Caderno TCC Leticia Nasser

tudo vira corpo um estudo sobre a intercorporeidade que molda o quintal, a quadra, a amendoeira, a rua e a praça na Vila Beira-Mar

sumário

Trabalho de Conclusão de Curso 2020.2 Orientanda: Leticia Nasser Orientadora: Mariana Vieira

impulsionamento

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caminho

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pilares

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corpos

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vila beira-mar

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primeira troca

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corpo urbano

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cartografia afetiva

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da arquitetura, do corpo e do afeto

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referência bibliográfica

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Escrevo esse texto quase como um diário. Perturbações, indagações, descobertas, emoções. Mas diferentemente do diário convencional não o escrevo de forma totalmente cronológica.

A subjetividade do tema me trouxe algumas idas e vindas ao longo do processo, uma vez que todo percurso tem seus múltiplos caminhos e traz consigo a surpresa de possibilidades inesperadas. Falar de relações não é traçar uma linha reta, é costurar diversos nós, e as vezes se perder no emaranhado deles, até chegar a um encontro, mesmo que ainda não seja o final.

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agradecimentos especiais Agradeç à minha orientadora, Mariana Vieira, que mesmo em meio aos acontecimentos inesperados desse ano apoiou e incentivou todo o meu processo e a forma orgânica como foi desenvolvido, respeitando seus tempos e contratempos.

Aos professores Alder Catunda, Vera Hazan, Pedro Lobão e Lilian Soares por acompanharem minha pesquisa em suas diversas etapas, colaborando com desenvolvimento do trabalho. À minha mãe, Leila, que sempre esteve ao meu lado, desde o início da faculdade, me fortalecendo, fazendo-se presente e acreditando em mim, no meu trabalho e na minha trajetória. Às minhas amigas, em especial Juliana Puterman, Izabel Mello e Ana Terra Vettori, que foram minha rede de apoio nesse longo processo, amparando cada momento de insegurança e comemorando cada etapa cumprida juntas.

E, por último, mas não menos importante, não poderia deixar de agradecer primeiramente à Seu Marinho, que se disponibilizou desde o início da minha caminhada em me ajudar da minhe forma possível e ser minha ponte entre a comunidade e os demais moradores, e também à Paulo, Dona Zélia, Lucimar, Thiago e Alda, por fazerem parte de toda a narrativa da minha pesquisa e que me ensinarem muito sobre sentir os espaços através das emoções do outro. Foram corpos fundamentamentais para a construção do meu trabalho.

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impulsionamento Meu trabalho fala de corpos e de afetos, mas não da forma com a qual estamos acostumados a pensar ao ouvirmos tais palavras. Baseado em uma bibliografia que considera “afeto” como sendo tudo o que pode nos causar – interna e externamente – sensações, das mais plurais possíveis, positivas ou negativas, sendo as afecções do corpo (Espinosa, 2009)1 e “corpos” como tudo aquilo que é relacional, que estabelece interações, o trabalho parte da ideia de que nenhum corpo é uma unidade isolada, ele depende de partes exteriores para existir. Uso os termos “corpo praticante” e “corpo urbano” de Jacques (2008)2 para diferenciar os corpos aos quais me refiro. É praticante, ao movimentar-se, sentir, atuar, mas é também urbano, ao ser praticado, vivido, experienciado. Corpos, marcam uns aos outros, afetam-se entre si e é essa interação que os potencializa.

Desde o começo do pensamento acerca do meu tema de TCC, tinha em mente o desejo de trabalhar com uma arquitetura na escala das relações humanas; estabelecer trocas, conversas e encontros são minha maior inspiração e o que mais me instiga no desdobramento do meu trabalho. Meu desejo sempre foi estudar as diversas afecções provenientes da interação corpórea.

Ao pensar meu local de estudo, refleti sobre a importância de uma relação prévia com o lugar, afinal como adentrar em um estudo sobre interação e afeto se o mesmo não tivesse me marcado e nem eu à ele? Segundo Jacques, a partir de experiências urbanas marcas são deixadas nos corpos, tanto dos praticantes quanto da cidade, ao interagirem entre si. Dessa forma, o local escolhido é a comunidade Vila Beira-Mar, em Duque de Caxias, com a qual tive contato em novembro de 2018 ao participar como voluntária da ong TETO. Além disso, tinha também uma relação com um de seus moradores, Seu Marinho - sendo minha ponte ao longo do trabalho para me conectar com outros moradores - porteiro do prédio onde moro e uma pessoa com quem sempre estabeleci muitas trocas.

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Obra “Éthica: A Natureza e a Origem dos Afetos” do filósofo holandês do século XVII, Benedictus de Espinosa.

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Obra “Corpografias Urbanas” da arquiteta e urbanisma Paola Berenstein-Jacques., formada pela UFRJ em 1990 e pela École D’Architecture de Paris Villemiin em 1993. Atual professora do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo e dos Programas de Pós-Graduação em Artes Visuais e em Dança da UFBA.

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No início da pesquisa bibliográfica sobre afetos e interação entre corpos entrei em contato com textos produzidos pela arquiteta e urbanista Cristiane Rose Duarte3 e sua pesquisa sobre o tema nos artigos “A Empatia Espacial e suas implicações nas ambiências urbanas” (Duarte, 2015) e “Pesquisas sobre ambiência, alteridade e afeto” (Duarte & Pinheiro, 2013), onde ela descreve o corpo como sendo um agente de ligação entre as diversas sensações experienciadas pelos usuários da cidade em uma dada situação e afirma ser através do uso do espaço que a experiência cotidiana gera subjetividades, evidenciando as memórias e narrativas de seus habitantes. Duarte foi muito importante para meu entendimento sobre os corpos e suas interações e sobre a noção de alteridade, em que o “eu” apenas existe a partir do contato com o “Outro”, o corpo externo – pessoas, arquitetura, espaço livre.

Foi então que, continunando minha busca sobre os afetos e o que nos causam, comecei a ler o trabalho de conclusão de curso da arquiteta e urbanista Bárbara Cabral4, onde ela fala sobre os múltiplos campos de atuação dos afetos e da relação corpo-cidade, aproximando-se muito de meu tema. Cabral cita autores como Espinosa e Deleuze, e foi então, que através da leitura de seu trabalho, decidi adentrar nos estudos de Espinosa acerca da natureza dos afetos no texto “Ética III: A origem e a natureza dos afetos”5 (Espinosa, 2009), onde o filósofo denomina afetos como “as afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou diminuída”, ou seja, múltiplas sensações experienciadas pelo corpo, podendo causar alegrias, derivadas das ações que aumentam nossa potência, ou mesmo tristezas, derivadas das paixões que diminuem essa potência.

Um afeto de alegria se dá quando uma afecção nos leva à uma potência maior de ser e agir no mundo, possuindo propriedades que se conectam com as 3

Arquiteta formada pela FAU-UFRJ em 1981 e atual professora do Programa de Pós-graduação em Arquitetura da UFRJ (PROARQ), onde coordena o Núcleo Pró-acesso e o Laboratório Arquitetura, Subjetividade e Cultura (LASC).

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Formada em 2018 em Arquitetura e Urbanismo pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Bárbara fez seu trabalho final “Afetos: filosofia e arte nas interações corpo-cidade” orientada pela professora Flaviana Raynaud.

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Parte três do livro “Ética” escrito por Espinosa.

nossas; tais ações são denominadas pelo filósofo de “bom-encontro” pois geram um momento onde nos tornamos mais próximos do mundo e de nós mesmos, aumentando nossa capacidade de afetar e nos deixar ser afetado. Um afeto de tristeza se dá quando uma afecção nos gera uma menor potência, quando nossa força para existir e agir, afetar e deixar-se ser afetado deixa de se fazer presente, diminuindo nosso esforço para alcançar tais potências; esses encontros acabam nos afastando do mundo e de nós mesmos, nos limitando e repelindo contra o corpo externo ao nosso. O afeto está presente em todas as relações entre corpos, e ao falar em corpos, o filósofo entende como sendo o corpo humano, mas também os espaços, sendo assim, nós afetamos espaços, e estes nos afetam.

