Pensar_11_08_2012

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Pensar

VITÓRIA, SÁBADO, 11 DE AGOSTO DE 2012

www.agazeta.com.br AMARY/DIVULGAÇÃO

Entrelinhas

REEDIÇÃO DE OBRA DE DRUMMOND REITERA PLURALIDADE DO POETA E ESCRITOR. Página 3

Ideias

A PSICANÁLISE SOBREVIVERÁ EM MEIO À CRISE DA PALAVRA?, QUESTIONA ANALISTA.

Autor espanhol mais encenado em todo o mundo, Fernando Arrabal é um dos expoentes do Teatro do Absurdo

Página 4

Música

GUITARRISTA E AMIGO SE DESPEDE DE CELSO BLUES BOY EM TEXTO EMOCIONADO.

Página 5

Medicina

BIOGRAFIA APONTA O PERCURSO DO CÂNCER ATRAVÉS DOS SÉCULOS.

Páginas 10 e 11

Criador libertário

ESPECIALISTA DESCREVE A PULSÃO CRIATIVA DO DRAMATURGO FERNANDO ARRABAL

Páginas 6 e 7


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A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 11 DE AGOSTO DE 2012

quem pensa

Marcos Pasche é crítico literário, professor de Literatura e doutorando em Literatura Brasileira (UFRJ). Luciana Pena Vila Lima de Menezes é psicanalista membro da Escola Lacaniana de Psicanálise de Vitória. Saulo Simonassi é músico. saulo.simonassi@oi.com.br

Wilson Coêlho é Auditor Real do Collège de Pataphysique de Paris. wilsoncoelho@gmail.com Janete Magalhães Carvalho é doutora em Educação pela UFRJ e pós-doutora em Sociologia da Vida Cotidiana pelo ICS/Lisboa. Caê Guimarães é jornalista, poeta e escritor. Publicou quatro livros e escreve no site www.caeguimaraes.com.br Ítalo Campos é psicanalista e poeta. ifcampos@hotmail.com

Tatiana Brioschi é poeta, contista e cronista. tatianabrioschi@gmail.com

Renan Barros Domingues é neurologista com doutorado pela USP. www.renandomingues.med.br

Simone Aires Domingues é psicóloga pela Universidade Mackenzie (SP) e doutora em Ciências Fisiológicas pela Ufes. Fernando Duarte é músico, pesquisador e editor do site

marque na agenda prateleira Contando histórias Biblioteca comemora o Dia do Folclore

No Dia do Folclore, 22 de agosto, a Biblioteca Pública do Espírito Santo promove uma sessão do projeto Contadores de Histórias, às 10h, com o grupo Chão de Letras e a participação de Marta Samôr.

Ufes Curso de extensão em estudos culturais

Estão abertas 25 vagas para o curso de extensão em Introdução aos Estudos Culturais, a ser oferecido pela professora Anne Ventura (Universidades de Aveiro e do Minho, Portugal), nos dias 20 e 21 de agosto, no campus de Goiabeiras. Inscrições gratuitas pelo e-mail leituraeliteraturaufes@gmail.com.

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de agosto

José Castello faz conferência em colóquio

O jornalista e escritor participa do I Colóquio de Arte e Psicanálise, no próximo dia 18, no Hotel Golden Tulip, em Vitória. Informações sobre inscrições: (27) 3324-0268 e pelo e-mail lacanian.vix@terra.com.br.

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A História François Dosse

Professor da Universidade Paris-Est Créteil, o autor busca reconstruir o diálogo, interrompido ao longo do tempo, entre a filosofia e a história, com uma reflexão acurada sobre o ambiente do historiador e uma esclarecedora exposição do ponto de vista dos filósofos sobre a história da humanidade. 329 páginas. Unesp. R$ 45

Coronelismo, Enxada e Voto Victor Nunes Leal

Publicado em 1948, o estudo sobre o principal sustentáculo político da República Velha (1889-1930) continua atual, na medida em que as nefastas consequências do coronelismo ainda se fazem sentir na distribuição fundiária do país. 368 páginas. Companhia das Letras. R$ 49,50

A Lua Triste Descamba Nei Lopes

de agosto

Beatriz Abaurre ganha biografia

A escritora (foto), musicista e membro de instituições culturais de destaque no Espírito Santo terá sua trajetóri a contada no livro “Beatr iz Abaurre - Um ícone da cultura capixaba” (Flor&Cultura), de Maria do Carmo Marino Schneider. O lançamen to será no dia 31 de agosto , às 19h30, na Aliança Francesa de Vitória.

www.bandolim.net.

O samba e o subúrbio carioca são os principais personagens deste romance que mescla fatos históricos a personagens reais e fictícios, numa trama que contempla escola de samba, disputas políticas, a Segunda Guerra e o comércio de música. 168 páginas. Pallas. R$ 32

Profissões para Mulheres e Outros Artigos Feministas Virginia Woolf

Seleção de sete ensaios em que a romancista expôs as dificuldades da inserção feminina no mundo profissional e intelectual de sua época. 112 páginas. L&PM Editores. R$ 10

OS ABSURDOS DE ARRABAL

José Roberto Santos Neves

Ele gosta de andar pelas ruas anonimamente, observar a vida ao seu redor, beber em bares com amigos e se deixar fotografar por desconhecidos. Assim é Fernando Arrabal, o personagem de capa do Pensar desta semana. Autor espanhol mais encenado em todo o mundo, o dramaturgo completa hoje 80 anos, tendo na bagagem uma das obras mais prolíficas do seu tempo, especialmente na área teatral, conforme observa o escritor Wilson Coêlho no perfil publicado nas páginas 6 e 7. Seus números são superlativos: 14 romances, 800 livros de poesia, três epístolas, mais de uma centena de peças de teatro,

