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NAVEGANDO, COM JORGE OLIMPIO BENTO

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VEGANDO COM JORGE OLIMPIO BENTO

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"As armas e os barões assinalados / Que da ocidental praia Lusitana / Por mares nunca de antes navegados / Passaram ainda além da Taprobana / Em perigos e guerras esforçados / Mais do que prometia a força humana / E entre gente remota edificaram / Novo Reino, que tanto sublimaram".

A consagração do direito a uma vida digna, realizada no caminho de perseguição da felicidade, implica a presença acrescida do desporto, a renovação das suas múltiplas práticas e do seu sentido. Sendo a quantidade e qualidade do tempo dedicado ao cultivo do ócio criativo (do qual o desporto é parte) o padrão aferidor do estado de desenvolvimento da civilização e de uma sociedade, podemos afirmar, com base em dados objetivos, que nos encontramos numa era de acentuada regressão civilizacional. Este caminho, que leva ao abismo, tem que ser invertido urgentemente.

ESCUSA DE RESPONSABILIDADE?!

Quem é professor sabe que nunca encontrou as condições ideais para exercer a função. Nem jamais as encontrará! Mas assume-a assim mesmo e tenta cumprir a missão. De resto, se não fosse a congénita e persistente imperfeição, não haveria necessidade de escola e de educação. De modo similar, as doenças e inquietudes sobre a saúde levam-nos a procurar médicos e medicação. Poderão eles escusar-se, invocando carência de meios para o atendimento devido e a rigorosa prescrição? Desculpem a simplória interrogação!

TRÁS-OS-MONTES

O quadro é mitológico e sagrado. A criação do mundo começou aqui. A terra levantou-se das profundezas do abismo, visando preencher o espaço infinito até ao céu, com uma sucessão de montes, planaltos e vales. Foi neste cenário que um ente de tipo especial, acometido pelo excesso do arrojo e da desmedida, emergiu do chão. Designado como ‘humano’, chamou a si o empreendimento da autonomeação. Não se contenta com o papel de Epimeteu, nem tampouco com o de Adão. Por enquanto intitula-se Sísifo, nome precário e provisório, ainda a caminho do batismo definitivo. Este jamais acontecerá, por ser arredio à catalogação. A reinvenção contínua do prodígio é a sua meta e fixação.

ORDEM DO DIA

“Em que consiste a pior das cobardias? Parecer-se cobarde perante os outros e manter a paz? Ou ser-se cobarde perante nós próprios e provocar a guerra?” As perguntas são formuladas pelo escritor Jean Giraudoux. Sei que não falta por aí gente com respostas prontas e definitivas. Não me bastam. Prefiro abordar as interrogações e dúvidas com quem não tem certezas apodíticas, nem as busca e se fia nelas. A mecânica e a vida ensinam que o equilíbrio é instável; exige atenção e exercício constantes.

VIAGEM DO CORAÇÃO DE D. PEDRO AO BRASIL

Não sei em que estado se encontra o coração de D. Pedro, o primeiro do Brasil e o quarto de Portugal. E também não vejo, com todo o rigor, qual seja a finalidade da sua travessia do Atlântico; mas receio uma instrumentalização sem decoro algum. Obviamente, ele tem um considerável poder simbólico: pode contribuir para a regeneração do coração adoentado do presidente brasileiro e dos seus seguidores. Se isso acontecesse, a viagem valeria a pena – e muito! Só que milagres são coisa raríssima; e pressupõem a petição de quem os recebe. Enfim, o folhetim é de tragicomédia, tal como o papel do Presidente da CMP.

CRIADOR DE HUMANIDADE

Emergiu, por entre as pedras, arquejando sob o fardo do nada. Era meio-dia, no pino do verão, e o sol abrasador. Levantou os olhos ao céu. Perdeu o equilíbrio, mas conseguiu soerguer-se. Ao redor não lobrigou vivalma para lhe matar a sede de água. Fez-se ao caminho, desenhando-o conforme os passos cambaleantes que o levavam de um para o outro lado. O corpo endireitou-se, obedecendo a sussurros confusos que vinham de dentro dele e, pouco a pouco, ficaram cada vez mais precisos e transformaram-se em alma. Parava constantemente para medir o caminho andado e discutir o por andar com alguém invisível que, soube-o depois, era a consciência. Esta punha-lhe sobre os ombros pesos descomunais.

