizadora da educação, colocada a serviço das demandas de um determinado modelo de desenvolvimento do campo que sempre dominou a chamada ‘educação rural’, a favor da afirmação da educação como formação humana, omnilateral, que também pode ser chamada de integral, porque abarca todas as dimensões do ser humano (SANTOS; PALUDO; OLIVEIRA, 2010, p. 15).

A compreensão deste projeto educacional parte do princípio de que é possível superar a lógica capitalista na perspectiva de construir uma nova organização das relações sociais a partir de um projeto histórico comprometido com a formação dos trabalhadores.

Toda teoria pedagógica desenvolve-se na escola a partir de uma determinada teoria educacional; essa, por sua vez, é formulada a partir de uma determinada concepção pedagógica que também expressa o interesse histórico de uma classe social (SILVA et al, 2010). Portanto, a escola não se constitui como um lugar neutro, mas como um espaço determinado pelos interesses de classe.

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Saviani (2008a, p. 166) explica que a “expressão concepção pedagógica é correlata de ideias pedagógicas”. Essas ideais expressam, de modo geral, a visão de homem e sociedade orientadora do fenômeno educativo, incluindo o papel da educação na sociedade, as teorias educacionais e pedagógicas. Desse modo, as concepções pedagógicas representam as formas pelas quais a educação é compreendida, teorizada e praticada.

Embora a história da educação brasileira evidencie a existência de diferentes concepções pedagógicas, Santos, Paludo e Oliveira (2010) apontam a concepção liberal e a concepção socialista da educação como duas grandes ideias que orientam o pensamento educacional contemporâneo. A primeira está relacionada ao projeto histórico capitalista. A segunda relaciona-se ao projeto histórico socialista. Ambas foram se constituindo simultaneamente durante o processo de formação da sociedade capitalista, expressando diferentes interesses em disputa na atualidade através de diferentes teorias educacionais.

A teoria educacional formula uma concepção de educação apoiada em um projeto histórico e discute as relações entre educação e sociedade em seu desenvolvimento; que tipo de homem se quer formar; os fins da educação entre outros aspectos. Uma teoria pedagógica por oposição, trata do ‘trabalho pedagógico’, formulando princípios norteadores.

Dessa forma, inclui a própria didática (FREITAS, 1995, p. 93).

Nessa perspectiva, entende-se que as teorias educacionais representam as concepções de educação que direcionam a prática educativa, objetivando formar um determinado tipo de homem de acordo com os interesses de classe. A teoria pedagógica, por sua vez, representa a forma como o ato educativo está organizado, enfim, como pedagogicamente a escola organiza-se para alcançar os objetivos educacionais.

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Uma pedagogia comprometida com os interesses da classe trabalhadora deve se fundamentar em uma reflexão pedagógica crítico-superadora, pois esta é sustentada pela prática diagnóstica, judicativa e teleológica. Diagnóstica porque parte da constatação e leitura dos dados da realidade. Essa análise depende dos interesses de classe, logo, constitui-se como uma prática judicativa. Teleológica porque determina uma posição, direção e ação, seja ela conservadora ou transformadora (FILHO et al., 2009, p. 27).

Assim, é imprescindível que os profissionais tenham claro o projeto de sociedade e de homem que a escola defende. Os valores, a ética e a moral que sustentam a relação escola/sociedade (FILHO et al., 2009, p. 27). Isso demarca o posicionamento político e pedagógico da escola e dos profissionais que atuam nela, impedindo o ecletismo de concepções pedagógicas. Para tanto, a escola precisa fortalecer a dimensão do trabalho coletivo entre os educadores, pois: Quando cada professor trabalha sozinho, fazendo o que lhe ‘da na cabeça’, há muito menos chances de que esse trabalho seja social e pedagogicamente significativo para o conjunto de educandos [...]. Cada professor deve ter a oportunidade de debater seu planejamento com os outros colegas da escola, com a direção, com a comunidade. Dessa forma, mais facilmente conseguiremos selecionar e trabalhar conteúdos que estejam em sintonia com a concepção de ser humano que se quer formar, com a concepção de educação e com o fortalecimento da identidade dos trabalhadores camponeses (SANTOS; PALUDO; OLIVEIRA, 2009, p. 62-63).

Saviani (2008a, p. 167) compreende que a concepção pedagógica constitui a própria substância da prática educativa, uma vez que envolve três níveis: o nível da filosofia da educação “busca explicar as finalidades e os valores que expressam uma visão geral de homem, mundo e sociedade” orientadora do fenômeno educativo; o nível da teoria da edu55

cação “procura sistematizar os conhecimentos disponíveis sobre os vários aspectos envolvidos na questão educacional que permitem compreender o lugar e o papel da educação na sociedade” e o nível da prática pedagógica, o “modo como é organizado e realizado o ato educativo”.

A identificação dos fundamentos filosóficos, teóricos e pedagógicos que sustentam as diferentes concepções pedagógicas permite ao professor analisar com rigorosidade os objetivos de formação humana que atenda a determinado modelo de produção da existência. Na tentativa de identificar uma concepção de escola próxima dos interesses imediatos e históricos dos trabalhadores, encontramos no conjunto das pedagogias contra-hegemônicas6 uma aproximação dos fundamentos da educação do campo.

As pedagogias contra-hegemônicas situam-se no contexto das teorias educacionais críticas por analisar criticamente a sociedade e a educação, compreendendo-a como um fenômeno social determinado pelos interesses de classes opostos.

Situam-se no âmbito das teorias críticas dois grandes grupos. O primeiro grupo inspirado nas concepções libertadora e libertária, centrado “[...] no saber do povo e na autonomia de suas organizações [preconizando] uma educação autônoma e até certo ponto, à margem da estrutura escolar”.

O segundo grupo, inspirado na Pedagogia Crítico-Social dos Conteúdos e a Pedagogia Histórico-Crítica, é caracterizado pela “centralidade da educação escolar, valorizando o acesso da [classe trabalhadora] aos conhecimentos sistematizados” (SAVIANI, 2011, p. 415). Portanto, em termos teórico-pedagógicos, as pedagogias contra-hegemônicas orientam a prática educativa numa perspectiva transformadora.

6 Denominam-se pedagogias contra-hegemônicas aquelas orientações que não apenas não conseguiram tornar-se dominantes, mas que buscam intencional e sistematicamente colocar a educação a serviço das forças que lutam para transformar a ordem vigente visando a instaurar uma nova forma de sociedade (SAVIANI, 2008a, p. 170).

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Embora este texto não pretenda tratar exaustivamente de cada uma das pedagogias para aderir a uma delas, mas sim instigar uma reflexão pedagógica crítico-superadora, é importante destacar a aproximação entre o projeto histórico socialista e a Pedagogia Histórico-Crítica, conforme evidenciada por Freitas (1995, p. 57): Nosso projeto histórico assume algumas linhas demarcatórias: defende o socialismo e, portanto, tem uma plataforma anticapitalista, traçando uma fronteira nítida com a socialdemocracia, rejeitando-a.

Não queremos ‘humanizar’ a exploração do homem pelo homem, queremos acabar com a exploração.

Não queremos ‘reformar’ o capitalismo, queremos a sua superação por um outro modo de produção mais avançado. No campo educacional, procuramos estar próximos da Pedagogia Histórico-Crítica.

Desse modo, embora Freitas (1995) destaque que a proposta da Pedagogia Histórico-Crítica não possa ser identificada como um método geral de ensino – mesmo porque, como salienta o próprio Saviani (2008b, p. 2), “está em curso o processo de elaboração desta corrente pedagógica, através da contribuição de diferentes estudiosos” – compreende-se que a aproximação do professor com os seus fundamentos possibilita uma análise crítica das concepções e teorias pedagógicas existentes no atual contexto educacional na perspectiva de estabelecer relações entre educação, sociedade e projetos históricos em disputa.

A Pedagogia Histórico-Crítica inspira-se nos preceitos do materialismo histórico dialético, pois se fundamenta na concepção de mundo e de homem própria do materialismo histórico, inspirada nas investigações e análises desenvolvidas por Marx, Engels, Lênin e Gramsci. Estes autores não produziram uma teoria pedagógica, mas realizaram análises que serviram de inspiração para a formulação de uma pedagogia próxima da teoria marxista (SAVIANI, 2008a).

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A Pedagogia Histórico-Crítica entende que “a educação é um fenômeno próprio dos seres humanos. Assim sendo, a compreensão da natureza da educação passa pela compreensão da natureza humana” (SAVIANI, 2008b, p. 11). Portanto, a existência das características especificamente humanas não são resultantes de um processo exclusivamente biológico, natural, mas sim produto da construção histórica, mediante o trabalho.

De acordo com essa concepção, o trabalho define a essência humana: é um princípio educativo fundante do ser social. Diferentemente dos outros animais que se adaptam à natureza para garantir a existência, o homem necessita adaptá-la as suas necessidades para garantir a própria existência, ato que explica a essência do trabalho. Ao conceber o trabalho como a ação de transformação da natureza em função das necessidades humanas, compreende-se que a essência humana não precede a existência do homem. Através do trabalho o homem produz e reproduz a própria vida. Dessa forma, pode-se dizer que o homem não nasce homem, mas se constitui no processo de produção da existência (SAVIANI, 2007b).

Historicamente, através da produção coletiva, os homens educavam-se e educavam as novas gerações, e todo esse movimento só foi possível através do desenvolvimento de formas e conteúdos que desencadearam um verdadeiro processo de aprendizagem e desenvolvimento humano, caracterizando a identidade entre educação e trabalho (SAVIANI, 2007b). Por conseguinte, trabalho e atividade educativa são indissociáveis, pois o trabalho é uma ação intencional, voltada à garantia da existência, e a atividade educativa é “ao mesmo tempo, uma exigência do e para o processo de trabalho, bem como é, ela própria, um processo de trabalho” (SAVIANI, 2008b, p. 12).

No entanto, no modo de produção capitalista, a relação entre trabalho e atividade educativa é contraditória, pois a dimensão produtiva do trabalho sobrepõe à dimensão onto58

lógica, já que o trabalho se converte em mecanismo de exploração do homem pelo homem, deixando de ser um princípio educativo. Em contraposição à perspectiva capitalista, Saviani (2008b, p. 13) afirma que “o trabalho educativo é o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens”.

Assim, a educação é uma categoria de produção do trabalho não-material, pois se trata “da produção do saber, seja do saber sobre a natureza, seja do saber sobre a cultura, isto é, o conjunto da produção humana” (SAVIANI, 2008b, p.

12). Para se manter vivo o homem, intencionalmente, transformou a natureza em bens materiais mediante o processo de trabalho, e ao fazê-lo produziu também representações mentais que se transformaram em ideias, conceitos, valores, símbolos, hábitos, atitudes, habilidades, elementos que constituem o trabalho não-material, a educação.

Desse modo, o papel da educação na perspectiva histórico-crítica corresponde, “de um lado, à identificação dos elementos culturais que precisam ser assimilados pelos indivíduos da espécie humana para que eles se tornem humanos e, de outro lado e concomitantemente, à descoberta das formas mais adequadas para atingir esse objetivo” (SAVIANI, 2008b, p. 13).

Esse posicionamento caracteriza a escola como “instituição cujo papel consiste na socialização do saber sistematizado” (SAVIANI, 2008b, p. 14). Isso significa que a socialização do saber sistematizado constitui-se como papel central da escola, seja no campo ou na cidade. Contraditoriamente, no modo de produção capitalista, a escola, enquanto instrumento de manutenção da classe dominante, controla e expropria a classe trabalhadora do acesso ao saber sistematizado, assumindo assim, além de outros aspectos, a função de reproduzir a desigualdade social que caracteriza a sociedade vigente.

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Ao fazermos a defesa da escola enquanto socializadora do saber sistematizado, não estamos querendo dizer que essa função é única e exclusivamente dela. Reconhecemos que, além da escola, existem outros espaços, tempos e sujeitos educativos. “No entanto, a escola continua sendo o espaço mais avançado para o desenvolvimento da escolarização de crianças, jovens e adultos” (TAFFAREL, 2013, p. 19).

Porém, não é qualquer tipo de saber, trata-se de um saber sistematizado, o saber elaborado cientificamente em suas formas mais complexas e mais desenvolvidas. É na escola que o homem aproxima-se dos instrumentos necessários ao conhecimento científico. É na escola que se aprende a ler e escrever, as ciências naturais, as ciências sociais e a linguagem dos números (SAVIANI, 2008b). Os conhecimentos científicos são responsáveis pela elevação da capacidade teórica dos sujeitos, possibilitam a compreensão crítica da realidade, bem como a construção de alternativas necessárias para transformação social. Nessa direção, compreendemos que a escola, por si mesma, não transforma a realidade. No entanto, ela instrumentaliza os sujeitos para o movimento de transformação social.

Portanto, depois de compreender que a organização do trabalho pedagógico da escola do campo precisa avançar no sentido de aproximar-se da concepção pedagógica crítica, discutimos sobre o que ensinar nas escolas no/do campo a partir das contribuições da Pedagogia Histórico-Crítica.

3 O que ensinar nas escolas no/do campo?

Historicamente, a humanidade produziu e acumulou conhecimentos no campo das ciências e das artes, proveniente da interação humana com a realidade social, material ou psíquica. Além disso, outros saberes e valores foram produzi60

dos a partir das diferentes relações sociais estabelecidas entre os homens. Portanto, muitos são os conhecimentos que permeiam a sociedade atual (SFORNI, 2010).

Dessa forma, para selecionar e organizar os conteúdos de ensino, a escola precisa analisar o projeto de sociedade e de homem que defende. Como instituição social influenciada pelos interesses de classe, a escola pode tornar-se espaço de reprodução da ordem vigente ou pode avançar na perspectiva da transformação da sociedade. Isso depende da teoria educacional que fundamenta a organização do trabalho pedagógico da escola (MARSIGLIA, 2011).

Os critérios utilizados para selecionar, planejar e ensinar os conteúdos estão fundamentados em alguma concepção pedagógica, portanto, não se trata de uma escolha neutra, mas de ideias que expressam uma concepção de homem, de escola e de sociedade. Mas, quais os conteúdos a serem ensinados nas escolas no/do campo?

O acervo de conhecimentos científicos incorporados pela sociedade, como a linguagem escrita, a matemática, as ciências naturais e sociais estão de maneira implícita e indireta na base da organização do ensino fundamental e, consequentemente, de maneira direta e explícita na organização curricular do ensino médio (SAVIANI, 2007b). Assim, segundo o autor, o domínio da leitura, da escrita, do raciocino lógico, do algoritmo matemático e a compreensão das leis gerais básicas dos fenômenos naturais e sociais constituem pré-requisitos básicos para compreender a relação trabalho-educação, enfim, compreender o mundo em sua totalidade, e isso tem inicio no ensino fundamental, ampliando-se no ensino médio e consolidando-se no ensino superior.

Para tanto, a escola deve selecionar, organizar e sistematizar os conteúdos de ensino que emergem dos conteúdos culturais universais. Não se trata de qualquer conhecimento, 61

mas do saber objetivo. Para atingir esse objetivo é preciso distinguir entre o essencial e o acidental, o principal e o secundário, o fundamental e o acessório, utilizando-se do critério clássico.

Clássico, em verdade, é o que resistiu ao tempo. É nesse sentido que se fala na cultura greco-romana como clássica, que Kant e Hegel são clássicos da filosofia, Victor Hugo é um clássico da literatura universal, Guimarães Rosa um clássico da literatura brasileira. Ora, clássico na escola é transmissão-assimilação do saber sistematizado. Este é o fim a atingir (SAVIANI, 2008b, p 8).

Isso é o que Saviani conceituou como aquilo que é próprio da especificidade da educação. Nesse sentido, o currículo escolar, na perspectiva histórico-crítica é compreendido como “o conjunto das atividades nucleares desenvolvidas pela escola” (SAVIANI, 2008b, p. 16). O termo “nuclear” evidencia que a escola não pode perder de vista que a transmissão e assimilação do saber sistematizado constituem-se como atividade central, minimizando a possibilidade de transformar atividades secundárias e não essenciais à escola em atividade central e principal. Para ilustrar essa situação o autor afirma: Exemplo disso são as comemorações nas escolas, que se espalhavam por todo o ano letivo, às quais agora se associam, ou a elas são acrescidos, os denominados temas transversais, como educação ambiental, educação sexual, educação para o trânsito etc. Ao final do ano letivo, após todas essas atividades, fica a questão: as crianças foram alfabetizadas?

Aprenderam português? Aprenderam matemática, ciências naturais, história, geografia? Ora, estes são os elementos clássicos do currículo escolar, tão clássicos que ninguém contesta. [...] No entanto, esses elementos acabam por ser secundarizados, diluídos numa concepção difusa de currículo. [...] (Atividades como as comemorações) não sendo essenciais, definem-se como extracurriculares. Nesta condição,

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elas só fazem sentido quando enriquecem as atividades curriculares, não devendo, em hipótese alguma, prejudicá-las ou substituí-las. (SAVIANI, 2008b, p.

102).

Dessa forma, numa perspectiva crítica, o currículo escolar representa a trajetória da humanidade no processo de produção e apreensão do conhecimento científico selecionado e sistematizado pela escola em forma de conteúdos de ensino.

Desse modo, a função social do currículo é possibilitar ao estudante o desenvolvimento humano mediante a apropriação do conhecimento científico, selecionado, sistematizado e tratado pedagogicamente pela escola na relação professor-conhecimento-aluno (FILHO et al., 2009). Portanto, a qualidade da aprendizagem depende, em parte, do tipo de conhecimento que a escola se propõe a trabalhar em sala de aula.

Assim, o ensino deve possibilitar que os estudantes se apropriem dos conceitos científicos. Os autores definem o ensino como princípio potencializador da aprendizagem a partir da lógica do confronto entre os conhecimentos espontâneos e conhecimentos científicos. Eles enfatizam ainda que à medida que o aluno se apropria das especificidades dos conhecimentos científicos sistematizados a partir dos diferentes componentes curriculares, ele é capaz de formular sínteses em seu pensamento que possibilitam constatar, interpretar, compreender e explicar a realidade social em sua totalidade.

Considerações finais Fundamentando-se na Pedagogia Histórico-Crítica a escola tem a função social de socializar o saber historicamente produzido e sistematizado pela humanidade. Deste modo, o ensino que deve ser assegurado, especialmente nas escolas no/do campo, é aquele capaz de promover aos estudantes (crianças, jovens e adultos) a efetiva apropriação dos conhecimentos científicos, essenciais para elevação da capacidade 63

teórica dos indivíduos, para emancipação social e para formação humana em suas máximas possibilidades.

Para tanto, a escola precisa selecionar e organizar os conteúdos de ensino com base no projeto histórico de sociedade defendido pela classe trabalhadora do campo e da cidade. Não se trata de qualquer conhecimento, mas de conteúdos que emergem dos conhecimentos científicos produzidos ao longo da história.

A leitura, a escrita, os conteúdos gramaticais e ortográficos são exemplos de conteúdos nucleares da Língua Portuguesa que devem permear o que ensinar nas escolas no/do campo, assim como os conceitos relacionados aos números e operações, espaço e forma, grandezas e medidas e tratamento da informação são conteúdos nucleares do ensino da Matemática que devem constituir o currículo escolar.

Por fim, ressaltamos a necessidade de construção de uma educação referenciada nos interesses imediatos, mediatos e históricos da classe trabalhadora, a partir da socialização dos conhecimentos científicos, visto que estes são indispensáveis para elevar a capacidade teórica dos estudantes, instrumentalizando-os para agir como militantes, de forma autônoma, consciente e crítica com vistas à transformação social.

Assim, teremos a possibilidade de os trabalhadores lutarem pela construção de uma sociedade que supere a divisão de classes através da socialização de todos os meios de produção e das forças produtivas em favor de toda humanidade.

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A ORGANIZAÇÃO INTERDISCIPLINAR DO CURRÍCULO NAS ESCOLAS DO CAMPO: OS DILEMAS POLÍTICOS E PEDAGÓGICOS Elmo de Souza Lima (UFPI) A discussão sobre o currículo nas escolas de educação básica ainda é uma questão complexa e desafiadora, devido ao pouco acúmulo dos/as educadores/as acerca da temática, tendo em vista que essas questões raramente fazem parte dos processos de formação inicial e continuada dos profissionais da educação. Dentre as licenciaturas, somente o Curso de Licenciatura em Pedagogia oferta essa área de estudo para os futuros educadores/as. Neste caso, somente uma parcela dos profissionais que atua na educação básica teve a oportunidade de apropriar-se dos elementos conceituais, políticos e ideológicos que norteiam as práticas educativas e curriculares.

Além disso, a discussão sobre o processo de elaboração e definição da proposta curricular sempre esteve sob o domínio dos técnicos e/ou especialistas da educação, vinculados ao Ministério da Educação e/ou as Secretarias Estaduais e Municipais de Educação. O fato é que o debate sobre o currículo sempre esteve associado à necessidade do controle político sobre aquilo que compõem os projetos de formação das escolas e, consequentemente, sobre o tipo de conhecimento construído pelos educandos, que irá refletir no tipo de sujeitos em formação e no modelo de sociedade a ser construído.

Diante desse cenário, o estudo sobre o currículo, em sua dimensão política e epistemológica, raramente faz parte das discussões pedagógicas desenvolvidas nas escolas. Quando adentramos o cotidiano destas instituições de ensino na tentativa de compreender como essa questão é tratada pela equipe pedagógica e seus profissionais, normalmente os questionamentos acerca dessa temática são recebidos com surpresa, 67

prevalecendo a ideia de que esta é uma atribuição política das secretarias de educação, de modo que os professores não trazem para si a preocupação em compreender essa engenharia política e pedagógica. Em termos práticos, voltam-se prioritariamente à operacionalização da proposta curricular normalmente encaminhada pelas secretarias municipais e/ou estaduais de educação.

A constatação destes aspectos, a partir das pesquisas desenvolvidas em escolas públicas, bem como por meio das atividades de campo realizadas na disciplina de Teoria do Currículo e Sociedade, no Curso de Pedagogia da Universidade Federal do Piauí, trouxeram inúmeras inquietações sobre essa realidade, de modo que decidimos ampliar o processo de investigação dessa temática, a partir de um trabalho de formação-investigação que não só possibilitasse a compreensão desse distanciamento dos profissionais da educação com relação ao currículo, mas que oportunizasse o desenvolvimento de conhecimentos acerca do desenvolvimento do currículo nas escolas de educação básica.

Diante desse contexto, desenvolvemos, no período de 2012 a 2014, um Projeto de Pesquisa do Curso de Doutorado em Educação, na Escola Municipal Liberato Vieira, situada na zona rural do município de Ipiranga do Piauí, com o propósito de aprofundar as discussões sobre os pressupostos teóricos, políticos e epistemológicos que norteiam a proposta curricular da escola e, por outro, discutir as estratégias teóricas e metodológicas associadas ao processo de reorientação curricular, tendo como base os princípios da contextualização das práticas educativas e do conhecimento escolar.

Com base na metodologia da pesquisa-ação, o trabalho foi construído a partir das Rodas de Diálogos7 voltadas à re7 O trabalho com as Rodas de Diálogos fundamenta-se nos pressupostos políticos e epistemológicos que orientavam os “Círculos de Cultura” desenvolvidos por Paulo Freire em suas experiências de educação popular em Pernambuco. Espaço de problematização, dialogicidade e troca de experiência entre os sujeitos sociais, mediado pelo processo de reflexão crítica sobre seus saberes e práticas socioculturais, visando o desenvolvimento da práxis educativa. (FREIRE, 1992).

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flexão crítica acerca do contexto sociohistórico e cultural da comunidade e dos aspectos político e pedagógico da escola, visando à produção coletiva de conhecimentos que permita a reorientação da proposta curricular da escola na perspectiva da educação do campo no contexto do semiárido.

1 Desvelando as tramas políticas e pedagógicas inerentes ao campo do currículo A área do currículo é complexa, constituída de intensas disputas políticas e ideológicas com relação às concepções de educação e sua finalidade, bem como quanto ao tipo de sujeito e sociedade se deseja construir. Desse modo, apesar do esforço empreendido pelos teóricos vinculados ao pensamento positivista em associar a construção do currículo à produção neutra dos projetos curriculares, prevalece nas últimas décadas a compreensão do currículo como um campo eminentemente político, permeado por intensas relações de poder.

A compreensão desta área está associada à discussão crítica dos pressupostos políticos e epistemológicos que norteiam a produção do currículo, bem como a construção do conhecimento a ser socializado no âmbito das práticas curriculares. Desse modo, é essencial analisar como os profissionais da educação compreendem o conhecimento e estabelecem suas relações políticas pedagógicas com este conhecimento nos processos de seleção, organização e desenvolvimento das propostas curriculares.

Além disso, é importante compreender também como educadores/as e educandos/as se posicionam frente aos conhecimentos escolares, que tido de interação é estabelecida com estes conhecimentos. Se há algum tipo de intervenção crítica frente aos conhecimentos propostos pelos livros didáticos, bem como se há uma preocupação com a criação de espaços de diálogos entre os diferentes saberes (científicos, 69

culturais, sociais, dentre outros) no contexto das práticas educativas e curriculares.

Os estudos desenvolvidos no campo das teorias críticas do currículo (GIROUX, 1986; APPLE, 1982; entre outros) demonstram que, se por um lado, o currículo se constituía como um mecanismo de controle dos corpos e da racionalidade dos indivíduos – do conhecimento que poderia ser apreendido por determinados sujeitos socais – por outro, se colocava como um mecanismo de seleção sociocultural, uma vez que estabelecia o que deveria ser ensinado aos diferentes grupos sociais a partir do pertencimento de classe.

Neste caso, o currículo não é algo abstrato e neutro, mas se constitui um instrumento político com uma função concreta de nortear os projetos formativos desenvolvido na escola a partir de princípios políticos, pedagógicos e ideológicos instituídos com base num momento histórico e social determinado, voltado ao atendimento dos fins políticos e sociais exigidos pelas forças políticas e econômicas que se impõem como hegemônica num determinado contexto histórico.

As políticas curriculares instituídas no cenário educacional brasileiro sempre estiveram associadas ao paradigma hegemônico que se fundamenta no pensamento científico moderno regido pelos rigores teórico-metodológicos da ciência positivista. Os pressupostos políticos e epistemológicos que norteiam esse modo de fazer ciência trouxeram inúmeros desafios quanto à construção de estratégias políticas e pedagógicas voltadas ao desenvolvimento de políticas curriculares que fossem capazes de reconhecer a riqueza e as potencialidades implícitas nos conhecimentos desenvolvidos pelos sujeitos sociais a partir de suas experiências de produção da vida, na sua relação com/no mundo.

De acordo com Boaventura Santos (2002), a ciência clássica tornou-se a forma hegemônica de conhecimento, portanto, suas regras objetivistas assumiram o monopólio 70

na definição e legitimação do “conhecimento verdade”, deixando à margem outros saberes e formas de produção de conhecimento. Assim, todo conhecimento e saber que não se adéquam aos parâmetros de racionalidade nem ao seu rigor metodológico, são deslegitimados e invisibilizados, sendo assim destituído de qualquer valor científico e/ou acadêmico.

São esses parâmetros políticos e epistemológicos que orientam, em grande medida, o processo de construção do currículo, assim como, as estratégias de seleção e organização do conhecimento escolar. Neste caso, [...] a escola, permeada por estes preceitos da ciência moderna, não mergulha profundamente no bojo dos saberes que lhe são circundantes, os saberes culturais, a diversidade de idéias e de interpretações sobre o ser homem e mulher no mundo e que escapem do tecnicismo, objetivismo e antropocentrismo, inerentes àquela que lhe serve como pressuposto epistemológico de seu fazer. (CORDEIRO, 2012, p. 12).

Para Boaventura Santos (2002) este modelo de ciência, pautado na racionalidade técnica, é incapaz de reconhecer e dialogar com o conjunto de experiências e práticas sociais tecidas pelos diferentes grupos sociais nas suas dinâmicas organizativas e de produção histórica do mundo. Esta ciência encarregou-se de disseminar historicamente práticas científicas autoritárias e arrogantes que se instituem por meio da negação e do extermínio de matrizes epistemológicas e culturais essenciais à compreensão do mundo em sua complexidade e diversidade.

Por esta razão, inúmeras políticas e práticas curriculares, instituídas sob a égide do pensamento científico hegemônico, adotam posturas e práticas de exclusão e silenciamento das experiências e saberes dos quais os/as educandos/as são protagonistas no contexto de suas práticas sociais. É dentro desse contexto que se institui os modelos de currículos implementados nas escolas do campo pautados na negação dos 71

saberes construídos pelos/as educandos/as, a partir de seu contexto sociocultural, organizativos e político.

Diante desse contexto, Boaventura Santos (2002) propõe o desenvolvimento de uma nova racionalidade capaz de reconhecer a riqueza social desperdiçada pela ciência moderna, pautada na racionalidade técnica, denominada pelo autor de “razão indolente”8 . Este modo alternativo de pensar/fazer ciência, a partir de uma racionalidade emergente, capaz de reconhecer o verdadeiro tesouro, constituído pelas experiências socioculturais, valores e atitudes, bem como conhecimentos e saberes produzidos pelos diferentes grupos sociais na sua ação/produção/transformação do mundo, desperdiçados e/ ou menosprezados pelo pensamento científico hegemônico e, consequetemente, pelas propostas curriculares.

A partir destas proposições teóricas, temos o desafio de construir estratégias políticas e pedagógicas que favoreçam o diálogo fecundo entre o conhecimento científico e o senso comum, principalmente no âmbito das práticas curriculares, possibilitando uma relação de complementaridade e de questionamentos mútuos, capazes de, por um lado, superar as “visões ingênuas” e “românticas” inerentes ao pensamento do senso comum e, por outro, desconstituir e/ou questionar as “certezas” e as “verdades” presentes nos discursos científicos, assumidos como único modo de pensar e explicar os fenômenos da realidade.

De acordo com Boaventura Santos (2002), este é um caminho viável para se reinventar os processos de produção do “conhecimento prudente” compromissado com uma “vida decente”, capaz de apontar caminhos e alternativas voltadas 8 Está associada ao modelo de racionalidade que se apoia num pensamento linear, que se considera único e exclusivo, no qual o futuro já está determinado nas ideias de progresso e produtividade nos parâmetros capitalistas. Portanto, uma racionalidade que se institui como único modo de pensar a realidade e as soluções para seus problemas, desconsiderando as inúmeras experiências e práticas sociais e políticas desenvolvidas na sociedade. Uma racionalidade que nega as experiências sociais como fonte de conhecimentos capazes de apontarem caminhos para a transformação da realidade.

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à resolução de problemas concretos, associados aos processos de exclusão e dominação política, econômica e cultural, criados pelo sistema capitalista. Neste caso, o reencontro da ciência com o senso comum surge como “uma visão alternativa que resgata os aspectos positivos dos saberes cotidianos, sobretudo o seu potencial para os projetos de emancipação social e cultural” (GERMANO; KULESZA, 2010, p. 125).

As reflexões propostas por Boaventura Santos (2002) articulam-se com as discussões políticas propostas pelos teóricos da pedagogia crítica (FREIRE, 2005, 2009; GIROUX, 1986, 1997; APPLE, 1982; entre outros), principalmente com relação ao posicionamento crítico acerca dos pressupostos epistemológicos que norteiam as políticas curriculares, sobretudo com relação ao desvelamento das ideologias implícitas no modelo de ciência e de conhecimento reproduzido no contexto das práticas educativas das escolas.

A partir das contribuições da pedagogia crítica e das teorias críticas do currículo, foi possível dar passos importantes na compreensão mais ampla acerca da construção do currículo, principalmente com relação ao processo de produção e legitimação das propostas curriculares, assim como acerca das relações de poder, conflitos e alianças instituídas no seio das instituições educativas. Neste caso, os estudos críticos do currículo evidenciaram que, para além dos processos de reprodução, os currículos escolares são permeados por processos de resistências e transgressões com relação às propostas curriculares e às ideologias instituídas a partir da imposição do sistema educacional e da sociedade capitalista.

Nessa perspectiva, as propostas curriculares construídas, através das orientações políticas do pensamento educacional crítico, constituem-se enquanto espaço de encontro de diferentes saberes e experiências, colocando-se como lugar de diálogo entre as várias formas de conhecimentos e práticas sociais. São práticas curriculares que buscam criar novas estratégias de seleção e organização do conhecimento, “par73

tindo sempre da problematização das necessidades imanentes das práticas, explicitando conflitos socioculturais que, tomados como tensões epistemológicas, revelem contradições passíveis de superações a partir da conscientização e de planos de ação coletivos que implementem transformações nas práticas inicialmente desenvolvidas” (SAUL; SILVA, 2009, p. 235).

Desse modo, o currículo concebido a partir da racionalidade emancipatória9, ao romper com a lógica de reprodução das relações de poder e desigualdades sociais, comum a racionalidade tecno-linear, coloca “[...] o acervo científico acumulado pela humanidade a serviço do esclarecimento crítico necessário à emancipação dos sujeitos” (SAUL; SILVA, 2009, p. 236).

Inspirados nos ideais políticos críticos e emancipatórios, os movimentos sociais e educadores/as das escolas do campo assumiram o desafio de construir novos referenciais políticos e pedagógicos que deem conta de produzir novos conhecimentos numa relação de diálogo com as práticas sociais, políticas e organizativas dos povos do campo, de modo que, estes conhecimentos ajudem na compreensão crítica do campo com suas especificidades, contradições e potencialidades, tendo os sujeitos sociais como seus protagonistas.

Por esta razão, o “Movimento de Educação do Campo”10 assumiu o compromisso político de fomentar e promover a 9 Para Giroux (1983, p. 190), a racionalidade emancipatória se baseia “[...] nos princípios da crítica e da ação [tendo como objetivo] criticar aquilo que é restritivo e opressor, enquanto ao mesmo tempo apoia a ação ao serviço da liberdade e do bem estar individual. Este modo de racionalidade é construído como a capacidade de pensamento crítico para refletir e reconstruir a sua própria gênese histórica, isto é, pensar sobre o próprio processo de pensamento. [...] tem como objetivo romper a ideologia congelada que impede uma crítica da vida e do mundo”.

10 O Movimento Nacional da Educação do Campo é constituído por um conjunto de movimentos sociais (MST, MAB, MPA, CONTAG, dentre outros.) e algumas instituições ligadas às lutas do campo (principalmente pela reforma agrária, o combate ao latifúndio e ao agronegócio) que vem se articulando a partir da década de 1990 com o propósito de promover uma ocupação do latifúndio do saber/ conhecimento a partir da construção de políticas educacionais para o campo construídos a partir das lutas e das experiências políticas, organizativas e culturais dos povos do campo.

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construção coletiva de propostas curriculares voltadas ao reconhecimento e a valorização dos conhecimentos e saberes produzidos nos contextos das lutas dos camponeses, no processo histórico de ocupação e produção da vida no campo.

Assim, os currículos construídos dentro deste contexto fundamentam-se em novos referenciais políticos e epistemológicos capazes de criar espaços de diálogos entre diferentes saberes e práticas sociais que permeiam o cotidiano das escolas do campo no Brasil.

Os debates construídos sobre a educação do campo tornam-se relevantes na medida em que compreendem a produção do conhecimento enquanto processo social, permeado pela construção de sentidos e significados que os sujeitos historicamente produzem acerca dos seus fazeres e do próprio mundo. Assim, a produção do conhecimento está implicada com os sentidos e significados construídos pelos grupos sociais na sua relação com/no mundo e de produção de si no/ com o mundo, portanto, conhecer passa acima de tudo pelo ato de significar e/ou ressignificar os objetivos, os fenômenos naturais e sociais, bem como, as relações sociais e culturais construídas pelos sujeitos no/com o mundo. Neste caso, O conhecimento individual se dá sobre o fundo de uma experiência radicalmente histórica e coletiva que lhe é anterior e que lhe serve de matriz placentária. Esse contexto, como que um tecido que vai se complexificando pela contínua articulação de novas experiências, já tornadas possíveis pelas experiências passadas e acumuladas, é a cultura, uma das mediações concretas da existência dos homens. E a cultura como universo do saber (SEVERINO, 1998, p. 35).

A partir dessa reflexão, compreendemos que os processos educativos e as dinâmicas de construção do conhecimento não podem ocorrer distante dos contextos sociais, políticos e culturais dos grupos sociais, tendo em vista que é a partir desses contextos que os sujeitos se afirmam como protagonistas da história e da produção do conhecimento e, 75

por conseguinte, significam suas práticas e dão sentido aquilo que produzem e pensam sobre o mundo.

Neste caso, o currículo das escolas do campo deve ser constituído a partir da problematização crítica da realidade e do diálogo entre os diferentes saberes e práticas sociais, evidenciando uma dimensionalidade política capaz de desnaturalizar as relações de dominação e exclusão instituídas no meio social e entre os grupos sociais, permitindo que os/as educandos/as compreendam que os processos de construção das diferenças e das desigualdades são invenções históricas de homens e mulheres. São frutos das relações de poder estabelecidas no campo político, econômico e cultural, sendo, portanto passíveis de serem desestabilizadas e transformadas a partir do momento em que os sujeitos, ao tomarem consciência de si e das condições sócio-históricas a que foram submetidos, desenvolvem novas capacidades técnicas e políticas que permitam o desenvolvimento de estratégias de transformação social e emancipação política.

2 A construção do currículo numa perspectiva interdisciplinar Um dos grandes problemas vivenciados nas escolas brasileiras, com maior ênfase nas instituições de ensino situadas no campo, é o seu distanciamento da realidade sociocultural, política e econômica dos/as educandos/as, resultando na negação de suas experiências e práticas sociais, bem como, dos saberes construídos no contexto de suas relações e interação no/com o mundo.

Este distanciamento reflete diretamente na transmissão/ produção de um conhecimento escolar deslocado da realidade, em grande medida destituído de significados políticos e culturais para os grupos sociais, tendo em vista suas limitações com relação à produção de outras leituras da realidade, 76

que ampliem e potencializem a relação dos sujeitos no/com o mundo numa perspectiva crítica de empoderamento e de construção da práxis transformadora (FREIRE, 2005).