No campo da arquitetura e urbanismo, Paola Berenstein Jacques, ao falar sobre “corpografias urbanas”, se conecta à visão da relação existente entre corpos de Espinosa. Em seu texto “Zona de tensão” (Jacques, 2010), a arquiteta usa o conceito para descrever a interação entre o corpo praticante e o corpo urbano, onde, corpos ficam inscritos na cidade e esta fica inscrita nos corpos. Assim como Espinosa afirma que corpo é relacional e que o afeto existe diante da intercorporeidade, Jacques afirma que a cidade deixa de ser apenas cenário, a partir do momento em que ela é praticada, vivida, experienciada, se tornando assim um “outro corpo”. Tal conceito aproxima-se também do estudo de alteridade de Duarte, que afirma que “quanto mais multisensorial for a relação que a ambiência permitir à pessoa, maior será a atribuição de valores – positivos ou negativos – a ela.” (Duarte, 2013). A corpografia urbana pode ser também uma forma de resistência quando um corpo experimenta e apropria-se de um espaço urbano espetacular - pensados como peças publicitárias, espaços desencarnados, denominados por Paola Jacques como espaços sem corpo – dando uma nova vivência à ele, transformando-o através de seu uso cotidiano.

A conexão que faço entre os autores é a de que ao afetar e deixarse afetar tudo vira corpo, e é essa interação que molda e constitui tanto o corpo praticante quanto o corpo urbano, a cidade. Assemelho ainda o conceito de ação de Espinosa - no qual nossa potência de agir e de desejar se relacionar com demais corpos e com o mundo é aumentada - com as micro-resistências de Jacques, vistas como transformações e ações em espaços não pensados para tais usos. Ainda sobre 11

as relações intercorpóreas, faço um paralelo entre a cidade praticada da arquiteta e a definição de ambiência de Duarte, descrita como sendo um agente de ligação entre as diversas sensações experienciadas pelos usuários da cidade em uma dada situação, ou seja, a marca que cada espaço deixa em nós e vice-versa. Paola Berenstein Jacques é a principal fonte teórica bibliográfica para o desenvolvimento da pesquisa, que destrincha as múltiplas interações corpóreas.

Apesar de me embasar em alguns conceitos de Espinosa, entendo a complexidade e aprofundamento de seu estudo em relação aos corpos e afetos.

Trato em meu trabalho, então, apenas de uma pequena parte de sua pesquisa, onde o filósofo analisa os conceitos de ação e paixão, denominando-os como as causas dos afetos, e o noção de corpo relacional, denominando o corpo como um agente que precisa de interação com corpos externos para existir.

Ao entender corpos como pessoas e espaços e estudar a ligação entre eles, falo também de arquitetura, afinal, como pensar arquitetura se não pensarmos na promoção da interação do corpo humano com a cidade? A arquitetura faz-se presente a partir do momento em que afetamos e somos afetados por outros corpos praticantes e pela cidade, transformando-se em corpo urbano ao ser vivida, praticada e experienciada e quando entendemos que o corpo apenas sobrevive quando interagido com outros corpos.

Devido ao isolamento social causado pela pandemia de Covid-19, o desdobramento do meu trabalho se deu de uma maneira diferente à pensada inicialmente. Não sei dizer ao certo qual rumo meu trabalho tomaria se o contato e as trocas corpóreas ainda pudessem existir, mas certamente minhas visitas ao local teriam sido mais recorrentes; as conversas, mais espontâneas; os toques, mais presentes. No entanto, penso que com tal situação meu trabalho traçou um caminho que ao final transmitiu todas as formas de interação pude experienciar mesmo com o cenário nada favorável ao desenvolvimento da pesquisa.

caso e reforcei minha troca com Seu Marinho, com quem conversava diariamente na portaria de meu prédio, comecei a estabelecer uma rede de contatos com outros três moradores da comunidade, Paulo - que me foi apresentado por Seu Marinho -, Dona Zélia e Lucimar. No decorrer da pesquisa, como forma de olhar e entender os lugares na perspectiva dos próprios moradores, fiz a tentativa de criar um projeto fotográfico onde os moradores da Vila Beira-Mar pudessem me enviar, via Whatsapp, registros realizados por eles mesmos de lugares que tivessem significados para cada um; tal projeto acabou não resultando como eu gostaria e só consegui obter fotografias dos quatro moradores com quem já estava em contato. Segui meu trabalho com tais imagens e com suas narrativas, até que, em agosto, resolvi ir até a comunidade com Seu Marinho, tomando todas as medidas necessárias para manter os protocolos da pandemia de Covid-19. Chegando ao local me relacionei com mais dois moradores, Thiago e dona Alda, apresentados à mim por Seu Marinho. Caminhei por alguns pontos da comunidade, mas não em sua área total devido ao distanciamento necessário para nossa proteção, e foi a partir desses espaços por mim visitados e dos relatos lá registrados que faço, então, um recorte em minha pesquisa, analisando as relações existentes em apenas cinco espaços da Vila Beira-Mar. A escolha das localidades a serem trabalhadas se deu de forma orgânica e espontânea através do meu percurso pela comunidade, onde pude observar e conversar sobre como cada espaço afetava os moradores. Tais locais são o quintal, a amendoeira, a quadra, a rua e a praça, e falarei mais sobre cada um no decorrer do trabalho.

Como forma de expressar todas as sensações que pude experimentar nesses últimos meses, vejo as imagens como parte de todo o processo, e não como resultado dele. Crio assim, um mapa afetivo, que explicarei mais detalhadamente posteriormente, tendo como referência metodológica a exposição “#rioutópico”6 da arquiteta e artista plástica Rosângela Rennó7 que através da fotografia representa o tecido social e urbano da cidade. Rosângela trabalha apropriando-se de fotografias de autores anônimos – fotografia de arquivo -, dando um novo olhar a elas e 6

Ao longo de um ano de trabalho, passei por muitas idas e vindas processuais. Quando, em abril de 2020, escolhi a Vila Beira-Mar como meu estudo de

Mapeamento fotográfico espontâneo de comunidades do Rio de Janeiro cujos nomes sugerem uma situação utópica. Trabalho exposto no Instituto Moreira Salles de dezembro de 2017 à abril de 2018.

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Formada em arquitetura e urbanismo em 1986 pela Escola de Arquitetura e Urbanismo Federal de

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caminho abordando discussões acerca da natureza das imagens. No trabalho “#rioutópico”, a artista reúne fotografias de arquivo, mapas e dados de mais de 50 locais do Rio de Janeiro, selecionados pelos seus nomes utópicos – como Cidade de Deus, Morro dos Prazeres, Jardim do Amanhã, entre outros. Tais fotografias retratavam cenas cotidianas, que distinguem seus bairros dos lugares mais fotografados da cidade, mostrando sua realidade. A junção de todas essas vistas cria um mapa sensorial da cidade, valorizando a perspectiva do indivíduo e a convivência urbana.

Através das narrativas dos moradores da Vila Beira-Mar e da fotografia crio uma “cartografia afetiva”, me interessando não com um mapa urbano, físico, mas sim com uma costura das diversas sensações experienciadas nos cinco locais da comunidade que constroem meu trabalho. Tais sensações se referem tanto ao que os moradores sentem pelos locais, quanto à minha própria experiência nos mesmos em minha visita à Vila Beira-Mar. Ao longo de todo o trabalho falo da relação entre corpos alheios ao meu, e somente me faço presente na criação da cartografia, como se naquele momento eu conseguisse vivenciar todas as interações e afecções estudadas anteriormente.