Pensar na web

sete filmes em longa-metragem e três curtas, outra centena de livros de arte e técnica de xadrez, conferências nas universidades mais prestigiadas do mundo. Um dos poucos autores do chamado Teatro do Absurdo em atividade, Arrabal fundou o Movimento Pânico e atravessou o século XX sempre na vanguarda cultural, como um criador desterrado que rejeita rótulos e limitações geográficas, e que faz de sua arte um território livre de hedonismo, humor, caos e de resistência às hipocrisias de um mundo que, para ele, se traduz na magia de uma montagem teatral. Boa leitura e até o próximo sábado.

é editor do Caderno Pensar, espaço para a discussão e reflexão cultural que circula semanalmente, aos sábados.

jrneves@redegazeta.com.br

Trechos de filmes de Fernando Arrabal, galeria de fotos de Celso Blues Boy, imagens do filme “Uma lição de vida” e trechos de livros comentados nesta edição, no www.agazeta.com.br

Pensar Editor: José Roberto Santos Neves; Editor de Arte: Paulo Nascimento; Textos: Colaboradores; Diagramação: Dirceu Gilberto Sarcinelli; Fotos: Editoria de Fotografia e Agências; Ilustrações: Editoria de Arte; Correspondência: Jornal A GAZETA, Rua Chafic Murad, 902, Monte Belo, Vitória/ES, Cep: 29.053-315, Tel.: (27) 3321-8493


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entrelinhas

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por MARCOS PASCHE

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DRUMMOND: ONTEM, HOJE E SEMPRE

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TRECHO

a ocasião do lançamento de “Passeios na ilha”, há 60 anos, o crítico Sérgio Milliet disse que pouco havia a ser dito sobre Carlos Drummond de Andrade. O juízo permitia ver que Drummond já era um poeta bem comentado àquela altura, quando ainda teria três décadas de inesgotável produção. Hoje, às vésperas do centésimo décimo aniversário do poeta, o comentário de Milliet é ainda mais válido. Os mais renomados estudiosos da literatura brasileira contemplaram o autor em, no mínimo, um capítulo de livro. Eles trazem à luz um Drummond uno e plural, que com uma voz poética altamente idiossincrática observou e abraçou o mundo em seus livros. A reedição de sua obra reitera sua pluralidade. De uma só vez são publicados volumes de poesia, de conto, de crônica e de certo hibridismo, em que a memória, a observação social e a análise literária se mesclam. Às reedições soma-se o lançamento de “Poesia traduzida” (organizado por Augusto Massi e Júlio Castañon Guimarães), volume inédito das traduções de poesia publicadas por Drummond na imprensa, uma espetacular edição crítica de seus dez primeiros livros de poemas (“Carlos Drummond de Andrade – Poesia 1930-62”, também organizada por Júlio Castañon) e “Os 25 poemas da triste alegria” – obra de 1924 jamais publicada pelo poeta, recentemente resgatada das prateleiras do acaso por Antonio Carlos Secchin.

“Reduzido à condição circense, que pode o elefante pretender, como remédio a suas melancolias, agravadas na espessa convivência do homem? Fugir, é claro.” Trecho da crônica “Elegia de Baby”, de Carlos Drummond de Andrade

Crônicas

Dos livros que ora nos chegam, a produção cronística de Drummond concentra-se especialmente em “Fala, amendoeira”, de 1957. Ao lado da crítica social específica, o homem atrás dos óculos e do bigode insere em sua crônica o tema dos bichos, como advertência à animalização da humanidade. “Elegia de Baby”, por exemplo, trata da morte de uma pequena elefanta de circo: “Reduzido à condição circense, que pode o elefante pretender, como remédio a suas melancolias, agravadas na espessa convivência do homem? Fugir, é claro. Mas a fuga se reduz também a um passeio tonto pela cidade, entre bichos muito mais ferozes, que são os ônibus e os automóveis, num dédalo de ruas que não tem a lei e a simplicidade da floresta. Logo se organizam os homens para prendê-lo e restituí-lo ao seu mesqui-

Poemas produzidos na juventude permaneceram anônimos por quase 90 anos

nho picadeiro. Se se recusa a voltar, os homens, considerando-se ameaçados, dispõem-se a fulminá-lo a tiro. Nunca nenhum escapou”. “Contos de aprendiz” veio a lume em 1951. Trata-se da decidida estreia do autor na prosa de ficção, dado que “Confissões de Minas”, de 1944, é constituído por textos em prosa, mas nem todos ficcionais. No conjunto irregular, destaca-se o conto “Beira-rio”, ácido retrato do mandonismo empresarial presente no Brasil mesmo em fases de modernização.

A narrativa aborda a exploração sofrida por operários de uma usina, os quais não podem sequer recorrer ao entretenimento mais ordinário: “Em vão procuraríamos um botequim. Não há. É proibido beber. A proibição não está nas leis de um Estado onde se bebe tanto, e mesmo onde se destila cachaça tão fina, sob cinquenta nomes diferentes, e que é fonte considerável de receita pública. Proibição tácita, estabelecida pela Companhia, no interesse dos seus servidores... bem, e no interesse do serviço”.