Diante desse contexto, os conhecimentos produzidos/ reproduzidos por meio das práticas educativas das escolas do campo limitam-se a abordagem de “conteúdos estanques, com pouca ou nenhuma interconexão, tanto entre si, quanto em relação ao mundo concreto e à experiência vivida; quando muito, aborda as práticas de trabalho de forma mecânica, vazia de reflexão” (FAGUNDES; BURNHAM, 2001, p. 39).

O fato é que a tradição curricular brasileira tem como principal característica a fragmentação e a descontextualização das propostas curriculares, principalmente com relação às formas de abordagens e produção do conhecimento escolar, devido às influências do pensamento curricular tradicional e técnico, vinculadas às bases epistemológicas positivistas.

A partir da influência da filosofia positivista, as políticas e diretrizes que nortearam a construção do currículo no Brasil adotaram posturas epistemológicas voltadas à seleção e organização do conhecimento escolar com base em critérios tidos como técnicos, no entanto, utilizavam de forma implícita os pressupostos políticos e epistemológicos associados à ideologia capitalista e neoliberal, que prega a ideia de um currículo científico e universalista, com forte interesse colonialista.

De acordo com Severino (1998), este processo de fragmentação e descontextualização das práticas educativas e curriculares trouxeram prejuízos tanto no campo epistemológico, associado à produção de um conhecimento destituído de significado político, cultural e social para os educandos, quanto no campo político e pedagógico, na medida em que não se consegue visualizar os princípios e fins implícitos nos projetos educativos. Assim, na medida em que os/as educadores/as constroem suas práticas a partir de objetivos e fins específicos perdem-se o foco de uma formação comum do 77

educando e do projeto de formação da escola e da própria sociedade.

Desse modo, é necessário buscar referenciais políticos e epistemológicos que conduzam o processo de reorientação curricular e a construção do conhecimento escolar, possibilitando a implementação de propostas curriculares abertas aos diferentes saberes e práticas culturais, pautadas em novos parâmetros com relação à compreensão e validação deste conhecimento, considerando sua complexidade, dialeticidade e historicidade, bem como a relação de interdependência e complementaridade entre os saberes e contextos.

O debate sobre a interdisciplinaridade favorece a construção de alternativas políticas, pedagógicas e epistemológicas voltadas ao desenvolvimento de novos procedimentos teóricos e metodológicos que supere a fragmentação e hierarquização do saber e fomente o diálogo entre as diferentes disciplinas na produção do conhecimento e de compreensão dos problemas e/ou temas em estudo. De acordo com Japiassu (1976, p.74), a interdisciplinaridade está associada: [...] à colaboração entre as diversas disciplinas ou entre setores heterogêneos de uma mesma ciência conduzindo a interações propriamente ditas, isto é, a certa reciprocidade nos intercâmbios, de tal forma que, no final do processo interativo, cada disciplina saia enriquecida. [...] nos reconhecemos diante de um empreendimento interdisciplinar todas as vezes que ele conseguir incorporar os resultados de várias especialidades, e que toma de empréstimo à outras disciplinas certos instrumentos e técnicas metodológicas, fazendo uso dos esquemas conceituais e análises que se encontram nos diversos ramos do saber, a fim de fazê-los integrarem e convergirem, depois de terem sido comparados e julgados.

A abordagem interdisciplinar traz contribuições teórico-metodológicas importantes para avançarmos na construção de políticas e práticas curriculares que ampliem a arti78

culação entre as áreas do conhecimento, permitindo maior integração entre as diferentes ciências, assim como com o contexto sócio-histórico e cultural, favorecendo a produção de conhecimentos capazes de explicar a complexidade que envolve os aspectos sociais, políticos, econômicos e culturais, permeados por contradições, encontros e desencontros.

De acordo com Morin (2005), a construção de novos referenciais políticos, pedagógicos e epistemológicos voltados à abordagem interdisciplinar do conhecimento passa pela reforma do pensamento científico, que fomente novas formas de pensar a produção do conhecimento, numa perspectiva integrada e contextualizada, fundada no princípio da dialogicidade entre saberes, culturas e contextos.

Nessa perspectiva, os pressupostos teórico-metodológicos e epistemológicos que fundamentam as concepções e práticas interdisciplinares dialogam com aqueles que norteiam e orientam as práticas educativas críticas e emancipatórias, uma vez que propõem a superação da fragmentação entre as diferentes áreas de conhecimento, a compreensão da realidade em sua totalidade e complexidade, a integração entre teoria e prática, entre texto e contexto, entre o conhecimento e a realidade. Neste caso, “O que se propõe é uma profunda revisão de pensamento, que deve caminhar no sentido da intensificação do diálogo, das trocas, da integração conceitual e metodológica nos diferentes campos do saber” (THIESEN, 2008, p. 548).

Corroborando esta reflexão, Frigotto (1995) defende que devemos pensar a interdisciplinaridade numa dimensão epistemológica, associada ao processo de compreensão e construção do conhecimento, evitando o desenvolvimento de práticas interdisciplinares que simplificam seus fundamentos políticos e epistemológicos ao limitar-se à dimensão didático-pedagógica do processo educativo, reproduzindo, de forma implícita, a lógica positivista de pensar a produção do conhecimento.

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O desenvolvimento de projetos educativos e curriculares interdisciplinares torna-se necessário na medida em que precisamos construir novas leituras críticas da realidade considerando, por um lado, a diversidade de pensamentos, culturas, saberes e práticas sociais; por outro, a dimensão histórica, complexa e dialética da sociedade, aspecto que demanda dos profissionais da educação um olhar interdisciplinar. Dessa forma, Pensar de forma interdisciplinar remete à necessidade de compreender a realidade como totalidade concreta e dialética e de cada ciência, nessa perspectiva, aponta possibilidades e limites para a interpretação dos fatos sociais.

Quanto maior o número de relações estabelecidas para analisar determinado fenômeno, maior a possibilidade de se perceber a realidade em seu movimento permanente de desconstrução e reconstrução; portanto, cada ciência, parte e todo ao mesmo tempo, apresenta um instrumental singular e necessário para a apreensão do processo (RODRIGUES, 2011, p. 107).

Nessa perspectiva, a abordagem interdisciplinar não põe em xeque a dimensão disciplinar do conhecimento em suas etapas de investigação, produção e socialização. Propõe a revisão do pensamento pedagógico e científico, ampliando o diálogo entre os diferentes campos e contextos de produção do conhecimento, assim como as trocas e integração conceitual e metodológica entre as diferentes áreas de conhecimentos (THIESEN, 2008).

O desenvolvimento de práticas educativas e curriculares interdisciplinares está associada à implementação de projetos integradores das diversas áreas de conhecimento, que fomentem a produção do conhecimento, tendo como dispositivos políticos e pedagógicos a pesquisa e a problematização da realidade. Neste caso, [...] o ensino deve ir além da descrição e procurar constituir nos alunos a capacidade de analisar, explicar, prever e intervir, objetivos que são mais facil-

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mente alcançáveis se as disciplinas, integradas em áreas de conhecimento, puderem contribuir, cada uma com sua especificidade, para o estudo comum de problemas concretos, ou para o desenvolvimento de projetos de investigação e/ou de ação. (BRASIL, 2000, p.103)

Com estas reflexões, compreendemos que os processos educativos desenvolvidos na perspectiva interdisciplinar favorecem uma maior articulação entre teoria e prática e entre as práticas educativas e sociais, contribuindo na formação crítica dos educandos, na medida em que fomenta o desenvolvimento da curiosidade epistemológica, através das investigações construídas no plano teórico-conceitual entre as diferentes áreas do conhecimento e na articulação dos diferentes conhecimentos quando são instigados a mergulharem no contexto social, político e cultural.

Além disso, o trabalho interdisciplinar torna-se relevante na medida em que favorece a compreensão da realidade em sua totalidade e complexidade, evidenciando as interrelações e interconexões dos problemas e desafios, bem como destacando as potencialidades e as alternativas de transformação social. A partir da abordagem interdisciplinar, os/as educandos/as serão capazes de desenvolver um olhar crítico sobre a realidade, superando as visões simplistas e fragmentadas de seus problemas e dos caminhos e estratégias de soluções.

Diante desse contexto, durante a formação-investigação, instigamos os/as educadores/as a refletirem sobre o contexto sócio-histórico e cultural da comunidade, identificando suas implicações ou não com os projetos educativos desenvolvidos na escola. Além disso, fizemos uma análise crítica dos fundamentos políticos e pedagógicos que norteavam suas práticas educativas e curriculares, evidenciando, por um lado, a descontextualização dos processos educativos e seu distanciamento da realidade sociocultural dos educandos; por outro, a fragmentação da proposta curricular e a desvincula81

ção dos conteúdos construídos e/ou abordados nas diferentes áreas dos conhecimentos com aqueles produzidos historicamente pela comunidade.

Este trabalho foi importante para despertar nos/as educadores/as e na própria comunidade uma visão crítica sobre o projeto educativo da escola, bem como, sobre as limitações deste projeto com relação ao desenvolvimento de conhecimentos que ampliem a visão crítica dos/as educandos/ as acerca da realidade, desencadeando com isto outros processos político-organizativos voltados à construção de novas estratégias de desenvolvimento com foco na sustentabilidade cultural, econômica e ambiental.

2.1 O processo de organização interdisciplinar do currículo Durante o projeto de formação-investigação, a partir dos diálogos críticos estabelecidos com os/as educadores/as da Escola Municipal Liberato Viera, mediados pelos estudos dos pressupostos teóricos e epistemológicos vinculados à pedagogia crítica, buscamos construir algumas estratégias políticas e teórico-metodológicas voltadas ao desenvolvimento do currículo numa perspectiva interdisciplinar.

A partir da pesquisa-ação crítica foi possível problematizar o olhar crítico das educadoras sobre o contexto sócio-histórico e cultural da comunidade, bem como sobre projeto curricular da escola, favorecendo a identificação dos desafios e possibilidades quanto à reorientação da proposta pedagógica e curricular na perspectiva da contextualização e da interdisciplinaridade.

Neste processo de estudo sobre o contexto histórico e cultural da comunidade, bem como de problematização de suas práticas educativas e curriculares, foi possível ressignificar as concepções da equipe pedagógica da escola com relação à compreensão acerca da educação e do papel da escola, 82

bem como do currículo e do tipo de conhecimento necessário à formação dos educandos, considerando sua atuação/inserção crítica no mundo.

A partir destes diálogos críticos, os/as educadores/as e a comunidade tiveram a oportunidade de compreender os fundamentos políticos e pedagógicos (BRASIL, 2003) que norteiam a proposta de educação do campo, reconhecendo seu papel estratégico na construção das alternativas de desenvolvimento da comunidade, tendo os sujeitos sociais como protagonistas deste processo de transformação social. Com este trabalho, foi possível reconhecer também as fragilidades do projeto político pedagógico instituído na escola, pautado na fragmentação e descontextualização do currículo e na apropriação acrítica de conhecimentos, que pouco contribui para a formação crítica dos/as educandos/as.

Com base neste entendimento, desencadeamos nas Rodas de Diálogos outras reflexões e problematizações sobre o contexto sociocultural e o projeto pedagógico da escola com o intuito de identificar as necessidades de reorientação da proposta curricular, e também de ampliar o diálogo entre os saberes construídos no âmbito das práticas educativas e aqueles vivenciados pelos sujeitos em suas experiências culturais.

Além disso, buscamos refletir sobre a relevância dos conhecimentos abordados e/ou construídos na proposta curricular e aqueles necessários à formação crítica dos/as educando/as, considerando as especificidades culturais, sociais, políticas e econômicas da comunidade.

Desse modo, as discussões sobre os conhecimentos relevantes que poderão compor a proposta curricular ocorreram juntamente com os debates sobre os referenciais políticos e pedagógicos, que irão nortear a construção da proposta curricular na perspectiva da contextualização e interdisciplinaridade. Este processo de construção do referencial teórico-metodológico e político-epistemológico foi importante, tanto 83

para a compreensão do modelo de educação do campo que se queria construir, quanto na definição dos objetivos e fins da proposta curricular, visto que os/as educadores/as passaram a tomar suas decisões conscientes do papel político a ser exercido pela escola, bem como do significado político do ato educativo, na perspectiva de produzir conhecimentos socialmente referenciados e com uma dimensão política e emancipadora (LIMA, 2015).

A partir dessas reflexões, o processo de seleção, organização e produção do conhecimento ganhou maior significado político, tendo em vista que estava em jogo a gestão de um projeto de educação e de escola que, de certa forma, tinha uma relação diferente com os sonhos coletivos dos diferentes grupos sociais e as perspectivas de desenvolvimento almejadas pela comunidade. Diante disso, nos debruçamos sobre as seguintes questões: como são selecionados os conteúdos escolares? Quais critérios serão utilizados neste processo de seleção? Quais conteúdos serão priorizados? Qual a relação destes conteúdos com as práticas sociais dos educandos? O que irá determinar/orientar/fomentar o processo de seleção e organização dos conhecimentos? Como serão organizados os conteúdos visando à superação da lógica da fragmentação e da descontextualização do currículo?

A partir das reflexões construídas em torno destas questões, os profissionais da escola concluíram que a concepção teórico-metodológica mais adequada ao processo de organização do currículo na perspectiva interdisciplinar é aquela associada à construção de eixos temáticos que fomentem a articulação das diferentes disciplinas por meio de projetos interdisciplinares.

Neste trabalho de organização do currículo, tivemos a preocupação de ampliar a discussão dos eixos temáticos para além da perspectiva didático-metodológica, limitados à organização técnica dos conteúdos. Ou seja, o debate sobre os 84

temas geradores devem colocar-se no campo epistemológico, na forma de reconhecer, valorizar, validar e produzir os conhecimentos escolares em diálogo com os conhecimentos sociais.

Por esta razão, foi necessário construir estratégias pedagógicas que criassem as condições para o desenvolvimento de atividades de estudos e pesquisas associadas ao processo de contextualização e integração dos conhecimentos produzidos no âmbito da escola. Os estudos desenvolvidos na perspectiva da pedagogia crítica têm apontado para a possibilidade de pensar alternativas pedagógicas que tenha a realidade concreta dos/as educandos/as como fontes de produção de conhecimentos e experiências educativas que deem conta de materializar dois princípios educativos básicos: a contextualização crítica dos processos educativos e da produção do conhecimento e a interligação dos diferentes saberes, visando à construção de conhecimentos que permitam o desvelamento da realidade em sua complexidade e totalidade (LIMA, 2015).

Diante desse contexto, o trabalho com projetos de pesquisas da realidade tornou-se uma das alternativas viáveis ao desenvolvimento de práticas educativas e curriculares capazes de fomentar, por um lado, o estudo crítico da realidade que favoreça a problematização dos conhecimentos produzidos no contexto das práticas sociais e, por outro, a articulação dos diferentes saberes oriundos das diversas áreas do conhecimento, visando o desenvolvimento de uma leitura crítica aprofundada sobre os problemas e as contradições presentes nas experiências sócio-históricos dos sujeitos sociais. Desse modo, nos apoiamos nas reflexões de Caldart (2011, p. 80), quando defende que: O trabalho pedagógico da escola com o conhecimento deve ser organizado, pois, de modo a permitir que a vida real impulsione os estudos, o trabalho

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científico, o que pressupõe a articulação teoria e prática (perspectiva da práxis) e o aprendizado de como isso se faz concretamente, diante de processos vivos e exigentes de soluções reais: por essa razão é fundamental que se estabeleça o vínculo do estudo com o trabalho, com processo de organização coletiva, com lutas sociais.

Nessa perspectiva, educadores/as e educandos/as debruçaram-se sobre o estudo da realidade, a partir da realização do diagnóstico socioeconômico e cultural envolvendo 08 comunidades atendidas pelos projetos educativos da escola. Este trabalho foi desenvolvido pelos/as educandos, sob a supervisão dos/as educadores/as, com a aplicação de questionários e a realização de entrevistas com mais de 140 famílias. A partir deste levantamento, foi realizado o processo de organização dos dados, com a identificação das temáticas socialmente relevantes que compuseram os eixos temáticos estruturantes da proposta curricular.

Com base nos eixos temáticos, foram construídos os projetos interdisciplinares com o propósito de produzir conhecimentos que ajudem os/as educandos/as a aprofundarem o olhar crítico sobre a realidade, visualizando as possibilidades de superação dos problemas em estudo, das “situações limites”. Para tanto, foi necessário o desenvolvimento de planos de estudos específicos para as distintas áreas do conhecimento, com a definição de questões problematizadoras que orientarão o processo de investigação da realidade, capaz de articular os conceitos básicos das disciplinas com os conhecimentos oriundos do contexto local.

No trabalho de análise e desdobramentos dos estudos dos eixos temáticos, os/as educadores/as foram identificando subtemas e/ou temáticas auxiliares que passaram a ser incorporados aos planos de estudos com o propósito de auxiliar os/as educandos/as na compreensão crítica dos problemas em discussão/investigação, considerando a multidimensionalida86

de dos fatos, as redes de relações e os conhecimentos implícitos à realidade. Na medida em se ampliava o processo de organização e análise das informações extraídas do diagnóstico, outros subtemas foram emergindo, desencadeando outras possibilidades de investigação através dos planos de estudos específicos das áreas de conhecimentos, desenvolvidos em consonância com o projeto interdisciplinar.

Com os projetos interdisciplinares é possível desenvolver um conjunto de estudos e pesquisas acerca da realidade de modo que os conhecimentos produzidos vão se complementando e estabelecendo as redes de saberes, tecidas ao longo das intervenções e trocas de experiências, resultando na construção de um conhecimento crítico capaz de evidenciar as contradições, a superação das leituras ingênuas da realidade, apontando as possibilidades de transformação social.

No entanto, neste trabalho de estudo da realidade, Caldart (2011) aponta algumas preocupações pertinentes com relação ao desenvolvimento de práticas educativas que realmente apontem caminhos para a formação crítica dos sujeitos vinculada com a luta pela transformação da realidade. Para a autora, [...] em nossas práticas continua o desafio pedagógico do como fazer o estudo dos fenômenos da realidade garantindo uma apropriação rigorosa do conhecimento teórico, científico, já acumulado pelos esforços da humanidade em compreender e interferir nas questões da vida de cada época, e tendo a mediação de práticas sociais concretas. Nossas experiências mostram que não basta afirmar aos educadores que é preciso juntar realidade e conteúdos, integrar estudo com trabalho; é necessário um esforço coletivo de construir um jeito, um método, de fazer isso na prática escolar cotidiana, aprendendo as diferentes tentativas historicamente feitas nessa direção, de modo a não tentar deixar de ser refém dos conteúdos para ficar refém das práticas [...].

(CALDART, 2011, p. 81).

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Neste caso, é importante que nos planos de estudos os/ as educandos/as tenham a oportunidade de se apropriarem dos conceitos e dos princípios básicos das diferentes áreas de conhecimento, tendo em vista que a apropriação crítica destes conhecimentos científicos e seus princípios epistemológicos será imprescindível ao processo de desvelamento da realidade em sua complexidade, totalidade e contradição. Dessa forma, os diálogos críticos e as confrontações estabelecidas em torno dos diversos conhecimentos e modos de pensar a realidade possibilitam a superação da consciência ingênua e o desenvolvimento da consciência ou a apropriação crítica da realidade.

Desse modo, as ferramentas metodológicas (planos de estudos, roteiros de pesquisa de campo, laboratórios de experimentações, dentre outras) construídas com os/as educandos/ as ajudarão; primeiro, na atitude crítica diante do mundo e das leituras construídas no/com o mundo; segundo, no processo de identificação, organização e sistematização dos conhecimentos construídos a partir da imersão na realidade; terceiro, na relação dialógica e problematizadora estabelecida entre os conhecimentos oriundos das experiências sociais e aqueles disponibilizados pelas distintas áreas dos conhecimentos, favorecendo sua ressignificação a partir do desenvolvimento de novas leituras e compreensões do mundo.

Considerações finais O processo de reflexão crítica construído com os/as educadores/as acerca da proposta curricular da Escola Municipal Liberato Vieira e suas interfaces com a realidade sociopolítica, econômica e cultural do campo brasileiro trouxeram inúmeros aprendizados para todos os envolvidos no processo de formação-investigação, principalmente com relação à relevância da construção coletiva desta proposta curricular, ten88

do como base a realidade concreta dos sujeitos sociais, bem como, seus sonhos e utopias.

Além disso, o debate sobre a concepção de educação do campo, bem como sobre os princípios políticos e epistemológicos que devem nortear os projetos educativos das escolas do campo possibilitou uma ressignificação na visão que os/ as educadores/as tinham acerca do currículo e do processo de seleção e organização do conhecimento escolar. Por outro lado, os estudos sobre os princípios políticos e pedagógicos que dão sustentação ao trabalho interdisciplinar permitiram a visualização de novas possibilidades de organização do currículo e das práticas educativas, tendo as experiências sociais e organizativas dos sujeitos do campo como fonte de conhecimentos e aprendizagens.

Na medida em que discutíamos sobre as possibilidades de construção do conhecimento a partir da problematização e do diálogo com as práticas sociais dos/as educandos/as, os/ as profissionais da educação foram percebendo que fora das grades disciplinares, que nos distanciam e nos separam dos outros e da vida, inúmeros “outros” temas e conteúdos transbordam e se entrecruzam, complementam-se, articulam-se nas margens e nas periferias das escolas e das disciplinas.

São conteúdos rebeldes, que não se permitem prenderem-se às “grades curriculares”, mas que dão vida ao cotidiano, que vivem nas margens dos muros escolares, realimentando práticas transgressoras e de resistência e reinvenção da vida dos povos do campo no semiárido. São conteúdos produzidos pelos grupos que produzem a vida fora das escolas, numa linguagem “afetiva”, “colaborativa”, que a escola pouco valoriza, por ainda não ser capaz de compreender seu verdadeiro significado político e cultural para a formação de uma nação rica em diversidades e verdadeiramente democrática.

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CURRÍCULO DA ESCOLA DO CAMPO E A ARTICULAÇÃO DE SABERES DA CULTURA CAMPONESA AOS CONHECIMENTOS ESCOLARES

Raimunda Alves Melo Maria da Glória Soares Barbosa Lima 1 Introdução A sociedade contemporânea passa por rápidas transformações ocasionadas pelos avanços tecnológicos, nos meios de comunicação, na economia, na sociedade, no mercado de trabalho, incidindo de forma representativa no meio escolar e no seu cotidiano, ampliando seus desafios no sentido de manter-se atuante e atualizada enquanto espaço formal de ensino, de aprendizagem e de formação para a cidadania.

A essas transformações acrescentam-se a ampliação do acesso à escola e a consequente diversificação de culturas, cenários que vem se reconfigurando pelo surgimento de novos sujeitos escolares, exigindo cada vez mais respostas da educação escolar, seja no âmbito da formação de profissionais para atender as demandas econômicas do mercado de trabalho, seja no âmbito da formação cidadãos capazes de intervir frente às principais demandas e problemáticas que envolvem a sociedade nos âmbitos: social, econômico, político, ambiental, entre outros.

No contexto campesino, essa discussão envolve movimentos sociais e sindicais, educadores e pesquisadores e principalmente os povos do campo sobre a necessidade e urgência de uma educação escolar que respeite, valorize e se aproprie dos saberes culturais dos alunos e da comunidade local como parte integrante do projeto pedagógico da escola, notadamente da formação dos estudantes. Esta proposta de educação, denominada Educação do Campo, é parte comple93

mentar de um projeto social mais amplo que objetiva também o direito à terra, à moradia, à justiça social, à saúde e à sobrevivência da população do campo.

Segundo Molina e Freitas (2011) a Educação do Campo originou-se no processo de luta dos movimentos sociais camponeses que batalham pela construção de uma sociedade sem desigualdades e com justiça social. Esta luta por educação faz parte de suas estratégias de resistência que objetivam manter seus territórios de vida, trabalho e identidade e surgiu como reação ao histórico conjunto de ações educacionais que, sob a denominação de Educação Rural, mantiveram precário o quadro de escolarização no campo e também contribuíram para aprofundar as desigualdades sociais no território campesino.

O estudo em referência, decorre de pesquisa de mestrado desenvolvida junto aoPrograma de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Piauí, cujo objetivo é investigar como os professores de Ensino Fundamental articulam conhecimentos escolares a saberes da cultura camponesa. Neste aspecto, o currículo é estudado como um importante elemento na organização e orientação do trabalho docente, no processo de seleção dos conhecimentos escolares e na articulação aos saberes culturais.

O direcionamento metodológico inclui-se na vertente da pesquisa qualitativa com abordagem narrativa tendo como referencial teórico Pinto (2008) e Souza (2006). A produção de dados e sua condução analítica realizou-se mediante o emprego de Diário de Aula na perspectiva de Zabalza (2004).O campo de pesquisa foi a Unidade Escolar João Soares de Brito situada na zona rural do município de Castelo do Piauí. Os sujeitos foram 7 (sete) professores que trabalham em turmas do 6º ao 9º ano com as disciplinas: Ciências, História, Geografia, Língua Portuguesa, Artes e Matemática.

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2 Concepções sobre currículo, conhecimento escolar e saberes da cultura camponesa A educação tem responsabilidade essencial na preparação das novas gerações, devendo os seus atores principais (educadores, famílias, governos e sociedade) estarem atentos aos processos de educação e escolarização, sobretudo se estes contemplam reflexões sobre as problemáticas humanas e sociais e, ainda, a proposição de vivências reflexivas e contextualizadas que estimulem as novas gerações a pensarem em soluções para os problemas sociais que estão postos, o que notadamente implica em discussões sobre o currículo.

Educar os sujeitos do campo na perspectiva de uma formação ampla, focada em objetivos de justiça social, que respeite, valorize e se aproprie dos saberes culturais dos alunos e da comunidade local como parte integrante da proposta pedagógica da escola envolve sobretudo um currículo escolar bem planejado, elaborado com a efetiva participação dos educadores, educandos e povos do campo, sob o ponto de vista de seus interesse e que represente o norte para a realização do trabalho educativo a ser desenvolvido na escola.

A propósito, Moreira (2009) afirma que o currículo é uma importante ferramenta pedagógica utilizada pelas sociedades para conservar, modificar e atualizar os conhecimentos acumulados ao longo dos anos e educar os alunos segundo os valores almejados pelos membros das sociedades. Considerando o exposto, o currículo da escola do campo constitui-se, em outras palavras, no cérebro das escolas, espaço central da atuação de educadores, educandos e do projeto educativo proposto, portanto, um importante instrumento para a consolidação das concepções de Educação do Campo.

Nesse sentido, Arroyo (2013, p. 17) refereque, na construção espacial do sistema escolar, o currículo é o núcleo e o espaço central mais estruturante da função da escola e, por 95

esta razão, tem se constituído, historicamente, em um “território de disputas”, normatizações e centralidade nas políticas públicas de educação. É, também, o mais politizado, inovador e ressignificado, bastando olharmos a quantidade de diretrizes curriculares para a educação básica disponibilizadas nas duas últimas décadas.

Registra, pois, do século XX, a compreensão de currículo como uma construção, uma seleção cultural e de conhecimentos comprometidos com a emancipação dos diferentes sujeitos e classes sociais, com a articulação de conteúdos a experiências vividas por essas classes, de maneira a provocar uma conscientização de suas condições de vida e uma perspectiva de mudança delas.

Mesmo assim, é recomendável dizer que ainda persiste, em muitas escolas, o caráter excludente de um currículo tradicional, que reproduz as desigualdades sociais, ao trabalhar com padrões culturais distantes das realidades dos alunos que, além de excluir, via reprovação e abandono, os que mais necessitam da escola para sua educação, não está sintonizado com as propostas educacionais, realidade social e necessidades dos educandos (ARROYO, 2013).

No entorno dessa discussão, por muito tempo, e ainda hoje, educadores se apropriam destas concepções de um currículo tradicionalpara justificar o fracasso escolar. Sobre esta questão, Santos (2009) afirma que discussões relativas à aprendizagem entre as classes populares foram intensificadas no final dos anos 60 quando um grupo de ingleses que trabalhava no campo da Sociologia da Educação decidiu pesquisar as razões pelas quais um grande número de crianças de camadas populares fracassava na escola. Esse fracasso foi atribuído a fatores externos como a família, o meio social apontado como desfavorecido e as dificuldades que possuíam com relação ao ato de aprender o que as escolas ensinavam. Tem relação também com o modelo de cultura e conhecimento va96

lorizado e reproduzido pela escola cujo objetivo principal é preparar para aquisição de habilidades intelectuais através de práticas de memorização.

Com o incremento dessas pesquisas, iniciou-se um processo de mudança entre os educadores com o propósito de buscar na própria escola as causas do fracasso escolar. Esses estudos mostraram, ainda, a gama de interesses elitizados contidos nos conteúdos curriculares, evidenciando, sobretudo, que a escolha dos conhecimentos trabalhados nas escolas era perpassada por interesses sociais, ideológicos, conforme revela Santos (2009, p. 11): Exemplo disso estava no fato de que a forma de falar desse grupo, denominada de versão autorizada da língua, era a única aceita na escola. Outro exemplo poderia ser dado, considerado a disciplina de História, uma vez que essa disciplina se restringia a fazer um relato histórico, de acordo com a versão oficial, narrada com base nos interesses da classe dominante. A história escolar silenciava a respeito das lutas das camadas populares ou não lhe atribuía a importância que merecia.

Essas transformações vividas em torno do currículo foram motivadas, também, pela ampliação do acesso à escola e à consequente diversificação de culturas e saberes presentes no atual contexto das escolas públicas brasileiras, cenário que fez surgir novos olhares e questionamentos, principalmente sobre as formas como os conhecimentos são organizados e normatizados pelas orientações legais curriculares. Atualmente, as discussões se voltam para a necessidade de que o currículo esteja mais aberto às diferentes concepções de sociedade e de educação e aos saberes culturais subjacentes às populações, visto que a diversidade traz em seu bojo uma riqueza de experiências que pode (e deve) ser incorporada às propostas curriculares.

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O fato é que, mesmo os que se colocam ao lado dos interesses das camadas populares têm pontos de vista diferentes sobre o que deve ser contemplado no currículo e, portanto, ensinado nas escolas. Segundo Santos (2009), de um lado estão universalistas e educadores que defendem a ideia de que a escola deve propiciar aos educandos o acesso a conhecimentos científicos, à produção cultural considerada como de maior prestígio social e ao conhecimento historicamente acumulado e validado pela academia e pela sociedade, pois consideram que existem saberes, conhecimentos e valores que são universais e transculturais, por fazerem parte do patrimônio cultural da humanidade. Do outro lado, explica essa autoraestão os não universalistas e educadores que defendem a ideia de que a escola deve trabalhar a diversidade cultural existente na sociedade, organizando o currículo a partir das diversas experiências culturais, de modo que os educandos possam reconhecer e valorizar a cultura do grupo a que pertencem, bem como entender e respeitar este grupo. Os não universalistas refutam a ideia de que existam conhecimentos universais, pois acreditam que tais conhecimentos façam parte da cultura de um grupo específico.

Na verdade, o presente estudo permeia o campo destas duas posições, pois discute a necessidade de que o currículo contemple conhecimentos universais, na crença de que, para formar cidadãos no contexto camponês, é necessário que se trabalhe conhecimentos que possibilitem aos alunos conhecer o campo, mas, também, o contexto social e cultural mais amplo. A compreensão que emerge é que o estudante do campo não pode viver isolado do mundo, precisa de saberes capazes de facilitar sua comunicação, movimentação, argumentação e capacidade de criação. Do mesmo modo, defendemos a necessidade de que os saberes culturais sejam parte integrante do currículo, pois acreditamos que a valorização destes pela escola enriqueça o currículo, dê sentido ao trabalho educati98

vo, motive os alunos para aprendizagem, contribua para sua emancipação, promova uma conscientização sobre suas condições de vida.

Estes estudos, aliados às demandas sociais e econômicas da sociedade vêm contribuindo para um movimento de ressignificação do currículo, acompanhado por uma crescente ampliação das funções da escola, assim como também do alargamento dos direitos educacionais e culturais. Nessa perspectiva, o currículo se destaca pela relevância que tem em assegurar o direito dos educandos aos conhecimentos socialmente produzidos, aos saberes, à diversidade, ao entendimento da realidade circundante, entre outras possibilidades.

A esse respeito comporta citar as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental (2010, p. 3) destacando seu Art. 9º: Os conhecimentos escolares são aqueles que as diferentes instâncias que produzem orientações sobre o currículo, às escolas e os professores selecionam e transformam a fim de que possam ser ensinados e aprendidos, ao mesmo tempo em que servem de elementos para a formação ética, estética e política do aluno.

Nesta mesma linha de pensamento, Moreira e Candau (2008) acrescentam que os conhecimentos escolares provêm de saberes e informações socialmente construídas em espaços de referências dos currículos (universidades, centros de pesquisa, mundo do trabalho, entre outros). Desse modo, o conhecimento escolar é importante, pois ao se apropriarem dele os estudantes desenvolvem condições para melhor compreensão da realidade social em que vivem, possibilitando que se posicionem criticamente diante do seu contexto social e certamente exercerem a sua cidadania. Para tanto, precisam ser trabalhados de forma articulada aos saberes culturais, neste caso, saberes da cultura camponesa.

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Comporta compreender, por conseguinte, que a cultura camponesa é uma cultura constituída a partir da diversidade e pluralidade camponesa caracterizada pelos estreitos vínculos familiares, comunitários e pela relação de sobrevivência com a natureza. É a cultura da terra, da produção, do trabalho e do modo de vida rural, como descreve Tardin (2012). Já os saberes da cultura camponesa, segundo refere Araújo (2011), caracterizam-se como saberes experienciais que os camponeses constroem por meio das formas que o trabalho assume no contexto da terra, fazendo com que as relações dos saberes do povo do campo com a natureza sejam carregadas de interatividade e modos próprios de produção e vivências.

A integração dos saberes da cultura camponesa, como parte vinculada ao currículo, é condição basilar para uma educação dotada de sentido e significância, sendo o respeito e a valorização desses saberes condição imprescindível para a formação crítica dos alunos, pois a apropriação dos saberes culturais e a articulação destes aos conhecimentos escolares contribui significativamente para a ressignificação de seus conhecimentos.

3 Currículo da escola do campo e revelações dos interlocutores Educadores e pesquisadores da área de Educação do Campo (ARROYO; CALDART; MOLINA, 2005) têm se mostrado consensuais sobre a necessidade da construção de novos projetos educativos que contemplem e valorizem a diversidade sociocultural do campo. Estes projetos, aos poucos, vêm sendo realizados no cotidiano das escolas por professores que, se apropriando de criatividade e demonstrando força de vontade, desenvolvem atividades significativas de valorização da cultura camponesa.

Segundo Arroyo (2013, p. 41), foram as lutas dos “coletivos docentes”, cada vez mais identificados com os educan100

dos de diferentes classes e contextos sociais, com os saberes, cultura, raça, campo ou periferia, que passaram a trabalhar na sala de aula, buscando expressar de forma ousada e criativa a autoimagem positiva desses sujeitos,evidenciando possibilidades de uma prática inovadora, significativa, capaz de incluir os educandos e os seus saberes como parte ativa e significativa desse projeto curricular.

Para tanto, é razoável entender, que a elaboração de novos projetos educativos que contemplem e valorizem a diversidade sociocultural do campo, notadamente, passa por uma organização curricular construída por meio de processos democráticos, com efetiva participação dos sujeitos do campo; considerando o tipo de sociedade a ser construída no campo; reconhecendo o perfil do sujeito a ser formado para viver neste espaço, para tanto, comporta, também, identificar os saberes e competências que os sujeitos do campo devempossuir para pensar políticas de desenvolvimento para o lugar onde vivem, assim como que estabeleça conteúdos que sejam prioritários ao currículo das escolas, tudo isso com o intuito de promover uma formação críticados educandos (LIMA, 2011).

Nosso entendimento, por conseguinte, é que o currículo das escolas do campo aborde necessariamente conteúdos trabalhados de forma articulada com as vivências e experiências dos alunos acolhendo suas crenças, valores, e projetos de vida, adequando o calendário e as propostas curriculares aos tempos, espaços e necessidades do educando e do seu contexto, num constante diálogo entre os conhecimentos escolares e os saberes da cultura camponesa.

Estas reflexões apontam para a necessidade de que o currículo das escolas do campo seja construído a partir da seleção de conhecimentos relevantes aos sujeitos do campo, que incentive mudanças individuais e sociais, processo que implica o propósito de manter diálogo entre conhecimentos 101

escolares e demais saberes socialmente construídos, como é o caso dos saberes da cultura camponesa, conforme explica Lima (2011, p. 109).

O fato é que os projetos educativos devem estar em sintonia com os processos de desenvolvimento das comunidades, para que os conhecimentos e saberes produzidos na sala de aula possibilitem aos alunos atuarem de forma ativa nos projetos de transformação social e na produção de novos saberes sociais, culturais e tecnológicos voltados para o desenvolvimento, utilizando de forma sustentável os potenciais culturais, ambientais, organizativos e produtivos de cada região.

Essa sintonia leva à compreensão de que o currículo da escola do campo deve incluir o estudo dos conhecimentos escolares selecionados a partir de critérios relacionados aos interesses e necessidades dos alunos e aos saberes da cultura camponesa, trabalhados de forma interdisciplinar, relacionando teoria e prática, centrados em problemas da vida cotidiana, de forma a permitir que os educandos adquiram uma compreensão abrangente da realidade social e construam competências intelectuais e práticas. Partindo deste entendimento, a literatura que trata sobre a Educação do Campo orienta que o currículo das escolas incorpore o movimento da realidade social, bem como os saberes da cultura camponesa, processando-os em forma de conteúdos formativos, a exemplo do que propõe Caldart (2005, p. 57): Uma escola do campo precisa de um currículo que contemple necessariamente a relação com o trabalho na terra. Trata-se de desenvolver o amor à terra e ao processo de cultivá-la, como parte da identidade do campo, independente das opções de formação profissional, que podem ter ou não, como ênfase, o trabalho agrícola.