Neste capítulo, conto sobre meus primeiros estudos sobre favelas, ainda sem saber qual seria minha abordagem final, escrevi sobre o que mais me motivou a avançar e costurar o tema.

Através de alguns projetos voluntários8 que participei ao longo dos dois últimos anos, me aprofundei no que entendia como as vidas e os espaços em comunidades. Conheci a complexidade e individualidade de algumas favelas e comecei a me questionar quais seriam os sentimentos vividos e os desafios diariamente enfrentados nesses espaços.

Tais indagações me levaram a pensar nos estereótipos criados quando o assunto é favela e o porquê dessa caracterização acontecer até hoje. No artigo “Os discursos sobre as favelas e os limites ao direito à cidade”9, Fernando Lannes Fernandes10 afirma que a destruição da urbanidade se dá no momento em que políticas públicas – ou privadas – não se preocupam em extinguir a discriminação das favelas e a segmentação dos espaços públicos.

Ao limitar as utilizações e apropriações de

A escolha de um mapa afetivo e não da clássica cartografia estudada na arquitetura se deu em razão da complexa subjetividade das relações que desejo transmitir. Não trato do sólido, do que já está ali, concretado e desenhado, como nos mapas urbanos, trato das mais diversas interações entre corpos e as marcas que deixam uns nos outros.

determinadas parcelas do espaço urbano pelos pobres

da cidade, o projeto conservador de cidade não apenas

reforça a distância entre os entes que compõem

o cenário urbano – dificultando, com isso, o exercício

pleno da democracia e o respeito à alteridade -, como,

também, estigmatiza ainda mais os moradores de favelas. (Fernandes, 2005)

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Projetos desenvolvidos pela ONG TETO, que atua em 19 países da América Latina e busca superar a pobreza em que vivem milhões de pessoas nas comunidades precárias, por meio de engajamentos comunitários e da mobilização de jovens voluntários.

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Minas Gerais e em 1987 em artes plásticas pela Escola Guignard, em Belo Horizonte. Hoje em dia, trabalha e vive no Rio de Janeiro.

Artigo publicado no periódico Cidades (Presidente Prudente: Grupo de Estudos Urbanos, 2(3), jan-jun. 2005, pp. 37-62).

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Pesquisador do Observatório de Favelas do Rio de Janeiro e doutorando em Geografia pela UFRJ.

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pilares Não é surpresa que quando falamos em violência a favela é sempre tida como alvo principal de ações policiais já que o local é visto pelo governo como epicentro dessa violência, sendo combatido pelo mesmo com uso de uma política criminal hostil. Tais ações conduzem muitas mudanças no âmbito urbano, majoritariamente ligadas ao seu planejamento, gestão e ordenamento, não podendo deixar de destacar que a violência é combatida de maneira diferente em cada uma das camadas sociais, fruto da desvalorização dos habitantes e dos espaços das favelas, como resultado da visão negativa enraizada na sociedade desde o surgimento das primeiras comunidades.

O não pertencimento da favela à cidade é observado também por Paola em seu livro “Estética da ginga”, onde afirma se sentir ao mesmo tempo tão perto – ao passar pela favela da Maré em seu trajeto para a UFRJ – e tão longe – estética e conceitualmente - do espaço das favelas. Constituídas por não-arquitetos, as favelas são vistas como não-arquiteturas; têm uma estética própria que configura uma alteridade urbana, ressaltando a visão de desvinculação e exclusão da sociedade.

A favela ao lado era exatamente o contrário de

tudo o que aprendíamos na Escola, e o simples fato de passar por ela constituía um confronto quotidiano entre a racionalidade rígida da arquitetura erudita aprendida na Faculdade e a espontaneidade original da autoconstrução popular. (Jacques, 2001)

Tendo tais questões em mente, o interesse por entender os espaços das favelas e levaram à algumas perguntas, como: qual o sentimento dos moradores em relação à vida na comunidade? Como é a interação deles com o espaço?

Meu trabalho contou com autores como Cristiane Rose Duarte, Benedictus de Espinosa, Paola Berenstein-Jacques e Rosângela Rennó, sendo os quatro muito importantes nas diversas etapas do meu trabalho.

Entendo Espinosa como um autor que me abriu muitos caminhos para a descoberta das inúmeras vertentes da afetividade e das relações intercorpóreas, me ajudando a compreender melhor a conexão entre corpo humano, espaço e arquitetura e a me aproximar mais dos estudos de Jacques sobre corpografias. Ao falar sobre a relação corpo-cidade e as marcas que tanto nós deixamos na cidade, quanto a cidade deixa em nós à medida em que é praticada, a arquiteta fala de uma conexão afetiva entre corpo praticante e corpo urbano.

Sem a ação urbana, a cidade torna-se apenas cenário, espaço desencarnado, sem corpo. Para tornar-se corpo ela precisa ser vivida, praticada, precisa ter interação com os demais corpos existentes. É da relação entre o corpo do praticante e o corpo da cidade que nascem as intervenções urbanas, podendo ser comparadas às ações descritas por Espinosa. Para ele, o corpo é relacional, ou seja, constituído por relações internas e externas com outros corpos e por afecções. São forças que não se definem apenas por seus encontros e choques pelo acaso, mas por relações e processos de composição e decomposição de acordo com uma maior ou menor conveniência.

A prática da experiência urbana na cidade, é também muito falada por Duarte em suas pesquisas, onde afirma que a ambiência, ou seja, os espaços vividos da cidade, considera todos os aspectos sensoriais e dinâmicos que envolvem o lugar urbano, trazendo a ativação de um corpo encarnado, que não se desenvolve sem a presença e a ação do espaço que o circunda, conectando-se à ideia de corporeidade de Paola, onde a cidade torna-se corpo ao ser praticada, deixando de ser um espaço desencarnado. Ao viver a cidade, o praticante atualiza os projetos urbanos a partir das dinâmicas ali experimentadas.

Podemos falar que pessoas afetam espaços ao movimentarem-se, configurar suas formas, e ali se fazerem presentes; e espaços afetam pessoas no

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sentido de que ficam em suas memórias, transmitem sentimentos e sensações físicas e psicológicas aos usuários. Em seu trabalho de conclusão de curso, a arquiteta e urbanista Bárbara Cabral exemplifica o corpo afetando o espaço, de acordo com o conceito de Espinosa, ao citar “Violence of architecture” do arquiteto Bernard Tschumi como forma de afirmar que os indivíduos infringem os espaços por sua simples presença, perturbando a natureza da ordem arquitetural, sendo uma verdadeira alteração ou afetação física do espaço pelos corpos. Ao falar dos espaços que afetam corpos, a arquiteta também cita Tschumi ao afirmar que não existe arquitetura sem ação, sem violência. A arquitetura dos corredores estreitos é capaz de afetar fisicamente os indivíduos e as incessantes repetições estruturais da Villa Rotanda de Palladio são capazes de afetá-los psicologicamente, causando-os desconforto.

Cristiane Rose também fala da afetividade que o Outro, no sentido amplo da palavra, gera em nós ao citar a lógica levinasiana de “traumatismo”, ou seja, a construção da subjetividade não se dá somente por um processo ativo do eu sobre o Outro, mas também do Outro sobre o eu (Alencar; Freire, 2007). Assim, faz-se necessário tomar como partido que a afetividade é entendida como um impulso, uma potencialidade, uma ação.