É inevitável reafirmar que na poesia se encontra o ápice de Carlos Drummond de Andrade. Nos livros desse gênero há um admirável encontro de vozes dissonantes, a formarem uma torta sinfonia. Gradativamente, os livros revelam enriquecimento da obra do autor, amadurecimento do Modernismo e desenvolvimento da própria literatura nacional, conforme se consolidava a libertação de dogmas de qualquer espécie – “Escurece, e não me seduz / tatear sequer uma lâmpada. / Pois que aprouve ao dia findar, / aceito a noite”, diz em “Dissolução”, de “Claro enigma” (1951). Em meio aos relançamentos, salta uma novidade absolutamente marcante: a publicação fac-similar de “Os 25 poemas da triste alegria” – pequeno e inédito volume de textos escritos entre 1922 e 1924, ao lado dos quais se inseriram, em 1937, comentários do autor. O livro manteve-se anônimo por quase 90 anos, até que Antonio Carlos Secchin o encontrasse num acervo posto à venda. Nele, há traços simbolistas e fiapos românticos (como em “A beleza da vida na alegria da manhã”), num período em que os modernistas de 22 já faziam barulho. A pluralidade do poeta comporta até mesmo o que ele não chegou a ser... Carlos Drummond de Andrade é de fato um poeta bastante e bem estudado. Mas sua obra, tão diversa e tão pujante, sempre apresentará para nós alguma novidade, razão pela qual pede nossa leitura e espiritual absorção.


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psicanálise por LUCIANA PENA VILA LIMA DE MENEZES

ROMEU E JULIETA EM TEMPOS VULGARES Psicanalista utiliza personagem de Shakespeare para apontar os efeitos destrutivos ao homem e à sociedade quando se ignora o uso da palavra como instrumento de mediação

E

se o ser humano ficar pobre demais em palavras? Em seu trabalho sobre Baudelaire, Walter Benjamin atribui uma espécie de heroísmo a esse escritor uma vez que, diante do empobrecimento da vida na Paris do século XIX, o poeta consegue construir, ao mesmo tempo que se mantém fora da vida do trabalho e incapaz de ganhar dinheiro, uma produção intensa. Mantendo-se fora da lógica da produtividade capitalista, o poeta consegue ler, a partir de sua lírica, as questões de seu tempo. O empobrecimento da vida, defendido por Benjamin, teria a ver com o empobrecimento da narrativa correspondente à perda de referenciais fundantes. A experiência humana estaria esvaziada de sentido e a sabedoria acumulada por nossos pais e avós já não serviriam mais para ler o novo mundo. Talvez, tais reflexões possam ajudar os psicanalistas a entender alguns dos prováveis motivos da precariedade simbólica em nosso tempo. Em meio ao avanço das técnicas estéticas, aos precisos diagnósticos de imagem (a imagem como garantia de precisão), à banalização do uso de psicotrópicos que mais mortificam do que impelem o sujeito a dizer sua dor, a Psicanálise parece se tornar apagada, desinteressante, sem valor. “Na era do Prozac, Fluoxetina e Rivotril, Freud já era” – alguém me provocou uma vez. A Psicanálise sobreviverá em meio à crise da palavra? A propósito disso, Ítalo Calvino, escritor italiano, já antecipava, na década de 80, o problema de tal crise, afirmando sobre um tempo onde a exacerbação de imagens pré-fabricadas permitiria pouco espaço para o sujeito confeccionar suas próprias imagens, seus próprios textos: “Hoje somos bombardeados por uma tal quantidade de imagens a ponto de não podermos distinguir mais a experiência direta daquilo que vimos há poucos segundos na televisão. Em nossa memória se depositam, por estratos sucessivos, mil estilhaços de imagens, semelhantes a um depósito de lixo, onde é cada vez menos provável que uma delas adquira relevo. Se incluí a visibilidade em minha lista

Mercuccio, amigo de Romeu, aconselha o jovem Montechio. A peça “Romeu e Julieta”, que dispensa apresentações, fala do amor impossível de dois adolescentes, nascidos em famílias rivais. Mercuccio era um grande amigo de Romeu e se preocupava com ele, dada a sua melancolia, seu peso, sua exclusão da realidade, apontando a escolha mortificada a que o amigo sempre tendia, por ver o amor, coisa tão terna, como peso. Tomar as asas de Cupido emprestadas e pairar acima dos laços vulgares – eis uma recomendação preciosa. Afastar-se de um gozo melancólico e tentar fazer alguma leitura outra para o amor.

Rivais

No drama de Shakespeare, morte de Mercuccio significa o fim do diálogo

de valores a preservar foi para advertir que estamos correndo o perigo de perder uma faculdade humana fundamental: a capacidade de pôr em foco visões de olhos fechados, de fazer brotar cores e formas de um alinhamento de caracteres alfabéticos negros sobre uma página branca, a PENSAR por imagens (...).” (CALVINO, 1990, p.p. 107 e 108) Os valores propostos por Calvino foram elaborados para se pensar um

destino para a literatura; mas se é verdade o que Freud diz sobre o artista se antecipar, com sua produção, ao psicanalista, devemos pois, nós analistas, atentarmos acerca do projeto ético de Calvino. Já em sua primeira conferência sobre a leveza, ele faz uma contraposição dessa ordem ao peso de viver. Buscando exemplos de leveza, chega a uma cena de Shakespeare, na qual