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Esse entendimento conduz à proposição de que o diálogo sobre currículo promova discussões a respeito dos conhecimentos escolares e culturais a serem ensinados e aprendidos nas escolas, bem como das transformações que desejamos efetuar nos educandos, dos valores que desejamos que eles absorvam e das identidades que pretendemos que construam.

No que se refere ao currículo escolar da Unidade Escolar João Soares de Brito, lócus desse estudo, os professores trabalham com uma proposta curricular composta pelas disciplinas de: Língua Portuguesa, Matemática, Ciências, História, Inglês, Geografia, Educação Física, Artes e Ensino Religioso. A realidade do ensino nessa escola é caracterizada pela compartimentação do conhecimento. Essa organização burocrática do currículo dificulta a aprendizagem dos alunos que “não conseguem perceber que todos os conhecimentos vivenciados na escola são perspectivas diferentes de uma mesma e única realidade, percebendo cada um deles autônomo e autossuficiente, quando na verdade só pode ser compreendido em sua totalidade” (MOREIRA, 2009, p. 8).

No entanto, observamos que aos poucos a equipe escolar amadurece um trabalho interdisciplinar por meio do desenvolvimento de projetos didáticos e de uma expressiva variedade de estratégias metodológicas que oportunizam aos educandos vivências relacionadas, tanto com os saberes culturais, como com os conhecimentos escolares e que na sua articulação contribuem para a ressignificação de conhecimentos e aprendizagens. Nesse sentido, os projetos se destacam como uma das estratégias mais presentes no interior dessa prática, como percebemos nas narrativas dos interlocutores Nita, Mário e Vilma: Na escola desenvolvemos projetos que valorizam e resgatam os aspectos históricos, culturais e geográficos da nossa comunidade e da vida do nosso povo como, por exemplo, o Projeto Conhecendo a Palmeirinha através da história, que resgata a história

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desde início do povoamento e também promove o estudo da geografia e da cultura local. (NITA).

No projeto Estrelas do Conhecimento, as crianças são condecoradas com estrelas sempre que se envolvem em práticas educativas dentro e fora da sala de aula como, por exemplo: participação ativa nas aulas e na resolução de exercícios, realização de pesquisas, leitura de livros, entre outras. (MÁRIO).

Devido aos problemas ambientais da nossa comunidade, nós, da equipe docente, elaboramos o Projeto: Jovens Conscientes Transformando o Ambiente.

Com este projeto realizamos pesquisas que contemplaram investigações sobre os aspectos naturais da comunidade. Também confeccionamos um herbário com plantas nativas, criamos uma COM-VIDA (Comissão de Meio Ambiente e Qualidade de Vida) e trabalhamos quatro sub-eixos: fogo, terra, ar e água.

Juntamente com os alunos elaboramos um documento com reivindicações e encaminhamos para o Poder Público (Prefeito) com o objetivo de melhorar o abastecimento de água e energia elétrica. (VILMA).

Concretamente, a narrativa de Nita mostra a tríplice articulação de conhecimentos (história, cultura e geografia) que se inter-relacionam nos seus fazeres pedagógicos, mostrando a representatividade dos projetos didáticos como fomentadores dos conteúdos curriculares e da valorização da realidade local. A pedagogia de projeto trabalha com uma proposta que articula os conhecimentos escolares com a realidade do aluno. Dentro dessa proposta, é possível articular diversos conhecimentos na resolução de um problema.

Com o Projeto Estrelas do Conhecimento, Mário se reporta à contemplação de uma vertente curricular que respeita e valoriza os conteúdos atitudinais, entendidos enquanto conhecimentos relacionados à formação para a vida e para a vivência plena da cidadania. Sobre os conteúdos atitudinais, o depoimento do interlocutor se reporta aos dizeres de Moretto (2008) de que é papel da escola preocupar-se, e, de fato inves104

tir, na formação de seu alunado pautado em valores (respeito, solidariedade, responsabilidade, honestidade), o que implica, também a condição para a formação atitudinal desses alunos, compreendendo uma predisposição para se conduzir e atuar de maneira certa, na sua vida, no meio social.

A questão da orientação para o exercício consciente da cidadania, para a compreensão do compromisso com a sustentabilidade ambiental, notadamente da sua realidade local, revela-se na narrativa de Vilma ao tratar sobre o Projeto Jovens Conscientes Transformando o Ambiente, que propõe o desenvolvimento de uma consciência política, por parte dos alunos e da comunidade em geral: “[...] Juntamente com os alunos, elaboramos um documento com reivindicações e encaminhamos para o Poder Público (Prefeito) com o objetivo de melhorar o abastecimento de água e energia elétrica”. Essa compreensão de construção de atitudes políticas encontra-se respaldado em Caldart (2005) que entre outros aspectos defende que a proposta curricular da escola do campo tenha o propósito de direcionar, ampliar e consolidar as aprendizagens dos alunos e a construção de utopias sociais. Essas utopias viabilizam a interconexão da identidade pessoal no sentido de vinculação/inter-relacionamento com as grandes questões da humanidade, o que não deixa de ser ou envolver um ensinamento que orienta para o sentido de execução da consciência política. É visível também, nas declarações desses professores, sinalizações de que as experiências educativas trabalhadas nos projetos mantêm estreita relação com a realidade na qual os estudantes estão inseridos, oportunizando que se afirmem como sujeitos de identidades individuais e coletivas. Essas indicações corroboram com o que afirma Lima (2011) sobre a pedagogia de projetos, que enquanto opção político-metodológica reforça a aproximação de temas discutidos na sala de aula com a realidade concreta dos alunos, com vistas a 105

possibilitar a identificação e a reflexão crítica dos principais problemas sociais que dizem respeito ao contexto local.

Os relatos narrativos assinalam que os professores da Escola de Palmeirinha desenvolvem atividades e vivências práticas com os alunos como: a construção de herbário de plantas medicinais, viveiro de mudas nativas, aula passeio em horta comunitária, pesquisa de campo sobre brinquedos e brincadeiras antigas, pesquisa sobre as músicas, as danças, a religiosidade e os costumes da comunidade, entre outras.

Afirmam, ainda, que, na prática docente utilizam exemplos relacionados a experiências e vivências cotidianas como suporte para a contextualização das aulas, comparação e referenciação de fatos passados e fatos presentes, como evidenciados nas narrativas das interlocutoras: Maia, Maria e Helen: Em Geografia, eu procuro conceituar de forma coesa e clara, exemplificando e trazendo para a vivência do aluno. Realizo pesquisas sobre temas relacionados aos conteúdos e a sua relação com os conhecimentos, fora e dentro do campo, ou seja, da realidade dos alunos. [...] Estou sempre chamando a atenção dos alunos sobre as práticas erradas e sempre que sinto necessário, conto minhas vivências e a de outros colegas como exemplo. [...] Trabalho as vivências e suas variações. Exponho a vivência e peço para os alunos compararem com as de outros locais, no campo e na cidade. Fizemos uma entrevista com uma pessoa idosa da comunidade para compararmos as diferenças entre os brinquedos e as brincadeiras de 30 anos atrás. Os alunos se surpreenderam. (MAIA).

Construímos um herbário de plantas nativas (hoje estamos cultivando um viveiro na escola para fazer o replantio na comunidade, na tentativa de amenizar os problemas como a semi-desertificação, melhorando o clima e o habitat dos inúmeros animais silvestres). Fizemos, por turmas, cartazes com a linguagem local, hábitos alimentares e gráficos em relação ao transporte. Agora mesmo, no Programa Mais Educação, nós pesquisamos as danças. Nesta atividade, os alunos pesquisaram entre as pessoas

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mais idosas da comunidade os ritmos e as danças de outrora. (MARIA).

Na minha aula, os conteúdos eram as hortaliças. Então, eu e a coordenadora levamos as crianças para visitarem uma horta da comunidade, ouvir daquelas pessoas os seus saberes sobre as hortaliças. Olha, o conteúdo eu sei explicar, mas nada é como ouvir uma pessoa que trabalha no dia a dia e sobrevive disso para falar a respeito desta questão para as crianças. Eles (trabalhadores rurais) não têm uma formação específica, mas tem uma bagagem de saberes muito grande. (HELEN).

Os relatos de Maia, Maria e Helen elucidam que, na prática docente, estas professoras desenvolvem atividades educativas propostas em torno de situações que desafiam os educandos a aprofundarem seus conhecimentos e a resolverem problemas relacionados à realidade (social, geográfica, histórica e cultural) da comunidade da qual fazem parte. Estas formas de exercer a prática docente favorecem e ampliam novas aprendizagens, ao passo em que também promove a reflexão crítica tanto do aluno, como do professor. Essa reflexão crítica encontra apoio nas discussões de Lima (2011), em que advoga que o trabalho pedagógico dos professores será mais efetivo e representativo para os alunos quando articulado e realizado tendo como foco as experiências organizativas, políticas e culturais, sintonizadas com as necessidades dos alunos e de suas comunidades no sentido de fortalecimento de suas identidades socioculturais, da melhoria da autoestima da população que habita e estuda na escola do campo.

Assim, discutir questões relativas ao currículo escolar e à articulação dos conhecimentos escolares com os saberes da cultura camponesa passa, necessariamente, por processos formativos sólidos e pela compreensão de um currículo dinâmico e mais aberto às vivências e experiências de educandos e educadores, obtidos tanto em instituições educacionais, como as escolas, como em outros espaços sociais, culturais 107

e comunitários. Notadamente, esta abertura requisita o compromisso dos educadores em enriquecê-los com novos conhecimentos e em garantir o direito dos alunos de acessarem a uma atualizada e significativa produção de conhecimentos, como forma de ler, de compreender e (re)significar a vida e seu mundo circundante, a exemplo do que realizam os professores da Escola de Palmeirinha.

Conclusões preliminares Pensar a escola do campo sob a ótica do reconhecimento e valorização da diversidade e especificidades do campo dos seus sujeitos, passa, necessariamente, por um currículo que proponha conhecimentos escolares comprometidos com a emancipação, com a articulação destes com as experiências vividas, de forma a provocar uma conscientização sobre as condições de vida de cada pessoa e do conjunto da comunidade social na qual estão inseridos.

Nesse sentido, o estudo referenda o currículo como elemento norteador importante no processo educacional da escola do campo, tendo em vista que por meio de suas orientações é que são direcionadas/realizadas as ações pedagógicas da escola e da prática docente dos professores. Assim, o processo de seleção dos conhecimentos escolares trabalhados no dia-a-dia da escola precisa revelar-se cuidadoso, visto que, a rigor, necessitam considerar os interesses e necessidades educativas dos sujeitos do campo.

Os professores colaboradores da pesquisa da qual se origina o presente texto concebem que o currículo da escola, cenário deste estudo, contempla conhecimentos universais que formam a base nacional comum, pois para formar cidadão é preciso conhecimentos amplos que favoreçam o desenvolvimento de competências e facilitem a compreensão sobre o cenário nacional e mundial. De igual modo, expressam o entendimento de que o currículo da escola do campo seja 108

aberto aos saberes da cultura camponesa, pois compreendem que essa valorização e incorporação enriquece o processo de aprendizagem, motiva os alunos para aprender, imprime maior significação aos conhecimentos escolares, promovendo a conscientização dos estudantes sobre a realidade em que vivem.

Aliada a esta conjuntura, voltamo-nos especificamente para uma escola do campo: a Unidade Escolar João Soares de Brito. Observamos que, embora existam novas diretrizes que norteiam o trabalho docente e a construção de políticas de Educação do Campo, é preciso que a Secretaria Municipalde Educação avance na divulgação desse documento, faça investimentos na formação do professor e melhore o acompanhamento pedagógico para que os professores conheçam e se apropriem dessas orientações, fazendo-se necessário ainda a priorização de investimentos na área para que essas propostas possam se materializar.

Esses aspectos se materializaram pelo contributo das narrativas dos interlocutores ao revelarem que mesmo não dispondo de um currículo escrito e sistematizado realizam a articulação dos conhecimentos escolares aos saberes da cultura camponesa, que se materializa pelo planejamento de atividades em que as experiências educativas estabelecem vínculos com a realidade em que vivem, portanto, entre escola e comunidade, particularmente pelo fato de a maioria dos professores residirem na própria comunidade o que lhes faculta melhor transitar, pedagógica, crítica e criativamente, pelos cenários dessa cultura.

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PRÁTICA EDUCATIVA NO CONTEXTO DA EDUCAÇÃO DO CAMPO: AS POSSIBILIDADES DE TRANSFORMAÇÃO SOCIAL Maria Sueleuda Pereira da Silva Elmo de Souza Lima 1 Introdução A prática educativa no contexto dos projetos de educação do campo se constitui como instrumento de intervenção política na efetivação das ações que garantem aos povos do campo à apropriação crítica do conhecimento universal produzido pela humanidade numa articulação com o saber e o fazer da comunidade, favorecendo a compreensão crítica das condições sócio-históricas nas quais estão inseridos. São práticas que se colocam como espaços estratégicos à construção de conhecimento que fomente uma nova compreensão do campo enquanto espaço de possibilidades e produção de uma vida sustentável, contrapondo-se às concepções construídas acerca do mundo rural, que o associa ao subdesenvolvimento, ao atraso. É evidente que, no processo de implementação das políticas de educação do campo, é necessário que desenvolvamos práticas educativas que deixem de ser rotinizadas e passem a ser prazerosas, atraentes, dinâmicas, participativas e constantes das vivências cotidianas que despertam nos educandos/ as o interesse pela educação, reconhecendo sua importância para transformação e valorização do campo e seus espaços de vivências e produção social.

Nesse contexto, a qualidade no processo de ensino aprendizagem está vinculada ao desenvolvimento de uma prática educativa que atenda aos anseios dos/as educandos/as 113

e, principalmente, compreenda as dinâmicas políticas e organizativas comuns à vida camponesa, bem como, suas especificidades socioculturais.

Dessa forma, as práticas educativas desenvolvidas nas escolas do campo partem da interação com a natureza, no trabalho com a família, nas conversas, nas festas das comunidades, nas mais variadas manifestações religiosas e nos momentos de atividade de formação política, assumindo o compromisso de colaborar com a reafirmação da identidade camponesa.

Para tanto, os/as educadores/as devem adotar uma postura crítica perante o fazer educativo, utilizando-se da reflexão como instrumento de reorientação de suas práticas, bem como do diálogo com a comunidade como forma de garantir o desenvolvimento de projetos coletivos que contemplem os interesses políticos da população camponesa. A reflexão das práticas educativas permite o confronto constante das ações desenvolvidas no contexto da escola com a realidade dos povos do campo, servindo como base de orientação para a constituição de possibilidades e reconstrução das ações, pautando-se em ideais éticos de melhoria da vida no campo.

Nessa perspectiva, as práticas educativas desenvolvidas no contexto da educação do campo precisam assumir o compromisso com a transformação da realidade camponesa, através da articulação dialética entre o fazer e o aprender, que resulte no desenvolvimento de conhecimentos voltados à compreensão crítica do campo em sua complexidade e contradição, bem como à tomada de consciência da situação vivida pelo educando.

O processo educativo desenvolvido sob este ponto de vista contribui para romper com os estereótipos criados e disseminados ao longo dos anos em torno da população campesina, diminuindo, assim, o descompasso entre os desejos e as reais necessidades dos/as educandos/as e os instrumentos que a sociedade ainda lhes oferece através da educação.

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Desvelar a realidade camponesa e interagir com os elementos que a compõem favorece a compreensão de suas especificidades locais e as dinâmicas de sua gente, o que proporcionará nos educandos o fortalecimento da sua relação de pertencimento com o ambiente local, despertando a iniciativa e a participação comunitária e fortalecendo as aspirações da população campesina e o desejo de transformar sua realidade.

Com o propósito de compreender como estão se constituindo as práticas educativas nas escolas do campo e os desafios implícitos neste processo de contextualização dos projetos educativos, numa articulação com as práticas sociais do educando, desenvolvemos um estudo sobre o trabalho desenvolvido na Ecoescola Thomas a Kempis, situada no município de Pedro II, no Estado do Piauí.

A Ecoescola é uma instituição filantrópica, criada em 2001, pelo Centro de Formação Mandacaru de Pedro II11, voltada ao atendimento de jovens do campo, com a oferta de ensino integral para estudantes do Ensino Fundamental de 6º ao 9º ano e do Ensino Médio. As atividades educativas são desenvolvidas numa área rural com diferentes espaços de vivência (criação de caprinos, de abelhas, pomares, hortas orgânicas, roça orgânica, apiário, dentre outros) da realidade do campo, nos quais os educandos têm a oportunidade de articular os conhecimentos produzidos no contexto das práticas sociais com aqueles inerentes às diferentes áreas do conhecimento escolar.

Desse modo, buscaremos refletir sobre as práticas educativas no contexto da educação do campo tendo a experiência da Ecoescola Thomas a Kempis como espaço de estudos e trocas de conhecimentos acerca do fazer educativo contexO Centro de Formação Mandacaru de Pedro II é uma entidade filantrópica, constituída em 1991, com o objetivo de promover a cidadania, dentro da realidade do semiárido, no campo sociocultural, econômico e religioso, na zona rural e urbana, fazendo uma educação ligada à realidade, oportunizando uma formação a pessoas que não tenham acesso.

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tualizado e referenciado na cultura camponesa e nos seus processos políticos e organizativos.

2 O campo e a educação do campo Atualmente, vivem no campo 16 milhões de brasileiros, dentre eles, quatro milhões são pequenos proprietários que precisam de programas e políticas públicas para impulsionar suas atividades. Além disso, há quatro milhões de famílias que não têm renda “e para elas só a reforma agrária” é capaz de garantir uma nova realidade (STÉDILLE, 2012). Nesse mesmo campo, de acordo com os dados do Censo Agropecuário 2006 do IBGE, o segmento camponês é quem efetivamente gera 74,4% dos empregos no campo, 38% do valor bruto da produção agropecuária e produz os alimentos que compõe a mesa dos brasileiros (IBGE, 2006).

A partir destes dados, percebemos que o campo é um espaço de possibilidades de vida, de meios estratégicos que dinamizam a ligação dos seres humanos com a própria produção das condições de existência social e com as realizações da sociedade humana. No entanto, os modelos de desenvolvimento impostos historicamente a esses povos vêm inviabilizando a garantia de uma vida sustentável.

De acordo com Caldart (2010), predomina, atualmente, no campo brasileiro, dois projetos políticos em disputa: de um lado, o do agronegócio, modelo predador, excludente e que coloca em risco a soberania do país, pois afasta os povos do campo da atividade rural tornando-se atrativo imprescindível do capital internacional e, do outro, o modelo do povo camponês realizado, historicamente, por trabalhadores e trabalhadoras, que garante, em boa parte, através de sua produção, alimentos para sustentação do povo brasileiro, como vimos nos dados acima apresentados.

No projeto político, social e econômico do agronegócio, encontram-se as grandes monoculturas, as apropriações 116

de terra para incorporar ao sistema produtivo, a subordinação da produção, do território e das relações sociais desenvolvidas pelos camponeses aos interesses econômicos, o uso intensivo da tecnologia e do agrotóxico, os transgênicos, as culturas para exportação, a concentração da terra, o trabalho assalariado, o desemprego e o desrespeito ao meio ambiente (MENESES NETO, 2009).

Este modelo é apresentado pela grande mídia, muitas vezes, como sinônimo de eficiência e produtividade, e tem encontrado em muitos estudiosos, políticos e governos conservadores o reforço necessário para a manutenção do poder hegemônico no campo. Contudo, no projeto do campesinato, trabalhadores e trabalhadoras lutam por terra, produzem alimentos diversificados para o consumo direto da família e garantem o excedente sobretudo para os mercados locais.

Ainda assim, são considerados por aqueles que defendem o agronegócio como incapazes, ineficientes para os padrões da produção capitalista.

Segundo Ramos Filho (2010, p. 02), para garantir o desenvolvimento do capitalismo no campo, este promove mecanismo que “cria, recria e destrói o campesinato de acordo com seus interesses”, ou seja, é preciso considerar que, ao mesmo tempo em que cria as relações capitalistas de produção, (re)cria, contraditoriamente, relações não-capitalistas de produção. O autor afirma que: O campesinato pode ser criado e recriado sobre o controle do capital a exemplo do arrendamento de terras e das políticas fundiárias de crédito fundiário destinada aos pobres do campo sem acesso a terra.

Porém, sua existência e recriação estão relacionadas também à realização da reforma agrária, cujo protagonismo de criação e recriação recai sobre os próprios trabalhadores e a partir de suas lutas de resistência (RAMOS FILHO, 2010, p. 02).

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Assim, a expansão do capitalismo no campo, ao mesmo tempo em que provoca a eliminação dos povos do campo, produz contraditoriamente instrumentos de criação e recriação do campesinato que são mantidos sob o seu controle, a exemplo dos expedientes de arrendamento de terras e a reforma agrária de mercado (RAMOS FILHO, 2010).

Neste caso, os esforços dos movimentos sociais, demonstrado na pela terra, pela reforma agrária, pela demarcação dos territórios indígenas e reconhecimento dos territórios quilombolas, evidencia que os povos do campo buscam criar e fortalecer as alternativas de vida no campo, pautada na agricultura familiar de base agroecológica e no fortalecimento do modelo de organização social associado à organização comunitária e solidária dos povos do campo, capazes de criar e recriar a vida dos camponeses.

Para Ramos Filho (2010), o acesso e controle da terra são primordiais para viabilizar moradia, produção alimentar básica da família, geração dos recursos econômicos necessários à sua subsistência, realização da cultura e da religião. A conquista e o controle da terra para o campesinato e sua territorialização comportam as funções de moradia e de trabalho.

E, neste momento, em que antagônicos projetos políticos lutam pela hegemonia no campo, a educação também está em disputa. Meneses Neto (2009) afirma que, como a educação não se encontra no vazio social, de modo análogo, no mundo da educação existem os mesmos projetos em disputa. É a luta de classes nas relações sociais de produção e na educação do campo.

No entanto, para que a educação do campo não seja submetida e subordinada aos interesses de reprodução ideológica e material do capital, torna-se de fundamental importância a disputa contra-hegemônica e a construção de novas discussões sobre a educação do campo. Assim, 118

Os projetos para a Educação do Campo devem basear-se nos direitos sociais e ser centralizados na formação integral, não fragmentada, plural, democrática, coletiva, solidária, que incorpore novos valores críticos sem desrespeitar os saberes tradicionais (MENESES NETO, 2009. p.36).

A luta contra a lógica do capital na educação é pertinente e atual, e somente pelo combate a essa lógica a educação pode assumir um significado de emancipação humana, pois notamos que, historicamente, a educação do campo tem sido marginalizada na elaboração de políticas públicas, sendo tratada como política compensatória. Suas demandas e sua especificidade raramente têm sido objeto de pesquisa no espaço da academia e na formulação de currículos nos diferentes níveis e modalidades de ensino.

O foco central do modelo de educação proposto pelo sistema capitalista, pautado no agronegócio enquanto modelo de desenvolvimento do campo, está associado na formação técnica para o mercado de trabalho, associado ao desenvolvimento de competências que ampliem a eficiência produtiva e a cultura do individualismo.

Não obstante, os movimentos sociais defendem uma educação contra-hegemônica, um modelo alternativo oriundo dos povos do campo, que contempla, nas suas práticas, saberes desses povos, seus modos de vida, seus interesses, suas perspectivas para a construção de um novo projeto de sociedade, na qual eles mesmos sejam sujeitos e cidadãos nesta construção.

Nessa perspectiva, vem sendo desenvolvido pelo Brasil várias experiências educativas que se diferenciam por garantir, na realização de suas práticas, o protagonismo dos camponeses/as em seus processos metodológicos, tornando-os sujeitos na construção do conhecimento a partir da sistematização de seus fazeres, saberes e modos de vida.

Desse modo, uma educação que tem a identidade dos povos do campo, com seus interesses e sua cultura, tem com119

promisso político com a história desse segmento que sempre esteve sob as ordens dos detentores do capital representado pelo agronegócio, e também, com as transformações sociais, econômicas, políticas e culturais das populações do campo.

Diante desse cenário, os movimentos sociais do campo estão realizando articulações com outras organizações sociais, instituições públicas, universidades, entre outras, no intuito de estabelecer parcerias para a implementação de uma educação emancipatória e democrática, tendo em vista uma nova perspectiva de educação e de escola que se inscrevem na construção de uma nova hegemonia pedagógica e social (MENEZES NETO, 2009).

O fato é que os Movimentos Sociais do Campo assumiram, nas últimas décadas, a luta em defesa da educação do campo como condição essencial à construção de um projeto de desenvolvimento pautado na sustentabilidade e na justiça social, garantindo maior qualidade de vida aos povos do campo. As articulações políticas construídas em torno da educação do campo têm oportunizado conquistas importantes para a afirmação de uma política educacional que reconheça e valorize as especificidades da vida no campo. A ideia é pensar um projeto de escola do campo que seja socialmente referenciado na realidade, no trabalho, na cultura e nas lutas das organizações sociais.

Dentre estas conquistas, podemos destacar o arcabouço legal instituído no Brasil reafirmando o direito dos povos do campo a uma política de educação do/no campo, a exemplo das Diretrizes Operacionais da Educação Básica para as Escolas do Campo, promulgada em 2001, que trazem um conjunto de preocupações relacionadas ao: [...] reconhecimento e valorização da diversidade dos povos do campo, a formação diferenciada de professores, a possibilidade de diferentes formas de organização da escola, a adequação dos conteúdos às peculiaridades locais, o uso de práticas pedagó-

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gicas contextualizadas, a gestão democrática, a consideração dos tempos pedagógicos diferenciados, a promoção, através da escola, do desenvolvimento sustentável e do acesso aos bens econômicos, sociais e culturais (BRASIL, 2007, p. 17).

As Diretrizes Operacionais, além de estabelecer novos princípios políticos e pedagógicos para as escolas do campo, que atendam aos interesses e às necessidades dos jovens camponeses, criou um novo marco legal, obrigando, em seu artigo 13, que os sistemas de ensino reconstruam seus projetos de formação com base nos seguintes componentes: I - estudos a respeito da diversidade e o efetivo protagonismo das crianças, dos jovens e dos adultos do campo na construção da qualidade social da vida individual e coletiva, da região, do país e do mundo; II - propostas pedagógicas que valorizem, na organização do ensino, a diversidade cultural e os processos de interação e transformação do campo, a gestão democrática, o acesso ao avanço científico e tecnológico e respectivas contribuições para a melhoria das condições de vida e a fidelidade aos princípios éticos que norteiam a convivência solidária e colaborativa nas sociedades democráticas (BRASIL, 2002).

Os debates ocorridos em torno das políticas de educação e da implementação de projeto específicos nas escolas do campo têm oportunizado aos educadores e movimentos sociais o aprofundamento das discussões acerca das concepções de educação do campo que devem nortear o trabalho pedagógico desenvolvido nas instituições de ensino no/do campo.

3 As diferentes concepções de educação do campo Os estudos desenvolvidos sobre as políticas educacionais implementadas no meio rural brasileiro apontam que o direito à educação no campo foi negligenciado historicamen121

te, resultando nos altos índices de analfabetismo e na exclusão dos camponeses do acesso à educação e ao conhecimento universal como condição básica para fomentar estratégias de desenvolvimento sustentável no meio rural.

De acordo com o Censo Escolar (INEP, 2011), a taxa de analfabetismo para pessoas do campo com idades acima de 15 anos é de 23,5%, enquanto que para residentes em áreas urbanas com a mesma faixa etária o percentual é de 7,29%.

Além disso, é evidente a discrepância entre os anos de escolaridade da população rural e urbana. Enquanto na área urbana a média de anos de escolaridade é de 8,7 anos para a idade de 15 anos ou mais, na área rural esse percentual se reduz para 4,8 anos.

Se não bastassem estes problemas relacionados ao acesso à educação no meio rural, os estudos denunciam também a precariedade das escolas situadas no campo e a inadequação das propostas pedagógicas destas instituições de ensino. O modelo de educação oferecido nas escolas situadas no campo baseava-se em propostas pedagógicas urbanocêntricas que negam o campo enquanto espaço de produção de cultura e conhecimento e os povos do campo enquanto sujeitos históricos e protagonistas do processo de transformação social.

Os projetos educativos implementados nas escolas do campo estavam centrados na concepção da Educação Rural “adequada aos modelos políticos de desenvolvimento econômico efetivados no campo, cujas bases se fundamentam nos interesses das classes dominantes” (AZEVEDO, 2007, p. 147). Sua maior preocupação era a escolarização básica dos camponeses para atender aos interesses econômicos dos latifundiários.

Para Molina (2004), a educação rural, em suas correntes mais conservadoras, ignora a realidade que se propõe a trabalhar, tendo origem no pensamento latifundista empresarial, de controle político sobre a terra e sobre aqueles que 122

nela vivem e trabalham. Essa educação incorpora princípios e valores desvinculados da cultura e da familiaridade que os sujeitos sociais do campo possuem com o solo, a água, a floresta, as culturas de cultivos e a pesca, enfim, desvinculados desta convivência humana com a natureza e os outros seres humanos.

Contrapondo-se a este modelo de educação rural, os movimentos sociais do campo organizaram-se com o propósito de construir uma política de educação voltada para os interesses e as necessidades socioculturais e políticas dos povos do campo. A partir da Primeira Conferência Nacional Por uma Educação Básica do Campo, realizada em Luziânia (GO), em 1998, o movimento vem discutindo outro projeto de educação com base no conceito de Educação do Campo.

Esse encontro defendeu o direito dos povos do campo às políticas públicas de educação com respeito às especificidades, em contraposição às políticas compensatórias da educação rural.

De acordo com Caldart (2010), a concepção de Educação do Campo nasceu como crítica à realidade da educação brasileira, particularmente à situação educacional do povo brasileiro que trabalha e vive no e do campo. Esta crítica nunca foi à educação em si, mesmo porque seu objeto é a realidade dos trabalhadores/as do campo, o que necessariamente a remete ao trabalho e ao embate entre projetos de campo que têm consequências sobre a realidade educacional e o projeto de país.

A educação do campo proposta pelos movimentos sociais do campo está associada às lutas dos povos do campo pelo direito à educação pública e de qualidade no meio rural.

Uma educação do campo que considere que as pessoas têm o direito de estudar no lugar onde vivem (espaço de produção e de cultura), dentro de uma proposta pedagógica que possa dialogar com os saberes dos vários sujeitos (dos agricultores, 123

extrativistas, ribeirinhos, quilombolas, pescadores, seringueiros, etc.) que vivem e produzem saberes no campo.

Nessa perspectiva, a educação do campo se diferencia da educação rural, pois é construída pelos diferentes sujeitos que compõem a diversidade do campo e busca garantir e ampliar as possibilidades de homens e mulheres criarem e recriarem as condições de existência no campo. É uma educação voltada para a transformação da realidade do campo.

Esse novo paradigma de educação, ainda em construção, reconhece que há uma produção cultural no campo que deve estar presente na escola. Os conhecimentos destes povos precisam ser levados em consideração, constituindo ponto de partida das práticas educativas, pois a “não inserção desses conteúdos nas práticas pedagógicas provocou, ao longo da História, a negação da cultura dos povos do campo nas escolas. Quando esta é apresentada, na maioria das vezes, aparece de forma estereotipada e preconceituosa” (PARANÁ, 2006, p. 38).

Desse modo, a Educação do Campo deve assumir o compromisso político e pedagógico de fomentar uma nova reflexão sobre a realidade do campo, evidenciando suas riquezas e complexidade, superando as visões fragmentadas e superficiais, pautadas por reflexões preconceituosas e/ou estereotipadas deste contexto.

Por esta razão, a proposta de educação do campo defendida pelos movimentos sociais deve ajudar a reconstruir a vida dos trabalhadores do campo; deve buscar organizar-se levando em conta essa vida e os espaços nos quais ela se desdobra. A materialidade dessa escola é a vida, a realidade onde se encontra. Sua marca está na luta permanente em defesa dessa escola, tendo os camponeses como sujeitos pensantes de todo seu processo de construção e implementação dos projetos educativos.

A concepção de Educação do Campo que temos trabalhado refere-se a uma multiplicidade de experiências educati124

vas desenvolvidas por diferentes instituições, que colocaram como referência para suas propostas pedagógicas uma nova concepção de campo, de educação e do papel da escola. Uma concepção que se contrapõe totalmente ao que temos denominado de educação rural, pela sua essência dominadora, preconceituosa e excludente.

4 A educação do campo e as possibilidades de reflexão crítica da realidade Com base nos pressupostos políticos e pedagógicos que norteiam a proposta de Educação do Campo, associados à formação crítica e autônoma dos/as educandos/as, à construção coletiva do conhecimento, à articulação entre diferentes saberes e práticas sociais e à pesquisa do contexto como estratégia de conhecimento e transformação da realidade, é necessário pensar em novas alternativas de construção das práticas educativas no contexto das escolas do campo.

Nessa perspectiva, as práticas educativas desenvolvidas nas escolas do campo devem superar aquelas experiências educativas pautadas na transmissão acrítica, fragmentada e descontextualizada do conhecimento, característico dos modelos de educação bancária. Segundo Freire (2007, p. 59), Na concepção bancária a educação é o ato de depositar, de transferir, de transmitir valores e conhecimentos; se o educador é o que sabe, se os educandos são os que não sabem, cabe aquele que dá entregar, levar, transmitir o seu saber aos segundos. Saber que deixa de ser “experimento feito” para ser experiência narrada ou transmitida.

Neste caso, a superação deste modelo de educação bancária constitui um dos principais desafios à construção de novas práticas educativas das escolas do campo, que tenham os educandos como sujeitos históricos e sociais que devem 125

atuar como protagonistas da produção do conhecimento, e a realidade sócio-histórica e cultural como fonte de produção e recriação destes conhecimentos.

A prática educativa desenvolvida nas escolas do campo precisa ser construída numa perspectiva crítica e problematizadora, instigando os/as educandos/as e educadores/as a debruçarem-se sobre a realidade sócio-histórica e cultural com o espírito investigativo e curioso, buscando compreendê-la em sua complexidade e totalidade, com o intuito de desvelar suas riquezas e potencialidades, bem como seus dilemas e contradições. Somente a partir deste processo de problematização e desvelamento da realidade, teremos a condição de construir conhecimentos capazes de apontar os caminhos necessários à transformação social.

Desse modo, enquanto a prática bancária implica uma espécie de anestesia, inibindo o poder criador, transformador dos educandos, a educação problematizadora, de caráter autenticamente reflexivo, implica um constante ato de desvelamento da realidade, de produção de um olhar crítico sobre o contexto no qual os educandos estão inseridos, permitindo o desenvolvimento da consciência crítica (FREIRE, 1992).

As experiências de luta e mobilização dos movimentos sociais do campo resultaram na construção de um conjunto de estratégias políticas e pedagógicas associadas ao desenvolvimento de práticas educativas críticas, construídas num constante diálogo com os camponeses e com suas experiências e vivências no contexto do campo. Estratégias que buscam compreender os modos de pensar e atuar do sujeito enquanto protagonista de um saber e uma cultura que caracteriza o modo de ser/estar no campo.

Neste caso, as práticas educativas das escolas do campo precisam abrir-se para o diálogo com os movimentos sociais, buscando incorporar aos seus projetos educativos os saberes políticos e pedagógicos construídos neste processo de interação e de construção das lutas dos camponeses na defesa 126

e construção de um projeto de campo que tenha os sujeitos sociais como agentes políticos capazes de promover a transformação social. Este diálogo com os movimentos sociais e com as histórias de vida dos próprios camponeses constitui uma alternativa política para o desenvolvimento de práticas educativas que se consolidem enquanto “práxis transformadora”. Para Konder (1992, p. 115), Práxis é a atividade concreta pela qual os sujeitos se afirmam no mundo, modificando a realidade objetiva e, para poderem alterá-la transformando-se em si mesmos. É a ação que, para se aprofundar de maneira mais conseqüente, precisa de reflexão, do auto-questionamento, da teoria; e é a teoria que remete à ação, que enfrenta o desafio de verificar seus acertos e desacertos, cotejando-os com a prática.

A partir das contribuições de Marx, a práxis educativa está associada às experiências formativas em que o ser humano apropria-se criticamente do seu fazer, tornando sua ação uma práxis transformadora, na medida em que toma consciência das condições sócio-históricas às quais está submetido e pensa sua ação enquanto práxis intencional, comprometida com a transformação social.

Diante dessa premissa, as práticas educativas críticas precisam resgatar a dimensão transformadora da educação numa perspectiva radical que contribua para o desvelamento das relações de dominação e opressão que são estabelecidas na sociedade e são, muitas vezes, reforçados nos espaços escolares através dos discursos cientificistas e técnicos utilizados para justificar ou camuflar os problemas sociais.

Freire (1992), ao propor uma educação libertadora voltada à problematização da realidade e à emancipação dos sujeitos a partir da compreensão crítica das condições de dominação e opressão, condiciona o processo de construção deste modelo de educação ao desenvolvimento de atividades educativas que se constituam enquanto práxis, concebendo 127

a enquanto processo de ação-reflexão-ação que produz, por um lado, uma apropriação crítica da condição do sujeito no/ com o mundo e, por outro, um elevado nível de consciência e reflexividade da atuação histórica deste sujeito neste mundo, dotando-o de capacidades políticas e técnicas necessárias à sua ação crítica e transformadora da realidade (LIMA, 2015).