A ideia de corpografia propõe articular os aspectos processuais e configurativos implicados no relacionamento do corpo com a cidade que tanto registra quanto reorganiza a síntese desse relacionamento e, assim, estabelece as novas condições para continuidade desta complexa relação. (Jacques, 2010, p.114)

Ao estudar paralelamente Paola e Rosângela, percebo a presença de corpografias urbanas no modo como esta trabalha. Uma cartografia urbana descreve um mapa da cidade construída, a observa de cima, estática, mostra apenas seus aspectos físicos, é um mapa objetivo. Rennó, por sua vez, não apropria-se desse tipo de mapa ao produzir seus trabalhos. Para ela o que importa é a cidade vivida, as experiências que acontecem em cada lugar e suas particularidades, como podemos observar na criação do mapa sensorial da cidade do Rio de Janeiro em “#rioutópico”.

Comparo, então, esse mapa ao conceito de corpografia de Jacques, onde cada corpo vive diferentes experiências urbanas, acumulando assim diferentes corpografias.

Sendo assim, seu mapa se dá através de gestos e movimentos dos diferentes grupos de jovens que fizeram os ensaios fotográficos ao longo da cidade.

No termo “corpografia urbana” (Jacques, 2010 p.114) usado para denominar a cartografia realizada no e pelo corpo, Paola conecta-se às afetações ao afirmar que memórias urbanas e registros de experiências corporais da cidade formam o corpo de quem as experimenta de tal modo que as expressa em sua corporalidade, ou seja, a corpografia pode ser entendida como uma cartografia corporal partindo do pressuposto que a experiência urbana fica inscrita no corpo praticante em diversas escalas de temporalidade, o definindo mesmo sem intenção.

Esse corpo também configura o corpo urbano o reinventando, subvertendo ou profanando11, dando-lhe outro atributo pela simples ação de praticá-lo. Assim como espaços configuram corpos, a recíproca também acontece quando conclui-se que tais corpos contribuem para o traçado da cidade, sendo uma micro-resistência.

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“profano em seu sentido próprio denomina-se aquilo que, de sagrado e religioso que era, é devolvido ao uso e à propriedade dos homens” (Agamben, 2007 p.65)

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corpos Corpos estão constantemente sendo afetados uns pelos outros, porém não podemos prever tais afetos, se assim o fizéssemos, esses não nos gerariam angústias e tristezas, apenas alegrias. É através da interação corpórea que nascem os afetos em sua forma mais pura, aumentando ou diminuindo a potência de ser.

Penso que lidar com corpos, quando são externos à nós, não é algo palpável, objetivo. É o subjetivo e o inconstante. É a surpresa, a inquietude e o desejo.

Corpos nos envolvem, mas também nos afastam. Movimenta, mas também paralisa.

Aquece, mas também esfria. Alegra, mas também entristece. Faz vibrar, mas também faz chorar. Nos gera as mais profundas e complexas emoções.

Penso que nós, arquitetos e urbanistas, devemos nos alimentar desses conceitos para assim criar espaços que aflorem e aumentem essas potências, espaços que se aproximem da escala humana, e não que confronte, espaços que não criem a ilusão de sermos superiores, mas sim observadores das práticas cotidianas e experiências urbanas da cidade.

São os gestos dos corpos praticantes da cidade que a constituem dandolhe significado, propondo-se a intervir na mesma. A experiência da movimentação do corpo do praticante ordinário no espaço urbano denomina-se errância e consiste na prática e vivência cotidiana na cidade, atualizando os projetos urbanos e o próprio urbanismo. Os praticantes da cidade a experimentam ao percorrê-la, e ao perderemse nela, com seus desvios e atalhos, dando assim “corpo” a tal lugar.

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O interesse principal da corpografia urbana para a compreensão dos espaços estaria tanto na análise das corpografias involuntárias quanto no seu exercício de forma voluntária, ou seja, na incitação de corpografias nos corpos daqueles que pretendem apreender os espaços urbanos de outra forma, de uma forma não espetacular ou de resistência, daqueles que pretendem estudar as cidades de uma forma corporal, ou seja, incorporada. (Jacques, 2008)

A corpografia urbana de resistência é portanto a experiência da cidade vivida, contrariando a cidade espetacularizada contemporânea, é o próprio caminho cotidiano do habitante errante, pois esse uso releva ou denuncia o projeto urbano Meu trabalho conta com a presença de muitos corpos, corpos praticantes e corpos urbanos. Os primeiros, contam narrativas, transmitem sentimentos e desejos, movimentam-se, são seres pensantes; os segundos, são os que dão os caminhos aos primeiros, os permitem ter diferentes sensações, são a sua morada, são vividos e praticados por eles. Os dois corpos afetam-se entre si, constituindo-se um no outro, marcando um ao outro.

Os corpos praticantes do meu trabalho são Seu Marinho Paulo, Dona Zélia e Lucimar, Thiago e Alda. Os conheci em tempos diferentes, costurando lentamente as narrativas de cada um e amarrando suas percepções dos espaços e dos sentimentos vividos na Vila Beira-Mar.

Seu Marinho

Paulo

Dona Zélia

Thiago

Alda Lucimar

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José Marinho, conhecido como Seu Marinho, é paraibano, tem 59 anos e chegou ao Rio de Janeiro em 1977 com sua família. Em 1986, ao ficar desempregado, mudou-se para a Vila Beira-Mar. Solteiro e sem filhos, mora sozinho, na rua Pereira Passos - situada na parte frontal da comunidade -, em uma casa de dois andares. O térreo é uma pequena sorveteria e o 1° pavimento é onde vive.

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Paulo é carioca, tem 19 anos e é morador da Vila Beira-Mar desde que nasceu. Mora em uma casa com três quartos, sala, cozinha e quintal, na Rua da Igreja - também na parte frontal, perto de Seu Marinho -, com seus pais, irmã e primo. Participa ativamente das duas ONGs que atuam na comunidade, TETO e Litro de Luz, e luta constantemente por melhorias.

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Dona Zélia é maranhense, tem 53 anos e chegou ao Rio de Janeiro em 1994 em busca de melhores condições de vida. Logo se instalou na Vila Beira-Mar, onde hoje está à frente de diversas ações comunitárias realizadas na comunidade. Hoje em dia Dona Zélia mora fora da favela, do outro lado da Avenida Washington Luís, em uma casa com três quartos, sala, cozinha, dois banheiros e um terraço, com mais sete pessoas, mas a frequenta quase diariamente devido aos trabalhos voluntários dos quais participa.

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Lucimar - com quem tive um imenso prazer em conversar novamente, foi para quem eu, junto à equipe do TETO, construí uma casa, na qual mora até hoje, em novembro de 2018 – é carioca, tem 40 anos e vive na comunidade desde que nasceu. Hoje em dia, mora com quatro de seus seis filhos na área posterior da Vila Beira-Mar, onde há uma situação de completo descaso e precariedade, e conta com o apoio do bolsa família - e hoje em dia também com as cestas básicas distribuídas pelo coletivo – para sustentar à ela e sua família.

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Me relacionei com Thiago e Alda apenas em minha visita à comunidade, de forma mais espontânea, não conseguindo saber muito de suas histórias. Não obstante, tiveram um papel fundamental na última fase do trabalho.

Os corpos urbanos que desenham meu trabalho são o quintal , a quadra, a amendoeira, a rua e a praça. São os espaços onde pude perceber uma maior intercorporeidade, espaços não espetaculares, onde a prática cotidiana fazia-se presente. Falarei mais detalhadamente desses corpos no decorrer do trabalho.

Quintal

Quadra

Amendoeira

Praça

Rua Quintal

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Foto: Acervo Pessoal

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Quadra

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Foto: Acervo Pessoal

Amendoeira

Foto: Acervo Pessoal

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Rua

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Foto: Acervo Pessoal

Praça

Foto: Acervo Pessoal

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vila beira-mar A comunidade Vila Beira-Mar está localizada no km 2,5 da Avenida Washington Luís, no bairro Parque Duque, no município de Duque de Caxias, possuindo uma área de aproximadamente 230.000 m²12. Mesmo com sua localidade sendo em um lugar com um grande fluxo de pessoas e veículos diariamente, a comunidade passa despercebida aos olhos da sociedade.