Na peça shakespeariana, Mercuccio tenta mediar uma briga entre os Montechios e os Capuleto, mas morre. Com essa morte, Shakespeare antecipa os efeitos devastadores e destrutivos para o humano quando a palavra se demite de cena. Matar Mercuccio é abolir a mediação via palavra, é fazer morrer uma possibilidade de diálogo entre as duas famílias rivais de Verona. Assassinado pelo primo de Julieta, Mercuccio lança uma praga às duas famílias, adiantando o fim dos jovens Romeu e Julieta, que se suicidam. O resgate da função de Mercuccio me parece ser também fundamental à Psicanálise, uma vez que vivemos num tempo onde vemos emergir sujeitos cada vez mais precários no que tange à utilização da palavra, do simbólico. Sujeitos excessivamente alienados a laços vulgares, aos imperativos de consumo. Que o desejo de Calvino para a literatura também tenha serventia aos operadores da Psicanálise e que esses possam circular pelo mercurial. A nova geração de analistas deve insistir em promover que o sujeito diga de seu desejo e não seja tragado pela lógica imposta como única via possível. A época que serve de pano de fundo a Romeu e Julieta, como disse Calvino, não difere muito da nossa: as cidades ensanguentadas de disputas tão violentas e insensatas... Insistamos.


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falando de música

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por SAULO SIMONASSI

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O VELHO AMIGO DA GUITARRA

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u não sei como você vai fazer, como vocês vão combinar, mas escuta o que esse velho amigo da guitarra vai te falar: a banda é essa... você, o Roberto, o Saraiva... eu quero vocês comigo. Então até breve, meu amigo.” Essas foram as últimas palavras que ouvi do querido Celsão, já no lobby do hotel, depois do segundo e último show que fizemos na 10ª edição do Festival Internacional de Jazz & Blues de Rio das Ostras (RJ), em junho de 2012. Ali eu havia passado cinco dias no convívio do baixista Roberto Ly, do baterista Márcio Saraiva, do empresário Marcello Penedo e do próprio Celso, um ídolo que se transformou em amigo. Blues Boy era um carioca apaixonado por cerveja, churrasco, pelo Vasco da Gama e pela guitarra, instrumento que ele beijava a cada final de apresentação – um gesto carinhoso e sincero de quem projetou as elétricas seis cordas brasileiras para além de nossas fronteiras. “Tudo que sou foi a guitarra que me deu, eu tenho que tratá-la com carinho”, pontuava o mestre. A lembrança de ouvir pela primeira vez a linha melódica que introduz “Brilho da noite”, e depois descobrir que sua guitarra foi um dos motivos da minha atração pelo rock rural de Sá & Guarabyra e pelo rock visceral de Raul Seixas, juntam-se nesse momento às estórias que vivenciamos nesses anos de estrada.

Encontro

Meu primeiro encontro profissional com Celso se deu em 1990 no Rio de Janeiro. Naquela época eu era o guitarrista da banda Combatentes da Cidade, que foi escalada para fazer a abertura de um show do Blues Boy na casa de espetáculo Lua & Estrela, em Botafogo. Sua fama de ranzinza e encrenqueiro se confirmou e tivemos enorme dificuldade para realizar o show. Na segunda ocasião, três anos mais tarde, no Clube Libanês, em Vila Velha, estava lá eu de novo sendo obrigado a usar um amplificador de guitarra modelo Jazz Chorus (o inimigo número um de qualquer roqueiro), pois o Marshall disponível no palco só poderia ser utilizado pelo Celso. No problem. Nada abalava

SÉRGIO CARDOSO

minha admiração pelo som que saía daquela Fender Stratocaster. “O cara é um mané, mas toca pra *’”, pensava eu na inexperiência em compreender a importância da preparação de tudo que envolve um espetáculo musical. Outros encontros informais se sucederam, mas foi em março de 2010 que tive a oportunidade de montar uma banda para realizar dois shows com Celso Blues Boy em solo capixaba. Pela primeira vez iria dialogar com meu ídolo através da linguagem musical e, passado o nervosismo da estreia, o saldo daquele encontro foi maravilhoso.

Reflexão

Mais do que o artista, descobri um ser humano gentil e carinhoso, vivendo uma fase de reflexão e amadurecimento. A afinidade estética, a forma e dinâmica de trabalho e o momento de vida nos uniu. Dois meses depois veio o convite para tocar num show no Teatro do Sesi São Paulo, que recebeu o mago da guitarra com casa cheia. Esse show foi mágico por vários motivos: era o retorno do Celso à capital paulista após longa ausência; marcou a efetivação de Roberto Ly (ex-Herva Doce) como baixista oficial da banda – uma amizade de longa data que tinha sido reatada há poucos meses; e o palco do Sesi foi testemunha de um encontro emocionado do Celso com a filha de 15 anos que ele até então não conhecia. Recebi muito carinho e respeito no palco, e fora dele... essa foi a primeira vez que o Blues Boy me convidou para fazer parte de sua banda. Um convite que me encheu de alegria, mas uma realidade que ele sabia não ser possível de se concretizar naquele momento. Em dezembro de 2011, fui recebê-lo no aeroporto de Vitória e tive um choque. O sujeito apressado que rompia o saguão em direção à área externa, para finalmente dar suas adiadas baforadas, agora era um frágil senhor sendo guiado numa cadeira de rodas. Triste, muito triste. Os dois últimos shows que o Espírito Santo recebeu do rei do blues brasileiro foram feitos com muita garra, emoção e um poderoso som de guitarra. A saúde já estava debilitada, a voz fraca, mas o palco exercia uma tremenda transformação no espírito daquele homem. Em nosso último encontro, há dois

Celso Blues Boy no Barracústico, Vila Velha, em março de 2010: rei do blues brasileiro partiu esta semana, deixando o gênero musical ainda mais triste

meses, vivi momentos valiosos. Celso Blues Boy é o tipo de artista que o simples “estar perto” já pode ser considerado partida ganha; melhor ainda é dividir e compartilhar ideias com ele. Seus planos para o futuro estão vivos em gravações-demos cheias de lindas composições do que considero ser a melhor fase de toda sua obra. A guitarra está mais lírica

do que nunca, as letras e arranjos reflexivos e inteligentes, e a voz profunda e sussurrada apontam para um caminho diferente de tudo que ele já havia produzido antes. Assim me conforta o fato de não existir ausência. Sua obra é o legado que o mantém comigo. “Então até breve, meu velho amigo da guitarra.”