Diante desse contexto, a educação desenvolvida nas escolas do campo precisa constituir-se como um mecanismo de transformação da sociedade e de emancipação humana, na medida em que cria as condições de formação crítica de educandos/as através da troca de experiências, da problematização da realidade, da construção coletiva de conhecimento e saberes, dotando-os de atitudes, valores e conhecimentos que permitam intervenção crítica no mundo, contrapondo-se ao paradigma hegemônico de dominação da ideologia capitalista e às políticas de desenvolvimento no campo pautadas no agronegócio, na exploração dos recursos naturais e na exploração do próprio camponês.

Neste caso, é imprescindível que as escolas do campo sejam vistas como um lugar privilegiado para a construção e troca de saberes e fazeres humanos e que seus espaços sejam vistos como os mais diversos possíveis, extrapolando os muros e as cercas, dando vida ao conhecimento produzido nesta relação dos sujeitos com o mundo.

5 As práticas educativas críticas no contexto das escolas do campo

Os debates construídos em torno da Educação do Campo fez emergir inúmeras experiências educativas voltadas às especificidades do campo e à valorização das experiências sociocultural e política dos camponeses. No Piauí, as experiências desenvolvidas na área da educação do campo pela Ecoescola Thomas a Kempis, localizada no município de Pedro II, tornou-se uma referência devido ao trabalho voltado 128

à valorização das práticas sociais e organizativas dos camponeses, bem como os esforços dedicados à produção de conhecimento que favoreça uma relação de sustentabilidade com o meio ambiente.

A partir do trabalho de pesquisa desenvolvido na referida instituição, através de entrevista com educandos e educadores e da análise da proposta pedagógica, constatamos que o trabalho desenvolvido pela Ecoescola está pautado no projeto de educação associado à construção de práticas educativas que compreendam o modo de vida dos sujeitos, considerando o campo como espaço de vida e de relações. As vivências e práticas construídas na escola buscam estabelecer uma interrelação com o contexto de vida dos educandos, proporcionando uma ação reflexiva naquilo que se aprende e também naquilo que se vivencia através das práticas educativas desenvolvidas na Ecoescola.

Neste diálogo, percebemos que as práticas educativas desenvolvidas nas escolas do campo devem pautar-se na luta das organizações e movimentos sociais que têm tido a capacidade de propor um projeto contra-hegemônico, despertando a consciência dos camponeses no sentido de perceber e afirmar as possibilidades socioculturais, econômicas e políticas de uma nova condição humana de viver no campo.

Além disso, os trabalhos desenvolvidos com base no estudo crítico da realidade proporcionam aos educandos a construção de uma nova concepção de campo em disputa, pautada por diferentes interesses políticos e econômicos que colocam, de um lado, os interesses dos camponeses vinculados à produção da vida sustentável no campo e, de outro, os latifundiários, movidos por interesses meramente econômicos, voltados à exploração predatória dos recursos naturais e da própria força de trabalho dos camponeses, colocando em risco as possibilidades de vida no campo.

Outro aspecto importante é que as práticas educativas desenvolvidas neste diálogo com as experiências e lutas dos 129

movimentos e organizações sociais possibilitam que os educandos, por um lado, reconheçam o campo como um lugar de possibilidades de vida e com as especificidades que lhes são peculiares e, por outro, assumam o compromisso de lutar pela construção de um projeto político de campo pautado na agricultura familiar.

A partir dos relatos dos educandos, podemos compreender de que forma as práticas educativas desenvolvidas na Ecoescola lhes permitem refletir criticamente a sua realidade: Na escola, temos atividades que levam a gente a pensar: nossa, se a gente soubesse disso há um tempo não seria como é hoje, muita gente tendo prejuízo com a seca, e legumes não dá nada. Com a roça orgânica talvez o prejuízo fosse menor, não afetasse tanto, de forma tão severa (São Gonçalo).

Depois que estou aqui na escola eu paro para pensar em muita coisa da minha realidade. Tem uma situação de uma região aqui que parecia uma floresta tudo verde, hoje em dia você passa lá, o solo todo infértil, área já foi usada com roças, com queimadas várias vezes e o restante todo desmatado você ta aqui e já vê o outro lado que não tem mais nada (Mororó).

Estes depoimentos evidenciam que as práticas educativas desenvolvidas pela Ecoescola Thomas a Kempis possibilitam aos educandos uma leitura crítica da realidade, principalmente com relação aos danos causados ao meio ambiente, através de práticas agrícolas inadequadas. Este novo olhar sobre a produção agrícola no campo está associado ao trabalho educativo realizado com base nos princípios agroecológicos12. Desse modo, os estudos sobre a realidade levam os educandos a refletirem criticamente acerca dos fatores que A proposta agroecológica defende técnicas e formas de cultivo em harmonia com o meio ambiente, favorecendo a ação consciente do ser humano com a dinâmica da natureza. O trabalho com a agroecologia permite a recuperação da fertilidade dos solos sem o uso de fertilizantes minerais, assim como o cultivo sem o uso de agrotóxicos. Visa o desenvolvimento de atividades ecologicamente sustentáveis.

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provocam as mudanças no lugar onde vivem, visando à adoção de uma nova postura política diante dos problemas vivenciados historicamente no campo.

Os educadores também destacam as contribuições da prática educativa desenvolvida pela Ecoescola para a reflexão crítica dos educandos acerca da realidade sociopolítica e cultural do campo e, principalmente, para a construção de novas estratégias de intervenção na comunidade, a partir dos conhecimentos construídos na escola, conforme evidenciam os depoimentos: [...] uma das estratégias é trazer alunos das comunidades para que eles possam confrontar sua realidade com o que é visto aqui e retornar aquele conhecimento para lá, pra eles ensinarem os pais a trabalharem com a terra, para eles valorizarem a terra, para eles trabalharem de forma orgânica [...]. O nosso maior interesse é que eles estudem para permanecer na sua comunidade [...]. Os alunos levam para casa o que aprendem, desenvolvem aqui e chega orientando os pais sobre as viabilidades e os riscos de certas práticas anteriormente desenvolvidas na família. O trabalho desenvolvido permite essa reflexão à medida que eles reveem suas posturas diante de suas atitudes diárias aqui e na comunidade (Lua).

Na escola fazemos visitas que coloquem os alunos diante de realidades diferentes, é o caso de visitas que os levam a conhecerem diversas formas de cultivo, de manejo de animais, a outras formas de organização de comunidades, é o caso de assentamentos rurais, a participação em cursos para se envolverem ativamente em outros processos de formação (Estrela).

Os relatos demonstram que as práticas educativas da Ecoescola são pautadas na realidade dos educandos, instigando novas reflexões sobre suas experiências socioculturais. Isto é fundamental porque coloca os educandos diante da necessidade de fazer da sua vivência na escola um sentido transformador na sua vida e na comunidade, como bem des131

tacou Lua: “O trabalho desenvolvido permite essa reflexão à medida que eles reveem suas posturas diante de suas atitudes diárias aqui e na comunidade”.

Os depoimentos reforçam nosso entendimento de que o campo, enquanto território de disputas políticas, torne-se tema de estudos e pesquisas no contexto das práticas educativas, despertando nos educadores e educandos novos olhares e reflexões acerca de suas riquezas e potencialidades, bem como, contradições e injustiças precisam ser superadas.

Nessa perspectiva, é indispensável o desenvolvimento de processos educativos que favoreçam aos educandos a compreensão dos aspectos históricos, políticos e culturais que colocaram os trabalhadores/as em condições desfavoráveis e estigmatizadas como incapazes e inferiores. Os diálogos estabelecidos com educandos e educadores da Ecoescola revelam que as ações educativas executadas naquela instituição favorecem, por um lado, o desenvolvimento de posturas e práticas coletivas e solidárias entre educandos/as, aspecto que reforça os princípios políticos que norteiam o projeto de campo pautado na sustentabilidade, na organização coletiva e justiça social.

Por outro lado, permite as trocas de experiências acerca das vivências coletivas construídas em suas comunidades acerca das possibilidades de vida no campo, desenvolvidas a partir da agricultura familiar e da organização comunitária.

Os diálogos coletivos construídos com base nas experiências dos educandos, com o auxílio de práticas educativas interdisciplinares, auxiliam significativamente na produção de novos conhecimentos sobre o campo e as atividades desenvolvidas pelos educandos no campo.

Este trabalho de diálogo entre os conhecimentos produzidos pelos educandos no contexto das práticas sociais e aqueles oriundos das diferentes áreas do conhecimento escolar favorece o desenvolvimento de novas estratégias de intervenção na comunidade, visando à superação de desafios e/ou 132

problemas políticos, econômicos e sociais enfrentados pelos povos do campo. Com isto, as experiências vivenciadas no contexto da escola favorecem a problematização e reflexão crítica acerca dos modos de vida do campo, das relações políticas e organizativas da comunidade, bem como das alternativas de produção sustentável no campo, conforme reforça o depoimento da professora: [...] as práticas os fazem refletirem a qualquer situação que eles não estão acostumados, aqui mesmo eles trabalham muito esse lado da valorização da terra e do ser humano, quando eles presenciam algo que foge do que foi visto, eles ficam chocados e se perguntam por que isso acontece, como é que isso pode acontecer, o que nós devemos fazer, e às vezes eles sentem um vazio e ficam deprimidos por não poder resolver, e quando pode resolver é um trabalho conjunto que não é fácil. Os maiores já têm essa criticidade mais aguçada e sentem mesmo esse vazio (Lua).

Reconhecemos, portanto, que a prática educativa desenvolvida na Ecoescola se fundamenta nos princípios políticos e pedagógicos propostos pelos movimentos sociais do campo na luta pela construção de uma política de educação para as escolas do campo. A partir dos relatos dos/as educadores/as e educandos/as, percebemos que o compromisso com a inserção dos educandos na realidade é determinante para que haja esse movimento dialético, de ação-reflexão-ação e de articulação entre saberes das experiências e conhecimentos escolares, resultando no desenvolvimento de uma educação emancipatória.

Nessa perspectiva, o processo educativo da Ecoescola proporciona aos educandos uma reflexão e a percepção de elementos da sua realidade que os levam a questionarem e a se moverem no sentido de buscar instrumentos que contribuam para a superação dos desafios vivenciados pelos povos do campo.

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Considerações finais As reflexões construídas ao longo deste texto demonstram que o direito à educação de qualidade no/do campo, voltadas às necessidades socioculturais e políticos dos povos do campo, tendo os sujeitos do campo como protagonistas de suas políticas e práticas, têm sido um dos desafios assumidos pelos movimentos sociais do campo em suas lutas em defesa da melhoria da qualidade de vida dos camponeses.

Na visão dos movimentos sociais, a educação do campo assume uma posição estratégica na luta pela transformação social do campo, na medida em que possibilita aos/as trabalhadores/as uma consciência histórica do processo de exclusão que foram submetidos, despertando-os quanto às possibilidades de organização política visando à transformação desta realidade.

Nessa perspectiva, é fundamental os projetos políticos das escolas do campo e suas práticas educativas proporcionarem aos sujeitos envolvidos no processo de ensino-aprendizagem uma visão holística de sua realidade, considerando-os e envolvendo-os ativamente no processo de definição dos objetivos e fins da ação educativa, bem como nas dinâmicas de seleção e organização dos conhecimentos e métodos de trabalho. Este diálogo permanente acerca da realidade camponesa, a fim de compreender melhor suas vivências cotidianas, seus sonhos e utopias, poderá garantir o desenvolvimento de projetos educativos verdadeiramente comprometidos com a emancipação dos jovens do campo.

Por esta razão, as experiências educativas das escolas do campo precisam estar articuladas com as demandas e lutas sociais promovidas pelas comunidades e os movimentos sociais, visando uma formação crítica dos/as jovens e sua inserção da luta pela construção de novas possibilidades de desenvolvimento pautada na sustentabilidade socioambiental, 134

cultural e econômica, tendo as experiências dos/as camponeses como referência para a produção de novos conhecimentos e práticas sociais.

A partir das reflexões realizadas, consideramos que a Ecoescola Thomas a Kempis compreende que a inserção da realidade camponesa nos processos educativos permite uma maior integração dos educandos durante a realização das práticas educativas, bem como possibilita um maior compromisso deles com o lugar onde vivem à medida que estes se mostram protagonistas do processo de ensino e aprendizagem.

Identificamos que os diferentes espaços de formação da Ecoescola criam e recriam uma nova dinâmica de envolvimento, participação e integração dos/as educandos/as e educadores/as, possibilitando a construção de relações sociais profundas e consistentes que vão para além dos espaços de sala de aula, bem como o avanço na reflexão acerca da articulação dos conhecimentos científicos com as práticas vivenciais, portanto é notório que as práticas educativas contribuem para estabelecer vínculo e fortalecer a identidade dos educadores e educandos com o campo.

Além disso, constatamos que a prática educativa desenvolvida no contexto da escola pesquisada possibilita a reflexão crítica acerca das condições de vida e da produção sustentável no campo, contribuindo na reafirmação do pertencimento dos/as jovens ao campo, uma vez que suas experiências se constituem enquanto espaço de articulação de diferentes sujeitos sociais na comunidade e desenvolve experiências inovadoras voltadas à transformação social, compreendendo a Educação do Campo como processo social construído pela troca de experiências, pela problematização da realidade e dos saberes sociais construídos ao longo dos anos.

Outro aspecto observado foi com relação ao papel político exercido pelos/as educandos/as na construção dos projetos educativos. Ficou evidente os/as educandos/as são 135

compreendidos e envolvidos nas atividades como sujeitos capazes de produzir novas práticas sociais e culturais, reconhecendo-se como sujeitos capazes de contribuir na transformação social e na construção de novas alternativas de desenvolvimento social.

Os projetos educativos desenvolvidos na Ecoescola são construídos a partir de princípios bem definidos, tendo a cooperação, a solidariedade e a criticidade como elemento orientador da ação dos/as educando/as nas diferentes atividades pedagógicas construídas tanto dentro da escola como na sua inserção na comunidade. Além disso, o “trabalho” se constitui como um elemento político que norteia a construção de novas relações sociais, reafirmando também os laços de solidariedade, de trocas de experiências e ajuda mútua.

Dentre os principais desafios a serem enfrentados pelos/as educadores/as na construção de práticas educativas emancipatórias está o respeito à necessidade de ampliar a relação político-pedagógica com as comunidades, na produção do conhecimento e na articulação dos saberes com as comunidades, bem como o desenvolvimento de materiais didáticos voltados à realidade sociocultural do campo, que possibilitem uma articulação interdisciplinar entre as experiências e os saberes dos/as educandos/as com os conhecimentos propostos pelas diferentes áreas do conhecimento.

O desenvolvimento de materiais didáticos contextualizados, associados aos processos formativos de educadores/as voltados ao estudo crítico do contexto do campo, é imprescindível na construção de projetos de Educação do Campo comprometidos com a superação da lógica disciplinar que orienta a organização escolar no Brasil.

As práticas educativas desenvolvidas a partir dos princípios políticos e pedagógicos da educação do campo vêm possibilitando rupturas com as fronteiras das disciplinas na perspectiva de pensar a contextualização como algo que está 136

para além das áreas do conhecimento e dos espaços de sala de aula, de modo que a construção do conhecimento se faça em rede, como tecidos de saberes, na interrelação de saberes e práticas sociais, vislumbrando o desenvolvimento da práxis educativa, ou seja, o currículo enquanto práxis.

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137

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O ENSINO DE MATEMÁTICA NA EDUCAÇÃO DO CAMPO SOB A PERSPECTIVA DA ETNOMATEMÁTICA Cláudia Lúcia Alves 1 Introdução A Matemática não pode ser mais concebida como uma ciência pura e abstrata, cuja função seja simplesmente calcular ou fazer contas. Ao contrário, ela precisa ser vista como uma ciência que está em todos os lugares, em todos os momentos de nossa vida, contribuindo significativamente no desenvolvimento da sociedade e na melhoria da vida das pessoas. Dessa forma, o ensino da Matemática hoje apresenta-se como um grande desafio para o processo educacional, face às circunstâncias evidenciadas no cotidiano da sala de aula, constituídas por práticas educativas descontextualizadas, fragmentadas e acríticas, que levam aos baixos resultados nos exames nacionais de avaliação e, consequetemente, o desinteresse e a evasão.

Quando nos referimos às escolas do meio rural, esse quadro se agrava mais ainda, pois percebemos que existe uma distância considerável entre o ensino da Matemática no meio rural e aquilo que é proposto pelas Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas escolas do Campo (2002) e pelos próprios Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), ao enfatizar que a Matemática precisa está ao alcance de todos, assim como todo conhecimento envolve uma relação entre sujeito e objeto, propondo a contextualização e a transversalidade como meio para dar significado ao que é ensinado em sala de aula (BRASIL, 1997).

Assim, diversas pesquisas acerca do ensino de Matemática indicam a necessidade de um ensino mais preocupado 139

com a realidade do educando, destacando os fenômenos que acontecem na prática, como é o caso dos estudos realizados pelos membros do GPEMCE13, que desenvolvem pesquisas sobre a relação entre o ensino da matemática e algumas realidades específicas do campo, como por exemplo: investigação sobre a conceptualização de recursos pedagógicos no Ensino de Matemática em escolas rurais (MONTEIRO, 2007), concepções de estudantes do campo sobre recursos para aprender matemática (MACÊDO, 2010), dentre outros.

Desse modo, com as contribuições dos PCN e de pesquisas já realizadas, surge uma nova visão a respeito do processo de ensino-aprendizagem em Matemática, uma vez que é necessário deixar de lado a tradicional visão estereotipada de a Matemática ser uma disciplina difícil, uma ciência pronta e acabada, que só os “escolhidos” conseguem aprender, criando, dessa forma, uma rejeição com a referida ciência.

Compreendemos, portanto, que é chegado o momento de os professores de Matemática observarem e repensarem suas práticas, uma vez que, por um lado, os alunos os culpam de repassar os conteúdos de forma mecânica, descontextualizada, aquém de sua realidade, fazendo com que estes sintam-se como mero expectadores, tornando-se dessa forma alunos desmotivados e desinteressados em aprender tais conteúdos, o que consequentemente acarreta o baixo rendimento na referida disciplina.

Por outro lado, há professores que, não conseguindo obter o resultado esperado em sua disciplina, desistem de repensar sua prática pedagógica, o que os faz sair à procura de uma receita pronta de como ensinar determinado conteúdo, resultando, assim, na não consecução dos objetivos propostos pela disciplina de Matemática. No entanto, segundo Lorenzato (2008, p.5) “[...] o professor que ensina com conhecimento conquista respeito, confiança e admiração de seus alunos”.

Grupo de Pesquisa em Educação Matemática nos Contextos da Educação do Campo, UFPE. 13

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2 O ensino da matemática no Brasil: breve caracterização Ao longo dos anos, a Matemática vem se constituindo na escola como uma ciência acrítica, consolidando-se no rol de ideias prontas a serem memorizadas, que somente os mais “inteligentes” conseguem aprender, tornando-a dessa forma uma disciplina excludente, ministrada de forma tradicional e linear. Este ensino, segundo Carvalho (2005), ainda é realizado dividindo-se em três etapas.

A primeira etapa refere-se à definição, isto é, através das aulas teóricas são apresentados aos alunos os conceitos matemáticos, proposições, fórmulas, axiomas, de forma que estes procurem relacionar estes conceitos aos já conhecidos.

A segunda etapa configura-se pelo momento da manipulação dos dados, que se caracteriza pela aplicação de exercícios de fixação, sendo o momento dos alunos aplicarem os conceitos apreendidos em sala de aula. A terceira etapa é o momento caracterizado por relacionar o conhecimento teórico com soluções que envolvem situações concretas.

Contudo, percebemos que esta forma tradicional e linear de ensinar não tem apresentado os resultados esperados, haja vista que o aluno, nesse modelo de ensino, limita-se a “ouvir o professor”, deixando de lado a capacidade de analisar criticamente cada situação, sendo este um dos principais motivos dos educandos continuarem a ter aversão à Matemática, considerando-a uma disciplina de difícil assimilação, e de alto grau de reprovação escolar.

Contrapondo a este modelo de ensino da Matemática, vários professores e pesquisadores trabalham no intuito de superar estes mitos e tabus associados à disciplina. Nessa perspectiva, os PCN trouxeram contribuições significativas ao desenvolvimento de novas metodologias de trabalho, trazendo a ideia de um ensino mais crítico, reflexivo e mais próximo do aluno, respeitando dessa forma as particularidades de cada contexto.

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No que se refere especificamente à Matemática, estes parâmetros indicam que a aprendizagem nesta área deve estar ligada à apreensão de significados. Ou seja, o ensino deve ser desenvolvido de modo que os alunos consigam estabelecer a relação da matemática com o cotidiano, entre os diferentes temas matemáticos, assim como a relação da matemática com as outras áreas do conhecimento.

Nessa perspectiva, o ensino de Matemática não pode ser pensado de forma desarticulada da realidade, bem como de sua função social. Para Besnos (2004), os PCN trazem uma visão de ensino da Matemática que se divorcia das escolas pedagógicas liberais ou escolanovistas, situando-o no âmbito do construtivismo crítico social, o qual compreende que a escola não deve subestimar o conhecimento que o aluno traz para a sala de aula nem pode estabelecer um tratamento vertical e hierárquico na abordagem dos conteúdos, tendo em vista que estes desestimulam o processo de aprendizagem e apreensão real dos alunos. Desse modo, busca-se ressaltar que um dos princípios básicos da Matemática está associado à formação e à apropriação da cidadania. É importante salientar que não temos a pretensão de criticar ou questionar a prática e/ou saber do professor que atua no ensino da Matemática, mas refletir sobre a necessidade de um repensar contínuo e de uma contextualização do ensino, com a finalidade de superar as práticas educativas desenvolvidas nas escolas associadas, em sua maioria, à velha “educação bancária” a qual Paulo Freire se refere em seu livro Pedagogia da Autonomia. Neste sentido, Freire (1996) compreende que a prática educativa deve ser permeada pela troca de experiência, enfatizando o diálogo contínuo entre professor e aluno, para que assim o aluno se torne protagonista de sua história.

Precisamos compreender que, quando nos referimos ao processo ensino-aprendizagem em Matemática, estamos falando da compreensão entre alguém que ensina, alguém que 142

aprende e do objeto que está sendo estudado, como é destacado nas Orientações Curriculares Nacionais para o Ensino Médio: “Nessa tríade, professor-aluno-saber, tem-se presente a subjetividade do professor e dos alunos, que em parte é condicionada do processo de ensino-aprendizagem” (BRASIL 2006, p. 80).

Neste sentido, não podemos conceber o ensino de Matemática como uma mera transmissão de conhecimento, ou como uma receita pronta de fórmulas e cálculo, mas devemos pensá-lo articulando teoria-prática, assim o aluno tornase capaz de refletir criticamente sobre as situações-problema que lhe são apresentadas, como afirma Lorenzato (2008, p.

3) “Ensinar é dar condições para que o aluno construa seu próprio conhecimento”.

Dessa maneira, teremos alunos bastante motivados em relação ao ensino-aprendizagem em Matemática, já que dessa forma estes alunos sentir-se-ão participantes da construção do conhecimento. Assim, caberia ao professor o papel de mediador do conhecimento, de motivador e não mais de transmissor, como afirma Freire (1996, p. 29): “Percebe-se, assim, a importância do papel do educador, o mérito da paz com que viva a certeza de que faz parte de sua tarefa docente não apenas ensinar os conteúdos, mas também ensinar a pensar certo”.

Desse modo, entendemos que o professor, ao exercer a docência na perspectiva da ação-reflexão-ação, suplantando práticas tradicionais, favorece a troca de experiência, proporcionando um diálogo contínuo entre professor e aluno, pois “quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender. Quem ensina, ensina alguma coisa a alguém” (FREIRE, 1996, p. 23). É nessa troca de experiência que a Etnomatemática, uma das atuais tendências do Ensino da Matemática, evidencia a necessidade de o professor desenvolver uma prática pedagógica crítica a fim de transformar o ensino, aproxi143

mando-o do cotidiano dos educandos. Desse modo, “um importante componente da Etnomatemática é possibilitar uma visão crítica da realidade, utilizando instrumentos de natureza Matemática” (D’AMBRÓSIO, 2009, p. 23).

3 Etnomatemática como estratégia de contextualização das práticas educativas A Educação Matemática no Brasil vem se configurando como uma das áreas mais produtivas, no que concerne às reflexões sobre o futuro da sociedade. Portanto, esse movimento vem ganhando força não só no Brasil, mas em todo o mundo, possibilitando uma ampla discussão a respeito de suas propostas, suas metodologias e de seus conteúdos. Não se trata de meramente perceber a Matemática como a ciência das fórmulas, dos números e das medidas, e sim construir um novo olhar sobre a adoção de uma nova postura que substitua o desgastado modelo de ensino-aprendizagem da referida disciplina.

O certo é que, na atualidade, não podemos aceitar uma Matemática que não se integre, não dialogue, que não busque explicações, que não tenha a preocupação com as situações reais, concretas, cotidianas que fazem parte do contexto sociocultural do aluno. Segundo D’Ambrósio (2001, p. 22), “a todo instante, os indivíduos estão comparando, classificando, qualificando, medindo, explicando, generalizando, inferindo e, de algum modo, avaliando, usando os instrumentos materiais e intelectuais que são próprios à sua cultura”. É essa Matemática da vida, do dia-a-dia, que não temos conseguido identificar no espaço escolar, e que a Etnomatemática valoriza. Como explica o autor citado, a aprendizagem neste contexto é entendida como: “[...] a capacidade de explicar, de apreender e compreender, de enfrentar, criticamente, situações novas” (D’AMBRÓSIO, 2001, p. 81). No entanto, a maioria das escolas concebe a matemática como 144

um conjunto de técnicas, um conhecimento pronto e acabado, que é repassado aos alunos de forma mecânica e como verdade absoluta.

Contrapondo-se, portanto, a essa concepção, a Etnomatemática, denominada de Programa Etnomatemática, surge na busca de entender o saber e o fazer matemático dos mais diversos e diferentes espaços naturais, ou seja, propõe uma metodologia que se adeque ao contexto social do sujeito. Foi introduzida no meio socioeducacional por Ubiratan D’Ambrósio, em 1975. No entanto, seu reconhecimento no cenário internacional se efetivou, em 1984, no V Congresso Internacional de Educação Matemática, em Adelaide, na Austrália. Em decorrência, dois anos depois foi criado o Grupo Internacional de Estudos em Etnomatemática (IGSEm), que tem por objetivo propagar as ideias da Etnomatemática.

Segundo D’Ambrósio (1993, p. 48), a “[...] etnomatemática é a arte ou técnica de explicar, de conhecer, de entender nos diversos contextos culturais”; etimologicamente, o termo etnomatemática alimenta-se pela aquisição de conhecimento, dos fazeres e de saberes que lhes permitam sobreviver e transcender, através de maneiras, de modos, de técnicas, de artes (techné ou ‘ticas’) de explicar, de conhecer, de entender, de lidar com, de conviver com (mátema) a realidade natural e sociocultural (etno) na qual ele, homem, está inserido, como podemos perceber graficamente a seguir.

Figura 19: Definição do termo Etnomatemática Fonte: (D’ Ambrósio, 2001)

145

Em relação ao estudo crítico dos princípios da Etnomatemática, muitas discussões têm sido levantadas por pesquisadores a respeito de sua proposta epistemológica. Segundo D’Ambrósio (2001, p. 38), “não se deve tentar construir epistemologia para a Etnomatemática, pois se estaria propondo uma explicação final para a mesma, o que na sua visão feriria o Programa Etnomatemática”. A proposta desse programa quebra os paradigmas de um ensino tradicional, ao propor um ensino que esteja direcionado à realidade dos mais diferentes espaços naturais e sociais. Para esse autor, o Programa Etnomatemática tem importantes implicações pedagógicas, pois, no seu modo de ver, a educação é: [...] em geral, um exercício de criatividade. Muito mais de que transmitir ao aprendente teorias e conceitos feitos, para que ele as memorize e repita quando solicitado em exames e testes, a educação deve fornecer ao aprendente os instrumentos comunicativos, analíticos e tecnológicos necessários para sua sobrevivência e transcendência. Esses instrumentos só farão sentido se referidos à cultura do aprendente ou explicitados como tendo sido adquiridos de outra cultura ou inserido num discurso crítico. O programa Etnomatemática destaca a dinâmica e a crítica dessa aquisição. (D’AMBRÓSIO, 1993, p. 3 apud PIRES, 2010, p. 14).

Contudo, alguns questionamentos têm sido feitos por pesquisadores, no que concerne ao reconhecimento da Etnomatemática enquanto ciência compreendida entre a Matemática e a Antropologia Cultural. Contrapondo-se a esta visão, Sebastiani Ferreira (1997) recorre às ideias de Thomas Kuhn, um filósofo da ciência, ao afirmar que a Etnomatemática se caracteriza como um paradigma quando esta pode ser classificada como um acento, um movimento e até mesmo uma filosofia.

Para Borba (1988), a Etnomatemática é definida como sendo a Matemática que é praticada por grupos culturais, a 146

exemplo de sociedades tribais, grupos de trabalhos ou grupos de moradores. Paulus Gerdes (1991) diz que a Etnomatemática está contida na Matemática, na Etnologia (Antropologia Cultural) e, também, na Didática da Matemática.

Knijnik (1996) argumenta que a abordagem Etnomatemática é caracterizada como a investigação das tradições, práticas e concepções matemáticas de um grupo social subordinado (quanto ao volume do capital social, cultural e econômico) e ao trabalho pedagógico que se desenvolve com o objetivo de que o grupo interprete e decodifique seu conhecimento. Também, adquira o conhecimento produzido pela Matemática acadêmica, estabeleça comparações entre seu conhecimento e o conhecimento acadêmico, analise as relações de poder envolvidas no uso destes dois saberes. Para essa autora, a Matemática precisa ser compreendida como um tipo de conhecimento gerado por todas as culturas como: linguagens, crenças e técnicas específicas de produção. Por sua vez, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) assim definem Etnomatemática: Do ponto de vista educacional, procura entender os processos de pensamento, os modos de explicar, de entender e de atuar na realidade, dentro do contexto cultural do próprio indivíduo. A Etnomatemática procura partir da realidade e chegar à ação pedagógica de maneira natural, mediante um enfoque cognitivo com forte fundamentação cultural (BRASIL, 1997, p. 23).

D’Ambrósio (2001) acredita que a Etnomatemática possui várias dimensões que, na maioria das vezes, estão interligadas. É, portanto, nesse cenário que esta tendência da matemática adentra a educação do campo, com o propósito de trabalhar os conteúdos matemáticos a partir da realidade do educando, uma vez que os conceitos matemáticos são importantes quando os docentes conseguem mostrar seu significado ao aluno, fazendo com que este aluno, além de resolver 147

os problemas propostos, consiga intervir em sua realidade e assim contribuir com o crescimento de sua cultura e do meio no qual está inserido, haja vista que não se pode pensar em uma matemática distanciada do povo a qual se quer ensinar.

4 O Ensino de Matemática na Educação do Campo O ensino, de uma forma geral, deve aproximar o aluno ao contexto no qual vive, possibilitando sua inserção crítica nesta realidade. Quando direcionamos o olhar para a Educação do Campo, percebemos que o ensino para a população campesina deve buscar, em seus conteúdos e contextos, uma aproximação para com o campo, respeitando as exigências deste modelo de educação.

De acordo com os princípios que norteiam a Educação do Campo, é fundamental que os projetos educativos busquem respeitar a diversidade do campo em seus aspectos sociais, culturais, ambientais, políticos, econômicos, de gênero, geracional e de raça e etnia, assim, é pertinente atender às características impregnadas nesse contexto com o intuito de compreender a importância da cultura, dos saberes tradicionais, da identidade de um povo que teve seus direitos historicamente negados (BRASIL, 2010).

Diante desse contexto, a Etnomatemática adentra a Educação do Campo na medida em que busca valorizar o conhecimento trazido pelo aluno assim como respeita as raízes culturais desses sujeitos, haja vista que a Etnomatemática, como afirma D’Ambrósio (2001), é a Matemática praticada por grupos culturais que possibilita desenvolver habilidades, buscando dialogar com os conhecimentos do contexto sociocultural que surge da vida cotidiana e normalmente não reconhecido do ponto de vista científico.

Assim, atendendo ao exposto por D’Ambrósio, uma reflexão sobre o ensino de Matemática consideraria distanciar-se da abstração matemática e aproximar-se da realida148

de concreta a fim de desenvolver nos alunos a capacidade de interpretar, inferir e comparar, como forma de levá-lo a compreender o mundo à sua volta e entender-se parte deste mundo. É este ensino de Matemática direcionado para a realidade do aluno que as escolas do campo necessitam, visto que este ensino sempre foi realizado a partir de um currículo preponderantemente urbano, distanciado da realidade e necessidades das pessoas que vivem nesse contexto. Assim, discorrer sobre o ensino de Matemática no contexto do campo é refletir a respeito das alternativas possíveis de conhecer e vivenciar as diferentes experiências deste espaço, tendo em vista à compreensão de sua diversidade. Portanto, é perceber a necessidade de desenvolver uma educação voltada para os sujeitos do campo, que atenda a seus interesses e ideologias, respeitando suas diferenças históricas e culturais.

Ao refletir acerca dessas questões, Ghedin (2012, p.

19) ressalta que “a educação do campo possibilita ver como é possível operar a passagem da não condição humana para sua condição de ser sujeito”. Pois não é mais concebível pensar na Educação do Campo como algo atrasado, sem uma análise mais rigorosa da sua própria realidade. Dessa forma, esse novo olhar sobre a Educação do Campo nos convoca à construção de matrizes humanistas, visando à emancipação humana.

Nesse sentido, é preciso repensar a Matemática, não como um meio de exclusão da população campesina, e sim como instrumento de emancipação. Isso requer a consideração das condições físicas, históricas e motivacionais desse contexto. Mas o que seria uma educação campesina? Aqui, se faz necessário diferenciar esta educação no contexto da população campesina, segundo Arroyo (2009, p. 23): Um primeiro desafio que temos é perceber qual educação está sendo oferecida ao meio rural e que concepção de educação está presente nesta oferta.

149

[...]. A educação do campo precisa ser uma educação específica e diferenciada, isto é, alternativa.

Mas sobretudo deve ser educação, no sentido amplo do processo de formação humana, que constrói referências culturais e políticas para a intervenção das pessoas e dos sujeitos sociais na realidade [...]

Neste sentido, a educação do campo está constituída como uma ação “emancipatória”, que instiga sujeitos do campo a refletirem por si só e proporciona uma formação apropriada à sua forma de viver, pensar e produzir, exigindo, dessa forma, respeito às particularidades, à cultura, aos costumes e à diversidade desses sujeitos. Como nos diz Freire (2005, p. 82): Na medida em que os homens, simultaneamente refletindo sobre si e sobre o mundo, vão aumentando o campo de sua percepção vão também dirigindo sua “mirada” a “percebidos” que, até então, ainda que presentes [...] não se destacavam, “não estavam postos por si”. Desta forma, nas suas “visões de fundo”, vão destacando percebidos e voltando sua reflexão sobre eles.

Desse modo, requer-se um ensino de Matemática contextualizado, voltado para este meio, que oportunize aos sujeitos perceber-se e perceber o mundo, refletindo sobre ele.

Portanto, distinto daquele presente no cenário escolar que ainda sofre a influência do formalismo, visão esta em que a Matemática se resume meramente a definições, axiomas, teoremas e fórmulas. Diante dessa realidade, Lima (2011, p.

41) expressa sua visão crítica: Uma educação que desconhece e desconsidera os saberes e os valores vivenciados e produzidos pelas comunidades não pode contribuir na formação de cidadãos críticos, pois o exercício da cidadania se traduz pela compreensão do mundo em que se vive e pela tomada de consciências dos valores que norteiam a vida em comunidade.

150

Contudo, para que de fato o ensino de Matemática seja significativo para este povo, o professor precisa ter consciência de sua importância na mediação deste ensino, sendo necessário que reflita constantemente sobre suas concepções e esteja empenhado no planejamento de aulas, valorizando os questionamentos dos alunos. Nessa perspectiva, é preciso que o professor seja um inquiridor nas aulas e, o mais importante, “que o professor planeje o que será pesquisado, para que os alunos não fiquem na mera descrição dos acontecimentos dos quais participam todos os dias” (PARANÁ, 2006, p. 48).

Pensando na postura da escola sobre o ensino da Matemática, relacionamos ao que Freire (1996, p.11) considera: “A reflexão crítica sobre a prática se torna uma exigência da relação teoria/prática sem a qual a teoria pode vir virando blábláblá e a prática, ativismo”. Dessa forma, os conhecimentos não matemáticos são valorizados e agregados aos conhecimentos matemáticos para a construção de novos conhecimentos. É importante ressaltar que as lutas dos movimentos sociais em educação do campo, em fixar o homem no campo, não pretendem de maneira alguma que ele permaneça no campo sem escolhas, mas sim reivindicam uma educação contextualizada, que perceba os diferentes modos de ser e viver no campo. Desse modo, Freire (2000, p. 55) afirma que: [...] um dos saberes fundamentais mais requeridos para o exercício de tal testemunho é o que se expressa na certeza de que mudar é difícil, mas é possível. É o que nos faz recusar qualquer posição fatalista que empresta a este ou àquele fator condicionalmente um poder determinante, diante do qual nada se pode fazer.

Evidencia-se assim, pois, o entendimento de que viver no campo não é sinônimo de trabalhar na agricultura e, por esse motivo, hoje, novas qualificações estão sendo exigidas daqueles que vivem nas zonas rurais. Nesse sentido, a escola 151

pode ter um papel mediador e importante para a população campesina. Desse modo, no item seguinte trazemos, dentre as atividades matemática observadas, uma atividade a partir de uma perspectiva etnomatemática em escolas do campo.