As informações e dados acerca da comunidade são de difícil acesso; sites governamentais e institucionais sequer a mencionam. Tais fatos enfatizam mais ainda a exclusão de muitas das favelas cariocas na sociedade, mesmo sendo de conhecimento geral que o Rio de Janeiro abriga um grande número de favelas, nem todas estão registradas.

Contei com os relatos de Dona Zélia - que por estar à frente de ações sociais na comunidade há muitos anos, conhece a fundo a história da comunidade para começar a costurar as vivências da Vila Beira-Mar. A comunidade é formada em sua maioria por pessoas que migram de outros estados, principalmente do nordeste do Brasil, para o Rio buscando uma melhor qualidade de vida, porém a realidade enfrentada é diferente da imaginada e acabam tendo que se instalar na favela. Em 1994, ano em que Dona Zélia chegou na Vila Beira-Mar, a comunidade ainda não apresentava nenhum sistema de saneamento e suas casas eram construídas em palafitas. Chegando a quase sofrer ação de despejo, os moradores da favela começaram um movimento em defesa de sua permanência no local e de condições mais dignas para as vidas lá existentes. Essa luta fortaleceu os laços afetivos dos moradores para com a comunidade, criando um sentimento de lar e conexão mesmo com todos os desafios enfrentados.

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arqgis.com

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A Vila Beira-Mar abriga, hoje, pouco mais de 4.000 famílias, que moram, em sua maioria, na parte frontal da comunidade, próxima à rua principal, Cardeal Arcoverde. Essa área conta com infra-estrutura de saneamento, água, luz e ruas asfaltadas, tendo condições mais dignas de moradia. As casas possuem de dois a três cômodos e abrigam, em média, dez pessoas.

Foto: Paulo

Rua Cardeal Arcoverde No entanto, 450 dessas famílias ainda vivem abaixo da linha da pobreza, em situação de extrema vulnerabilidade, sem direito às condições básicas de moradia – saneamento, sistema de drenagem, água e luz -, em ruas de terra e casas de madeira, de apenas um cômodo, construídas majoritariamente pela ong TETO, atuante na comunidade. Por mais que recebam ajuda das ongs e coletivos de Duque de Caxias, essas vidas ainda lutam muito por um lar mais digno.

Foto: Instagram @favelascontraocoronavirus

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Área de trás da comunidade

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primeira troca PROCESSO I Uma de minhas primeiras perguntas aos moradores com os quais conversei foi sobre um lugar afetivo para cada um na comunidade.

Seu Marinho: O espaço do qual tem mais carinho é o clube de dança que costumava frequentar quando jovem. Lá, relembra ele, havia diversos eventos, como peças de teatro, atividades recreativas, cultos, e claro, os bailes. Era um lugar de encontros e união, onde todos estavam felizes.

Paulo: O lugar de maior significado para Paulo é o galpão existente na entrada da comunidade e que, em sua infância, funcionava como sede de um projeto comunitário que atuava como rede de apoio para que as crianças da comunidade não ficassem nas ruas à mercê do tráfico. O projeto, chamado “Eu vivo na Beira-Mar” consistia em atividades como esportes, dança, aulas de leitura e reforço escolar. Hoje em dia o projeto já não mais existe dentro da comunidade, mas lhe traz boas lembranças e sempre que revive os bons momentos que o projeto lhe proporcionou, se alegra.

Quadra

Foto: Dona Zélia

Dona Zélia: A comunidade possui uma quadra, que hoje em dia é o lugar mais significativo para ela pelo seu esforço e trabalho junto à ong TETO para criar um centro de lazer. Ao falar da quadra a descreve como o lugar onde as crianças brincam, as ongs se reúnem e as dinâmicas acontecem.

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Lucimar: Vê sua casa como o espaço mais afetivo para ela na comunidade. A descreve como um lugar de memória e proteção, decorrente da atuação de tais projetos na área mais vulnerável da favela e da valorização dessas ações por parte dos moradores.

Foto: Teto

Construção de novembro de 2018 na casa de Lucimar

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corpo urbano Ao pensarmos em lugares afetivos é evidente que pensaremos em lugares que nos gerem prazer, afinal nosso corpo está sempre em busca de expandir-se e tornar-se alegre, segundo Espinosa. Somos corpos que se motivam pelo desejo, sendo ele a força que cria, e criando-se e reinventando-se a todo momento manifestamos a natureza que há em nós; o desejo intensifica o ato, nos faz querer e nos impulsiona a explorarmos a máxima potência corpórea e mental Na filosofia espinosiana existem dois tipos de afetos, os ativos e os passivos. Afetos ativos são aqueles que geram ações, que consistem em apropriarse de todas as causas exteriores para aumentar a nossa potência de viver, como quando os moradores contam-me sobre os que os afetam. São afetos felizes, aqueles a partir dos quais nossos corpos são beneficiados com a relação com outros corpos.

Já os afetos passivos são aqueles que geram paixões, que consistem em deixarnos vencer pelas causas exteriores, diminuindo nossa potência de viver. São afetos tristes, aqueles a partir dos quais nossos corpos se intimidam e recuam. . Em sua análise sobre os afetos de Espinosa, o autor Rafael Trindade13, no texto “Espinosa: o que pode o corpo”, conclui que “tristes estamos separados da nossa essência, somos o que não somos; alegres tornamo-nos o que somos e adquirimos a capacidade de transmutação.”

Noto nas falas dos moradores a presença dos afetos ativos, aqueles que são desejados por nós, e faço um paralelo com a interação corpo e cidade de Paola, ao falar da experiência vivida cotidianamente na cidade tornando-se resistência aos espaços espetacularizados. Diferentes lugares configuram e definem os diferentes corpos dos moradores, e tais lugares fogem dos moldes de cidades cenográficas criadas pelos projetistas para fomentarem a promoção e publicidade do local.

Os espaços públicos contemporâneos são pensados de modo a promoverem as imagens e marcas consensuais da cidade, como diz Paola, são projetados de maneira homogeneizadora, consensual e espetacular. No entanto, existe uma “outra cidade” resistente a esses padrões, situada nas brechas dessa cidade espetacularizada, formando micro-resistências. O uso cotidiano que contraria os usos planejados intensificam esses espaços ofuscados reinventando-os. A experiência corporal é, então, quem configura a cidade e esta configura o cidadão à medida que o causa registros, como se o marcasse com uma grafia. É a interação cotidiana entre corpo praticante e corpo urbano que gera suas configurações.

No período passado experienciei sentir e entender os espaços da comunidade pelos olhos e relatos dos próprios moradores. Devido à pandemia, ir ao local não era uma escolha, então precisei me permitir sentir mesmo não estando presente e isso me proporcionou visões antes não imaginadas por mim. A cada foto, cada fala, me apegava mais aos lugares tão falados por eles, de uma forma quase lúdica.

Ao começar a leitura sobre Espinosa resolvi tentar uma segunda experimentação: ir à comunidade e revisitar – dessa vez com o corpo presente – todos os lugares dos quais estudei. A ida até lá, no entanto, não era tão simples.

Além do momento ainda delicado em virtude da pandemia, precisava contar com a disponibilidade de Seu Marinho para que me acompanhasse até o local.

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Formado em psicologia, redator no site “Razão Inadequada”, escreve textos sobre Nietzsche, Espinosa e Esquizoanálise.