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vanguarda cultural

Para especialista na obra do escritor, sua dramaturgia elabora um tipo de carpintaria teatral que, ap

ARRABAL: O HOMEM SEM RAÍZES

DRAMATURGO COMPLETA HOJE 80 ANOS COMO UM DOS AUTORES MAIS INQUIETOS E PROVOCATIVOS DO SEU TEMPO

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ramaturgo, escritor, poeta, cineasta, pintor, desenhista, roteirista, jogador e teórico do xadrez, o espanhol Fernando Arrabal nasceu aos 11 de agosto de 1932, em Melilla, no continente africano (Marrocos espanhol), filho de Fernando Arrabal Ruiz e Carmen Téran González. Em 1936, por ter se recusado a colaborar com o General Franco no golpe militar de seu país, seu pai, tenente em Melilla, foi preso e condenado à morte. Tendo a pena trocada por 30 anos de prisão, foi transferido para a Cidade Rodrigo (Salamanca), depois, internado no hospital psiquiátrico de Burgos. Em 1942, desaparece em circunstâncias misteriosas e não se ouve mais falar dele. Desde 1940, a família de Arrabal se instala em Madri. A tragédia da guerra civil espanhola está fortemente presente em sua obra literária e, de certa forma, sua vocação de dramaturgo e escritor se alimenta dos transtornos sociológicos, do sistema totalitário, o desaparecimento de seu pai e as relações difíceis no seio de sua própria família. Aos 10 anos de idade, começa a escrever e ao participar de um concurso de matemática recebe

o Prêmio nacional de “superdotado”. Arrabal é um admirador de Goya, Valle-Inclán e Buñuel, e algumas de suas peças caminham em direção ao barroco: uma magia, uma festa suntuosa, uma abundância de gestos, de gritos e de cores, destinados a violentar, a “chocar” o espectador.

Barroco

Mas o aspecto barroco na obra de Arrabal, como um “realismo da confusão”, é uma nova maneira que ele encontra para liberar seus transtornos na medida em que os transfigura, impondo-lhes um tipo de ordem e, de alguma forma, reencontrando o sentido primeiro do seu teatro de magia, onde são tênues as fronteiras que a separam de sua vida. E, compreendendo e aceitando a condição de que as estruturas do diálogo, da ação teatral e do universo têm a mesma forma, para Arrabal, o teatro não se resume ao palco, mas ele é tudo isso que advém, onde a ação – por ser a imagem refletida do mundo – não deve ser uma mera demonstração de alegorias e maneirismos cênicos. Ao conceber a dramaturgia, Ar-

O teatro é sobretudo uma cerimônia, uma festa, que tem do sacrílego e do sagrado, do erotismo e do misticismo, da colocação da morte e da exaltação da vida” —

Fernando Arrabal Escritor, poeta e cineasta

rabal parte de suas inquietudes políticas e existenciais, faz da história o espaço cênico e o principal fundamento da elaboração de sua criação teatral. Sua dramaturgia não se limita à pretensão de criar um novo texto, mas elabora um tipo de carpintaria teatral que, apesar da aparente ingenuidade e da exploração do nonsense, parece ter um rigor científico do ritual. A ideia de um “rigor científico do ritual” trata-se de uma alusão ao fato de que, apesar do aparente inusitado do transe, há uma lógica interna no ritual, onde se rompe a fronteira entre atores e espectadores, considerando que de alguma forma todos participam. Num determinado sentido, coloca em questão a ideia do público como uma entidade, ao mesmo tempo em que referenda o fenômeno de algo que se torna público, no momento em que é “publicado”. Para tanto, provoca uma espécie de necessidade de romper com o mero conceito de “representação”. Levando em conta que sua produção tem sido reconhecida como Teatro do Absurdo, juntamente com Beckett, Ionesco, Adamov e tantos outros.

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por WILSON COÊLHO

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pesar da aparente ingenuidade e da exploração do nonsense, parece ter um rigor científico do ritual

DIVULGAÇÃO

Publicações no Brasil A TORRE FERIDA POR UM RAIO Neste romance, o xadrez tem como função organizar a trama para – diante de umas loucuras – garantir que a narrativa não perca o rumo. Estamos em Paris, diante da partida que decide o 24º Campeonato Mundial de Xadrez. De um lado, Elias Tarsis, inquieto andorrano filho de espanhóis, cuja juventude é cheia de aventuras; e, do outro, Marc Amary, gélido suíço e suas relações com o terrorismo internacional. Ambos se odeiam.