5 Etnomatemática: uma possibilidade pedagógica A partir da discussão exposta, verifica-se que é recomendável que, atualmente, em sala de aula, os docentes procurem, na prática, uma aplicabilidade dos conceitos matemáticos, assim como uma contextualização destes conceitos, a fim de que estes se tornem interessantes, prazerosos e de fácil assimilação por parte dos alunos. Contudo, como nem sempre essa busca tem sucesso ou essa prática é possível, percebemos uma possibilidade de construção do conhecimento matemático: o uso dos conhecimentos etnomatemáticos, tendo em vista que os estudos acerca dessa tendência têm evidenciado as mais variadas formas de ensinar e aprender matemática, dependendo do modo de vida do sujeito ou de um determinado grupo social.

Como exemplo disso, temos, além das pesquisas realizadas por D’Ambrósio, várias outras que vêm despertando interesse em numerosos pesquisadores, como Sebastiani Ferreira (1997), que traz em suas pesquisas o trabalho realizado com índios do Alto Xingu e com pessoas da periferia de Campinas; Gelza Knijnik (1996), que discutiu a matemática e a cubação da terra junto ao MST; e, ainda, Duarte (2004), que pesquisou as práticas sociais de pedreiros, mestres-de-obras e serventes.

Essas pesquisas mostram que as técnicas criadas e desenvolvidas por grupos socioculturais específicos possibilitam uma visão mais clara, objetiva e prática dos conteúdos matemáticos, tirando dessa forma o foco da Matemática acadêmica. Portanto, faz-se necessário que o docente, ao planejar uma determinada atividade, sistematize previamente os 152

conceitos a serem trabalhados, tendo o cuidado de contextualizá-los dentro da realidade dos alunos, demonstrando que tais conceitos são oriundos da prática social e, consequentemente, sua aplicação para ela converge.

Neste contexto, a organização de uma minioficina14, por exemplo, é um tipo de atividade que o docente pode desenvolver dentro de sua prática educativa com o intuito de trabalhar conceitos matemáticos de forma contextualizada.

Para tanto, é importante perceber que um trabalho como este não tem como finalidade somente o aprendizado do aluno, mas se constitui também como uma ferramenta de auxílio ao professor, na medida em que essas novas ideias e subsídios tornariam o ensino da Matemática mais flexível e atraente.

Com o propósito de aprofundar a compreensão sobre princípios que orientam as experiências educativas desenvolvidas a partir da Etnomatemática, apresentaremos uma atividade que realizamos em uma escola do campo com alunos e professores do ensino médio do curso de zootecnia. De início foi elaborado um roteiro com a finalidade de orientar os alunos e professores quanto aos procedimentos didáticos que seriam seguidos no percurso do trabalho. Este roteiro continha todo o percurso e orientações de forma bem detalhada para que não houvesse nenhuma ambiguidade em sua interpretação.

Desta forma, as orientações de como deveria ser conduzida a aula prática foram repassadas antes de sua realização, mostrando como foram feitos alguns cálculos de matemática básica e relembrando alguns conceitos matemáticos sobre medição e áreas de figuras geométricas, bem como transformações das medidas trazidas pelos alunos em metro quadrado. O professor havia pedido aos alunos que explicassem a forma como medem a área a ser cultivada em suas propriedades e, dentre as medidas trazidas pelos alunos e desenvolviEspaços onde são oferecidas aulas práticas referentes às atividades teóricas desenvolvidas pelo professor em sala de aula, tendo como objetivo a vivência e a apreensão do conteúdo estudado.

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das pelos professores em sala de aula, podemos citar a braça, o alqueire, o palmo, o pé. Foi feita, então, a revisão de conteúdo anteriormente mencionada.

A partir da primeira atividade proposta, os alunos foram divididos em grupos de cinco, de modo que todas as partes ficassem com uma tarefa a ser realizada para o desenvolvimento do projeto. Como a área destinada ao projeto era grande, os alunos foram colocados em pontos estratégicos para a realização da parte do projeto a eles incumbida. Com isso, foi dado início à medição do local. O terreno possui um formato retangular, sendo suas dimensões definidas em 18m x 30m.

Cada aluno ficou responsável por medir um lado do terreno.

Com réguas graduadas, os alunos fizeram a medição dos limites do local destinado a ser o aviário da escola. Com as anotações obtidas por eles, foram determinadas as medidas dos limites da construção. Como muitos queriam realmente comprovar se as medidas estavam certas, trocaram de local e mediram os outros locais, fazendo então a comprovação das medidas. Com as medidas dos limites do aviário definidas, eles partiram para a medição da obra, sendo que o projeto para a construção desse local já existia. Levaram, então, em consideração as medidas já pré-estabelecidas no projeto: 5m de largura por 8m de comprimento. Com os mesmos instrumentos utilizados para medir os limites do aviário, eles mediram o local destinado à construção.

Cada compartimento da construção também foi medido pelos alunos, considerando sempre os formatos para estabelecerem a área das medidas. Esse tipo de aula prática possibilita ao aluno uma melhor compreensão dos conceitos matemáticos, tornando, assim, mais fácil a sua utilização.

As medições do aviário possibilitaram também aos alunos uma melhor visualização deste, o que facilitou muito no momento da construção do croqui. Com as medidas externas e internas definidas, eles construíram o croqui do local. Foi nesse momento que os alunos começaram a focalizar melhor 154

a ideia do projeto, construindo o croqui sem nenhuma dificuldade. Além disso, eles começaram a colocar em prática conceitos de escalas.

Nesta etapa de construção do croqui, os alunos redimensionaram as medidas obtidas anteriormente, utilizando os conceitos de escalas ensinados no começo da execução do projeto. Uma das preocupações sentidas pelos alunos era “saber se os cálculos estavam corretos”, pois eles se encontravam bastante empolgados com o procedimento e sabiam bem que qualquer cálculo errado poderia atrapalhar a construção da maquete futuramente. Alguns dos alunos insistiram em fazer mais de uma vez os cálculos.

Para que o desenho do projeto ficasse bem visível e não atrapalhasse o entendimento por outras pessoas, decidimos usar a escala de 10:100, ou seja, 10cm representaria no papel 100cm do aviário, assim o desenho não ficaria pequeno demais e mostraria bem o que estava sendo passado. Uma amostragem do croqui pode ser vista na figura 1:

Figura 01. Croqui do projeto do Aviário

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O desenho elaborado pelos alunos foi semelhante a esse mostrado na figura 1, mas obedecendo à escala adotada.

Depois de elaborado o croqui, os alunos deram continuidade à elaboração da maquete do aviário. Com materiais reciclados e de baixo custo, desenvolveram a maquete a fim de demonstrar como seria o aviário instalado na escola. Cada aluno, assim como nas etapas anteriores, ficou responsável pela construção de uma parte da maquete. Isso é positivo, pois um trabalho bem dividido possibilita uma melhor execução, levando os alunos a uma participação completa no todo de um trabalho. Os alunos que antes achavam que o projeto seria cansativo desenvolveram as etapas com entusiasmo, absorvendo bem a presença da Matemática em seu dia-a-dia.

Cada parte da maquete construída pelos alunos possuía um imenso conteúdo matemático, desde sua preocupação com o tamanho até o formato ideal de cada peça, proporcionando ao alunado uma maior aproximação com esta ciência.

Levando sempre em consideração os conceitos de escala trabalhados nesse projeto, eles montaram a maquete de modo a tornar o mais próximo do projeto real. Com a maquete construída, os alunos puderam presenciar a satisfação em tê-lo concluído com êxito.

Depois de todo o trabalho anteriormente feito, chegou o momento de “pôr a mão na massa” e acompanhar de perto a construção real do aviário. Todos os dias, no fim do dia, eram destinadas duas aulas para os alunos acompanharem a construção do aviário. Neste momento, foi a oportunidade que tivemos para aplicar os conhecimentos de regra de três simples com os alunos, fazendo com que eles calculassem a previsão de quanto seria usado de cada material necessário a essa construção, como telhas, tijolos, dentre outros materiais, bem como os seus custos. Pedimos aos alunos que calculassem com base nas medidas que haviam feito, como nos mostra o exemplo abaixo: 156

I-Cálculo: tijolos EX1. a) Se o aviário tem 40m2, e a cada metro quadrado usa-se 22 tijolos, quantos tijolos serão usados para a construção da parede do aviário? Obs.: Lembre-se que a altura da parede do aviário é de 50cm.

II-Cálculo: telhas EX2. b) Se o aviário tem 40m2, e a cada metro quadrado usa-se 38 telhas, quantas telhas serão usadas para cobrir o aviário?

Obs.: Lembre-se que 1 braça = 2,20 m.

Podemos observar que, nesta etapa do projeto, os alunos tiveram a oportunidade de compreender com mais intensidade os conteúdos: cálculo de área e regra de três simples.

Após três meses de obra, finalmente o aviário estava concluído, e era chegado o momento de pensarmos “nas aves”; desse modo, outros questionamentos surgiram: Qual raça de galinhas vamos criar? Quantas aves inicialmente é o ideal? Nesta perspectiva, foi pedido aos alunos, com a ajuda da professora de zootecnia, que fizessem uma pesquisa para descobrirem qual a raça que nos daria um retorno financeiro maior e mais rápido, sem deixar de lado a qualidade da carne, e como seria o manejo com as mesmas.

Ao retornar com as pesquisas, cada aluno apresentou a sua aos demais e, ao final das apresentações, foi feita uma síntese com todas as apresentações, ficando decidido, pela maioria, que seria criada a galinha de raça caipirão, por ter um manejo mais simples e ter bastante saída no mercado de Teresina. Desta forma, partimos para os cálculos. Primeiramente, queríamos descobrir quantos pintos inicialmente colocaríamos no aviário, para o qual foi feito o seguinte cálculo: 157

pegou-se a medida do aviário e, sabendo que, para cada metro quadrado, colocamos 20 pintos, questionou-se: EX3. c) Com base nas pesquisas feitas e nas medidas do setor de cria, quantos pintos podemos colocar nesta área? Em quanto tempo os pintos estarão prontos para consumo? Mostre qual foi o lucro final desse projeto, calculando os custos/benefícios do mesmo, sabendo que este gira em torno de 70% a 80% do valor total.

Nesta etapa do projeto, foram estudados os conteúdos de porcentagem, probabilidade, estatística, gráficos, tabelas, bem como revisado os conteúdos de cálculo de área, regra de três simples, multiplicação, divisão, dentre outros assuntos.

Ao final do projeto, os alunos apresentaram aos colegas, professores e parceiros de estágios um relatório sobre todas as etapas realizadas, transmitindo o que eles haviam aprendido na prática a partir da teoria explicada em sala de aula, de forma a demonstrar como funciona a Matemática aplicada à realidade em que vivem.

Considerações Finais Diante do exposto, podemos inferir que o ensino de Matemática, que mostre aos alunos seu verdadeiro valor utilitário, sem ser de forma mecanizada, deixará de ser considerado e direcionado apenas aos alunos “escolhidos”, bem como deixará de ser um ensino fatigante, desestimulante, entediante, tornando-se prazeroso, direcionado a todos os alunos.

Assim, percebemos que o ensino de Matemática, a partir de uma óptica Etnomatemática, é uma maneira de promover uma mudança neste ensino, estimulando os estudantes a descobrirem a Matemática impregnada em seu cotidiano, assim como torná-lo um cidadão crítico e reflexivo, capaz de 158

se tornar um disseminador, em seu meio, desse conhecimento por ele adquirido, fazendo, dessa forma, que se crie um ciclo de desenvolvimento no meio do qual está inserido.

Percebemos que o ensino de Matemática, nesta proposta metodológica, deixa de ser o único objetivo da sala de aula, pois o foco final vai além do ensino, preocupa-se com a aprendizagem do aluno no que concerne aos conteúdos, pois estes passam a ter significados para o aluno, visto que este é peça fulcral do processo educativo. Neste sentido, podemos concluir que esta proposta metodológica busca um novo fazer nas práticas da educação campesina, haja vista que esta proposta valoriza os saberes oriundos do sujeito do campo no que se refere ao ensino de Matemática.

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EDUCAÇÃO E DIVERSIDADES NAS ESCOLAS DO CAMPO: A CONSTRUÇÃO DE PRÁTICAS EDUCATIVAS INTERCULTURAIS Elmo de Souza Lima Os diferentes estudos sociológicos e antropológicos desenvolvidos sobre a sociedade brasileira destacam as riquezas dessa nação associada ao encontro entre diferentes culturas, tais como: a ameríndia, a europeia e a africana. É uma nação que nasce sob a égide da diversidade e miscigenação cultural. No entanto, este encontro de povos e culturas nem sempre ocorreu de forma harmoniosa. Ao contrário disso, tivemos uma formação histórica marcada pela relação desigual entre povos de diferentes culturas, permeada pelas relações de poder/dominação, pelos encontros/conflitos, pelos enfrentamentos e estranhamentos contantes (LIMA, 2009).

Neste caso, a formação cultural da sociedade brasileira é marcada, por um lado, pela dominação cultural dos colonizadores portugueses sobre os povos colonizados e escravizados, no entanto, por outro lado, traz experiências significativas de hibridizações culturais como resultado dos processos de resistências, da construção de alternativas de diálogo e das experiências de convivência entre os diferentes povos.

No entanto, a lógica dominante no percurso da história política, social e cultural do Brasil está associada à relação desigual e de superioridade entre povos e culturas, com a supremacia da cultura europeia com relação aos outros povos.

Assim, os saberes e as práticas socioculturais dos povos indígenas, africanos e seus descendentes sempre foram ignorados e/ou invisibilizados em nome de um padrão cultural considerando “moderno” e “civilizado”.

Diante desse cenário, um conjunto de movimentos e organizações sociais surgiu em meio aos processos de lutas e 161

resistências desses povos com o intuito de contraporem-se às injustiças sociais e às violências físicas, simbólicas e epistemológicas cometidas nos processos de imposição e dominação cultural.

A partir da década de 1980, houve o fortalecimento destes movimentos sociais vinculados aos grupos sociais considerados “minoritários” (negros, indígenas, camponeses, quilombolas, mulheres, entre outros) colocando em cheque os padrões culturais e sociais utilizados historicamente pela sociedade e pelo Estado, de modo específico, na instituição das políticas públicas e na garantia dos direitos básicos as populações.

Para estes movimentos sociais, os modelos de desenvolvimento e as políticas públicas instituídas no Brasil a partir dos padrões socioculturais e ideológicos referenciados no pensamento eurocêntrico e norte-americano não reconhecem as especificidades dos saberes, das tradições e das práticas sociais dos grupos “minoritários”, pelo contrário, reforçam os mecanismos políticos e ideológicos de silenciamento, negação e invisibilização das tradições e dos conhecimentos e saberes das populações tradicionais (BRASIL, 2005).

Diante deste cenário, as lutas empreendidas pelos movimentos sociais, no final do século XX e na primeira década do século XXI, foram marcadas por avanços significativos no Brasil na afirmação dos direitos dos grupos sociais “minoritários” com a promulgação de diversas leis e diretrizes que vão tanto na direção do combate aos preconceitos étnico-raciais, religiosos, dentre outros, quanto na valorização e afirmação dos direitos e das práticas culturais das populações historicamentes excluídas, a exemplo dos povos do campo.

Desse modo, tivemos nas últimas décadas a constituição de vários programas e diretrizes voltadas à promoção da educação intercultural, a exemplo das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Indígenas, em 1999; Diretrizes 162

Operacionais para a Educação Básica nas Escolas do Campo, em 2002; Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana, em 2003; e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola, em 2012; todas voltadas à promoção de práticas educativas que reconheçam as diversidades culturais e os diferentes saberes como forma de garantir a formação de cidadãos/ãs “capazes de interagir e de negociar objetivos comuns que garantam, a todos, respeito aos direitos legais e valorização de identidade, na busca da consolidação da democracia brasileira” (BRASIL, 2005).

Além disso, tivemos um conjunto de políticas públicas voltadas ao reconhecimento e à valorização dos grupos afrobrasileiros, indígenas, quilombolas, homossexuais, mulheres, entre outros, aspecto que não deixa de ser importante na construção de uma sociedade justa e democrática. Entretanto, são muitos os desafios que precisam ser superados com o intuito de consolidar estas políticas educacionais com a implementação de projetos eduativos interculturais, que favoreçam a construção de uma cultura de respeito às diferenças e de convivência democrática em nosso país.

1 Notas sobre a emergência do pensamento intercultural no Brasil Os primeiros movimentos em defesa de uma educação que respeite as diversidades culturais no Brasil iniciaram no começo da década de 1960, com o desenvolvimento de projetos voltados à valorização e defesa da cultura popular instituídos pelos Centros Populares de Cultura (CPCs), o Movimento de Educação de Base (MEB) e pelo Movimento de Cultura Popular (MCP), inspirados nos ideias políticos e filosóficos do pensamento freireano.

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Na visão de Freire (2005), a valorização da cultura popular era o caminho para o reconhecimento e afirmação das pessoas enquanto sujeitos históricos e o diálogo entre as diferentes culturas era estratégia para se ampliar a visão e compreensão destes sujeitos acerca do mundo, portanto, uma das alternativas para a emancipação das classes populares.

Na perspectiva freireana, [...] a cultura não é só a manifestação artística e intelectual que se expressa no pensamento. A cultura manifesta-se, sobretudo, nos gestos mais simples da vida cotidiana. Cultura é comer de modo diferente, é dar a mão de modo diferente, é relacionar-se com o outro de outro modo. A meu ver, a utilização destes três conceitos – cultura, diferenças, tolerância – é um modo novo de usar velhos conceitos. Cultura para nós, gosto de frisar, são todas as manifestações humanas, inclusive o cotidiano e é no cotidiano que se dá algo essencial: o descobrimento da diferença (FAUNDEZ; FREIRE, 1985, p. 34).

Em um contexto político e ideológico de negação e invisibilização das experiências políticas, organizativas e culturais das classes populares, Freire (2005) apostou numa proposta de educação libertadora comprometida com a valorização e a problematização da cultura popular. Na visão do autor, a educação emancipatória se constitui a partir da prática dialógica em que educadores/as e educandos/as estabelecem nas suas relações de convivência, de interação no/ com mundo, bem como no modo de produzir-se na relação com os outros sujeitos e com o mundo.

Segundo Brandão (2002, p. 45), o projeto de educação popular instituído a partir do pensamento freireano e das práticas sociais e políticas dos movimentos dos anos 1960 foi um marco na luta contra a educação colonizadora implementada no Brasil, na medida em que reconheceram “na educação brasileira uma cultura alienada, produtora de sucessivas estruturas sociais de dominação e tradutora de sequentes es164

quemas simbólicos de valores, conhecimentos e princípios de relações sob controle de grupos e classes dominantes […]”.

Nesta perspectiva, as experiências construídas pelos movimentos sociais na área da educação popular foram fundamentais na construção dos pilares da educação intercultural, na medida em que trouxeram para o campo da educação o debate político e epistemológico necessário ao desvelamento das relações de poder estabelecidas na sociedade brasileira a partir da dominação cultural. Para Oliveira (2011, p. 110), No cenário do surgimento da educação popular no Brasil encontra-se a crítica dos movimentos populares à imposição da cultura dominante e a valorização de experiências da cultura popular, sendo realizado o debate epistemológico da legitimação social do saber popular, que historicamente é desvalorizado pelo seu corte de classe, gênero e etnia, em relação ao saber científico. A relação entre os saberes na educação popular está dimensionada no campo político e cultural.

Um aspecto relevante neste debate proposto por Freire (2005) e pelos movimentos em torno da educação popular, com relação à educação e à cultura popular, foi o deslocamento da discussão para o campo epistemológico, da legitimação social do conhecimento produzido pelas classes populares, frente ao processo de negação e silenciamento destes saberes em detrimento do conhecimento científico e dos padrões culturais impostos pelos projetos educativos e “civilizatórios” eurocêntricos.

O diálogo proposto por Freire (1986), entre educação e cultura, reafirmando que as práticas educativas precisam ser construídas em diálogo/interação constante com as práticas sociais, colocando-se enquanto espaço de trocas de experiências e vivências de novos e velhos conhecimentos, abre outras possibilidades de pensar a educação enquanto prática social, enquanto práxis, que funde e se reafirma enquanto prática cultural. Isto porque, para o autor, 165

Todos os produtos que resultam da atividade do homem [e das mulheres], todo o conjunto de suas obras, materiais ou espirituais, por serem produtos humanos que se desprendem do homem [e das mulheres], voltam-se para ele [ela] e o [a] marcam, impondo-lhe formas de ser e de se comportar também culturais. Sob este aspecto, evidentemente, a maneira de andar, de falar, de cumprimentar, de se vestir, os gestos são culturais. Cultural também é a visão que tem ou estão tendo os homens [e as mulheres] da sua própria cultura, da sua realidade (FREIRE, 1986, p. 57).

Neste processo, a cultura está associada à existência humana, ao processo de criação e recriação do mundo, implicado naquilo que dá sentido à vida dos sujeitos sociais e históricos. Desse modo, discutir processos educativos implicados com as práticas culturais dos sujeitos constitui-se numa condição essencial ao desenvolvimento de práticas educativas que, primeiro, tenham os sujeitos como protagonistas dos processos educativos e da produção do conhecimento; segundo, que tenha a capacidade de dialogar com os saberes e valores produzidos neste contexto, possibilitando uma maior apropriação desta experiência enquanto conhecimento crítico do seu fazer/agir no mundo, práxis social. Por fim, que assume o compromisso político de produzir conhecimento acerca da realidade como condição necessária ao processo de transformação social.

Neste debate sobre a relação entre a educação e a cultura, chama atenção a dimensão política proposta por Freire (2005) em suas reflexões sobre o tema. Se, por um lado, o autor denuncia o processo de dominação e violência simbólica instituído pela educação bancária e pelo processo de colonização cultural, através do silenciamento, invisibilização e negação da cultura, por outro, propõe o desenvolvimento de processos educativos que possam emergir do seio da cultura popular, tendo a realidade concreta como elemento central da produção do conhecimento e no processo de desvelamento da 166

realidade, colocando o diálogo crítico sobre a cultura popular como condição para o processo de emancipação social.

Este debate também traz à tona o processo histórico de submissão e subalternização marcado por práticas culturais e políticas de desumanização e exclusão, que naturalizam as diferenças e ocultam as desigualdades. Neste caso, a educação libertadora concebida por Freire (2005), enquanto processo de humanização e prática da liberdade, traz em sua essência os pressupostos políticos e pedagógicos de uma educação intercultural, quando defende que: Uma das tarefas mais importantes da prática educativo-crítica é propiciar as condições em que os educandos em relação uns com os outros e todos com o professor ou a professora ensaiam a experiência profunda de assumir-se. Assumir-se como ser social e histórico, como ser pensante, comunicante, transformador, criador, realizador de sonhos, capaz de ter raiva porque capaz de amar. Assumir-se como sujeito porque capaz de reconhecer-se como objeto.

A assunção de nós mesmos não significa a exclusão dos outros. É a “outredade” do “não eu”, ou do tu, que me faz assumir a radicalidade de meu eu (FREIRE, 1996, p. 23-24).

Por esta razão, o pensamento freireano trouxe contribuições relevantes para o debate da educação intercultural, principalmente com relação ao desenvolvimento de referenciais teórico-metodológicos voltados à proposição de projetos educativos que reconheçam os sujeitos sociais em suas especificidades, diferenças e peculiaridades, considerando este aspecto algo essencial na sua afirmação enquanto ser histórico e protagonista do processo de transformação social.

Neste caso, é através do reconhecimento e valorização dos conhecimentos e experiências que os seres humanos construíram historicamente em suas vivências no/com o mundo, que teremos a capacidade de instituir processos formativos voltados ao empoderamento do/a educando/a, despertando-o/a para uma ação política transformadora.

167

Oliveira (2011) destaca um aspecto importante do pensamento freireano para o desenvolvimento de práticas educativas interculturais, relacionado à dimensão ética dos processos educativos, no que tange ao respeito e ao cuidado político e pedagógico que deve nortear os diálogos interculturais. É fundamental que seja instituído, nos processos educativos, um profundo respeito ao modo de pensar dos/as educandos/ as, aos seus conhecimentos e sua cultura, o que não significa ser conivente com visões ingênuas e/ou alienadas do mundo.

Para Freire (1996, p. 16), Pensar certo, do ponto de vista do professor, tanto implica o respeito ao senso comum no processo de sua necessária superação quanto o respeito e o estímulo à capacidade criadora do educando. [...] pensar certo coloca ao professor ou, mais amplamente, à escola, o dever de não só respeitar os saberes com que os educandos, sobretudo os das classes populares, chegam a ela – saberes socialmente construídos na prática comunitária – mas também, [...] discutir com os alunos a razão de ser de alguns desses saberes em relação com o ensino dos conteúdos.

Nesta perspectiva, o autor traz dois elementos fundamentais para o debate sobre a educação intercultural; primeiro, evidencia o respeito ao/a educando/a, aos seus conhecimentos e saberes numa dimensão humanística, pautada na amorosidade que deve nutrir a relação entre educadores/as e educandos/as no processo de produção do conhecimento e reafirmação da vida; segundo, situa este debate no campo epistemológico, reconhecendo o significado político e cultural implícito no ato educativo de respeito e valorização dos “saberes da experiência” trazidos pelos/as educandos/as para o processo de produção do conhecimento no contexto das práticas educativas.

Ao propor este diálogo entre os diferentes saberes e práticas sociais, Freire (2005) institui uma lógica de pensar 168

a produção do conhecimento pautada no diálogo, na complementaridade e interrelações entre conhecimentos e contextos, contrapondo-se aos processos de produção do conhecimento instituídos pelo pensamento científico moderno, fundado no princípio da descontextualização, fragmentação e neutralidade. Desse modo, A interculturalidade em Paulo Freire tem como referência, não apenas a compreensão de que há diferenças entre as culturas e tensões entre elas, mas, sobretudo, a valorização das relações interculturais, que pressupõe a dialogicidade e a eticidade. Relações de respeito que se dimensionem como uma síntese cultural, viabilizando a dinâmica criadora do processo de produção cultural (OLIVEIRA, 2011, p. 122).

O pensamento pedagógico de Freire (2005; 1996) foi importante para o desenvolvimento de inúmeras lutas políticas travadas por educadores e movimentos sociais na construção de políticas e práticas educativas comprometidas com a transformação social, a partir do reconhecimento e da valorização da diversidade cultural dos povos no Brasil.

1.1 A contribuição dos movimentos sociais na construção de práticas educativas interculturais De acordo com Boaventura Santos (2000), os movimentos sociais brasileiros e latino-americanos concentraram seus esforços, nas últimas décadas, na construção de estratégias teóricas e políticas pedagógicas capazes de contribuir na formação crítica dos sujeitos sociais historicamente excluídos nos vários confins brasileiros, silenciados pelo paradigma científico e cultural imposto pelos grupos hegemônicos, principalmente pelo modelo de ciência e conhecimento difundidos pelas academias e instituições de ensino.

Para o autor, os movimentos sociais latino-americanos desenvolveram não só estratégias políticas de enfrentamento 169

aos processos de exclusão social, mas construíram alternativas epistemológicas que apontam na direção de outra forma de pensar o mundo, a partir do resgate e reconhecimento dos saberes e conhecimentos construídos historicamente pelos grupos afro-brasileiros, indígenas, quilombolas, camponeses, dentre outros.

O trabalho dos movimentos sociais, por um lado, fomenta nos grupos sociais a capacidade de resistência e de reconhecimento da riqueza de suas tradições históricas negadas pelo pensamento hegemônico; por outro, desenvolve a capacidade crítica, organizativa e criativa para criar alternativas de resistência e de enfrentamento das lutas em defesa dos seus direitos, do reconhecimento dos seus saberes e suas diferentes formas de pensar e viver.

Os debates políticos construídos pelos movimentos sociais em torno das diferenças e diversidades socioculturais, políticas e organizativas, possibilitaram o reconhecimento destes grupos sociais como sujeitos históricos, com saberes e práticas sociais específicas e singulares, que assumem um papel essencial na construção das alternativas de desenvolvimento pautadas na sustentabilidade socioambiental, cultural, político e econômica frente às práticas excludentes do modelo capitalista.

As lutas políticas travadas pelos povos do campo pela garantia de direitos e afirmação de suas diferenças como condição essencial à vida numa sociedade democrática e justa contribuíram na construção de novos conhecimentos e articulações políticas, voltados ao desenvolvimento de novas leituras e reflexões acerca das relações de dominação instituídas a partir da cultura e da produção/legitimação do conhecimento.

Nessa perspectiva, os embates políticos e ideológicos ocorridos neste processo de afirmação e reconhecimento das diferenças/diversidades, contribuíram para o desvelamento das relações de dominação instituídas pelos grupos hegemô170

nicos a partir dos interesses políticos e econômicos implícitos nos discursos e práticas da ciência moderna.

Para Santos (2000), este embate político ocorrido em torno do reconhecimento/afirmação dos saberes históricos e culturais, construídos pelos diferentes povos na sua relação com o mundo, nos seus processos históricos de produção da vida e de transformação da realidade, precisam ser deslocados e compreendidos dentro do campo epistemológico, compreendendo, portanto, a epistemologia enquanto “[...] campo da ciência que se ocupa dos métodos, da organização, da procedência, da validação e dos limites do conhecimento, bem como de sua relação com a realidade histórica – constitui-se em um espaço de relações de poder e, nesse sentido, de disputa” (STRECK; ADAMS, 2012, p. 247).

Por esta razão, Santos (2009) defende que este debate sobre as diversidades culturais seja desenvolvido a partir de outros referenciais epistemológicos capazes de se contraporem àqueles historicamente instituídos pela ciência clássica, que produz discursos científicos e culturais de subalternização epistêmica dos saberes, conhecimentos e interpretações do mundo divergentes dos modelos hegemônicos.

Numa perspectiva semelhante, Freire (2005) propôs uma teoria do conhecimento que se constituísse a partir do enraizamento histórico dos sujeitos e de sua inserção no mundo da cultura e das práticas sociais. Ou seja, invertendo a lógica epistêmica colonizadora, defendia que o conhecimento da realidade fosse construído a partir do pensar do próprio povo, de suas leituras e releituras do mundo. Um pensar que pudesse ser ampliado e criticizado na medida em que os sujeitos fossem capazes de estabelecer novos processos de problematização e reflexão crítica da realidade, instigados por meio de projetos educativos emancipadores.

A partir destes princípios políticos e epistemológicos de cunho emancipatórios, Santos (2009) defende que tenha171

mos a capacidade de conduzir este debate sobre a educação, a cultura e o conhecimento numa perspectiva ético-política, evidenciando o extermínio promovido pelo pensamento científico hegemônico com relação aos saberes, às culturas, experiências e práticas sociais dos povos minoritários.

Santos (2009) defende que, neste trabalho de reconhecimento e reafirmação das diversidades culturais, temos o dever ético de construir caminhos alternativos de resgate e afirmação dos diferentes conhecimentos e práticas sociais construídas historicamente pelos povos originários do sul, de modo que sua compreensão e relação com o mundo, seu paradigma de vida, fundado na justiça, solidariedade e respeito à diversidade sejam preservados e realimentados como possibilidade de construção de outro mundo possível.

O autor acrescenta ainda que estes conhecimentos construídos pelos povos originários, negados historicamente pelo pensamento científico hegemônico, trazem uma riqueza e um potencial enorme para este processo de transformação social, contrapondo-se aos projetos de desenvolvimento apresentados pela sociedade capitalista (SANTOS, 2009).

Diante desse contexto, os debates ocorridos dentro do Movimento de Educação do Campo estão associados à construção de estratégias políticas e pedagógicas que fomentem a apropriação crítica da realidade, em diálogo com os saberes construídos historicamente pelos povos do campo. Que a partir do diálogo crítico e das trocas de conhecimentos e experiências entre educandos e educadores, se busque produzir novos conhecimentos que ampliem o olhar acerca deste lugar, evidenciando novas possibilidades de pensar os modos de vida e convivência. Ou seja, trata-se de um trabalho que busca instituir uma disputa política e epistemológica no campo da interpretação das realidades (LIMA, 2015).

Neste debate, os movimentos sociais vêm reafirmando que os sujeitos do campo são diversos, portanto, as políticas de educação do campo e suas propostas curriculares precisam dialogar com suas especificidades sociais, culturais e organi172

zativas, reconhecendo e valorizando as relações estabelecidas com o meio ambiente, o mundo do trabalho, nos rituais religiosos e nos processos de organização e produção da vida. São inúmeros os aspectos que reafirmam a diversidade dos povos do campo, a exemplo da sua relação com o mundo do trabalho (coletivo, cooperativo, individual, semicoletivo, assalariado, autônomo, mutirão etc.); na organização política (associações, movimentos organizados, sindicatos etc.); na organização social: festividades, atividades comunitárias, dentre outras. Nessa perspectiva, Caldart (2004, p. 153) alerta que: O campo tem diferentes sujeitos. São pequenos agricultores, quilombolas, povos indígenas, pescadores, camponeses, assentados, reassentados, ribeirinhos, povos da floresta, caipiras, lavradores, roceiros, sem-terra, agregados, caboclos, meeiros, assalariados rurais e outros grupos mais.

Este modo de pensar o campo em sua diversidade e especificidade traz outras preocupações com relação à complexidade dos processos sociais, culturais e educativos instituídos neste contexto, demandando, portanto, projetos educativos abertos ao diálogo e à troca de experiências e conhecimentos com estes povos, e suas organizações sociais, que compõem estes territórios rurais. Neste caso, precisamos compreender que: Os povos do campo têm uma raiz cultural própria, um jeito de viver e de trabalhar, distinta do mundo urbano, e que inclui diferentes maneiras de ver e de se relacionar com o tempo, o espaço, o meio ambiente, bem como de viver e de organizar a família, a comunidade, o trabalho e a educação. Nos processos que produzem sua existência vão também se produzindo como seres humanos (ARROYO; CALDART; MOLINA, 2004, p. 16).

Com base nessa reflexão, os projetos educativos desenvolvidos nas escolas do campo precisam criar estratégias pedagógicas que favoreçam o diálogo entre os saberes diferen173

tes e práticas, reconhecendo a importância das experiências dos camponeses para a consolidação do processo de luta e construção de uma sociedade democrática. Só teremos uma sociedade efetivamente democrática quando os vários grupos sociais forem reconhecidos enquanto produtores de saberes, tiverem seus direitos sociais garantidos e suas práticas sociais reconhecidas e incorporadas no contexto das experiências pedagógicas das escolas.

Na visão de Freire (1996), precisamos compreender, cada vez mais, a importância do diálogo entre as diferentes culturas como forma de tornar as práticas formativas mais ricas com relação à formação humana e crítica, transformando-as em espaços de possibilidade para a construção de sociedades democráticas, igualitárias e justas. Entretanto, os educadores precisam compreender que a construção dessas relações dialógicas entre os diferentes sujeitos nem sempre ocorre de forma pacífica, pois, para Freire (1992, p. 156), esse diálogo: [...] não se constitui na justaposição de culturas, muito menos no poder exacerbado de uma sobre as outras, mas na liberdade conquistada, no direito assegurado de mover-se cada cultura no respeito uma da outra, correndo risco livremente de ser diferente, sem medo de ser diferente, de ser cada uma “para si”, somente como se faz poss ível crescerem juntas e não experiência da tensão permanente, provocada pelo todo-poderosíssimo de uma sobre as demais, proibidas de ser.

A construção dessas práticas formativas, fundadas no princípio da dialogicidade, exige que os/as educadores/as estejam preparados, tanto no campo ético-político quanto no teórico-metodológico, para mediarem os conflitos e os embates que surgirão desses diálogos interculturais, possibilitando não a unificação das culturas e, muito menos, a negação de sua diversidade, mas a reafirmação de suas diferenças e a 174

compreensão da importância dessa diversidade para a constituição de uma geração que respeite os diferentes modos de ser/estar no/com o mundo, engajando-se na defesa de uma sociedade pluricultural. Nessa perspectiva, [...] a diversidade deve ser concebida como luta pelo direito de ser e como movimento de resistência às tentativas de homogeneização e enquadramento sociocultural de sujeitos tão diferentes, do ponto de vista da origem familiar e do capital cultural (BOURDIEU, 1998), e do ponto de vista econômico, que situa os sujeitos em determinada classe social, conforme seu capital econômico (MACHADO, 2010, p. 149)

Não podemos deixar de considerar que o debate sobre as diversidades precisa está associado às lutas contra as desigualdades e o processo de exclusão e negação de direitos à população do campo com relação ao acesso aos bens culturais produzidos pela humanidade. “A diversidade se coloca, então, no contexto da discussão sobre as desigualdade e marginalização daqueles que, historicamente, foram excluídos da sociedade” (MACHADO, 2010, p. 150).

O trabalho de valorização e reconhecimento das singularidades e especificidades dos povos do campo no contexto dos projetos educativos possibilita, por um lado, que a população camponesa compreenda que suas especificidades e diferenças culturais não os tornam inferiores aos demais grupos sociais, como historicamente foi propagado pelos discursos ideológicos eurocêntricos. Por outro, contribui no reconhecimento e autoafirmação de suas identidades sociais e culturais, bem como no fortalecimento de uma cultura contra-hegemônica, capaz de contrapor-se aos processos de dominação política e cultural instituídos no contexto da sociedade capitalista. Para Machado (2010, p. 151), [...] o fortalecimento da cultura e da economia local pode revelar-se um poderoso instrumento de

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mudanças e de armação de uma nova ordem social.

Contudo, isso não pode se dar com base em uma atitude romântica e ingênua de pensar que tudo se esgota/resolve em âmbito local, perdendo-se a dimensão do universal, do global.

O autor faz um alerta importante quanto aos riscos de nos limitarmos a pensar o local deslocando de uma leitura crítica mais ampla acerca dos processos de dominação política, ideológica e cultural imposta historicamente pelo sistema capitalista, numa perspectiva global. Assim, educandos/as e educadores/as precisam compreender que os processos históricos de opressão e exclusão vividos pelos povos do campo resultam da lógica perversa e injusta instituída pela ideologia capitalista. Compreender essa dimensão global do processo de exclusão é fundamental para se pensar em estratégias políticas articuladas contra as formas de dominação e opressão impostas à classe trabalhadora.