Lá do alto, os deuses contemplaram o transe. E condoeram-se. Queriam falar com a criatura, confortá-la e dar-lhe uma justificação para tamanha provação. Mas… com que nome haviam de a invocar? Acudiu-lhes, de pronto, que seria apropriado chamar-lhe ‘Transmontano’, uma vez que estava constantemente a surgir e desaparecer por detrás de montes. Assim fizeram. O nomeado correspondeu, transbordou de gratidão e aceitou a missão. Estugou a passada, animado pela divina graça da energia telúrica e da vontade indomável: tinha que realizar a volta ao mundo e edificar pontes com os Outros, para um dia Ser Humano!

HABITANTES E HABITADOS

Habitamos num espaço físico, e somos habitados pelo emocional, espiritual e imaterial. Moro no Porto, mas sou habitado por memórias, experiências, convivências, saberes e sentimentos provenientes de vários locais. Da Cidade Invicta são os sólidos esteios que me sustentam; outros tantos e iguais vêm dos caminhos da vida iniciados em Bragada. A toda a hora, sinto que nunca saí da terra originária, mesmo parecendo firmemente atado à morada. Os olhos, a alma e o coração jamais se despegam do torrão natal, dos nasceres do sol, dos entardeceres e das vindas das estrelas e do luar, dos toques das ave-marias e das trindades, dos quotidianos de outrora, das muitas pessoas que já partiram e das poucas que ainda andam por cá. Habitantes de mim são igualmente os encontros e as etapas da peregrinação pelo mundo próximo e distante. É isto que me perfaz por dentro e diferencia por fora.

EVOCAÇÕES A PROPÓSITO DO DIA 14 DE AGOSTO

Estou em Macedo de Cavaleiros. É imperioso que evoque a Batalha de Aljubarrota, realizada em 14 de agosto de 1385. Nela um macedense teve um papel decisivo para pôr fim às pretensões do rei de Castela ao trono de Portugal. O nosso D. João I, filho dos amores furtivos de D. Pedro I, que perambulou durante dois anos com Leonor de Castro pelas paragens bragançanas, estava prestes a ser abatido pelo fidalgo castelhano Abranches de Soveral. Surge então Martim Gonçalves de Macedo que desfere um golpe mortal no castelhano, salva o monarca e, concomitantemente, a independência nacional. Pois é, estas terras de heróis quotidianos são alfobre de relevantes figuras nacionais. Aqui ao lado, em Chacim, nasceu Nuno Martins, aio de D. Dinis, o primeiro rei inteiramente letrado, impulsionador da literatura trovadoresca e um dos mais ilustres soberanos da monarquia portuguesa. Também colada a Macedo de Cavaleiros encontra-se a aldeia de Grijó, berço do senador Adriano Moreira. Martim Gonçalves está sepultado no Mosteiro da Batalha, por vontade real, para acompanhar na morte aquele que salvou na vida. Nuno Martins teve sepultura no Mosteiro de Castro de Avelãs, junto a Bragança. Muito fica por contar e muitos nomes por referir. Isto basta para exaltar o extraordinário contributo das gentes transmontanas para a gloriosa história de Portugal.

FACETAS DOS PROMETEUS TRANSMONTANOS

Nas noites de Verão, pouco depois do cantar do galo, levantavam-se estremunhados de sono; de enxada ao ombro, seguiam até ao açude donde saía a agueira destinada a regar as hortas. Naqueles tempos estava combinado o dia em que a água tocava a cada um. Mas a sede das plantações era tanta que havia sempre alguém tentado a desrespeitar o acordo e a desviar o precioso líquido ao longo do trajeto. Quando o roubado encontrava o ladrão em flagrante delito, não raras vezes, o conflito resolvia-se à sacholada.

Quem estuda a génese dos crimes de outrora no Nordeste Transmontano descobre que a maioria deles tinha origem em casos passionais e em roubos de água. Ademais, eram os mesmos os instrumentos de amanhar a terra e os de lavar a honra.