O espanhol Fernando Arrabal publicou 14 romances, 800 livros de poesia e mais de uma centena de peças de teatro

Para ele, o teatro é “sobretudo uma cerimônia, uma festa, que tem do sacrílego e do sagrado, do erotismo e do misticismo, da colocação da morte e da exaltação da vida. Eu sonho um teatro onde humor e poesia, fascinação e pânico não fariam mais que um. O rito teatral se transformaria então em ‘operamundi’, como os fantasmas de Dom Quixote, os pesadelos de Alice no país das maravilhas, o delírio de K., até os sonhos humanoides que frequentavam as noites de uma máquina IBM.” Para alguns, o teatro de vanguarda no Brasil se inicia com a montagem de sua obra “O cemitério de automóveis”, dirigido pelo argentino Victor García, com produção de Ruth Escobar e tendo como protagonista, no papel de Emanu, o ator capixaba Stênio Garcia.

Pânico

Mesmo tendo se reunido com os surrealistas e Breton e, ainda, ter sido nomeado Sátrapa, uma espécie de Prêmio Nobel do Colégio de Patafísica de Paris, seu lugar de destaque está no pânico. Em 1962, juntamente com

seus amigos, o desenhista Roland Topor, o escritor Sternberg e o encenador Alexandro Jodorowsky, apaixonado pelo “happening”, Arrabal funda o Movimento Pânico – designação que vem etimologicamente do deus grego Pan, a totalidade, momento em que abandona um pouco suas parábolas “infantis” para explorar a veia do fantástico e do ritual. É o seu reencontro com os surrealistas e, de certa maneira, desenvolve e leva adiante a crueldade de Antonin Artaud.

Obra

A obra de Arrabal é formada de 14 romances, 800 livros de poesia, três epístolas, mais de uma centena de peças de teatro, sete filmes em longa-metragem e três curtas, outra centena de livros de arte e técnica de xadrez, seis livros destinados ao fracasso, uma centena de telas pintadas, muitos milhares de fotografias, um milhar de artigos para a imprensa internacional, muitas centenas de conferências nas universidades mais prestigiadas do mundo. Sua criatividade múltipla está também manifestada nas artes plásticas,

que ele explorou numa abundância de esculturas, pinturas, colagens, desenhos, e que fazem o objeto de numerosas exposições e retrospectivas em galerias e museus de diversos países. Ele tem recebido um grande número de honrarias e prêmios internacionais. Sua obra está traduzida na maioria das línguas e seu teatro entre os mais encenados do mundo. Enfim, Fernando Arrabal, o Transcendente Sátrapa do Colégio de Patafísica de Paris que conviveu com Dali, Picasso, Sartre, Duchamp, Ionèsco, Cioran, Beckett, Dario Fo, Umberto Eco, Breton, Boris Vian, Man Ray, Andy Warhol, Tristan Tzara, Genet e tantos outros, é considerado como o único sobrevivente dos “três avatares da modernidade”, que, segundo ele mesmo, são o Surrealismo, a Patafísica e o Pânico. Hoje, 11 de agosto de 2012, é a data em que Arrabal completa 80 anos. Tendo nascido no continente africano e vivendo em Paris desde 1955, como uma espécie de autoexilado, ele se diz natural da “Desterrolância” e, ainda, afirma não ter raízes, mas – sim – asas.

A VIRGEM VERMELHA Se realmente ocorreu, na metade do século XX, na Espanha, um fato que inspirou Fernando Arrabal a escrever “La vierge rouge”, a história torna-se um mero pretexto para a criação. É a história de uma mulher da alta sociedade espanhola que – por desejar ter uma criança “sem pai” – se socorre dos serviços de um “reprodutor ocasional” para dar origem a uma estranha menina que, aos 11 anos de idade, já fala fluentemente várias línguas e seus conhecimentos provocam admiração em todos. Alguns anos mais tarde, “A Virgem Vermelha” é assassinada pela mãe. Daí começa a obra. UM ESCRAVO CHAMADO CERVANTES Mesmo apoiado em ampla e séria documentação e entremeado de humor, amor, erotismo e angústia, o romance supera os limites da biografia convencional, criando uma polêmica sobre a vida apaixonante de Miguel de Cervantes. Segundo documento datado de 1569 e descoberto em 1820, sob a acusação de homossexualismo, o criador de Dom Quixote, aos 21 anos, teria sido condenado pelo rei da Espanha a ter sua mão direita amputada e a um desterro de dez anos. Por esse motivo, Cervantes decide fugir para a Itália, a fim de escapar da implacável sentença.


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A GAZETA VITÓRIA, SÁBADO, 11 DE AGOSTO DE 2012

educação por JANETE MAGALHÃES CARVALHO

COMO INVENTAR UM NOVO MUNDO ATRAVÉS DA INFÂNCIA Livro produzido a partir de experiência em escola de São Pedro propõe modelo de ensino baseado na liberdade e na inventividade