Machado (2010) alerta para outro aspecto fundamental, neste debate, sobre a educação e a interculturalidade, que está associado ao direito de os povos do campo terem acesso aos conhecimentos e à cultura universal produzida historicamente pela humanidade. Neste caso, Coloca-se como primordial, então, a construção de propostas pedagógicas, que valorizem os diversos saberes dos sujeitos que vivem no campo, contudo, sem secundarizar o conhecimento científico e a cultura universal, que são fatores essenciais para a ampla formação dos sujeitos. Nesse processo, é fundamental incorporar a agroecologia como um novo conceito de vida, implicando não apenas uma produção mais saudável, livre de agrotóxicos, como também, a discussão sobre soberania alimentar e manejo sustentável do solo e dos recursos naturais.

Tais questões não se colocam apenas no plano técnico, mas fundamentalmente no plano das decisões políticas sobre o tipo de sociedade que queremos construir e sobre tipo de relações humanas que devem pautá-la (MACHADO, 2010, p. 146-147).

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O fato de defendermos que as escolas precisam reconhecer e valorizar as diversidades socioculturais dos camponeses, bem como os saberes da experiência, não significa que iremos negar aos/as educandos/as o acesso aos conhecimentos científicos e a cultura universal. O acesso ao conhecimento sistematizado é condição essencial à superação das lógicas da dominação política e ideológica instituídas no campo, assim como à construção de novas perspectivas de desenvolvimento pautadas na sustentabilidade, que tenham a cultura e os saberes dos camponeses como instrumento de formação e mobilização social.

2 O desenvolvimento de práticas educativas interculturais nas escolas do campo: desafios e possibilidades Os debates construídos em torno da educação e das diversidades culturais, associados às lutas políticas travadas pelos movimentos sociais para o reconhecimento do campo enquanto espaço de produção de conhecimento e saberes e dos camponeses como protagonistas de uma cultura perculiar aos seus modos de estar e atuar no/com o mundo, abriram novas possibilidades para se pensar as práticas educativas nas escolas do campo a partir de novos referenciais políticos e pedagógicos críticos, extrapolando aqueles modelos associados ao pensamento hegemônico, fundado no pensamento tecno-linear pautado nos ideais capitalistas/produtivistas americano.

Diante desse cenário, inúmeras experências estão sendo construídas nos vários cantos do país tendo as dinâmicas políticas e organizativas, bem como os rituais culturais das comunidades como matéria-prima para a produção desse novo fazer educativo que emerge da sabedoria popular, sem negar aos/as educandos/as o acesso ao conhecimento científico que passa a ser apropriado numa dinâmica de diálogo, 177

interação e problematização com suas experiências socioculturais e políticas.

Neste caso, a produção do conhecimento se constitui no processo de reflexão crítica de suas próprias práticas sociais, no qual conhecer significa autoconhecer-se e apropriar-se de suas próprias histórias, a partir das releituras construídas no diálogo/confronto com os conhecimentos construídos a partir de outros referenciais políticos e culturais. Assim, o conhecimento construído numa perspectiva intercultural possibilita não só a apropriação dos conceitos e concepções peculiares àquele conhecimento, mas implica a confrontação e reconstrução dos modos de pensar/estar no/com o mundo, produzindo novas posturas e atitudes críticas diante das diferentes possibilidades de compreender as relações sociais, políticas e econômicas que os diferentes grupos sociais estabelecem no mundo.

Nessa perspectiva, Fleuri (1999) defende a construção de projetos interculturais que fomentem o desenvolvimento de práticas educativas fundadas na “pedagogia do encontro” capaz de promover uma experiência profunda de encontro/ confronto de narrações diferentes, oportunizando aos sujeitos a compreensão do mundo em sua diversidade e complexidade e a superação de preconceitos e estereótipos que impedem a construção de uma sociedade mais livre, justa e solidária.

Assim, [...] a educação intercultural se preocupa com as relações entre seres humanos culturalmente diferentes uns dos outros. Não apenas na busca de apreender o caráter de várias culturas, mas, sobretudo, na busca de compreender os sentidos que suas ações assumem no contexto de seus respectivos padrões culturais e na disponibilidade de se deixar interpelar pelos sentidos de tais ações e pelos significados constituídos por tais contextos [...]. Nesta óptica, o reconhecimento das complexas e conflitantes relações interculturais pode ser fundamental para reverter os processos de exclusão estabelecidos pela adoção de mecanismos culturais hegemônicos que

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perpassam a escola e transformam em estrangeiros muitos sujeitos sociais (FLEURI, 2003, p. 31).

O trabalho desenvolvido na área da educação intercultural traz como desafio a construção de outros modelos de educação abertos às diferentes formas de pensar as realidades locais, as práticas socioculturais, políticas e organizativas dos diferentes grupos sociais e, acima de tudo, reconhecer o valor e a relevância dos saberes produzidos nestes contextos.

Neste debate, não podemos deixar de ter como foco central os princípios políticos e epistemológicos que norteiam as práticas formativas e de produção do conhecimento, tendo em vista que é a partir da compreensão destes e da desconstrução de determinados mitos epistemológicos podemos avançar na construção de práticas educativas interculturais.

Por esta razão, é importante desenvolver processos educativos e de pesquisa que sejam capazes de sistematizar princípios políticos e epistemológicos que deem conta de produzir referenciais teóricos e metodológicos capazes de apontar caminhos e/ou alternativas didático-pedagógicas voltados ao desenvolvimento de práticas educativas em que o diálogo entre os diferentes saberes e culturas possa ampliar a visão que os sujeitos têm de si e dos outros, numa relação de troca de saberes e práticas socioculturais.

Diante desse contexto, o investimento na formação de profisisonais da educação numa perspectiva intercultural é um dos caminhos estratégicos para consolidarmos o processo de democratização em curso na sociedade brasileira, com justiça social e a superação das práticas de exclusão no campo étnico, cultural, social, de gênero, de orientação sexual, de geração, dentre outras formas de negação de direitos instituídas historicamente nos modelos de desenvolvimento capitalista e neoliberal.

Para além disso, é fundamental reiventar os modelos pedagógicos que norteiam as práticas educativas no contexto 179

das escolas do campo centrados numa pedagogia clássica voltada à transmissão acrítica de conteúdos, descontextualizados e sem uma vinculação com os contextos sociocultrais dos/ as educandos/as, portanto, modelos educativos desenraizados culturalmente, associados aos projetos colonizadores fundados nos interesses políticos e pedagógicos norte-americanos e europeus.

2.1 As estratégias pedagógicas para o desenvolvimento de práticas educativas interculturais Os projetos educativos construídos na perspectiva intercultural precisam, num primeiro momento, oportunizar aos/as educandos/as tempos e espaços de pesquisas e estudos de seu próprio contexto sociocultural. É fundamental pensar em estratégias pedagógicas que favoreçam a inserção crítica das crianças e jovens no universo da cultura local como estratégias de reconhecimento das experiências e práticas sociais construídas historicamente pelo seu povo. O reconhecimento da história e da memória de sua comunidade é um caminho importante para o reconhecimento de si enquanto sujeito social que tem uma história coletiva que deve ser valorizada e visibilizada como forma de afirmar-se no mundo.

Nessa perspectiva, o resgate das histórias, das brincadeiras, das cantigas, dos rituais, dentre outros elementos da cultura camponesa, constituem-se em estratégias pedagógicas importantes para a reinserção das crianças e jovens no contexto histórico e cultural da comunidade, levando-os a redescobrirem os significados políticos e culturais presentes nestes elementos da cultura que dão vida às práticas sociais das pessoas. Compreender o significado dos elementos presentes na cultura do campo é um meio de manter viva esta cultura e a memória histórica desta gente.

O trabalho com os aspectos lúdicos da cultura camponesa pode ser uma estatégia pedagógica importante de 180

instigar os/as educandos/as a adentrarem em questões mais complexas de estudos e pesquisas da realidade sociopolítica e cultural do campo. Os textos das músicas, das histórias e dos causos contados e cantados pelos camponeses estão permeados de aspectos históricos e políticos que podem transformar-se em teias e fios que se entrelaçam com os elementos sociais, políticos e econômicos da comunidade, desvelando cenários e paisagens pouco discutidas e refletidas pelas crianças e jovens no contexto da escola.

As próprias brincadeiras das crianças estão permeadas de elementos da vivência cotidiana que podem ser problematizados no sentido de fazê-las refletir sobre sua condição histórica no mundo, evidenciando as especificidades da vida do campo e as diferenças presentes entre os modos de ser/estar no mundo com aqueles vivenciados em outros territórios, destacando sigularidades, semelhanças, diferenças, riquezas e contradições implícitas nestes modos de viver nos diferentes contextos históricos e culturais.

De acordo com Brougère (1998, p. 103), o brincar é um elemento da cultura dotado de significações sociais que permitem compreender determinada sociedade. Desse modo, o brincar, como toda atividade cultural, é constituído por um sistema de significados e de interações simbólicas que possibilitam a imersão das crianças no mundo. Nesta perspectiva, o ato de brincar constitui um importante instrumento de reconhecimento e afirmação da cultura do campo, bem como de compreensão crítica de diferentes aspectos da realidade sociocultural e política do mundo rural.

Neste esforço de trazer à tona as histórias e as práticas sociais dos sujeitos do campo, é fundamental criar processos educativos de reconhecimento e valorização das diferenças culturais presentes neste contexto, superando o “daltonismo cultural” imposto pelos modelos hegemônicos de pensar a sociedade e as práticas culturais a partir de determinados padrões culturais (STOER; CORTESÃO, 1999).

181

Os processos educativos precisam evidenciar as riquezas culturais presentes no campo brasileiro e os diferentes modos de cultivar a terra, relacionar-se com a natureza, os diferentes meios de produção da vida, bem como os modos de organização social, as tradições culturais e folclóricas, de celebração da vida, entre outros. O reconhecimento desta diversidade no meio rural constitui-se num mecanismo de construção de um novo olhar sobre este território, para além dos estereótipos e visões preconceituosas, desvenlando um campo diverso, rico culturalmente e cheio de possibilidades de vida, no entanto, permeado por contradições e práticas de exclusão e negação de direitos sociais.

A construção de espaços e tempos nas escolas para os “relatos autobiográficos” e as “trocas de experiências” entre os/as educandos/as constitui uma estratégia interessante para se compreender como as diferenças socioculturais estão presentes no contexto do campo e como elas refletem no modo de ser/estar dos sujeitos no mundo. A partir das histórias de vida dos/as educando/as é possível construir leituras importantes sobre seu contexto histórico e cultural, utilizando-se dos conhecimentos das diferentes áreas do conhecimento, para se construir uma compreensão aprofundada acerca dos elementos sociais, políticos e culturais que estão implícitas nas experiências das famílias camponesas.

Desse modo, o estudo do contexto, a partir das histórias de vida, bem como de uma imersão programada de pesquisa sobre a realidade é possível estabelecer fecundas articulações entre as diferentes áreas do conhecimento, bem como instigar a confrontação entre estes saberes e práticas sociais, evidenciando as diversas concepções presentes nos modos de conhecer e compreender o mundo, implicadas em diferentes perspectivas políticas e ideológicas, refletidas também no modelo de desenvolvimento adotado no meio rural.

Do ponto de vista dos dispositivos didáticos, os proje182

tos temáticos interdisciplinares, inspirados na pedagogia freireana, são os mais utilizados pelas escolas do campo com o propósito de aprofundar os estudos da realidade, bem como de produzir conhecimentos que favoreçam aos educandos/as uma inserção crítica nesta realidade, visando ao desenvolvimento de estratégias voltadas a melhoria da qualdiade de vida da população camponesa.

Neste trabalho com os projetos temáticos, os/as educandos/as assumem um papel de destaque na construção das alternativas de estudos e pesquisas, assim como, no processo de construção do conhecimento, favorecendo, por um lado, que as experiências e as leituras de mundo dos sujeitos do campo, construídas a partir da sua inserção/vivência nas lutas sociais, sejam reconhecidas e valorizadas no processo de investigação; por outro, que educandos/as sejam os protagonistas no processo de construção do conhecimento, assumindo o desafio de apresentar respostas e soluções para os problemas e as demandas sociais em questão.

Desse modo, é importante que as estratégias políticas e pedagógicas utilizadas no desenvolvimento das práticas educativas implementadas nas escolas do campo possam, por um lado, superar os paradigmas hegemônicos de produção do conhecimento dissociados do contexto sociocultural do campo, permitindo que o ato de conhecer se constitua num processo rico de trocas de experiências e inserção crítica dos/as educando/as no mundo da cultura; por outro, que a compreensão do campo e das experiências históricas dos camponeses sejam compreendidas a partir de novos referenciais políticos e ideológicos, desmitificando leituras e concepções excludentes e preconceituosas acerca dos modos de vida do campo e de suas perspectivas de vida e desenvolvimento, pautadas na solidariedade e sustentabilidade.

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Considerações finais Se, por um lado, tivemos avanços significativos no âmbito da legislação educacional com a instituição de dispositivos legais que obriga o estado brasileiro a desenvolver políticas e projetos que fomentem o desenvolvimento de práticas educativas e curriculares voltadas à afirmação e ao reconhecimento das práticas sociais e culturais dos diferentes grupos sociais, colocando-os como protagonistas da construção do conhecimento nas escolas, por outro, temos o grande desafio de fazer com que estas conquistas possam ser materializadas nas centenas de escolas situadas no meio rural brasileiro.

O fato é que temos ainda uma estrutura de estado constituída a partir de determinados padrões culturais e científicos focada num pensamento hegemônico, que inviabiliza e/ou dificulta a concretização de inúmeras conquistas históricas dos movimentos sociais. Dentre os principais desafios, destaca-se a formação de novos profissionais da educação comprometidos com a implementação de políticas públicas que dialoguem com os saberes e as práticas socioculturais advindos do contexto das diversidades. É importante ressaltar que as experiências formativas e profissionais dos/as educadores/as de demais agentes públicos foram construídas, em grande medida, a partir dos referenciais políticos e epistemológicos que dão sustentação ao pensamento eurocêntrico e/ou norte-americano, que as impedem de reconhecerem as especificidades socioculturais.

Este cenário exige profundas mudanças no âmbito das políticas públicas, enquanto alternativa de garantia dos direitos socais e, de modo específico, do sistema educacional brasileiro, colocando novos desafios para as políticas educacionais, principalmente no campo da formação docente e na redefinição das políticas curriculares, pois, se por um lado, temos que democratizar as escolas e universalizar a educação 184

básica, garantindo o acesso aos diferentes grupos sociais, por outro lado temos que pensar numa política de formação que prepare os profissionais da educação para acolher esses educandos em sua especificidade, complexidade e diferença, garantindo não só as condições da inclusão social, mas também a sua inserção enquanto sujeito no contexto sociopolítico e cultural brasileiro.

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A INFÂNCIA DO CAMPO: DAS GARANTIAS LEGAIS À MATERIALIZAÇÃO DO DIREITO À EDUCAÇÃO INFANTIL Keylla Rejane Almeida Melo Janaina Gomes Viana de Souza “A educação infantil do campo constrói as bases para a contraposição a um modelo de educação que simplesmente reproduz, nos territórios rurais, a cultura urbana dominante. Essa reprodução é dominação e a educação deve ser projetada para a emancipação das crianças constituindo um lugar em que elas possam se reconhecer como sujeitos de direito, de desejos e de conhecimento” (BRASIL, 2009).

1 Introdução O objetivo deste texto é possibilitar uma reflexão sobre o direito das crianças de 0 a 5 anos, residentes no campo, à educação de qualidade. Historicamente renegadas à condição de exclusão, essas crianças ou foram esquecidas no cerne das discussões legais e teóricas ou limitadas a beneficiárias de políticas compensatórias precárias e desvinculadas de suas reais necessidades e potencialidades formativas.

Fundamentados em estudiosos como Barbosa, Gehlen e Fernandes (2012), Arroyo (2011) e Rosemberg (2010) discutimos a situação histórica dessas crianças dentro do duplo processo de exclusão histórica: a infância como categoria social cujas políticas destinadas a ela resumiram-se a ações assistencialistas, que não reconhecia as crianças como cidadãs, sujeitos de direitos; e a infância do campo enquanto parte dos povos historicamente concebidos como atrasados, em extinção, portanto, silenciados, esquecidos ao longo dos 189

tempos tanto pelos governos quanto pelos estudiosos. Nesse contexto, analisamos as garantias legais e a ampliação das discussões teóricas em torno da infância do campo, ao longo das últimas décadas, no tocante ao direito à educação, enfatizando as formas de atendimento escolar.

Finalizamos o debate traçando uma breve análise das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, no que concerne à infância do campo, e debruçando-nos em estudos e experiências de Educação Infantil do campo direcionadas às crianças que ali residem, que buscam atendê-las em suas necessidades e interesses, levando em conta seus valores, sua cultura, seu contexto de vida, seus modos de viver a infância. Essa análise de estudos e experiências visa à construção de uma educação que as conceba como sujeitos sociais, como protagonistas do processo educativo e que as conduza à emancipação humana.

2 Da negação de direitos à luta pela concretização das garantias legais A Educação Infantil no Brasil é resultado de um processo dinâmico, não-linear, carregado de avanços e retrocessos, realizações nem sempre compatíveis com as intenções, mas na direção de garantias que vão sendo asseguradas, pelo menos, no âmbito legal. Nesta seção, objetivamos situar a Educação Infantil no contexto histórico brasileiro, visando a uma compreensão da relação existente entre as transformações sociais e o reconhecimento da criança como sujeito de direitos que passa a ser assistida não apenas pela família, mas também pelo poder público e por toda a sociedade.

Mudanças econômicas, políticas, ideológicas fazem da história da Educação Infantil no Brasil um processo de lutas de educadores e educadoras e da sociedade civil organizada em movimentos sociais em prol de direitos das crianças e das 190

mulheres, dentro de um conjunto de expectativas em torno da construção de uma sociedade mais democrática, includente das minorias até então marginalizadas. A trajetória do atendimento às crianças pequenas primeiro se fez sob a égide da assistência social para, mais tarde, vincular-se aos sistemas de educação.

Nesse cenário, destacamos que esse processo de reconhecimento da criança como sujeito de direitos não se deu do mesmo modo e no mesmo tempo para as crianças da cidade e para as crianças do campo, pois, conforme afirma Arroyo (2011, p. 180) “[...] essa visão segregada da infância vai mudando; para algumas infâncias, muda mais rápido; para outras, demasiado lento”. Para a infância do campo, é um processo lento, tendo em vista esta carregar o mesmo estigma que carregou, por séculos, as populações rurais: pessoas fora de lugar, por residirem num contexto de produção agropastoril e que, portanto, tendem a desaparecer pelo próprio processo natural de modernização da sociedade. Sendo assim, o espaço do campo não visto como lugar de moradia, de sobrevivência, de relações sociais. Dessa forma, para que se formular e implementar políticas públicas específicas de atendimento a essas populações?

Nesse sentido, Barbosa, Gehlen e Fernandes (2012, p.

75), em análise de dados produzidos em pesquisa nacional intitulada Oferta e demanda de Educação Infantil no campo, denunciam: “Essas crianças, no entanto, também sofrem as discriminações que derivam dos estigmas ‘do atraso’ em relação ao urbano, da pobreza, da ausência de educação e cultura e do conservadorismo”.

No espaço urbano, as mudanças de concepções de criança, de desenvolvimento infantil, de políticas sociais, de atuação do Estado, do papel social da mulher levam ao reconhecimento da Educação Infantil como espaço e tempo importantes para a garantia de direitos da criança e da mulher 191

trabalhadora, que devem ser assegurados pelo Estado em forma de políticas públicas que atendam às crianças de forma integral. Essas mudanças de concepções possibilitam pensar o cuidado/educação da criança pequena não apenas como papel exclusivo da família, de preferência da mãe, mas redimensionar esse pensamento para o compartilhamento dessas funções entre diversos atores e em diferentes espaços sociais.

Essa nova forma de pensar foi necessária para a institucionalização da infância em espaços planejados para tal.

Foram as transformações nas estruturas familiares que encerraram o reconhecimento da importância da Educação Infantil na sociedade urbana atual, marcada por arranjos familiares diversos. Para Haddad (2002, p. 92): [...] o declínio das fontes de socialização no interior do espaço doméstico afeta diretamente as condições de desenvolvimento infantil, sobretudo no que se refere às funções tipicamente humanas de agir, comportar-se, pensar e sentir-se como um ser social e constituir-se como sujeito. Isso impõe a urgente necessidade de espaços alternativos, extraparentais de cuidado, socialização e educação infantil.

Se essas mudanças são sentidas no contexto urbano a partir da década de 1970, com os processos de industrialização e urbanização, ainda hoje, em pleno século XXI, no espaço rural ainda se sustenta a concepção de que lugar de criança pequena, sobretudo na faixa etária de 0 a 3 anos, é no seio familiar. Mesmo nos dias atuais os vizinhos e parentes exercem a função de auxiliares no cuidado das crianças.

No entanto, de forma tímida, essa concepção vem mudando, tendo em vista o reconhecimento de que a criança é um sujeito que necessita também de outros espaços para se socializar, desenvolver sua autonomia, ser educada e cuidada. Nesse ínterim, os movimentos sociais do campo vão ampliando seus espaços de luta em prol de uma Educação Infantil para todas as crianças campesinas. Lutam pela insti192

tuição de políticas públicas educacionais que atendam a essas crianças em suas especificidades.

No bojo dessa luta, algumas experiências de educação infantil no/do campo vão sendo gestadas por esses movimentos, a exemplo da Ciranda Infantil, desenvolvida pelo MST, a qual daremos mais ênfase na seção a seguir. Essas experiências, mais do que escolarização, têm se constituído em verdadeiros espaços de produção de arte, cultura e socialização, apesar da estrutura precária que a elas são oferecidas, pois há inadequação, escassez de recursos didáticos e da própria formação de professores para atuar na perspectiva do desenvolvimento de Educação Infantil compatível com as necessidades socioculturais dos educandos e com as proposições da educação do campo.

Esse cenário legitima a luta da sociedade civil organizada, no intuito da garantia dos direitos das crianças campesinas à educação de qualidade, pois, concordando com Arroyo (2011, p. 180), as crianças mais penalizadas com a ausência de políticas públicas, de sistemas públicos, de financiamento público, são “[...] os(as) filhos(as) das famílias populares submetidas a condições precaríssimas de reproduzir a vida familiar”.

Para se ter clareza dessas penalidades impostas àqueles sujeitos de vida precarizada, basta analisar a forma como se deu o atendimento das crianças em idade pré-escolar nas zonas rurais dos municípios. A partir da instituição do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério – FUNDEF, as prefeituras começaram a matricular no Ensino Fundamental as crianças de 6 anos de idade, que até então, pela Lei nº 9394/96, deveriam estar na Educação Infantil, modalidade educacional de competência dos municípios. Em sua dissertação de mestrado, Lima (2010, p. 55) analisa bem as dificuldades enfrentadas pela Educação Infantil com essa redefinição de sua competência: 193

Diante de tantas limitações, uma das alternativas encontradas por muitos governos municipais para ampliar o atendimento na Educação Infantil foi a inclusão da criança, de seis anos de idade, no Ensino Fundamental[...] Isso viria a confirmar duas coisas: primeiro, que criamos as leis, mas não damos as condições de se efetivarem, permanecendo a velha dicotomia teoria versus prática; segundo, que a quantidade e não a qualidade é o que mais pesa nas decisões políticas, pois, se de um lado nem as escolas tinham estrutura, nem os professores estavam preparados para receber esse público, por outro essas crianças valiam dinheiro já que seriam contabilizados nas contas do FUNDEF. Assim, utilizando um trocadilho, seria unir o útil ao agradável. Enquanto segue a disputa por crianças de 06 anos nas redes municipais, as crianças em idades inferiores ficaram desassistidas [...]

Dessa forma, por mais que na zona rural a situação fosse mais gritante, também na zona urbana era possível constatar, sem dificuldades, crianças de 6 anos de idade sendo atendidas em condições precárias de escolarização: classes superlotadas; carteiras escolares projetadas para adultos; muito tempo sentadas realizando atividades mecânicas de escrita e sendo submetidas a provas de aferição de conhecimentos. Enquanto isso, as crianças menores de seis anos continuaram na mesma situação de atendimento até a instituição do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação - FUNDEB, que passou a destinar recursos também para a Educação Infantil (EI).

Com o financiamento do FUNDEB, o atendimento em termos quantitativos se ampliou, mas a falta de qualidade se faz sentir pela contratação absurda {sugestão: repensar o adjetivo – absurda} pelos municípios de professores que ainda não possuem formação em nível superior, pela falta de infraestrutura escolar e de materiais didáticos e pedagógicos adequados às crianças pequenas. Dessa forma, reafirma-se o pensamento de que a instituição do FUNDEB pode não re194

presentar melhoria da qualidade caso o recurso não seja bem aplicado, pois se sabe que os custos de uma Educação Infantil de qualidade são altos, requerendo dos municípios complementação aos recursos que são repassados através do Fundo.

Isso requer da população mobilização na cobrança de priorização desta etapa da educação básica pelo poder público municipal. Rosemberg (2010, p. 174) nos alerta que “[...] é indispensável manter a mobilização social pela causa da EI para que a aplicação da lei do FUNDEB na EI contribua para o bem-estar da criança [...]”. Sabemos que os recursos destinados ainda representam um quadro discriminatório, uma vez que são inferiores aos destinados para o ensino fundamental. É um ganho histórico, mas que pode não representar a melhoria do atendimento caso não seja bem aplicado pelo poder público municipal.

Há ainda uma grande questão vivenciada dentro desse contexto histórico: a obrigatoriedade da educação escolar para crianças na faixa etária de 4 e 5 anos. A aprovação da Emenda Constitucional nº 59/2009 acirra ainda mais as discussões em torno desse direito, pois se teme que o atendimento às crianças de 0 a 3 anos fique renegado pelo Estado por não ser obrigatório. A lei garante a obrigatoriedade da matrícula das crianças de 4 a 5 anos na Educação Infantil, no entanto essa matrícula não é condição para o ingresso no ensino fundamental. Os debates em torno dessas questões tendem a se ampliar, pois os movimentos em defesa dos direitos da criança buscam a garantia do atendimento a todas as crianças, sem distinção de faixa etária, condição social, gênero, raça, localização geográfica. Conforme Arroyo (2011, p.

181): “Para a infância pobre, negra, dos campos e periferias está muito distante seu reconhecimento como sujeitos de direitos”. É exatamente por isso que podemos afirmar que há um duplo processo de exclusão a ser superado pela infância do 195

campo. A materialização dos direitos garantidos pela legislação a partir do final da década de 1990, tanto em relação à educação de qualidade para as crianças de 0 a 5 anos quanto em relação ao atendimento das crianças em seus próprios contextos de vida, respeitando-se seus interesses, suas necessidades, suas potencialidades.

Diante do exposto, vale reafirmar a importância de o direito à Educação Infantil retratar a igualdade de oportunidades para todas as crianças, seja da zona rural, da zona urbana ou da periferia. A Educação Infantil só poderá ser qualificada como garantia de direitos da criança caso se configure como espaço e tempo de atendimento de qualidade, em que todas as crianças se beneficiem em todos os aspectos, tendo em vista ser essa etapa da educação básica importante tanto para o desenvolvimento integral da criança como para a possibilidade de sucesso nas outras etapas da educação escolar.

O atendimento de qualidade para crianças pequenas, como referido anteriormente, exige investimento, sendo inconcebível cuidado diferenciado das crianças pobres por meio de programas assistenciais de baixo custo para o poder público, enquanto as crianças das classes favorecidas da população são atendidas em instituições qualitativamente estruturadas para o atendimento de suas necessidades e desenvolvimento de suas potencialidades.

Essas desigualdades existentes ainda são amarras à instituição da Educação Infantil no Brasil como direito da criança. Pelo menos temos a possibilidade da igualdade de atendimento como direito legal, mas a luta dos movimentos sociais em prol da infância e, nesse contexto específico, da infância do campo, ainda é árdua para que as intenções legais materializem-se em práticas de cuidado e educação de qualidade para todas as crianças sem distinção de qualquer natureza. Assim, percebemos que ainda temos um longo caminho a trilhar na constituição da Educação Infantil como um direito social da criança que, definida como competência dos muni196

cípios na legislação educacional, precisa ser mais bem atendida em termos de recursos financeiros, materiais e humanos.

3 Proposições de Educação Infantil para as crianças do campo: entre textos e possibilidades Para dialogarmos nesse tópico, tomamos como premissa a ideia de que a criança é sujeito histórico e de direitos que constrói sua subjetividade nas relações que estabelece com diferentes pares no decorrer da infância. Podemos afirmar que as proposições de Educação Infantil, pensadas por meio de documentos legais e desenvolvidas através de propostas pedagógicas presentes no seio das instituições escolares, deveriam considerar a criança como centro do planejamento curricular, instituindo-a como protagonista destas proposições, valorizando tanto sua identidade e unicidade como o contexto sociocultural em que vivem.

Em face do exposto, compreendemos que, apesar de nos últimos dez anos presenciarmos um surgimento significativo de documentos, projetos e programas voltados para o atendimento às crianças de 0 a 6 anos em âmbito nacional, é nítido o fato de que a maioria desses materiais produzidos deixa muito a desejar quando se trata da Educação Infantil para as crianças do campo, o que torna o cenário educacional ainda mais preocupante, uma vez que menos de 30% das crianças residentes nas áreas rurais do Brasil estão matriculadas na Educação Infantil, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra a Domicílio - PNAD de 2009 (IBGE, 2009).

Em se tratando especificamente de Educação Infantil do Campo, o Ministério da Educação vem, desde 2008, mobilizando vários setores públicos em prol da melhoria do atendimento a essas crianças que se encontram em idade de frequentarem a Educação Infantil. Isso pode ser comprovado por meio da elaboração e publicação das Diretrizes Complementares, Normas e Princípios para o desenvolvimento 197

de Políticas Públicas de atendimento da Educação Básica do Campo (Res. CNE/CEB, nº 2, de 28/04/2008); Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Infantil (Res. CNE/ CEB, nº 5, de 17/12/2009); Formação do grupo de trabalho para estruturação das Orientações Curriculares para Educação Infantil do Campo (2008), entre outros marcos legais e ações voltadas para a consolidação de práticas pedagógicas e vivências significativas às crianças que vivem no campo.

No intuito de aprofundarmos o diálogo sobre essa temática, recorremos à Resolução nº 5, de 17 de dezembro de 2009, que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil – DCNEI (BRASIL, 2009). Tal documento traz em seu bojo um item extremamente importante para se refletir sobre a Educação Infantil no/do campo em um viés que, no mínimo, nos causa certa inquietação por sua natureza prescritiva de caráter econômico, principalmente no que diz respeito às propostas pedagógicas para a Educação Infantil destinadas às crianças filhas de agricultores familiares, extrativistas, pescadores artesanais, ribeirinhos, assentados e acampados da reforma agrária, quilombolas, caiçaras e povos da floresta.

Eis a parte das Diretrizes que nos convida a refletir sobre a possível materialização de algumas proposições para a Educação Infantil do Campo – EIC (BRASIL, 2009, p. 21): Reconhecer os modos próprios de vida no campo como fundamentais para a constituição da identidade das crianças moradoras em territórios rurais; Ter vinculação inerente à realidade dessas populações, suas culturas, tradições e identidades, assim como a práticas ambientalmente sustentáveis; Flexibilizar, se necessário, calendário, rotinas e atividades respeitando as diferenças quanto à atividade econômica dessas populações; Valorizar e evidenciar os saberes e o papel dessas populações na produção de conhecimentos sobre o mundo e sobre o ambiente natural; Prever a oferta de brinquedos e equipamentos que respeitem as características ambientais e socioculturais da comunidade.

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Nesse tocante, podemos ressaltar a relevância deste e de outros documentos pensados para a Educação Infantil do Campo, como é o caso das “Orientações Curriculares para a Educação Infantil do Campo”, estruturadas em 2008. O diferencial dessas orientações se faz pelo fato de se apresentarem com viés um tanto prescritivo, porém extremamente relevante, pois ao final desse documento nos deparamos com algumas questões necessárias para serem feitas pelo coletivo de profissionais da creche e pré-escola do campo, tais como: ‘Que projeto de sociedade, sociabilidade e construção de subjetividades está presente na Educação Infantil que realizamos com nossas crianças?A proposta pedagógica foi discutida e elaborada com a comunidade? Ela é conhecida por todos?

Nossos espaços, tempos e atividades respeitam os saberes e a organização de vida social das comunidades locais? Aproveitamos e otimizamos os conhecimentos da própria comunidade? Entre muitas outras questões interessantes que podem servir como ponto de partida para os/as professores/as dialogarem e problematizarem a escola que temos e a escola que queremos ter no campo.

Sabemos, entretanto, que muitas experiências educativas gestadas no seio dos movimentos sociais, em práticas comunitárias, em programas, se apresentam como ricas possibilidades de construção de uma Educação Infantil que atenda às questões acima destacadas. No entanto, Caldart (2004) nos chama a atenção no sentido de que, apesar de essas iniciativas pontuais serem marcas de nossa resistência às pedagogias conservadoras, impostas aos povos do campo, não são suficientes, pois a luta deve ser travada para que a Educação do Campo se coloque como parte do sistema nacional de educação, como política pública.

Portanto, pela riqueza pedagógica que delineiam, essas iniciativas merecem ser analisadas no diálogo coletivo entre os/as educadores/as ao problematizarem suas teorias e práti199

cas, visando dar significado ao currículo, à organização dos ambientes, tempos e espaços, na Educação Infantil.

Nesse sentido, vale destacar o papel que tem desempenhado a Pedagogia do Movimento como referência pedagógica para a Educação do Campo, na medida em que se vincula a processos de transformação social e de emancipação humana.

Fruto dos movimentos sociais, e tendo como matrizes pedagógicas a Pedagogia Socialista e a Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire, esta Pedagogia busca entender como o ser humano se constitui histórica e socialmente, como sujeito que se forma ao transformar a realidade (CALDART, 2012).

Como materialização da Pedagogia do Movimento no tocante à educação de crianças, destacamos a Ciranda Infantil do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que se constitui em um espaço de educação não formal mantida por Cooperativas, Centros de Formação e pelo próprio MST. Tais espaços têm como objetivos organizar as crianças Sem Terra em coletividades, desenvolver o trabalho educativo, cuja perspectiva é da emancipação humana. As Cirandas Infantis Itinerantes acontecem em algumas atividades do MST, tais como: cursos, marchas, reuniões, congressos e as Cirandas Permanentes são as que funcionam nos assentamentos, nas escolas e nos centros de formação do MST (ROSSETTO; GOMES; PENA, 2001). Destinada ao atendimento de crianças de 0 a 12 anos de idade, a Ciranda Infantil organiza-se pela composição do núcleo de base, que tem como critérios, por exemplo, idade e gênero, e um dos seus objetivos é a auto-organização das crianças. Nesse sentido, O trabalho pedagógico se funda nas necessidades das crianças ou está baseada no coletivo das mulheres envolvidas na cooperativa. Nessa perspectiva, os educadores organizam e planejam os espaços pedagógicos de forma a garantir o equilíbrio entre as diferentes atividades – dirigidas, livres, individuais ou coletivas – e considerando os sujeitos envolvidos, a fim de que as atividades sejam adequadas e prazerosas para as crianças. [...] Em relação ao tempo de

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funcionamento da Ciranda Infantil ou de permanência da criança no espaço, ele varia segundo a necessidade das mães ou a necessidade da criança. [...] em diversos momentos as crianças maiores, com 7 a 12 anos, brincam com as mais novas, ajudando-as também em suas atividades pedagógicas. Todas as crianças em idade de escolarização freqüentam a escola do assentamento em outro período [...] É o espaço no qual constroem sua identidade de crianças Sem Terrinha e inventam, criam e recriam as coisas.

(ROSSETTO; SILVA, 2012, p. 126)

É, pois, possível constatar que esta experiência pedagógica reconhece os modos próprios de vida dos trabalhadores rurais sem terra, contribuindo para a constituição da identidade das crianças moradoras nos seus assentamentos e acampamentos, uma identidade da luta desses sujeitos pela terra, pela reforma agrária, por um novo projeto de sociedade. Para tanto, tempos, rotinas e atividades são flexibilizadas; os saberes e os jeitos próprios de produzir conhecimentos desses povos são valorizados; as brincadeiras, jogos, palavras de ordem, místicas, são possibilitados de forma a permitir a vivência da infância e a constituição do coletivo infantil, num processo de educação emancipadora.

Como experiência educativa, a Ciranda Infantil nos leva a questionar o regime seriado e disciplinar que se impôs no Brasil como único meio de organização da educação escolar o qual, segundo Arroyo (2004, p. 17), é um sistema falido, que tem produzido a exclusão de muitos. “A escola não pode acontecer dentro de quatro paredes, apenas nos tempos e espaços da sala de aula, temos que reinventar tempos e espaços escolares que dêem conta [da proposta de educação do campo]”, uma proposta que seja democrática e includente.

Partindo dessa proposta de democratização do conhecimento escolar, destacamos os ciclos de aprendizagem ou de formação, que enturmam os sujeitos da educação escolar em idades aproximadas, em períodos de três anos letivos, em média, compondo cada ciclo. Esses ciclos fundamentam-se 201

pela lógica de ampliação do tempo para que o aluno aprenda determinados conteúdos, pois “[...] independentemente do conteúdo anterior adquirido, os estudantes precisam ser provocados quanto ao desenvolvimento possível (motor, afetivo e cognitivo) de acordo com as idades em que se encontram”.

Dentro do ciclo, portanto, não há reprovação. Segundo Fetzner (2011, p. 93), Os ciclos de formação exigem uma orientação curricular flexível a ponto de permitir, nas instituições educativas, que as professoras e os professores construam o currículo, considerando os saberes e não saberes de seus estudantes. Ao mesmo tempo é indicada a necessidade de uma organização curricular em espiral, o que significaria a retomada de conteúdos considerados importantes, em todos os ciclos, capazes de mobilizar as potencialidades de crianças, pré-adolescentes e adolescentes, de acordo com cada faixa etária.