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PROCESSO II Já em meados de outubro consegui visitá-la. Chegando lá, minha caminhada foi guiada por Seu Marinho, com quem cheguei ao local, e inicialmente, por um de seus amigos, Thiago. Começamos a andar pela borda da comunidade, a área de mais vulnerabilidade. Haviam crianças brincando nas ruas e as casas às margens do canal. Logo mais, nos deparamos com uma senhora, dona Alda, na porta de sua casa e paramos para cumprimentá-la. Não sei dizer como a conversa se iniciou, mas quando vi, estava lhe perguntando sobre como era morar naquela parte da comunidade e onde ela mais gostava de frequentar e de se reunir. Me contou que não costumava ficar muito fora de casa e que não ia muito para as outras partes da comunidade, como a rua principal onde há mais movimento, a rua Cardeal Arcoverde. Mas me contou também – e dessa vez com brilho nos olhos – que o lugar que mais gostava de ficar era seu quintal, onde fazia churrascos e reuniões com seus familiares e que sempre que seu irmão ia pra lá, a ajudava a melhorar cada vez mais aquele cantinho, de tanto orgulho para ela. Depois disso, nos despedimos e segui minha caminhada pela comunidade.

Ao longo da caminhada, perguntei onde se localizava a quadra da qual Dona Zélia tinha me falado tanto e pedi para que me levassem até ela. Chegando lá, me deparei com uma quadra abandonada, sem as grades e me contaram que não estava mais sendo usada. Minha expectativa tinha sido quebrada, mesmo sabendo que não deveria ter ido à comunidade com expectativas em mente, mas para mim ter visto a quadra naquele estado trouxe uma sensação de vazio no meu peito.

Me questionei “se a quadra era um dos poucos espaços de lazer que me disseram existir, onde será esse lugar agora?”, mas segui na esperança de descobrir coisas novas.

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Ao final da rua tinha uma amendoeira cortada. Quase segui reto, passando despercebida por mim, quando Thiago parou e falou “antes dessa amendoeira ser cortada, a gente se reunia aqui, ficávamos debaixo da sombra que ela fazia, era um lugar muito agradável, agora como tem muito sol ninguém fica mais aqui.” Assim que Thiago me falou sobre a amendoeira, me lembrei que Paulo havia falado desse mesmo local comigo meses atrás e vi que não se tratava apenas de uma amendoeira, e sim de um lugar de boas memórias e encontros que permanecia vivo nas lembranças dos moradores.

Continuamos seguindo. Seu Marinho, então, me falou “Vamos lá ver se o Paulo “tá” em casa, Leticia.” E então voltamos para a comunidade e entramos na rua principal. Minha sensação quando estávamos lá foi de que ali era o coração da comunidade. Era ali que acontecia o churrasco de domingo, que as crianças brincavam e andavam de bicicleta, que os jovens sentavam-se nas escadas em frente às casas para conversar. Senti que as pessoas se sentiam mais próximas da rua do que de qualquer outro local.

Certa hora, entramos na rua de Paulo, e também a rua em que Seu Marinho tinha sua barraca de sorvete e sua casa, a Rua da Igreja. Por coincidência, Paulo estava saindo de casa naquele instante e logo nos encontramos. Foi uma alegria para mim ter a oportunidade de conhecer uma das pessoas com quem conversei por tantos meses e que foi tão importante para minha pesquisa. Já me sentia íntima dele e também o senti à vontade com minha presença. Falei de tudo o que havia visto no dia e o perguntei se as pessoas de fato costumavam ficar e se encontrar apenas na rua. Paulo então me disse de uma praça que existia do outro lado da Avenida 41

Washington Luís, onde os moradores costumavam ir. Paulo se juntou à nós e fomos, os quatro, até lá.

A comunidade fica localizada bem em frente a uma das passarelas da avenida, sendo assim, era só atravessá-la e já estaríamos próximos ao local. Logo ao chegarmos, havia na praça uma quadra, um quiosque, algumas mesas e um parque infantil. A quadra, disseram eles, era a mais usada pelos moradores para praticar e competir em torneios de futebol. Caminhando pelo local, os perguntei da importância da área para a comunidade e qual era o sentimento que tinham em relação à ela. Disseram ser um local muito frequentado pelos moradores, tendo um sentimento de pertencimento, como se fosse uma “extensão” da Vila BeiraMar. Havia ainda na área uma outra praça, com brinquedos infantis e mais mesas. Ambas as praças eram frequentadas por eles constantemente. Vimos crianças brincando, adultos conversando e alguns outros apenas passando.

Começamos a caminhar novamente em direção à comunidade. O trajeto tinha chegado ao fim. Mesmo já tendo andado por todos os lugares parecia que ainda tinha coisas para ver e para sentir, mas confesso, não me senti confortável para entrar no espaço de outras pessoas e começar uma conversa, por mais que tivesse me sentido abraçada pelo Seu Marinho, Thiago, Paulo, dona Alda e todos os outros com quem esbarrei no caminho.

Chegando à comunidade me despedi dos três, agradecendo por toda a companhia e carinho em terem tantas trocas comigo. Voltei para casa pensando em tudo o que vi, ouvi e senti ali.

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Como já mencionado anteriormente, os afetos para Espinosa se dividem entre ações e paixões, tendo diferentes intensidades para o corpo. Interpreto essas potências como algo mutável, que em um momento da vida pode ter sido aumentada e em outro dimiuida. Aos afetos não cabem apenas tristezas ou apenas alegrias, as emoções não são preto no branco, não são objetivas.

Tratarei de cinco espaços. Espaços onde senti a presença de afetos, nem todos em intensidades similares, mas todos que contavam histórias e vivências. O quintal, a quadra, a amendoeira, a rua, a praça.

Ao ver o modo como dona Alda fala de seu quintal, percebo seu prazer em estar naquele lugar, o orgulho que sente ao me contar que pouco a pouco arrumava cada parte do espaço e a alegria ao falar que o mesmo era usado para seus encontros. O quintal a afeta aumentando sua potência, a tornando um corpo que se esforça para estar naquele espaço, praticando o “bom-encontro”, como diz Espinosa.

Sua experiência no local deixa marcas inscritas em seu corpo, e seu uso cotidiano do espaço também o configura, tomando como partido a corpografia de Paola.

Na quadra, a potência sentida por dona Zélia – com quem conversei no primeiro semestre do ano – é diferente da potência sentida por Seu Marinho e Thiago. Ao visitá-la em minha ida à comunidade, vi um espaço sem encontros, sem corpos, aparentando estar abandonada e ao falarem do lugar, Seu Marinho e Thiago demonstraram sentirem-se impotentes diantes das causas externas, como se não restassem mais afetos alegres naquele local, sentiam-se inseguros e desconfortáveis por estarem ali. Já dona Zélia, ao me relatar sobre o mesmo lugar, demonstrou sentir alegria, a potência em ato. A quadra configurava seu corpo, resistia em sua memória, que como diz Duarte, quando evocada a partir do reconhecimento sensível, fazendo aflorar o afeto, se desprende de uma troca, de uma relação ativa com o lugar. Contou-me ser um espaço de muita importância para ela, dando um valor completamente diferente ao dado pelos primeiros. Para eles, pensar na quadra era pensar em abandono, para ela, era pensar em encontros e interações. A diferenciação de sentimentos gerados pela quadra nos três moradores exemplifica a fala de Paola sobre as corpografias, onde cada corpo pode acumular diferentes experiências 43

urbanas de um mesmo espaço, são marcados de formas singulares, deixando claro a existência de subjetividades em cada espaço da cidade ao ser vivido de dentro e não de cima como nas cartografias urbanas.