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livro “Infância em Territórios Curriculares” nasce da experiência de pesquisa e extensão voltada para o exame da potência das redes de conversações e ações complexas na produção do currículo no cotidiano escolar, focando, especificamente, a relação currículo e infância. Insere-se em pesquisa mais ampla intitulada “Potência das redes de conversações e ações complexas na produção do currículo praticado no cotidiano escolar e as políticas curriculares em ação”, coordenada por mim e financiada pelo CNPq, realizada com a participação de alunos de doutorado, mestrado e de graduação. A intencionalidade do projeto foi realizar um trabalho preocupado em compreender os processos curriculares desenvolvidos nos cotidianos de escolas, nas redes de conhecimentos e significados que seus praticantes, professores e alunos, em suas conversações e ações, formam com os outros tantos cotidianos que os atravessam em zonas interpenetradas. A intervenção no campo ocorreu na intercessão entre procedimentos dos estudos com os cotidianos e a pesquisa cartográfica, tendo acompanhado fluxos de conversações tecidas em redes de subjetividades ao longo do ano de 2010, em encontros de compartilhamento das vivências dos alunos, professores e equipe técnico-administrativa de uma escola pública de ensino fundamental (primeira a oitava séries), da Rede Municipal de Ensino de Vitória, situada no Bairro São Pedro III, a EMEF Tancredo de Almeida Neves. Nessa intervenção buscamos refletir com alunos-professores e professores-alunos: como os professores veem e falam os alunos e os processos do aprender-ensinar? Como os alunos veem e falam os professores e os processos do aprender-ensinar? Como se constituem os currículos escolares fundados na dimensão da conversação para a recriação de saberes e fazeres da escola como uma territorialidade nômade? Por onde deslizam as redes de conversações e ações no cotidiano escolar? Como dar visibilidade às forças e fluxos de afetos e afecções na produção dos “bons encontros” entre in-

INFÂNCIA EM TERRITÓRIOS CURRICULARES Janete Magalhães Carvalho (org.). Editora: DP et Alii. 168 páginas. Quanto: R$ 30. Mais informações: www.depetrus.com.br

SANDRA KRETLI

Alunos do ensino fundamental da Escola Municipal Tancredo de Almeida Neves, no bairro São Pedro III, em Vitória, em suas redes de conversações: envolvimento nas atividades desenvolvidas

fância e currículo? Tendo em vista que o currículo e a aprendizagem mudam à medida que nos envolvemos com ele, refletimos sobre ele, consideramos sua complexidade e agimos em direção à sua realização, buscamos, pelos saberes, fazeres, linguagens, afetos e afecções, a realização inventiva de um currículo não burocratizado e normalizado.

Resultados

Os resultados mais tangíveis foram relativos ao envolvimento de toda a equipe da escola e dos alunos nas atividades desenvolvidas. Os estudos, problematizações e novas alternativas pontuadas como experimentações desembocaram na produção de textos que foram socializados e debatidos com a escola e resultaram na publicação deste livro: “Infância em territórios curriculares”. Com Manoel de Barros, poeta mato-grossense, procuramos “achadouros” de infância para fazer vicejar e trepidar a tríade: infâncias, currículos e aprendizagens. Afirma o poeta:

“Acho que o quintal onde a gente brincou é maior do que a cidade. A gente só descobre isso depois de grande. A gente descobre que o tamanho das coisas há que ser medido pela intimidade que temos com as coisas. Há de ser como acontece com o amor. Assim, as pedrinhas do nosso quintal são sempre maiores do que as outras pedras do mundo. Justo pelo motivo da intimidade. Mas o que eu queria dizer sobre o nosso quintal é outra coisa. [...] Mas eu estava a pensar em achadouros de infância. Se a gente cavar um buraco ao pé da goiabeira do quintal, lá estará um guri ensaiando subir na goiabeira. Se a gente cavar um buraco ao pé do galinheiro, lá estará um guri tentando agarrar no rabo de uma lagartixa. Sou hoje um caçador de achadouros de infância. Vou meio dementado e enxada às costas a cavar no meu quintal vestígios dos meninos que fomos. Hoje encontrei um baú cheio de punhetas.” (Barros, 2003) Esperamos com este livro que, como educadores, nós também possamos descobrir “achadouros” de infância como memórias de lugares de encontros

que nos permitam “olhar” e “ouvir”, de modo não dogmático, as experiências que envolvem os currículos com as infâncias. Necessitamos de uma outra visão da infância, como espaço de liberdade e inventividade. A tarefa parece ser não só a de encontrar uma infância para si, mas ir ao encontro da infância do mundo e restaurá-la. Buscar propiciar relações “infantis” com os outros e com o mundo, encontrar o que o mundo tem de novo, inventar um novo mundo, encontrar um outro mundo. O que seria achar uma nova infância para o currículo? Invertendo a lógica de pensar um currículo para a infância. Inverter a lógica de pensar infância e currículo envolveria, porém, uma ruptura com um modo dominante de pensar a infância e o currículo, pois o enfoque mudaria de um currículo para educar a infância para uma infância que educasse o currículo e, para isso, precisamos, como sugere Kohan (2003, p. 5), “[...] esquecer nossa obstinação por educar as crianças e alimentar nossa paixão de encontrar infâncias que nos eduquem”.


poesias REFEIÇÃO TATIANA BRIOSCHI Vou te comer meus braços se movem delirius tremem será que devo? A vontade não é tanta mas as cores são nervosas e a luz tão insana nesta tarde boreal Vou te comer decidi afinal abro a boca o garfo brilha segura a cenoura farta e fresca, e na horta tuas cinzas são parte da terra ainda.