Esse currículo, organizado pela própria escola, por meio de temas geradores ou complexos temáticos, possibilita a articulação dos saberes escolares aos saberes da comunidade, numa perspectiva interdisciplinar, com horários mais extensos e atividades diferenciadas que visam atender às necessidades específicas dos estudantes. Tais atividades priorizam o trabalho em grupo, a troca de experiências e saberes e a ajuda mútua. Essa forma de organização curricular remete a “[...] práticas avaliativas coletivas, participativas e direcionadas para a reorganização das atividades, a busca de suporte adequado ao ensino e, também, direcionadas ao conjunto da escola” (FETZNER, 2011, p. 96-97).

Tais proposições educativas nos levam a problematizar o discurso dominante de que as classes multisseriadas ou multietapas ou multi-idades15 representam formas de organização escolar arcaicas, atrasadas, sem perspectiva de êxito.

Optamos por adotar esta denominação, tendo em vista a educação infantil não se organizar em séries e nem sempre as crianças desta etapa da educação básica estarem reunidas numa mesma turma com crianças do ensino fundamental.

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Se pensarmos pela ótica do modelo escolar hegemônico, esse discurso se sustenta, pois, embasado em interesses capitalistas, esse modelo visa à competitividade, à classificação e à exclusão daqueles que não se adéquam a tais interesses. Assim sendo, acreditamos que o problema não é a reunião de crianças de idades diferentes constituindo uma única turma de atendimento escolar, mas a precarização das escolas do campo, traduzida pela falta de investimentos públicos suficientes, de valorização e formação consistente do/da professor/professora, de materiais didáticos e pedagógicos, de recursos tecnológicos, de laboratórios, dentre outros.

Estudos como o de Silva (2013) nos levam nessa direção de questionar a rotulação das classes multi-idades como experiências negativas de educação escolar. Ao investigar as Salas Extensivas de educação infantil do campo, especificamente a experiência do município de Pancas/ES, a autora destaca tal experiência como possibilidade de ampliação do atendimento às crianças residentes no campo, de forma a garantir sua inclusão no sistema escolar, em seu ambiente de pertencimento.

Cada uma dessas salas está vinculada a um Centro de Educação Infantil Municipal (CEIM) urbano, já criado e em funcionamento no município, onde são efetivadas as matrículas das crianças que são atendidas por estas salas. Mesmo vinculadas aos CEIM, estes não orientam nem se comprometem com as decisões relativas às salas extensivas, o que tem possibilitado “[...] formas diferenciadas de funcionamento de cada sala, que encontra, nos jeitos e fazeres de cada professora, e das crianças (e suas famílias, além da comunidade local) uma maneira organizacional própria de ocupação do espaço e de definição de lugar” (SILVA, 2013, p. 62).

Conforme Silva (2013, p. 99), “a EI é considerada como um direito da criança e as políticas devem estar onde as crianças estão”. A partir desse ponto de vista, reafirmamos 203

a necessidade de a Educação Infantil ser oferecida nas comunidades onde as crianças vivem, em conformidade com o que prescreve a legislação. Dessa forma, apesar de as salas extensivas não contarem com uma infraestrutura adequada, configuram-se como uma experiência de resistência dos sujeitos do campo à possibilidade de estudar fora do seu contexto de vida. Assim, os espaços são adequados, na medida do possível, às especificidades da Educação Infantil, conforme nos coloca Silva (2013, p. 100-101): São lugares onde a EI acontece, onde os fazeres docentes são evidenciados nas atividades desenvolvidas pelas crianças. Onde o brincar também assume o caráter pedagógico e a construção, através de sucatas, explora o conhecimento presentes na vida humana. São os espaços praticados, exigindo do adulto responsável pelas crianças uma dinâmica sincronizada de atendimento das necessidades das faixas etárias presentes nestes lugares. [...] Como podemos acompanhar, as salas extensivas vêm buscando os seus espaços próprios em virtude das especificidades que apresentam.

Os espaços pedagógicos dessas salas, mesmo quando divididos com crianças do ensino fundamental, estão organizados de forma a promover o acesso autônomo das crianças aos materiais, brinquedos e livros, dispostos em cantinhos.

Além disso, há uma riqueza de detalhes nas salas, que ajudam as crianças a visualizar letras, números, palavras, mapas, relógio, material com diversas espessuras, cores e jogos. A maior parte dos brinquedos é fabricada pelas professoras, pelos pais e pelas crianças.

O planejamento didático-pedagógico é feito pelo coletivo das professoras das salas extensivas que, algumas vezes, são orientadas por um supervisor da Secretaria Municipal de Educação. Neste planejamento, os saberes da comunidade onde as crianças estão inseridas são valorizados, numa aproximação dos conteúdos escolares com a realidade das 204

crianças. As crianças são protagonistas nesse processo, por exemplo, quando elegem as brincadeiras de sua preferência e a professora, nas atividades planejadas, procura dar valor pedagógico a elas. As atividades são desenvolvidas não apenas na sala de aula, mas em todo o entorno da escola, principalmente nos momentos de brincadeiras e nos debates acerca da realidade das crianças. Enfim, como bem pontua Silva (2013, p. 117): A professora orquestra a sala. Ela pergunta, as crianças respondem; as crianças perguntam, a professora explica, responde, questiona. Se uma criança propõe cantar, todas param, cantam e voltam à atividade. Desenvolvem noção de lateralidade, equilíbrio, espaço. Assim o espaço vai sendo ocupado, vivenciado, tornando-se o lugar dos fazeres dos sujeitos, construído no dia a dia das salas extensivas. Recortam, colam, desenham, pintam, amassam, modelam, criam e recriam. Executam atividades que têm por finalidade desenvolver a criatividade, a coordenação motora fina e grossa. Escrevem em caixa-alta, ordenam os números, fazem correspondências entre símbolo e a quantidade. Ditam o ritmo, avisam o horário da merenda, que estão com fome. É a hora do intervalo, quando têm liberdade para brincar e olhar o que há lá fora. São salas de potência, de vida, de aprendizagens e de encontros com o outro.

Como vemos, muitas experiências e estudos em termos de oferta de Educação Infantil do campo têm sido desenvolvidos Brasil a fora, subsidiando a formulação de leis que garantam o direito social das crianças do campo à educação. No entanto, essas experiências que vão sendo estudadas e publicizadas precisam constituir políticas públicas de atendimento e não apenas em proposições pontuais, esparsas, sem comprometimento do Estado. Nesse sentido, é preciso mobilização social para que essa diversidade de estudos e experiências forcem iniciativas públicas de oferta, com qualidade, de uma Educação Infantil no campo condizente com as demandas das populações campesinas.

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Considerações Finais Diante do que até aqui nos foi possível discutir, constatamos que é inegável que as crianças de 0 a 5 anos, residentes no campo, têm legalmente assegurado o direito social à educação. No entanto, diferentemente do processo de institucionalização da infância ocorrido de forma lenta nos grandes centros urbanos, esse processo foi ainda mais desacelerado em áreas rurais, sobretudo para as crianças de 0 a 3 anos de idade, que ainda não possuem a obrigatoriedade de sua educação escolar garantida por lei.

Entretanto, não podemos negar os avanços advindos dos documentos legais que, hoje, asseguram a Educação Infantil como dever do Estado e da família, destinando recursos financeiros, mesmo que ainda insuficientes, e diretrizes de operacionalização. Também vale ressaltar as contribuições de diversos estudos e pesquisas na área da Educação Infantil do campo, que têm sistematizado diversas experiências educativas que se propõem a subsidiar a formulação de políticas públicas para a educação da infância campesina.

Nesse contexto, os movimentos sociais do campo, responsáveis por tensionar as exclusões historicamente sofridas por suas populações, forçando a garantia de direitos sociais, têm muito o que lutar para a materialização das proposições que, até agora, têm sido muito mais obra dos povos do campo do que iniciativas governamentais democráticas. Mesmo nas salas extensivas de Educação Infantil, que, apesar de terem sido criadas por Portaria Municipal, são as crianças, as famílias, a comunidade e, principalmente, as professoras, que têm criado as estratégias necessárias para a educação das crianças que são atendidas nesses espaços educativos.

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A INTERFACE ENTRE EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS E EDUCAÇÃO DO CAMPO: TENSÕES E PERSPECTIVAS Luiz Jesus Santos Bonfim 1 Introdução Mesmo considerando os avanços nos marcos normativos, o cenário atual da Educação de Jovens e Adultos (EJA) no Brasil ainda é preocupante, sobretudo para as pessoas do campo, que contam ainda na população com mais de 25 anos, um grande número de homens e mulheres analfabetos ou com o ensino fundamental incompleto. Essa realidade representa o histórico descaso com a educação dos jovens e adultos e, em particular, com as pessoas do campo, inclusive na oferta de escolarização para crianças e adolescentes. Os jovens e adultos, pelas suas especificidades, sentem de maneira mais forte a ausência de educação formal, principalmente a oferta de um ensino que reconheça as suas demandas e particularidades.

Com efeito, o que tem se observado é a presença histórica de programas que incentivam uma espécie de voluntarismo na EJA, principalmente relacionada à alfabetização.

Na última década esses programas ampliaram-se para outros níveis da educação básica e, na maioria dos casos, tem a frente pessoas com a formação (ou mesmo leigos) inadequada para atuar em processos educativos de jovens e adultos.

A despeito dessa discussão, Arroyo (2006) aponta o estado de construção em que se encontra o perfil do educador de jovens e adultos, predominando nas experiências existentes, uma formação generalista e universal que não contempla as especificidades desse público. Formar professores como se 209

os alunos de EJA tivessem o mesmo perfil de crianças ou de adolescentes traz, entre outros problemas, o uso de metodologias, recursos e materiais didáticos não condizentes com as especificidades do público a que se destina essa modalidade.

Os jovens e adultos não estão no mesmo tempo mental das crianças e adolescentes que frequentam a educação básica. O jovem e o adulto do campo têm um conhecimento sobre si, as outras pessoas, a cultura, a natureza, o trabalho, distintas.

Esse mundo, essa realidade, essas singularidades precisam ser comtempladas na EJA. Ao lançarmos um olhar crítico sobre esse cenário, percebemos a necessidade, entre outros aspectos, de uma política pública consistente de formação de educadores para EJA. Essas ações devem estar voltadas para projetos formativos que habilitem o professor para uma prática educativa crítica que possa valorizar as especificidades dos sujeitos jovens e adultos e contribuir para sua conscientização e autonomia.

Assumir, pois, uma prática educativa crítica na EJA na interface com a educação do campo, requer do educador posturas e ações específicas. De acordo com Freire (2009), é investir na esperança considerando os sonhos em meio ao pessimismo imobilizador de uma realidade embrutecedora, promovendo, por meio de uma prática educativa dialógica, o reconhecimento dos contextos, da cultura e da história dos educandos. Elementos estes historicamente silenciados nos contextos de educação formal. Nessa perspectiva, é necessário articular o conhecimento universal acumulado pela humanidade com a cultura, o modo de ver e viver, enfim com as especificidades dos jovens e adultos do campo. Ao assumir essa postura, o educador abre espaços para problematizar a realidade em que está inserido o educando, colaborando para a construção de uma consciência crítica.

Nesse sentido, Freire (1997) chama atenção para a importância do educador, na sua prática, não ser apenas um 210

memorizador de conhecimentos sem articulá-los com a sua realidade. O educador não pode ser neutro em relação ao conhecimento, é necessário assumir uma posição. Mas assumir uma posição implica também oportunizar os educandos vivenciarem alternativas, outros modos de enxergar a realidade. Agindo assim, estará estimulando os educandos a perceberem, que uma das belezas da nossa atitude de se fazer presente no mundo e com o mundo, é a nossa capacidade de aprender a partir das nossas intervenções como seres históricos.

Tendo como parâmetro essas reflexões iniciais, neste texto, discutimos sobre alguns limites e possibilidades da EJA na interface com a educação do campo. Nessa direção, apresentamos elementos dessa interface, na trajetória histórica, nos movimentos de luta e no cenário de práticas educativas e de formação.

2 EJA e educação do campo: intersecção de trajetórias A EJA e a educação do campo apresentam algumas confluências na sua trajetória. As demandas convergidas na educação de jovens e adultos e educação do campo apontam inicialmente para projetos de alfabetização que visavam reduzir os altos números de analfabetos, ao passo que buscavam instrumentalizar homens e mulheres para um modelo econômico que buscava substituir o arquétipo agrário exportador para uma economia centrada na produção industrial, consequentemente uma primazia do urbano em detrimento do rural.

No entanto, a educação popular e o próprio movimento social fizeram emergir propostas de educação de jovens e adultos e educação do campo alinhadas à ideia de valorização do campo e dos sujeitos.

A EJA passa a ser incluída como demanda educacional na Constituição de 1934, mas é a partir da década de 1940 que 211

são efetivadas as primeiras iniciativas de concretização de políticas públicas para a modalidade vivenciadas no cenário de início do processo de industrialização e consequente urbanização de algumas regiões. Além do contexto interno, de acordo com Haddad e Di Pierro (2000), aspectos no âmbito das relações internacionais fomentaram inciativas de desenvolvimento da EJA no Brasil, particularmente as denúncias da UNESCO que chamavam atenção para as desigualdades entre as nações e destacavam a importância da educação, em particular, a educação de adultos como alavanca no desenvolvimento dos países considerados atrasados. Assim, são instituídas várias inciativas.

Nessa direção, surgiram as primeiras ações de educação de jovens e adultos para o meio rural, fundamentadas numa compreensão de educação rural: [...] associado a uma educação precária, atrasada, com pouca qualidade e poucos recursos [...]. Tinha como pano de fundo um espaço rural visto como inferior arcaico. Os tímidos programas que ocorreram no Brasil para a educação rural foram pensados e elaborados sem seus sujeitos, sem sua participação, mas prontos para eles (FERNANDES, MOLINA, 2004, p. 36).

Essas inciativas são pontuais e não apresentaram resultados significativos para homens e mulheres do campo, pois tinham como premissa o urbano como local de desenvolvimento, não valendo à pena investir em espaço considerado ultrapassado. Via de regra, o que acontecia era a simples aplicação de um modelo educacional pensado para o urbano no meio rural, no qual as adaptações eram realizadas considerando, principalmente, a capacidade dos jovens e adultos acompanharem os conteúdos, fato que fazia com que ocorresse a supressão de determinados conteúdos.

De uma forma geral, as propostas de EJA buscavam contribuir para o desenvolvimento do país por meio da pre212

paração de mão de obra para um parque industrial em ampliação e para uma sociedade em processo de urbanização.

De acordo com Haddad e Di Pierro (2000), essas inciativas predominaram até o final da década de 1950, quando emergiu novas propostas fundamentadas, no que atualmente conhecemos como Educação Popular.

As novas propostas colocavam a escolarização para além da instrução, configurando assim um sentido político para a formação, com vistas à conscientização crítica e à emancipação. Nessa direção, de 1959 a 1964, surgem várias campanhas e programas, dentre eles, o Movimento de Educação de Base; a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil; o Movimento de Cultura Popular do Recife; os Centros Populares de Cultura; a Campanha De Pé no Chão Também se Aprende a Ler; o Movimento de Cultura Popular do Recife; o Programa Nacional de Alfabetização do Ministério da Educação e Cultura, entre outras iniciativas configuradas no âmbito da Educação Popular.

Essa movimentação em torno da educação de jovens e adultos teve forte presença do pensamento renovador cristão, do comunismo e de ideias que buscavam articular o desenvolvimento pela via nacionalista. Assume papel de destaque nessa discussão as ideias e experiências desenvolvidas por Paulo Freire. Esses programas, em grande parte estavam: [...] funcionando no âmbito do Estado ou sob seu patrocínio. Apoiavam-se no movimento de democratização de oportunidades de escolarização básica dos adultos, mas também representavam a luta política dos grupos que disputavam o aparelho do Estado em suas várias instâncias por legitimação de ideais via prática educacional (HADDAD, DI PIERRO, 2000, p. 113).

Essa realidade foi interrompida com o golpe de 31 de março de 1964, extinguindo a maioria dessas ações. As que continuaram em funcionamento, por conta da repressão e pri213

são de seus integrantes, ou tiveram que seguir em uma total ou parcial clandestinidade, ou abandonaram seu sentido político, continuando na via da catequização ou travestidos em programas governamentais que colocavam novamente a educação de jovens e adultos apenas no campo da instrumentalização.

No processo de redemocratização, ocorre uma retomada dos movimentos sociais urbanos e rurais impulsionados, entre outras bandeiras, pela educação popular. Essa nova realidade contribuiu para a intensificação das lutas, o que foi representado em conquistas por meio de normatizações e políticas que regulamentam a educação de jovens e adultas e educação do campo.

No cenário atual, Haddad (2007) aponta para uma nova concepção de EJA centrada no direito de todas as pessoas à educação, independente da idade. Esse direito, segundo o autor, diz respeito ao acesso à cultura acumulada historicamente e que tem na escola seu canal de transmissão. No entanto, a via de acesso a esses bens, a escolarização inicial, particularmente a alfabetização, parece que continua fechada a um contingente considerável de brasileiros.

Os números da escolarização de jovens e adultos no Brasil traduzem a dimensão do problema. A última PNAD, realizada em 2012 e divulgada pelo IBGE em 2013, aponta 8,3% da população com mais de 15 anos, aproximadamente 13,3 milhões de pessoas analfabetas. Outro dado preocupante é em relação ao ensino fundamental: 31,8% da população com mais de 25 anos de idade não concluiu este nível de ensino. No meio rural, os números são de 21,8% de analfabetos e de 47,7% que não concluiu o ensino fundamental (BRASIL, 2015).

No âmbito da formação de professores, busca-se desenvolver ações e projetos formativos que possam contemplar, entre outros aspectos, a valorização das especificidades do 214

público da EJA e da educação do campo. Nesse sentido, algumas ações e normatizações buscam dar encaminhamento a essa demanda, como leis e pareceres.

O Art. 61, parágrafo único, incisos I, II e III, da LDB 9.394/96, orienta que a formação deve atender aos objetivos dos diferentes níveis e modalidades de ensino, considerando as características de cada fase do desenvolvimento do educando, por meio da formação inicial e continuada (BRASIL, 1996). Nessa direção, o Parecer 11/2000 reforça a importância de se considerar na formação docente, a especificidade do público da EJA ao reconhecer a necessidade de adequação dos conteúdos, metodologia e materiais didáticos (BRASIL, 2000).

No entanto, o que vem ocorrendo de uma forma geral na formação de professores para EJA parece está distante das normatizações. Ventura e Bomfim (2015, p.214) discorreram sobre o “[...] silêncio existente nos cursos de licenciatura em relação à EJA, em que pese a complexidade dessa modalidade. [...] a frágil situação da formação docente inicial em EJA, em nível superior, se confunde com a da própria modalidade no Brasil”. Segundo os autores, isso é comprovado na ausência da EJA nas diretrizes curriculares de algumas licenciaturas, que culmina com a ausência da disciplina nos projetos pedagógicos dos cursos ou constando como disciplina eletiva.

Nos cursos de Pedagogia, onde comumente a discussão da EJA é mais presente, de acordo com Leôncio (2008) apenas 1,5% dos 1698 cursos de Pedagogia que funcionavam no Brasil, segundo dados do INEP, tinham habilitação específica na EJA. Portanto, na sua maioria, os cursos ofertam apenas uma disciplina no seu currículo, sendo que algumas vezes em caráter optativo.

Para além dos números, essas estatísticas representam os milhões de indivíduos que têm negado o direito à educação. Expressam também a continuidade da tensão histórica 215

na luta por uma escolarização que ultrapasse a dimensão instrumentalista. Apesar de termos passado o período de supressão dos direitos a uma educação popular, os anos de repressão provocaram o engessamento das conquistas que vinham se projetando. Isso fica claro ao analisarmos o quadro atual, marcado por inciativas educativas de jovens e adultos rarefeitas, descontínuas e de qualidade duvidável. Da efetivação dos avanços regulatórios conquistados nas últimas décadas, a distância percorrida parece que não foi significativa, principalmente quando consideramos os milhões de brasileiros que ainda encontram-se à margem da democratização do ensino amplamente divulgada.

Em relação à educação do campo, as conquistas são ainda mais recentes e necessitárias de consolidação. As marcas do paradigma da educação rural, a força da economia de capital representada pelo agronegócio, o crescente fechamento de escolas com as pessoas do campo tendo que se deslocar muitas vezes para escolas no meio urbano são problemas que colocam em evidência a necessidade de prosseguir em movimento, de prosseguir na luta.

Parte significativa dos jovens e adultos tem seu direito à educação negado por imposição de uma realidade socioeconômica que os coloca, muitas vezes, em condições desumanas na batalha pela sobrevivência, condição esta que os impede de pensar em outras questões, além das impostas pela luta diária em se manter e manter os seus. Quando investigamos a realidade de homens e mulheres do campo, percebemos que a lógica da exploração imposta pelo modelo capitalista também atravessa esse contexto, causando exploração e exclusão cada vez mais acentuadas.

No entanto, a partir desta realidade, de desumanização e violência impelidas às condições de vida do campo, de acordo com Caldart (2002), nasce o movimento por uma educação do campo. A educação almejada por esse movimen216

to não é qualquer educação, trata-se de uma proposta que, segundo Arroyo (2004), ultrapassa a visão de educação do campo como uma escolinha rural, quase caindo, quando qualquer coisa serve, afinal de contas para se pegar na enxada não precisa de muitos conhecimentos, apenas de uma professora que mal sabe ler para ensinar alunos a não saber ler. É na direção da superação dessa perspectiva de educação para o meio rural que os movimentos sociais constroem propostas que assumem corpo e se efetivam em políticas públicas a partir da primeira década dos anos 2000. Nessa nova concepção, a educação básica do campo é compreendida pela via do direito, para além de interesses econômicos, conforme nos adverte Arroyo (2004, p. 12): A educação básica tem que ser vinculada aos direitos. Não no espaço estreito do mercado. O mercado é muito pouco exigente com a educação básica, tanto de quem mora na cidade quanto no campo. Para trabalhar na cidade, para pegar o ônibus, para ler o número do ônibus, de poucas letras precisa o trabalhador urbano, para trabalhar na roça menos ainda.

O mercado nunca foi bom conselheiro para construir um projeto de educação básica.

O que podemos perceber é que as propostas educativas historicamente configuradas no meio rural não colaboraram para construção da identidade dos povos do campo. A imagem de campo como local de atraso que deveria se adequar ao modelo urbano, fundamentaram essas propostas. Dessa forma, é necessário se inspirar na lógica de funcionamento dos movimentos que deram origem à educação do campo, uma lógica de organização democrática, igualitária e que promova a inclusão de jovens e adultos do campo ao tratá-los com dignidade e respeito.

Nesse mesmo horizonte do reconhecimento de uma educação que promova a inclusão, Rummert (2007, p.125) 217

defende que a EJA, no contexto atual, deva se erguer em contraposição à realidade cáustica, da educação puramente instrumental, a partir da sua compreensão: [...] como o conjunto de processos educativos destinados àqueles que vivenciam diversas interdições que as profundas assimetrias de poder inerentes à sociedade capitalista impõem à classe trabalhadora, no que se refere ao acesso pleno ao conhecimento.

Com base nessa compreensão, a escolaridade de jovens e adultos deve proporcionar acesso a conhecimentos para além da simples preparação de mão de obra para o mercado de trabalho. O conhecimento deve possibilitar “[...] aos seres humanos se apropriarem das diferentes expressões da história de seu tempo – contidas nas tecnologias, nas ciências e nas artes – para compreendê-la criticamente e, sobretudo, para transformá-la” (RUMMERT, 2007, p. 125).

Com base nessa compreensão, não podemos aceitar uma acepção de educação de caráter exclusivamente instrumental ou de segunda categoria. Devemos superar a visão da EJA como recuperação de aprendizagens para contribuir para o “desenvolvimento econômico”, a partir da preparação de mão de obra para o mercado de trabalho ou ainda de forma supletiva. Com efeito, essa concepção de educação está suprimida dos elementos da cultura historicamente acumulada, configurando, assim, uma educação de segunda categoria, para um público também considerado de segunda categoria.

Assim, a EJA, na interface com a educação do campo, vai se constituindo na compreensão do direito desses homens e mulheres a uma efetiva participação social por meio do acesso aos bens culturais, mas também pela via da sua valorização como sujeito que tem história, anseios, mas que, acima de tudo, está em movimento na efetivação desses direitos.

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3 EJA e educação do campo: intersecção de práticas O tratamento secundarizado na formação inicial das licenciaturas, por vezes até a total ausência, repercute diretamente na prática educativa na EJA, uma vez que o currículo presente, invariavelmente, não é pensado para o público de jovens e adultos, trazendo, entre outras marcas, concepções que culminam na descontextualização dos conteúdos, dos materiais didáticos, repercutindo em práticas docentes distantes da realidade dos alunos que frequentam essa modalidade de ensino. Quando tratamos da interface EJA e educação do campo, a realidade é ainda mais severa, pois além de serem descontextualizadas das especificidades do público de jovens e adultos, são constituídas a partir do modelo de educação planejada para a realidade urbana.

Nessa direção, Arroyo (2006, p. 31) discorre sobre a necessidade de a EJA estar relacionada à realidade de seus sujeitos, às suas demandas, à necessidade do educador de jovens e adultos perceber e identificar essas nuances.

Eu diria que para a EJA são muito mais adequadas as formas narrativas, as experiências de vida, os significados que cada grupo humano vai encontrando na luta pela terra, pelo trabalho, nas vivências da cidade e do campo, da natureza e da sociedade.

Explicitar esses significados, aprender a captá-los.

Organizá-los, sistematizá-los.

Essa necessidade de relação da EJA à realidade de seus sujeitos coaduna-se com o que se propõe para a educação do campo, no sentido de se considerar, no processo educativo, as vivências dos educandos, seus modos próprios de sentir, pensar, produzir a vida. Dessa forma, pensar a EJA em escolas do campo é pensar uma educação que tenha sentido para esses homens e mulheres, que por viver no meio rural encontram-se duplamente excluídos. A primeira causa de exclusão 219

é pela esquálida oferta de educação para os jovens e adultos no campo. O segundo ponto que configura a exclusão é dessa oferta rarefeita ser planejada desconsiderando as especificidades do público a que se destina e do seu contexto, o campo.

Esse quadro faz com que os jovens e adultos do campo estejam cada vez mais alijados de participação social, permanecendo assim, em muitos casos, vulneráveis à manipulação e dominação de que já são vítimas históricas.

Nessa acepção, entendemos oportuno evocar Freire (1997, p. 101), que coloca como um dos saberes do professor, na sua prática educativa crítica, a possibilidade de intervir no mundo, de indignar-se em favor dos excluídos: O que quero repetir, com força, e que nada justifica a minimização dos seres humanos [...] Nada, o avanço da ciência e/ou da tecnologia, pode legitimar uma ordem desordeira em que só as minorias do poder esbanjam e gozam enquanto às maiorias em dificuldades até para sobreviver se diz que a realidade é assim mesmo, que sua fome é uma fatalidade do fim do século. [...] Minha voz tem outra semântica, tem outra música. Falo da resistência, da indignação, da justa ira dos traídos e dos enganados.

Colocar-se do lado dos excluídos, mostrar indignação quanto às injustiças históricas impostas a homens e mulheres alijados de participar das beneficies sociais é, antes de tudo, assumir como professor uma postura que valorize os educandos a partir da sua compreensão como sujeitos e não como depósitos de conhecimentos a serem preenchidos de forma passiva. Ensinar nesse sentido, de acordo com Freire (1997), não é a transmissão de conhecimento, mas oportunizar construir possibilidades para sua produção.

A tarefa do educador, então, é a de problematizar aos educandos o conteúdo que os mediatiza, e não a dissertar sobre ele, de dá-lo, de estendê-lo, de entregá-lo, como se tratasse de algo já feito, elaborado, acabado, terminado (FREIRE, 1997, p. 81).

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A problematização configura-se, assim, como uma reflexão sobre o conteúdo, produto de uma ação, ou mesmo sobre a própria ação, para realizar uma melhor ação, tendo como parâmetro a ação coletiva a partir da realidade. Nesse movimento de problematizar a realidade para melhorá-la, homens e mulheres vão construindo uma consciência crítica, a partir de seu papel de sujeitos na sua própria história, mediatizada pelo movimento dialético da subjetividade (consciência) e da objetividade (realidade) representado pela consciência crítica de sua existência no mundo e com o mundo.

Na medida em que a condição básica para a conscientização é que seu agente seja um sujeito, isto é, um ser consciente, a conscientização, como a educação, é um processo específico e exclusivamente humano. É como seres conscientes que mulheres e homens estão não apenas no mundo, mas com o mundo.

Somente homens e mulheres, como seres ‘abertos’, são capazes de realizar a complexa operação de, simultaneamente, transformando o mundo através de sua ação captar a realidade e expressá-la por meio de sua linguagem criadora (FREIRE, 2011, p. 107).

Uma prática educativa que fomente a consciência crítica só é viável a partir de uma metodologia que valorize esses sujeitos, seu mundo, sua cultura, seu contexto, a parir de uma postura que busque compreendê-los, entender sua realidade, que perpassa por uma atitude que possa dar voz e vez a esses sujeitos. Nessa direção, um dos elementos que propõe a intersecção da EJA e educação do campo está no entendimento das práticas e projetos educativos estarem sendo construídos com os sujeitos e não para os sujeitos, necessitando, portanto, assumir o diálogo como: [...] uma exigência existencial. E, se ele é o encontro em que se solidarizam o refletir e o agir de seus sujeitos endereçados ao mundo a ser transformado e humanizado, não pode reduzir-se a um ato de depositar ideias de um sujeito no outro, nem tampouco

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tornar-se simples troca de ideias a serem consumidas pelos permutantes (FREIRE, 1997, p. 91).

Nesse sentido, o diálogo não pode se constituir em perguntas sem direção, sem sentido, nem em responder apenas para cumprir a tarefa de emitir uma resposta. É necessário sair da superficialidade da realidade, do objeto a ser apreendido pelo simples ato de curiosidade; é necessária, para o desvelamento crítico por meio do processo dialógico, a compreensão de que não há uma separação entre a aquisição do conhecimento e o processo da descoberta e da construção do novo conhecimento; trata-se de tomar o ciclo gnosiológico em sua totalidade. Se ao contrário, priorizo uma das etapas desse ciclo, a objetividade (realidade) ou a consciência (subjetividade), segundo Freire (2011), elimino a conscientização, que só se concretiza quando vou além de reconhecer, quando experimento o movimento dialético teoria e prática, consciência e realidade, subjetividade e objetividade.

Na consideração desse pressuposto, a prática educativa na EJA na interface com a educação do campo necessita tomar, de forma problematizadora, os vários aspectos que permeiam a realidade desses sujeitos. Nesse sentido, os conteúdos escolares passam a ser contextualizados e a serem apreendidos pelos sujeitos, a partir dessa realidade problematizada, por meio de um movimento dialético entre a subjetividade e a realidade objetiva, entre a teoria e a prática. É nesse movimento que o mundo dos jovens e adultos do campo, suas representações, seu modo de viver, suas especificidades são colocados como protagonistas no sentido de promover a consciência crítica que possibilite a mobilização cada vez mais forte para mudar a realidade posta, realidade que cada vez mais exclui os jovens e adultos do campo.

A concretização da interface da EJA e educação do campo numa perspectiva de uma prática educativa que valorize as especificidades do público de jovens e adultos ao 222

passo que contribua para a conscientização crítica, passa pela reconfiguração da formação de professores.

Na formação inicial, é necessário que as licenciaturas incorporem nas suas diretrizes e projetos de curso, disciplinas que contemplem as discussões produzidas pelas investigações dos últimos anos sobre a temática. A formação continuada, segundo Di Pierro (2006, p. 287), deve acontecer de forma “[...] permanente e sistemática, já que requer tempo de amadurecimento e de sedimentação para que venha a incidir não apenas sobre os conhecimentos e as competências, mas também sobre os valores e as atitudes do educador”. É necessário, portanto, que a formação continuada possa assumir um paradigma formativo que rompa com a ideia da simples aquisição de conhecimentos técnicos impostos pela racionalidade instrumental. Nesse sentido, é imperativo considerar aspectos concernentes à pessoa do professor e sua prática, trabalhados em contextos de socialização e reflexão crítica. É nessa direção que Nóvoa (1995, p. 25) destaca a urgência “[...] de (re)encontrar espaços de interação entre as dimensões pessoais e profissionais, permitindo aos professores apropriar-se dos seus processos de formação e dar-lhes um sentido no quadro das suas histórias de vida”.

No âmbito da formação continuada de educadores de jovens e adultos é necessário valorizar o professor, suas práticas profissionais e a sua história de vida como elemento de discussão e reflexão crítica. Caso pretendamos que o educador da EJA mude sua prática, considerando as especificidades do público que atende, nada mais coerente que colocar, na sua própria formação, a sua valorização como pessoa e profissional.

Outro aspecto a considerar para atingir mudanças na prática do educador de EJA a partir da formação continuada, segundo Barreto (2006), é compreender que as práticas expressam representações mentais (teorias) de quem as executa.

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É necessário, portanto, compreender que os professores não apenas aplicam propostas e teorias impostas. Eles produzem representações que orientam sua prática. Assim, investir em processos formativos preocupados apenas em determinar novas formas de fazer, sem investir na compreensão das representações elaboradas pelos professores, tem poucas possibilidades de se efetivar na prática desses educadores.

Normalmente, essa mudança teórica se inicia quando o educador percebe que a sua própria ação está apoiada numa série de representações (teoria) e identifica quais são elas. Só, a partir daí, é possível estimular o diálogo entre as diferentes teorias, a começar pela variedade presente no próprio grupo de formação. Nessa troca é possível perceber valores superados, crenças equivocadas e descobrir novas representações que sejam mais pertinentes ou adequadas. Essas trocas, que contribuem para a mudança da forma de agir do educador, são, na verdade, um diálogo entre a teoria dele com a dos outros educadores que participam do grupo de formação e o deles com autores que refletiram sobre os mesmos temas (BARRETO, 2006, p. 96).

Assim, uma formação continuada que possa atender às singularidades da EJA deve ter na figura dos educadores, por meio da reflexão crítica e coletiva de suas práticas, seu escopo central. Nesses espaços formativos, os educadores têm a possibilidade de ressignificar, entre outros aspectos, concepções que contemplam um ensino generalista que não considera conteúdos, materiais didáticos e metodologias adequadas ao público de jovens e adultos. Essas ressignificações contribuem para construir um novo olhar para o educando da EJA, que enxergue nele um ser de possibilidades, que o professor possa compreender, de acordo com Freire (2006), que embora condicionado pelos inúmeros obstáculos erguidos, não está determinado ao fracasso e à condição desumana de excluído.

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Considerações finais Diante da discussão empreendida, constatamos que a educação de jovens e adultos e a educação do campo apresentaram em sua trajetória intersecções que representaram, e ainda representam, tensões e perspectivas na consolidação de uma prática educativa que possibilite aos jovens e adultos do campo a apropriação dos elementos da cultura universal, articulados com a sua realidade e especificidades, com vistas à construção de uma consciência crítica capaz de atuar na transformação para uma realidade menos excludente.

A trajetória histórica da educação do campo, entendida na sua gênese a partir do modelo da educação rural, e a trajetória da EJA, foram marcadas por uma visão compensatória ou de simples instrumentalização para o mercado de trabalho, portanto, desvinculada de uma perspectiva crítica da realidade dos sujeitos. No entanto, mudanças conquistadas pela mobilização dos movimentos da sociedade civil organizada vêm construindo uma pauta que possibilita, no cenário atual, identificar avanços e possibilidades na construção de uma prática educativa de jovens e adultos na interface com a educação do campo centrada na perspectiva de conscientização crítica da realidade.

Porém, muitos são os desafios. Apesar das conquistas em marcos legais, a falta de políticas públicas consistentes provoca tensões que inviabilizam a consecução de um projeto educativo para jovens e adultos do meio rural, na perspectiva de promover mudanças mais consistentes na realidade desses sujeitos.

Um desses desafios passa pela formação de professores para atuar na EJA. As experiências existentes apresentam o caráter rarefeito e descontínuo. Essa marca faz com que, entre outros aspectos, não seja considerado nos processos formativos, o perfil do jovem e adulto do campo, ocasionando 225

uma prática educativa planejada para crianças e adolescentes de áreas urbanas. Acrescentem-se, ainda, no rol de desafios, o grave problema da oferta de EJA no meio rural. Se na oferta de educação regular o problema do fechamento de escolas provoca o deslocamento das crianças e adolescentes para outras localidades, ou mesmo para áreas urbanas, na modalidade de EJA a oferta é ainda menor, ressoada pela quase uníssona justificativa da “falta de alunos para formar turmas”.

Em meio a esse cenário de tensões, as perspectivas de transformação passam, entre outros aspectos, pela via da construção de um processo educativo que possibilite o enfrentamento dessa realidade com intenção de modificá-la.

Nesse sentido, as práticas educativas dos professores na educação de jovens e adultos do campo devem se configurar na intenção de conscientização crítica desses sujeitos.

A consecução dessas práticas educativas só poderá se efetivar quando os sujeitos desse processo, homens e mulheres, jovens e adultos do campo, forem compreendidos a partir de uma visão humana de ser e estar no mundo. Isso representa a construção de práticas educativas que possibilitem problematizar elementos da realidade desses sujeitos e articulá-los a conhecimentos universais presentes nos conteúdos escolares.

Essa empreitada deve ser realizada por meio de uma prática dialógica, que possibilite articular, dialeticamente, elementos da subjetividade (consciência) e da objetividade (realidade), promovendo a apropriação e construção crítica de novas interpretações da realidade, tendo como norte a mudança para uma realidade menos injusta.