Na amendoeira as potências também se faziam presentes em diferentes intensidades. Enquanto para Thiago foi um local descrito com muita emoção, para Seu Marinho, o espaço parecia não afetá-lo. Era perceptível que Thiago guardava boas lembranças da época em que se reunia na sombra da amendoeira, que em sua mente ainda restavam alegrias ao pensar no local, mas também lhe trazia tristezas por não mais existir. Dito isso, indago, pode um mesmo corpo proporcionar à outro alegrias e tristezas em diferentes tempos? Acredito que os afetos se misturam, mas em diferentes intensidades, o que para alguém já foi afeto ativo sempre assim o será, constituindo o seu corpo, mesmo que agora proporciona também ao indivíduo um afeto passivo. Entendo que corpos podem gerar em diferentes níveis sentimentos divergentes, como a amendoeira gera em Thiago, causando experiências multisensoriais descritas por Cristiane Rose como forma de atribuir mais valor à ambiência. Ter a consciência situacional em relação à realidade que nso envolve é o que nos faz sentir inseridos nos espaços.

especularização e de cidade cenográfica, seu uso cotidiano contraria o uso planejado do local.

A praça, talvez o segundo local mais frequentado por eles depois da rua, me foi uma grande surpresa. Ao ir à comunidade à procura de espaços e conexões não imaginava que um desses lugares seria fora de sua área física. Mas, para eles, o limite físico da comunidade não importava. “É só atravessar a passarela da Washington Luís”, disseram. Seus corpos iam em direção à praça como quem vai em direção à algo que impulsiona os bons encontros. A praça deixa de ser apenas uma praça, um cenário da cidade espetacularizada quando passa a ser vivida pelos praticantes ordinários, que segundo Paola, ao experimentarem a cidade dão corpo à ela, tornam-na espaços encarnados, pois tais espaços, na lógica de Duarte, não se desenvolvem sem a presença e a ação dos corpos que o circundam.

Como dito pouco acima, afetos são subjetivos, os encontros dos corpos não se dão sempre na mesma potência de agir. A inconstância dos afetos permite que aquilo que um dia nos entristece, no outro nos alegre e vice-versa. A corpografia se faz presente ao agirmos nos espaços e esses em nós, “na experiência corporal cotidiana das cidades, na sua prática urbana ordinária, diretamente relacionada com a questão da ação e, sobretudo, do uso dos espaços.” (Jacques, 2010 p. 115).

Andei, então, pela rua principal, vi seu movimento, seus encontros, seus corpos. Por esses movimentos, que geram a corpografia, entendo como o afeto ativo de Espinosa, quando nos apropriamos das causas externas aumentando nossa potência de agir. Andando pela rua, naquele dia, foi essa potência que senti ali presente. Corpos interagindo com outros corpos – espaço e pessoas – e se deixando ser afetados por eles. O desejo dos corpos de estarem ali se fazia claro. Senti na rua a presença das micro-resistências, que se fazem presente contra a ideia de 44

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cartografia afetiva PROCESSO IIl Em paralelo à experiência de estudar os afetos de cada espaço, olho as imagens, registradas tanto por mim quanto pelos moradores com os quais conversei durante a minha pesquisa; cada uma delas conta uma história, uma percepção, um sentimento. As imagens têm uma importância tão grande quanto a pesquisa, elas não são o produto final, elas são parte de seu processo.

No entanto, uma questão paira na minha cabeça. Ao ir na comunidade, acreditava que voltaria com muitas fotografias.

De espaços, de encontros, de desencontros. Percebi, ao chegar lá, que muitas dessas vontades não poderiam se concretizar em imagens, pois não me vi na liberdade de registrar tais encontros, tão intimistas. Por vezes, passei por crianças brincando, pessoas sentadas nas escadas de suas casas interagindo umas com as outras ou reunidas nas calçadas de forma cotidiana. Fotografei o que senti que deveria. Me baseei, então, em ambas as visões, minha e dos moradores, para a construção de um mapa afetivo que pudesse expressar todas as formas de afeto existentes na relação entre os corpos presentes na Vila Beira-Mar.

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Me baseio no conceito da exposição “ #rioutópico” (figuras 1 e 2) de Rosângela Rennó para a criação do meu mapa. Seu trabalho consiste em cerca de 350 fotos tiradas por grupos de jovens das periferias cariocas com o intuito de conhecer e fotografar pessoas de diferentes localidades do Rio de Janeiro. Ao final, foi criado um “mapa humano”, como denominou Rosângela, de diversos pontos da cidade, interpretando-os de uma maneira não-convencional ao inserir as fotografias dos diversos autores participantes do experimento e nomear os locais por seus nomes utópicos, como Cidade de Deus.

Me proponho a produzir um mapa sensorial dos cinco espaços que analisei, mesclando sua cartografia, a criação de linhas, fotografias e desenhos, podendo assim demonstrar a subjetividade dos afetos e da interação entre corpos.

Ao longo do meu processo entendi que a cartografia urbana, usada tradicionalmente pelos urbanistas, não seria capaz de retratar a complexidade das relações por mim estudadas. Mais importante que essa cartografia ,para mim, eram as fotografias e o percurso desse espaço e a representação das emoções ali existentes.

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Figura 1

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Fonte: Rosângela Rennó

Figura 2

Fonte: Rosângela Rennó

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Analisando as fotografias, Nelson Brissac14 em “As imagens e o outro” fala que “o dilema da fotografia na era dos clichés é mostrar algo que não se consegue mostrar, que não se deixa reproduzir em série.” e interpreto isso como a noção de que fotografia não é apenas um cenário que foi registrado pelas câmeras, ela passa diversas sensações à seus espectadores, por vezes, sensações que o próprio fotógrafo quer transmitir, e por outras vezes, sensações que cada espectador sente individualmente de acordo com o significado que aquela imagem transmite para ele devido à diversas questões, pessoais, memórias. Cada fotografia conta uma narrativa e faz o espectador indagar sobre tal história, “a fotografia contemporânea parece querer demonstrar a presença do ser, a imagem do outro.” (Brissac, 1990) Ao fotografar, apropriamo-nos das memórias daquele lugar, dos sentimentos ali vividos, transmitindo para terceiros tais intimidades.

A experiência urbana cotidiana é quem constrói a cidade, são seus praticantes ordinários que a configuram, e para tal é preciso olhar a cidade de dentro e não de cima, como fazem os praticantes ordinários da cidade, em “Corpografias Urbanas” (Jacques, 2008). A corpografia se dá através dos movimentos dos errantes, compreendendo as pré-existências corporais resultantes das experiências dos espaços, tornando sua cartografia mais complexa e subjetiva. Fazer um mapa olhando o local apenas de cima, sem adentrá-lo não seria capaz de transmitir as interações corpóreas desejadas, pois os espaços menos espetacularizados resistem na prática da cidade, do corpo urbano.

Assim como os situacionistas, a corpografia não se preocupa em mostrar o todo, mas sim os espaços que de alguma forma são vividos, experimentados, se preocupando mais com as práticas, ações e percursos. Na criação de minha cartografia afetiva uso o mapa situacionista (figura 3) como referência para desenhar o percurso feito em minha visita e os espaços por mim analisados, me distanciando de um diagnóstico tradicional e me aproximando da prática urbana ordinária.

Figura 3

Fonte: Guy Debord, The Naked City, 1957

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Mestre em filosofia pela PUC-SP e doutor pela Sordonne, trabalha com questões relacionadas à arte e ao urbanismo e dedica-se à pesquisas sobre as dinâmicas territoriais na região sudeste do Brasil e as relações entre arte e indústria.

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A criação do mapa não é feita de forma a respeitar fisicamente o traçado das ruas e espaços em sua totalidade, o faço pensando em cada passo que dei em minha visita. Suas linhas são desenhadas de acordo com meu percurso, começando na rua da borda da comunidade até chegar à praça situada no outro lado da Washington Luís. O construo nessa lógica de maneira a transmitir da forma mais fiel possível a experiência urbana que tive no local.