CAMINHOS

António Machado, o poeta andaluz, disse mais ou menos assim: “Caminhante, não há caminho; faz-se caminho ao andar.” A hermenêutica não fica por aqui. A condição e a identidade não nos são dadas; cada um forma-as nos caminhos que percorre, uns por sorte, obrigação e acaso, outros por escolha. Ao percorrê-los apropria o porte e o aroma das plantas que os margeiam, bem como o teor das pessoas que toma por companhia.

LUGAR DE PERTENÇA

Do alto do Calvário contemplo o território da infância. Bragada está ali em baixo. Já não existe quase nenhum dos atores que compunham o palco do nascimento e crescimento. Pessoas, cenas, hábitos, jogos e rituais do quotidiano de outrora foram-se embora, desapareceram, não se encontram mais. Mas tudo vive intacto dentro de mim, aflora nítido nos olhos e corre quente no meu sangue. Quantas e quão surpreendentes são as voltas que a vida deu! Não obstante isso, fiquei para sempre preso ao lugar. Nem Hércules conseguiria soltar-me dele. Os sonhos, aqui semeados, guiaram-me pelo mundo, para colher multiplicados os seus frutos. É com eles que regresso, todas as vezes, ao ponto de partida. O leito da ribeira, onde aprendi a nadar, não leva água neste verão; vai cheio da saudade que salva, nunca seca e irriga a emoção.

CONFORME À CARTILHA

Obviamente, os humanos não são todos iguais. Interessa-me pouco a gente que morre, sob balas, bombas e mísseis, lá longe. Não me dizem respeito, nem despertam compaixão as pessoas que se afogam no Mediterrâneo. Afegãos, iemenitas, eritreus, sudaneses, iraquianos, curdos, sírios, palestinos e outros que tais não são ocidentais; logo, as suas vidas têm diminuto valor, não carecem de atenção e comiseração, justiça e misericórdia. Tomo partido, claro, definido e assumido. Estou do lado dos ‘bons’; não quero saber dos ‘maus’. Sou bem comportado e doutrinado; tenho lugar no céu, merecido e assegurado.

COMEÇO E NEGAÇÃO DA CIVILIZAÇÃO

Sigmund Freud viu com apurada acuidade: a civilização começou no momento em que um humano, em vez de atirar a lança, dirigiu insultos ao semelhante, invasor do seu terreno de caça. Foi um grande avanço, inaugurador de novo olhar e procedimento. As disputas podem e devem ser resolvidas através de palavras, conversas e discussões serenas ou até acesas e azedas, porém renunciando ao emprego de instrumentos de morte. A guerra jamais encerrou definitivamente qualquer contenda; ao invés, semeia o ódio que há de nascer e florescer na primeira oportunidade. Esta é uma era de abandono das lições do passado e do caminho andado, de surgimento de traumas, de enterro do legado cultural e de regressão civilizacional.

AONDE LEVA A MENTIRA?!

Inúmeros jornalistas e comentadores estão envolvidos numa infrene competição, para ver qual deles ganha a medalha de ouro na modalidade de nos tratar, da maneira mais deslavada possível, como imbecis. Muita gente gosta e repete. Os russos têm material de guerra armazenado numa central nuclear e bombardearam-na. É isso? São verídicas as duas coisas? Então eles são idiotas e atacam-se a si próprios?! Faz algum sentido? Se não é isso, o que é afinal? Temos cérebro para quê? Para condenar a invasão da Ucrânia será preciso recorrer a patranhas deste jaez? Os fins não justificam os meios. Ademais, a mentira tem perna curta e não leva longe. Não sou Fausto. Não hipoteco e vendo o intelecto a nenhuma entidade, seja ela sagrada ou profana.

ORAÇÃO DE DOMINGO

Fui educado a encarar os países e povos distantes como estranhos e até hostis. E a pedir a Deus que os convertesse e fizesse iguais a nós. Pouco a pouco, mudei de lentes, para ver melhor ao longe. Não alcanço tudo, nem coisa que se pareça; enxergo apenas o essencial. Imagino que russos, persas, etíopes, chineses e vietnamitas, por exemplo, também têm visão e desejos próprios, diferentes dos meus. Continuo, pois, a recorrer à oração; mas agora rezo do jeito de São Francisco de Assis: “Senhor, dai-me força para mudar o que pode ser mudado. Resignação para aceitar o que não pode ser mudado. E sabedoria para distinguir uma coisa da outra.”