Assumir, pois, essa concepção de prática educativa na EJA na interface com a educação do campo passa por efetivar propostas formativas que valorizem a construção coletiva, a pessoa do professor, a reflexão crítica.

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A FORMAÇÃO DOCENTE COMO INSTRUMENTO DE RESSIGNIFICAÇÃO DAS PRÁTICAS EDUCATIVAS EM ESCOLAS DO CAMPO EM ÁREAS QUILOMBOLAS Linconly Jesus Alencar Pereira Maria Socorro Xavier Batista 1 Escravidão, racismo e desigualdade Os portugueses, para efetivar um processo civilizador colonialista sob o poder hegemônico, fundado numa racionalidade do lucro e da supremacia do eurocentrismo para garantir o processo de acumulação de capital, pilharam as riquezas naturais do Brasil, dizimaram e escravizaram as populações que aqui já viviam e ainda desertaram de suas terras populações africanas, para com o trabalho escravizado possibilitar a efetivação de produção e acumulação de capital e de imposição cultural.

Estimativas do IBGE indicam que a população africana traficada para o Brasil entre os séculos XVI e meados do XIX foi de cerca de quatro milhões de homens, mulheres e crianças, o equivalente a mais de um terço de todo comércio de tráfico de africanos, contribuindo para uma verdadeira diáspora dos povos africanos16.

A escravidão não foi branda, não poupou homens, mulheres e crianças de uma barbárie que até os dias atuais traz consequências nefastas para a maioria da população brasileira, o que é extremamente preocupante, tendo em vista o Brasil ser o país com a segunda maior população negra do mundo, correspondendo a 50,7%, que contabiliza 97 milhões de pretos e pardos, segundo o Censo 2010.

Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Brasil: 500 anos de povoamento. Rio de Janeiro, 2000. Disponível em: <http://brasil500anos.ibge.gov.br/ territorio-brasileiro-e-povoamento/negros>.

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Apesar da magnitude dessa população e da sua contribuição para a formação social brasileira tanto do ponto de vista econômico quanto social e cultural, foi constituído pelo projeto hegemônico eurocentrista um racismo ou preconceito racial, pois o projeto societário imposto era de uma sociedade civilizada baseada na cultura europeia, não deixando espaço para o negro nem na economia, pois eram excluídos do acesso ao trabalho, nem na cultura, pois desde que aqui chegaram suas manifestações culturais (religiosas, danças, música) foram reprimidas.

Esse projeto criou um sistema de apartheid social, excluiu o povo negro da sociedade segregando-o, negou-lhe o acesso e usufruto dos bens e riquezas socialmente produzidas e contribuiu para um imaginário no povo brasileiro imbuído de um simbolismo negativo, estigmatizando em papeis subalternos a cultura e tradições. Estas são hostilizadas e as religiões de matriz africana são demonizadas. Isso resultou num preconceito que perdura até os dias atuais, pois uma pesquisa realizada em escolas17 constatou que 99,9% dos entrevistados desejam manter distância de algum grupo social. Entre estes, 90,9% se refere a negros.

A situação de trabalho, salário e renda da população trabalhadora de cor preta ou parda, em 2013, revelou que persistem as desigualdades e a discriminação dessa população, pois ganhavam, em média, pouco mais da metade (57,4%) do rendimento recebido pelos trabalhadores de cor branca18. O desemprego também atinge mais esta população, como apresenta o IBGE (2013, p. 184): Pesquisa Preconceito e Discriminação no Ambiente Escolar, realizada pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) por solicitação do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), em 2009. Pesquisa realizada em 501 escolas públicas de todo o país, baseada em entrevistas com mais de 18,5 mil alunos, pais e mães, diretores, professores e funcionários.

18 As médias anuais do rendimento foram de R$ 1.374,79 para os trabalhadores de cor preta ou parda, enquanto a dos trabalhadores de cor branca foi de R$ 2.396,74.

Em 2012, esta razão era 56,1% e, em 2003, não chegava à metade (48,4%). Fonte IBGE, disponível em: <http://saladeimprensa.ibge.gov.br/noticias?view=noticia&i d=1&busca=1&idnoticia=2575>. Acesso em 11/10/2015.

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A distribuição da população desocupada, segundo o sexo e a cor ou raça mostrou uma predominância dos homens pretos ou pardos (55,2%) em relação aos homens brancos (43,9%), assim como das mulheres pretas ou pardas (56,0%) em relação às mulheres brancas (43,3%). Situação inversa à distribuição da população em idade ativa, segundo o sexo e a cor ou raça, população em idade ativa, na qual a população branca, seja masculina ou feminina, era maioria.

Além disso, a população negra também sofreu um processo de exclusão educacional. A taxa de analfabetismo de pessoas com 15 anos ou mais de pretos e pardos é de 13,6 %, enquanto que de brancos é de 6,2%. Em 2013, o grupo de pessoas de 15 a 24 anos que frequentava o nível superior, 31,1% dos estudantes eram brancos, enquanto apenas 12,8% eram pretos e 13,4% pardos. Em relação à Educação Básica a população preta e parda atinge 6,6 anos de escolaridade, enquanto a população branca frequenta em média 8,3 anos (BRASIL, 2009, p. 14). Na educação Infantil, para as crianças de 0 a 3 anos, apenas 18% das crianças tiveram acesso à creche. Das pretas e pardas, somente 15,5% e as de cor branca eram 20,7% (BRASIL, 2009).

Essa problemática que envolve a população negra motivou um grupo de professores da UFERSA a refletir e a construir uma proposta contra-hegemônica de formação de professores/as, do Curso de Aperfeiçoamento em Educação Escolar Quilombola realizado pela Universidade Federal Rural do Semiárido - UFERSA. As lutas dos ancestrais escravizados trazidos da África hoje se (re)significam, não apenas nas senzalas ou quilombos, e alcançam conquistas em todos os espaços sociais. No campo educacional se sobressaem as políticas de ações afirmativas e, em específico no Ensino Superior, conseguem o acesso e permanência da população negra.

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Políticas de reparações e de reconhecimento formaram programas de ações afirmativas, isto é, conjuntos de ações políticas dirigidas à correção de desigualdades raciais e sociais, orientadas para oferta de tratamento diferenciado com vistas a corrigir desvantagens e marginalização criadas e mantidas por estrutura social excludente e discriminatória. Ações afirmativas atendem ao determinado pelo Programa Nacional de Direitos Humanos, bem como a compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, com o objetivo de combate ao racismo e a discriminações, tais como: a Convenção da UNESCO de 1960, direcionada ao combate ao racismo em todas as formas de ensino, bem como a Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Discriminações Correlatas de 2001 (PEREIRA, 2012, p.17).

Esse marco histórico contribui para se (re)pensar práticas formativas e educativas para desconstruir, através da formação inicial e continuada de professores/as estereótipos, intolerâncias religiosas em relação as matrizes africanas e ao racismo, questões que tanto nos desafiam nos dias atuais e que enfrentamos nas universidades públicas de todo o Brasil.

Diante desse cenário esse artigo procura relatar as experiências positivas presentes no Curso de Aperfeiçoamento em Educação Escolar Quilombola, promovido pela UFERSA, através de demandas dos movimentos sociais negros e quilombolas, financiados pela Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão – SECADI. As reivindicações e lutas dos movimentos sociais negros decorrem de todo o período pós-abolição aos dias atuais, exigindo do Estado brasileiro a reparação às atrocidades realizadas através do escravismo criminoso. Carlos Moore (2012, p. 230-231) nos ajuda a refletir sobre a importância dessa proposta quando nos fala que o racismo: [...] por ser uma forma de consciência historicamente determinada[...], é fundamentalmente transversal, atravessa todos os segmentos da sociedade e todas

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as formas de organização social: partidos políticos, religiões, ideologias, etc. Afeta, ainda todas as camadas da sociedade, sendo um fator majoritário ainda no universo onde se sustenta emocionalmente e historicamente. Se o racismo resiste hoje com a virulência que possui, expandindo-se cada vez mais, apesar de todos os nossos esforços morais e culturais e de todos os avanços no conhecimento científico sobre o desenvolvimento das sociedades humanas é porque ele tem se convertido, ao longo do tempo, numa realidade tenaz, arraigada na consciência e na prática social, e que ele beneficia materialmente, em todos os sentidos, aos usuários de um sistema fenotipocêntrico. Não por outro motivo, ele se insere numa trama social global em que os evidentes benefícios obtidos na sua sustentação são muito maiores do que seus custos.

A aglutinação de forças e práticas antirracistas através dos movimentos sociais negros e quilombolas; a implementação da Lei 10.639/03, que inclui nos currículos escolares de forma inter e transdisciplinar o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira; as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola na Educação Básica; a Lei de Cotas nº 12.711/2012 tencionam ações contra-hegemônicas protagonizadas por atores coletivos, exigindo do Estado o desenvolvimento de políticas afirmativas. Esses grupos antes subalternizados pelo “racismo convertido” e dinâmico, agora entram em embate, possibilitando a criação e disseminação do conhecimento para os antes invisibilizados.

Esses atores sociais tornam-se autores dos processos de produção epistemológica, resgatando as memórias, sistematizando os saberes da tradição de base africana e afro-brasileiras de suas comunidades se autorreconhecendo enquanto sua ancestralidade e pertencimento étnico.

Atendendo a essas exigências, a UFERSA passa a dialogar diretamente com a Secretaria Estadual e Municipal de Educação na realização de ações de formação por meio do Comitê Gestor Institucional de Formação Inicial e Continu235

ada e da participação no Fórum das Relações Étnico-raciais e da Diversidade do Rio Grande do Norte. No ano de 2013, realizamos reuniões na Universidade com a presença de representações comunitárias de Quilombolas e do Movimento Negro nos possibilitando um outro olhar acerca das escolhas e critérios em relação às comunidades que foram atendidas.

Foi realizada então, pela equipe de coordenação do curso, uma pesquisa exploratória no ano de 2014, nos 16 municípios do estado do Rio Grande do Norte que possuem comunidades quilombolas. No decorrer da investigação, a fala de gestores das secretarias de educação e escolas, professores/ as, técnicos em assuntos educacionais da educação do campo e ativistas de movimentos sociais possibilitaram redimensionar o caminho a ser desenvolvido no curso, no sentido de possibilitar a (re)significação de práticas educativas que atuassem diretamente na construção de identidades negras positivas, a desconstrução de estereótipos e a ressignificação de olhares acerca da contribuição trazidas pelos escravizados no processo da diáspora.

Esse espaço dialógico foi propício para evidenciarmos questões como a construção das identidades sociais, que nesse processo de implementação de diretrizes e políticas de ações afirmativas na universidade tornaram-se pontos centrais no debate acadêmico. Essa construção vai ganhando forma, o que nos possibilita um olhar preciso acerca das identidades que emergem das relações presentes no discurso enunciado pelas populações negras.

Percebemos, diante da luz nos dada por Hall (2005), que as identidades sociais negras emergem nas práticas discursivas de estudantes negros/as, como definidas pela história, constantemente deslocadas, dinâmicas e transformadas a todo o momento. Essas identidades são produzidas na esfera do simbólico, por meio das significações dadas às experiências. Dessa forma, as identidades geram sentidos por 236

intermédio da linguagem, do simbólico e da representação por meio dos quais as identidades são produzidas (HALL, 2005; HOFFNAGEL, 1999; MUNANGA, 2006; PEREIRA, 2012). Nesse sentido, este projeto torna-se revolucionário no contexto do Semiárido Potiguar, vista tamanha desigualdade social e racial entre as pessoas, sendo o racismo no contexto escolar e no mercado de trabalho tão resistente quanto virulento (MOORE, 2012).

2 As Comunidades Quilombolas do RN e a Luta pela Terra, Escola e Políticas Públicas As estratégias de resistências traçadas pelos africanos e seus descendentes foram inúmeras, começando nas senzalas e expandindo-se para os quilombos, tendo na maioria das vezes os espaços religiosos como elos para os diversos grupos étnicos escravizados. Considerar essa dimensão é entender melhor o universo de constituição dos quilombos, possibilitando-nos transcender a concepção de “reduto de escravizados fugidos”, o que representa uma das mais significativas e simbólicas questões do debate no que diz respeito à igualdade racial no Brasil. Reis (1996 apud Moura, 2012, p.45) nos apresenta a concepção de “Quilombo derivado de Kilombo, sociedade iniciática de jovens guerreiros mbundu, adotada pelos invasores jaga (ou imbangala), formados por gente de vários grupos étnicos desenraizados de suas comunidades”.

O fator étnico e a territorialidade compõem a base da organização, o que move esses grupos para ação política e mobilização junto aos órgãos públicos na reivindicação dos seus direitos. Lançar esse prisma sobre o olhar de Arruti (2009) nos ajuda a perceber as mudanças sofridas pelos povos quilombolas que saem da condição de “quase folclóricos” para ativista na reivindicação dos seus direitos – localizados no mapa político nacional junto com os trabalhadores sem-terra 237

e indígenas como os três maiores movimentos em luta pela terra no Brasil.

As lutas das comunidades quilombolas se intensificam com o decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003, que regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras quilombolas.

O Artigo 68, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias – ADCT, da Constituição de 1988, garante a posse da terra aos grupos étnicos predominantemente constituídos pela população negra rural ou urbana que se autodefinem a partir das relações com a terra, o parentesco, o território, a ancestralidade, as tradições e práticas culturais próprias. Estima-se que em todo o país existam mais de três mil comunidades quilombolas (INCRA, 2015).

A partir do critério de autodefinição ou autoatribuição passamos a identificar um aumento sistemático do número de comunidades quilombolas que são reconhecidas pelo Estado como sujeitos de direitos, sujeitos a quem cabe indicar os próprios critérios que fundamentam a demarcação de seus territórios, dessa forma a memória coletiva dos moradores passa a ressignificar suas próprias histórias de vida (FERREIRA, 2012).

Trabalhamos então com os dados fornecidos pela pesquisa de Pereira e Dozena (2015, p.09), que explora a base de referência da Fundação Palmares e nos mostra uma realidade organizacional dos 16 municípios do Rio Grande do Norte que possuem comunidades quilombolas, constando ao total 22 comunidades certificadas:

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Quadro 1- Comunidades Remanescentes de Quilombolas do Rio Grande do Norte COMUNIDADES QUILOMBAS NO RIO GRANDE DO NORTE Município Comunidade Data de publicação Parelhas Boa Vista dos Negros 04/06/2004 Poço Branco Acauã 10/12/2004 Tibau do Sul Sibaúma 08/06/2005 Lagoa Nova Macambira 19/08/2005 Parnamirim Sítio Moita Verde 12/05/2006 Currais Novos Negros do Riacho 07/06/2006 Bom Jesus Sítio Grossos 13/12/2006 Bom Jesus Sítio Pavilhão 13/12/2006 Patu Jatobá 13/12/2006 Pedro Avelino Aroeira 13/12/2006 Portalegre Sítio Arrojado/Engenho Novo 07/02/2007 Portalegre Sítio Lajes 07/02/2007 Portalegre Sítio Pega 07/02/2007 Portalegre Sítio Sobrado 07/02/2007 Macaíba Capoeiras 13/03/2007 São Tomé Gameleira do Baixo 05/05/2009 Ielmo Marinho Nova Descoberta 19/11/2009 Ipanguaçu Picadas 04/11/2010 Touros Baixo do Quinquin 04/11/2010 Touros Geral 04/11/2010 Assú Boa Vista do Piató 11/05/2011 Fonte: (Pereira e Dozena, 2015, p.09)

Os dados levantados por Pereira e Dozena (2015), apresentados no Quadro 1, nos mostram o quanto ainda devemos avançar quando contrastados com a investigação realizada em 2006, pelo Laboratório de Estudos de Movimentos Sociais e Territorialidades, da Universidade Federal Fluminense – LEMTO/UFF, que identificam 58 comunidades no Rio Grande do Norte.

O número contabilizado nessa última análise excede a contagem efetuada pela Fundação Palmares, o que talvez seja um reflexo do jogo político que a questão dos territórios

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quilombolas envolve no qual, interesses divergentes são conflitantes. Com base nessas análises iniciais, podemos afirmar que a busca pela regularização fundiária desses territórios etnicamente caracterizados envolve não somente os interesses da comunidade, mas também o dos proprietários fundiários e do próprio Estado, sobretudo nas instâncias municipais (PEREIRA, DOZENA, 2015, p.10).

Além da luta pela conquista da terra, os quilombolas têm pleiteado, cada vez mais, não apenas o acesso, mas as condições de permanência que podem atuar diretamente no processo de construção da identidade étnica das comunidades e com isso fortalecer o movimento quilombola, juntamente com sua cultura, seus valores e tradições, partindo das concepções populares de emancipadoras da educação. De acordo com Moura (2002), a escola exerce um papel importante para todos que habitam os quilombos, porém, eles almejam uma escola que contemple o respeito à diversidade, uma escola da comunidade, a escola do quilombo no ‘quilombo’.

3 Educação Escolar Quilombola: seus desafios e possibilidades na ressignificação das práticas educativas Em 20 de Novembro de 2012, foi criada a Resolução Nº 08, que define as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Quilombola na Educação Básica, sendo esta mais uma conquista do povo quilombola. De acordo com o artigo 1º, §1º, a educação escolar quilombola fundamenta-se: na memória coletiva; nas línguas reminiscentes; nos marcos civilizatórios; nas práticas culturais; nas tecnologias e formas de produção do trabalho; do acervo e repertórios orais; dos festejos, usos, tradições e demais elementos que conformam o patrimônio cultural das comunidades quilombolas de todo o país; da territorialidade (BRASIL, 2012).

Corroboramos Moura (2009), quando nos apresenta que para a efetivação de uma educação escolar quilombola, se 240

faz necessária a escola do quilombo no ‘quilombo’. É imprescindível possibilitar que os sujeitos do processo educacional tenham um papel ativo e construam seus próprios conteúdos curriculares contemplando os diversos saberes que foram citados anteriormente, bem como a produção e distribuição de material didático que retrate e se adeque a realidade local.

Refletir e perceber as comunidades como campo de pesquisa nos remete a entender a construção histórica deste lugar – o quilombo. Para nos aprofundarmos nesses aportes teóricos revisitamos os escritos de Botelho (2007), Nunes (2006) e Moura (2006, 2012).

Cabe ressaltar que o trabalho educativo a ser realizado na educação escolar quilombola deve ser enfático no que tange à identidade negra e quilombola. Primeiro, na afirmação do ser negro/a e depois do ser quilombola, ou seja, essa dupla identidade “negro/a quilombola” precisa ser construída, afirmada e ressignificada a todo momento, tanto dentro quanto fora da escola. Para tanto, Albuquerque (2013) nos ajuda a perceber que nas comunidades quilombolas o patrimônio cultural constitui espaços de luta material e simbólica entre classes, etnias e grupos, o que nos deu base teórica caminharmos nos 16 municípios do estado do Rio Grande do Norte e diagnosticarmos a necessidade em três grandes polos Mossoró, Parnamirim e Pau dos Ferros.

Constatamos que não era necessário apenas atender as diretrizes da educação escolar quilombola, mas sensibilizar diretamente gestores/as, coordenadores/as, professores/ as, comunidades e movimentos sociais para a efetivação da proposta da formação no curso de Aperfeiçoamento, tendo em vista as dificuldades de chegarmos ao público específico, professores de escolas quilombolas ou escolas que atendessem a alunos/as remanescentes dessas comunidades. Outro problema a ser enfrentado, que se constitui num grande desafio e fator preocupante mais real, é que grande parte dos 241

professores/as que estão no campo ainda não tem curso superior concluído, como podemos constatar a partir da pesquisa realizada pelo Observatório da Equidade, do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES), em 2009, mostrando que nos anos iniciais do Ensino Fundamental encontramos elevados percentuais de professores sem formação superior. Na região Nordeste 74,3%, no ensino fundamental, com a especialização das disciplinas curriculares são 63,82% e no ensino médio ainda se perpetuam essas deficiências de formação com 21,9%. Essa constatação nos fez começar o diálogo no espaço da UFERSA para a instituição pensar em como atender, e não excluir esse público tão real no campo brasileiro.

Diante dos dados apresentados e do espaço de diálogo criado a partir do Comitê Gestor de Formação Inicial e Continuada de Profissionais do Magistério da Educação Básica – COMFOR/UFERSA, decidimos atender a uma necessidade de formação de professores/as da realidade do Nordeste brasileiro e certificar aos participantes que já tinham graduação com a titulação de Aperfeiçoamento e os que ainda estavam cursando o Ensino Superior como extensão, mas possibilitando o acesso de todos à formação. Foram matriculados 205 estudantes, nos três polos determinados (Mossoró, Parnamirim e Pau dos Ferros), para participar do curso que tinha uma estrutura curricular composta de nove (9) nove disciplinas e uma carga horária de 200 horas em atividades presenciais e a distância utilizando a plataforma do Núcleo de Educação a Distância – NEAD, onde eram realizadas as postagens das atividades, desenvolvidos fóruns, web-conferências, sendo disponibilizado na biblioteca virtual todo o material utilizado pela equipe de professores.

Pensar nos processos educativos e práticas educativas que valorizem a cultura e a tradição das comunidades quilombolas é corroborar ideias/forças dos processos educacio242

nais que potencializam a participação ativa desses sujeitos. A práxis educativa fundada no diálogo de saberes, reconhecendo e incluindo os saberes populares, torna-se elemento potencializador da ação-reflexão que se pauta na educação popular (COLOMBIANO, 2006).

As práticas educativas de educação popular, segundo Albuquerque (2013, p.34), irão abrir caminhos para: o fortalecimento dos processos coletivos, na formalização e potencialização das pessoas e de manifestações populares[...] num sentido político emancipatório, possível através do reconhecimento da história do povo brasileiro, da história individual de cada pessoa e do reconhecimento do povo quilombola, que se encontra e se reencontra no cotidiano do quilombo, num lugar onde memórias, comunidade, história, e ancestralidade negra, são elementos cotidianos de negros e negras nesses pedacinhos de Brasil.

Na tentativa de provocar essa formação/reflexão/ação nos diversos coletivos, as disciplinas foram organizadas em três blocos temáticos, orientando a melhor forma de trabalhar nos polos e desenvolver com isso, a construção coletiva e dialógica do conhecimento: Processos Históricos e Educação para as Relações Étnico-raciais, Comunidades Quilombolas e a Luta pela Terra e Ressignificação de Saberes e Práticas.

Nesse viés organizacional, estabelecemos iniciar o bloco temático de Processos Históricos e Educação para as Relações Étnico-raciais com a disciplina de Condicionantes Legais para a Educação das Relações Étnicos-raciais, na perspectiva de subsidiar professores/as no tocante ao estudo dos marcos legais educacionais e as relações étnico-raciais: a Constituição Federal de 1988; a Lei de Diretrizes e Bases da Educação-LDB, nº 9394/96; o Plano Nacional de Educação; a lei nº 10.639/03; a Resolução CNE/CP Nº 01/2004; o Parecer CNE/CP Nº 03/2004; e o Plano Nacional de Implemen243

tação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e o ensino de História e cultura Afro-brasileira e Africana.

No intuito de solidificar o que foi estabelecido pelas Diretrizes Curriculares Nacionais das Relações Étnico Raciais, prosseguimos com a disciplina Relações Étnico-raciais no Brasil e Educação Antirracista, proporcionando aos cursistas discussão das temáticas: desigualdades educacionais e relações raciais no Brasil; conceitos de raça, racismo, etnia, cultura, discriminação; a história da construção do racismo científico; a sociabilidade e união interracial no Brasil; Teoria do Branqueamento e o Mito da Democracia Racial; a brancura como fetiche; o Negro e a Miscigenação como problema para a nação; o mito fundador das três raças; a gênese da ideia de democracia racial brasileira. À luz dessas temáticas, acreditamos que essas discussões podem possibilitar aos/as professores/as posicionarem-se frente de uma construção de uma educação antirracista. Prosseguimos com o desenvolvimento dos estudos em relação à Educação das Relações Étnico-raciais e a Construção do Currículo Escolar, com o intuito de possibilitar a compreensão de como o projeto político pedagógico, o material didático e o currículo que valorizem a história e a cultura da população negra, e assim contribuir diretamente com as mudanças de comportamento dentro e fora da escola, tendo como consequência uma sociedade mais justa e igualitária.

No segundo momento do curso aglutinamos os conteúdos referentes às Comunidades Quilombolas e à Luta pela Terra, prosseguindo com a disciplina A Escravidão na História da Humanidade, na tentativa de explicitar e discutir o fenômeno da escravidão na história do mundo e do Brasil dentro de um processo de reelaboração de abordagem, que enfoca o referido fato enquanto crime contra a humanidade e na tentativa de compreender o processo de resistência frente 244

ao regime escravocrata e a luta pela Terra. Nessa perspectiva, continuamos os estudos com a Regularização Fundiária e Oferta de Bens e Serviços, na busca de levar os/as professores/as a refletir sobre o processo de identificação, delimitação e titulação das terras dos remanescentes de quilombos (Base decreto 4.887 / 2004). Discutir com os/as professores/as a necessidade da oferta de bens e serviço, tais como energia elétrica, solar, acessibilidade (estradas e transportes), saneamento básico, educação, saúde e outros.

Com esse caminho já aberto pelo diálogo estabelecido nos três polos do curso de Aperfeiçoamento, trabalhamos a disciplina Comunidades Quilombolas: territorialidade, realidades socioambientais e desenvolvimento econômico/social.

O intuito trabalhado foi o de contribuir com o entendimento acerca da formação das comunidades quilombolas no Brasil sob o enfoque das bases históricas e culturais africanas do conceito de territorialidade, bem como das relações que estas comunidades estabelecem com a natureza, os princípios de preservação ambiental e as estratégias de manejo focadas no desenvolvimento sustentável; levar os professores a conhecerem modelo de desenvolvimento considerando o contexto territorial, bem como a identidade coletiva, a sustentabilidade ambiental, organização comunitária e ampliação do exercício da cidadania e controle social, temáticas fundamentais para o desenvolvimento em Escolas Quilombolas e do Campo, estabelecendo pontes para a Ressignificação de Práticas Educativas.

Nos processos formativos da equipe técnica tivemos oportunidade de compreender o significado que estava sendo reestruturado na vida pessoal e profissional dos/as alunos/ as que participavam mensalmente da formação. Esses relatos nos fizeram ordenar a locação do último bloco de disciplinar a partir desse processo de ressignificação, resgatando inicialmente, através da disciplina Tecnologias e Saberes Africanos 245

Relações África-Brasil, a contribuição e saberes tecnológicos oriundos do continente africano no período da colonização e como esse patrimônio tecnológico se reelaborou e se mantém até nos dias atuais. Com História, Arte e Cultura negra e da Comunidade, estudamos a memória das comunidades por meio das manifestações culturais, considerando o processo histórico, usos e costumes, bem com o seu patrimônio cultural; possibilitamos também compreender as festas e outras manifestações da comunidade presentes no currículo escolar; o entendimento da arte, a literatura e música negra como um legado ancestral. Na tentativa de encadear as discussões de forma construtiva e elucidativa finalizamos a formação com o componente referente às Personalidades Negras e Representações Coletivas, na tentativa de valorizar o estudo das personalidades negras internacionais e nacionais, e com isso buscar compor o repertório de representações e referências da comunidade em que a escola está inserida.

O conjunto desses componentes curriculares do curso de Aperfeiçoamento em Educação Escolar Quilombola, buscou proporcionar aos/as alunos/as informações e conhecimentos teóricos, legais e pedagógicos com vistas a fundamentar a ação docente na perspectiva de orientar o trabalho pedagógico nas escolas das comunidades quilombolas e do campo.

Tendo em vista os inúmeros desafios que enfrentamos no decorrer desse processo formativo, visualizamos que desafios maiores os/as educadores que cursaram esse aperfeiçoamento enfrentam e enfrentarão em suas salas de aulas, escolas e comunidades, por exemplo, a reestruturação do Plano Político Pedagógico – PPP, a ressignificação de práticas educativas cotidianas reestruturando as discussões étnico-raciais para os diversos componentes curriculares, a produção e contextualização dos processos educativos e identitários quilombolas e campesinos.

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Considerações Parciais Nos meses em que foram desenvolvidas as atividades do curso de Aperfeiçoamento em Educação Escolar Quilombola, evidenciamos a troca de saberes entre professores/as, gestores/as, estudantes, ativistas dos diversos movimentos sociais que impulsionavam discussões e incentivavam colegas a refletir a partir de outros prismas as atividades desenvolvidas, o que nos possibilitou evidenciar o quanto positivo e concreto foi a construção do conhecimento entre os participantes.

Escutar relatos, acompanhar as atividades postadas na plataforma e em sala de aula, o desafio de realizar as aulas de campo nas comunidades quilombolas, possibilitou que os discentes (re)significassem seus saberes, desconstruíssem preconceitos e reelaborassem práticas que antes foram relatadas como negativas, preconceituosas e estereotipadas pelos cursistas. Foi interessante apontar novos caminhos investigativos no sentido de entender essas novas práticas educativas e como elas ressoam na sala de aula, atuando ou não na construção/preservação da identidade étnico-racial dos/das estudantes das escolas nas comunidades de quilombo. Como o patrimônio cultural das comunidades quilombolas pode ser preservado através de práticas educativas da educação popular?

Essa experiência colaborou diretamente com a construção de novos saberes presentes nas comunidades quilombolas, resgate das tradições culturais e religiosas, investigações nas próprias comunidades e com isso a restruturação de projetos políticos pedagógicos, produção de resumos e artigos científicos, resultando um olhar mais atento a povos antes rechaçados em seus próprios territórios.

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- DADOS DOS AUTORES Cláudia Lúcia Alves Licenciada em Matemática e Mestre em Educação pela Universidade Federal do Piauí. Participou do Conselho Administrativo da Associação das Escolas Famílias Agrícolas do Piauí (2010-2014), onde atualmente é membro do conselho fiscal. Professora na área de matemática da Universidade Estadual do Maranhão. Foi professora da Universidade Estadual do Piauí (2012-2015). Tem experiência na área da educação, com ênfase em educação matemática e educação do campo, principalmente nos seguintes temas: etnomatemática e pedagogia da alternância.

Elmo de Souza Lima Mestre e Doutor em Educação pela Universidade Federal do Piauí (UFPI), com Doutorado Sanduíche na Università degli Studi di Verona (Itália). Professor do Centro de Ciências da Educação da UFPI, atuando na área de currículo, formação continuada e educação do campo. É autor dos livros “Formação Continuada de Professores no Semiárido: ressignificando saberes e práticas” e “Formação Continuada de Educadores/ as: as possibilidades de reorientação do currículo e co-autor dos livros “Semiárido Piauiense: educação e contexto”, “Diálogos sobre Educação do Campo”. É coordenador adjunto do Núcleo de Estudos, Pesquisas e Extensão em Educação do Campo (NUPECAMPO). E-mail: elmolima@gmail.com Janaina Gomes Viana de Souza Licenciada em Pedagogia pela Universidade Estadual do Piauí, Mestre e Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEd/UFPI). Desenvolve pesquisas sobre Formação de Professores e Práticas Docentes na Educação Infantil. Possui experiência como assessora 250

pedagógica em projetos educativos na Educação Infantil. Realizou Intercâmbio Educacional em Reggio Emília – Itália, no Centro Internacional ‘Loris Malaguzzi’, para vivenciar experiências relacionadas à primeira infância. Professora do Curso de Licenciatura em Educação do Campo CCE/UFPI e Coordenadora do Curso de Extensão em Docência na Educação Infantil (UFPI). Membro do Núcleo de Estudos, Pesquisa e Extensão em Educação do Campo e do Núcleo de Estudos, Pesquisa e Extensão sobre Infância e Educação da Criança.

Jânio Ribeiro dos Santos Licenciado em Pedagogia pela Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA) e Mestre em Educação pela Universidade Federal de Sergipe (UFS). Professor do Curso de Licenciatura em Educação do Campo na Universidade Federal do Piauí (UFPI), Campus Professora Cinobelina Elvas (CPCE), Bom Jesus/PI. É pesquisador do Grupo Pesquisa, Movimentos Sociais e Educação (UFS) e membro do Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação do Campo (GEPEC/UFBA). Tem experiência na área de Educação, atuando principalmente nos seguintes temas: Educação do campo, multisseriação e formação de professores.

Keylla Rejane Almeida Melo Licenciada em Pedagogia pela Universidade Estadual do Piauí e Mestre em Educação pela Universidade Federal do Piauí. Docente do Curso de Licenciatura em Educação do Campo, Centro de Ciências da Educação da Universidade Federal do Piauí. Atou como Assessora Técnico-Pedagógica do Ministério da Educação em Programas de Formação de Professores em Exercício no Ensino Fundamental e Educação Infantil. Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisa e Extensão em Educação do Campo (NUPECAMPO) e do Núcleo de Estudos, Pesquisa e Extensão sobre Infância e Educação 251

da Criança (NEPEIEC), ambos da Universidade Federal do Piauí. Pesquisa nas áreas de Formação de Professores, Educação Infantil e Educação do Campo.

Linconly Jesus Alencar Pereira Professor do Curso de Licenciatura Interdisciplinar em Educação do Campo na Universidade Federal Rural do Semiárido - UFERSA. Doutorando em Educação pela Universidade Federal Rural da Paraíba e Mestre em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Graduado em Pedagogia pela Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA) e em Licenciatura em Física pela UFC. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Movimentos Sociais, Relações Étnico-raciais, Religiões de Matriz Africana, Cultura e Tradição, atuando principalmente nas áreas de Educação do Campo, Educação Quilombola e Formação de Professores da Rede de Educação Básica.

Luiz Jesus Santos Bonfim Graduado em Pedagogia pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). Especialista em Supervisão Escolar (UFPI). Mestre em Educação (UFPI). Membro do Núcleo de Estudos e Pesquisa e Extensão em Educação do Campo (NUPECAMPO/ UFPI). Professor do Curso de Licenciatura em Educação do Campo do Centro de Ciências da Educação da Universidade Federal do Piauí. Desenvolve pesquisa nas áreas de Educação de Jovens e Adultos; Educação do Campo; Práticas Educativas e Formação Docente; e Trabalho e Educação.

Maria da Glória Soares Barbosa Lima Graduada em Letras/Português e Pedagogia pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). Mestre em Educação pela UFPI e Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Professora do Programa de Pós-Graduação 252

em Educação da UFPI. Integra o Núcleo de Pesquisa em Formação e Profissionalização em Pedagogia (NUPPED). Tem experiência na área de Educação, com ênfase na formação inicial e continuada de professores, didática, docência superior, desenvolvimento profissional docente, com base na pesquisa narrativa, na (auto)biografia e na etnografia. Membro do Conselho Científico do periódico Gnose em Revista. Editora Adjunta da Revista Linguagens, Educação e Sociedade.

Membro da Rede Inter-Regional Norte, Nordeste e Centro-Oeste de Docência na Educação Superior (RIDES).

Maria do Socorro Xavier Batista Graduada em Pedagogia pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Mestre em Sociologia pela Universidade Federal da Paraíba e Doutora em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco. Professora da Universidade Federal da Paraíba, atuando na graduação e no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPB. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Educação Popular, Educação e Movimentos Sociais e Educação do Campo. Desenvolve Pesquisa e Extensão envolvendo as temáticas de Educação Popular; Educação do Campo; Movimentos Sociais; Política Educacional; Formação de Educadores.

Maria Sueleuda Pereira da Silva Licenciada em Pedagogia pela Universidade Estadual do Piauí (UESPI), especialista em Educação do Campo e Desenvolvimento Territorial do Semiárido Brasileiro pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), Técnica em Agropecuária pelo Colégio Agrícola de Teresina/UFPI e mestranda em Educação na UFPI. Desenvolve atividades de educação popular, assessoria, consultoria, formação e coordenação de projetos sociais junto aos/as agricultores/as familiares pela Cooperativa de Produção e Serviços dos Técnicos 253

Agrícolas do Piauí & Associados. Atualmente exerce a função de Técnica em Agropecuária na Agência de Defesa Agropecuária do Piauí (ADAPI) e consultoria na área da educação do campo no contexto do semiárido.

Pedro Pereira dos Santos Doutorando do Programa de Pós-graduação em Educação Brasileira da Universidade Federal do Ceará (UFC), Mestre em Educação: Currículo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Especialista em Tecnologias em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Especialista em Psicopedagogia Clínica e Institucional pela Universidade Estadual Vale do Acaraú. Tem formação em Filosofia pelo Instituto Teológico Pastoral do Ceará, graduação em Pedagogia pela Universidade Estadual Vale do Acaraú.

Atualmente é professor da Universidade Federal do Piauí (UFPI). Tem experiência na área de Educação, com ênfase nos seguintes temas: Pedagogia Libertadora de Paulo Freire, Educação Social, Pedagogia Social, Prática educativa com criança e adolescente em situação de rua, Currículo e Educação popular.

Raimunda Alves Melo Graduada em História pela Universidade Estadual do Piauí e em Pedagogia pela Faculdade Evangélica do Piauí. Doutoranda e Mestre em Educação pela Universidade Federal do Piauí. Professora do Curso de Licenciatura em Educação do Campo (UFPI) e Supervisora do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa - PNAIC/UFPI. Integra o Núcleo de Pesquisa, Estudos e Extensão em Educação do Campo (NUPECAMPO/UFPI). Tem experiência na área de educação, com ênfase na formação de professores, atuando principalmente nos seguintes campos: Educação do Campo, Currículo, Alfabetização, Prática Docente e Políticas Públicas.

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Raphael dos Santos Licenciado em Pedagogia pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais (AGES). Mestrando em Educação do Campo pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).

Professor da Educação Básica da rede municipal de ensino de Adustina/BA. É membro do Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação do Campo (GEPEC/UFBA). Professor Formador do Programa Escola da Terra do Ministério da Educação pela Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia (FACED/UFBA) e Consultor em Educação do Campo pela Secretaria de Educação do Estado da Bahia.

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