A cartografia afetiva se da em três etapas. Na primeira, permaneço com a ortofoto ainda à vista, desenhando os caminhos por onde passei e mapeando os cinco espaços visitados, como forma de evidenciar que o percurso não se deu em toda a extensão da comunidade e nem apenas dentro de seu limite físico. O foco, no entanto, se faz na conexão, através dos meus passos, de um espaço à outro, como se todo o resto que os cerca não existisse, permanecendo então, posteriormente, apenas com os caminhos e os cinco espaços visíveis em meio à um plano branco, representando o vazio dos demais espaços. Na terceira etapa, ao mostrar cada espaço analisado, crio uma imagem constituída pela fotografia do local e desenhos que consigam transmitir uma junção das falas dos moradores e das minhas sensações ali experienciadas.

Em seguida relato como se deu meu percurso e quais foram as práticas ali vividas, por meio de fotografias e desenhos.

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Comecei meu trajeto pela borda da comunidade. Ao chegar lá, a rua estava vazia, mas não me trouxe uma sensação de insegurança, era como se as pessoas estivessem em suas casas e eu estivesse em seus quintais. Andando um pouco mais, observei algumas crianças brincando e roupas estendidas até chegar ao quintal de dona Alda. Ao observar o espaço e ouví-la falando dos encontros que lá aconteciam, imaginei um dia de domingo ensolarado, uma reunião entre amigos e familiares, muitos corpos gesticulando e movimentando-se, uma alegria causada pelas práticas cotidianos e pelo famoso “churrasco de domingo”, a aproximação com o mundo e o que nos cerca se faz presente por esses bons encontros de Espinosa.

A sensação ali percebida foi de desejo de fazer parte daquela interação, como se sentisse uma nostalgia de algo que nem mesmo experienciei.

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À seguir, caminho em direção à quadra. Era o único desses espaços do qual já havia ouvido sobre. Em minhas primeiras conversas, Dona Zélia falava do lugar com muita emoção, afirmando ser o lugar onde, para ela, os encontros aconteciam, principalmente relacionados aos trabalhos das ongs. Chegando lá, no entanto, e segundo os relatos de Thiago e Seu Marinho naquele dia, o local estava abandonado, não havia nenhum praticante sequer interagindo com o espaço, estava desencarnado.

Olhando para aquela quadra, que antes, para mim, simbolizava vínculos e trocas, senti como se a falta de marcas de corpos tirasse a vida do espaço, não mais sendo visto como “outro corpo” que Paola tanto fala. A sensação que experienciei foi de vazio, como se qualquer corpo que ali estivesse se sentisse encolhido pela imensidão do local, como se não existisse a possibilidade de praticar aquele espaço, de deixarse perder ali. A quadra afetava psicologicamente os corpos que por ali passagem, transmitindo uma sensação de desconforto, como se o “eu” não pudesse interagir com aquele local, e segundo Duarte em seu conceito de alteridade, ao não interagir com o Outro, o “eu” não consegue existir, pois não sobrevive sem o contato.

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Chegando na amendoeira, fui influenciada pela fala de Thiago, pois ao descrevê-la como um lugar que está em sua memória, registrando os encontros que lá haviam, comecei também a me afeiçoar pelo local, pois nosso corpo está sempre em busca de produzir afecções ativas, expandir-se e tornar-se alegre, como acredita Espinosa, portanto, ao olhar para a amendoeira e ouvir as memórias de Thiago, imaginei um lugar onde as trocas eram recorrentes, onde a interação de corpos praticantes com outros corpos praticantes e com o corpo urbano se fazia presente.

“As próprias coisas deixaram de ser o que eram para tornarem-se monumentos à lembrança do que foram.” (Brissac, 1990). Mesmo sem a presença de corpos e de sombra, a sensação que a amendoeira transmite, pela fala de Thiago, é de interação, de um espaço vivido e praticado pelos moradores. Um espaço que possui e deixa marcas por quem ali já passou. Faço uso das memórias de Thiago para transmitir a representatividade da amendoeira para os moradores, onde sua potência apenas se deu através de seu uso cotidiano.

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Na rua foi onde pude ver o maior número de corpos, utilizando-a de diversas maneiras. Para andar de bicicleta, para fazer churrasco, para conversar, para sentar. E me questionei, seria essa rua uma representação de micro-resistência de Paola? Os usos cotidianos que cada morador dava àquele espaço, contrariando seu uso planejado e praticando a cidade já é por si só um ato de resistência, os gestos e movimentos corporais revelavam as experiências urbanas praticadas naquele espaço.

Em minha visita, senti que o tamanho da rua parecia não importar, as pessoas ali presentes me transmitiam uma sensação de que ao mesmo tempo que estivessem praticando diferentes atividades, estavam também todos juntos, reunidos em um único espaço, em um único corpo, afetando e sendo afetado tanto pelo corpo urbano quanto pelos corpos praticantes uns dos outros.

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Ao ouvir sobre a praça – localizada do outro lado da Avenida Washington Luís - a relação que os moradores me transmitiram foi de aproximação, de pertencimento, como se o limite físico não importasse, e a passarela da avenida fosse uma pequena rua que atravessamos. A interação entre o corpo do praticante e o corpo urbano ali era muito potente, como se a praça passasse a ser corpo a partir do momento que tal prática era feita. Crianças brincavam nos balanços, em suas bicicletas, no chão. Adultos sentavam-se para ler, passeavam pela área, interagiam com as crianças. Usando a palavra dos próprios moradores, aquele lugar era uma “extensão” da comunidade. Senti uma potência muito forte dos atos ali praticados, como se cada corpo que estivesse ali fosse um corpo desejante, um praticante da cidade.

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da arquitetura, do corpo e do afeto Meu trabalho não tem começo, meio e fim, ele se deu por processos, que, por sua vez, se deram em tempos e clarezas diferentes. Digo que não tem fim porque se trata de contar histórias e transmitir sensações, e como podem as sensações terem fim se são inconstantes?

No decorrer da pesquisa, ao indagar se falando sobre afetos, falaria também sobre arquitetura, cheguei à conclusão de que não se pode deixar de pensar em arquitetura ao pensar em interações entre corpos. A arquitetura se faz presente ao entendermos que o modo que somos afetados e afetamos outros corpos influencia no modo como nos relacionamos com o corpo urbano, a cidade. A complexa relação entre praticante e cidade, resistência e espetáculo, cidade cenográfica e a “outra cidade” citados por Paola Jacques potencializa a importância da experiência urbana, pois o empobrecimento de tais vivências leva a uma perda da corporeidade, os espaços urbanos tornam-se desencarnados, perdendo sua força corpórea; a cidade apenas se torna corpo ao ser praticada, vivida cotidianamente, do contrário, é apenas cenário, sem vida.

Acredito que ao refletirmos sobre a cidade, nós, arquitetos e urbanistas, devemos pensar também os corpos e suas formas de afetarem-se. Tudo se interliga, tudo é corpo. Interações acontecem em todas as relações, sejam elas positivas ou negativas, convidativas ou excludentes, e para que o espaço urbano possa ser sentido em sua máxima potência, é nosso dever, agentes pensantes da cidade, olhá-la de dentro, e não de cima, distantes, de forma a nos aproximarmos do cotidiano dos praticantes ordinários, construindo espaços que aflorem nosso senso de coletividade e de permanência no espaço urbano, e não de opressão, afinal, o corpo esforça-se para consumir alegrias, para tornar-se forte e transformar-se de acordo com o corpo externo e quanto mais amplos forem os modos de agir, maiores serão suas afecções, pois o corpo é capaz de diversas experiências, é capaz de afetar-se e afetar de muitas maneiras. A arquitetura deve ser pensada de forma a expandir a essência dos corpos e suas intercorporeidades, e transmitir sua identidade, deixando que essa se molde em cada corpo praticante de acordo com a experiência vivida na cidade.

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