CRIME SEM REMISSÃO

Foi há 77 anos. Toquemos os sinos para que a memória não adormeça. Hiroshima, meu amor, o que fizeram contigo e, três dias depois, com Nagasaki não rima com fulgor. É a expressão máxima do horror. Contra ambas investiu o touro da demência e maldade, rasgando e sangrando a carne da Humanidade. Não, não é possível esquecer. O ato bárbaro e frio visou apenas exibir poder. Não teve outra justificação. Erga-se alta e firme a indignação. Mesmo que seja perdoado, o crime jamais será expiado. É imperioso banir as armas nucleares; proibi-las aos ‘maus’ e aos ‘bons’. Neste mundo não há em quem confiar; ninguém é digno de crédito. Honremos as vítimas do holocausto!

VIVA O FALONAUTA!

Rejubilam as boas gentes de Portugal E celebram o herói novo e destemido. O falonauta realizou a viagem espacial Sem o ânus soltar um mínimo gemido. A nave levantou afoita de Pau d'Alho E aterrou suave nas Caldas da Rainha. Navegou com leme feito de carvalho E alcançou o final hirsuta e inteirinha. Pra trás ficaram os barões assinalados. Doravante é ele o rei e o astro primeiro. Os funcionários mal pagos e pasmados Exibem-lhe o gesto do Bordalo Pinheiro.

BRINCAR COM O FOGO

É já demasiado o fogo que lavra o mundo. E parece que não temos meios para o apagar. É, pois, insensato atear mais. Precisamos de clarões e não de fogueiras da razão. A confrontação gratuita somente produz cinzas. Nelas não semeia, nem colhe frutos a Humanidade.

CURIOSIDADES DO REINO ANIMAL

As cobras trocam de pele. Mas algumas - e não são poucas! - trocam de roupa. As bestas mudam as ferraduras. Mas muitas mudam de calçado. Os escorpiões ferram as rãs que os levaram no dorso. Mas a maioria ferra as pessoas que os ajudaram. Alguns burros sentem a albarda, o cabresto e a vara. Mas muitos nada disso sentem; comem palha e julgam-se inteligentes.

MUNDO DO PASSADO, DO PRESENTE E DO FUTURO

Durante milhões de anos não existiu o conceito ocidental do mundo. A civilização, tal como a entendemos, começou no Médio Oriente, nomeadamente na Mesopotâmia. No Médio Oriente surgiram, mais tarde, as grandes religiões do livro: judaísmo, cristianismo e islamismo, determinantes do curso dos tempos. O que chamamos ‘civilização ocidental’ tem essa matriz, acrescida da grega e da romana. Porém não se pode esquecer que, no Oriente distante e alguns séculos antes de Cristo, viveram pensadores como Confúcio, Lao Tsé e Buda, cujos ensinamentos pontificam até hoje. E também não se deve olvidar o conhecimento e o apego à cultura e às artes que os árabes irradiaram; os cristãos da Idade Média não primavam por isso. O julgamento do passado requer ser feito a frio; não é lícito usar como padrão os valores do presente. Mas é inaceitável que o dito ‘Ocidente’ atente contra si próprio; aqui e ali, ao arrepio dos princípios humanistas e iluministas, surgidos no seu seio, persiste em atitudes ultramontanas. P. ex., no comunicado da reunião da NATO, recentemente realizada em Madrid, tal como nas afirmações do Presidente Macron, proferidas há dias durante a visita a África, ficou patente a noção que os autores têm de si e do mundo: uma visão colonialista, carecida de funda sepultura e de sublimação tão alta quanto possível. Quem quiser ser contemporâneo do futuro não pode naufragar num mísero presente. Sou um acrisolado patriota; tenho orgulho em Portugal e na sua história, bem como no extraordinário contributo dado, ontem e agora, pelos filósofos, vates, escritores, artistas e