TENTATIVAS Entre escumadeiras e caçarolas a mulher sovou seus medos entre as molas e a chave de grifo o homem bateu em seus receios mas sem sucesso Fizeram promessa e reza Sem acesso Aos santos tantos Só obtiveram resultado ao passarem em seus muitos defeitos uma mistura de medo da morte com medo da solidão, jogaram água abundante e penduraram-se no varal de frente para o sol com pregadores coloridos.

crônicas OS DOIS FILHOS DE ADEGARD por CAÊ GUIMARÃES

O boxe é uma perfeita metáfora da vida. Um quadrado cercado por cordas onde dois oponentes se enfrentam com os punhos e apenas um vence. É também uma metáfora da complexidade. Em um número determinado de rounds os oponentes têm possibilidades de vitória e derrota perpassando investidas, esquivas e recuos. Boxe se luta como toda luta, com o olho. O resto, braços que alcançam queixos, nariz ou fígado, são extensões do olhar que captura e devolve. Apreende para sobrepujar e vencer. O boxe também é uma metáfora da simplicidade. Os golpes são apenas cinco: jab, dado com a mão à frente, sempre a mais fraca; o direto, cujo nome tudo explica e vem da mão de trás, a mais forte; o cruzado, que parte de um lado para o outro; o uppercut, dado de cima para baixo, e o gancho, aplicado com o braço em curva na parte frontal do tronco. Não à toa o boxe foi praticado por grandes espíritos da humanidade. Picasso,

Henry Miller, Frank Lloyd Wrigth, Hemingway, Jack London, Mickey Rourke. Homens que nunca pediram trégua à vida ou se esconderam sob o véu da mansidão, da passividade agressiva, do bom mocismo medido à régua. Eles caíram e se levantaram. E se perderam ou ganharam, não importa. Importa a luta, metáfora da vida com suas cicatrizes e feridas, contragolpes e nocautes. Mais do que um esporte. Uma poesia feita de movimento, dor e alegria. Aos espíritos sensíveis demais, uma confirmação: sim, o boxe é violento, estúpido até. Assim como a vida é. Mas ninguém sobe ao tablado despreparado, a não ser que seja um idiota completo e, assim sendo, nocauteado será até no ambiente mais sereno. Em tempos de MMA o boxe perdeu audiência. Os mais jovens não entendem por que tantas regras, a impossibilidade de usar as pernas para chutar – ao contrário do que acreditam os leigos, as pernas são muito usadas no boxe, uma

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sutileza que espíritos limitados não conseguem captar. Mas um dos fascínios dessa luta emblemática é justamente esse, a potência de toneladas é despejada dentro de uma área restrita e de um conjunto de regras que pressupõem fidalguia, respeito por quem você quer derrubar. Nunca se soca um homem no chão. Boxe também é nobreza. Escrevo essas linhas no dia 07 de agosto, antes de saber se os dois filhos de Adegard subiram ao degrau mais alto de Londres. O mais novo garantiu o bronze ontem. O mais velho disputará a mesma posição. Podem perder ou ganhar, trazer ouro, prata ou bronze. São vencedores. Como seu pai, que ficou anos esquecido e foi reapresentado ao mundo em 2007 pelo tocante documentário “Touro Moreno”, do cineasta Juliano Enrico. Os três, Touro Moreno, Yamaguchi e Esquiva, são mais que metáforas. São homens que encaram a vida com o olhar de pugilistas. Fazem parte da nossa história, tão carentes de personagens coerentes. E merecem não apenas desfilar em carro aberto ao retornar a esta pequena ilha. Merecem condições adequadas de trabalho, respeito, cidadania. Por eles, humildemente, descalço minhas luvas amadoras e dou uma respeitosa salva de palmas.

ODE A TARCÍSIO FAUSTINI por ÍTALO CAMPOS

OLEIRO O oleiro olha, o oleiro olha os santos óleos, se o oleiro não olhasse quem ol(h)aria por ele?

PEQUENOS DESTINOS Onde estão aquelas coisas perdidas e que nunca mais voltaram? onde estão as roupas queridas que se foram para outros lados? Onde estão as ideias meia-sola descartadas e rejeitadas? onde estão os gestos loucos e definitivos que não foram a cabo? Onde estão os amores mal começados e mortos no primeiro encontro? onde estão os sonhos esquecidos e os poemas não terminados? Em algum calabouço infinito, o calabouço da não existência?

Quando os Titãs foram vencidos, Zeus criou as Musas, que foram fazer parte do cortejo de Apolo. A eles se juntaram Orfeu e Anfião, este filho de Zeus, com a sublime missão: sair pelo universo cantando a vitória. A deusa da música, a deusa do canto e outros deuses se uniram para anunciar a boa nova. Por isso toda música é uma vitória. Quem sabe, uma vitória sobre o silêncio, uma vitória sobre a morte, que é ao mesmo tempo anunciada. A harmonia, o ritmo, e a melodia foram inventados, nesta ocasião, para transmitir a mensagem dita pelo idioma dos deuses. A música é, ao mesmo tempo, a língua cantada pelos homens e pelos seres divinos; é no entanto propriedade das divindades que, por extrema bondade, empresta e concede a alguns homens e mulheres escolhidos a capacidade extraordinária de carregar esse dom, não sem cobrar-lhes um preço:

o da fidelidade e o da exclusividade. Deuses que são, aqueles que nos doam a música são, entretanto, humanamente ciumentos e vigilantes. Os possuidores ou portadores deste dom divino devem prestar aos deuses a sua honra na forma do exercício do dom, de forma prática: saindo pelo mundo com seu arauto e lira, indo onde o povo está, com seu próprio corpo, com sua própria língua, já que a alma da música está nas mãos dos deuses, pertence aos deuses, que a emprestam alguns momentos aos seus privilegiados súditos. Foi anunciado que a música irá cantar as glórias, os pesadelos, as vitórias, as alegrias, os amores, a revolução, a tristeza, a solidão e tudo o mais que seja humano. A música fará com que o humano que habita o homem ali se fortaleça. A música cumprirá a função de alimento de humanidade no homem,

de incremento de civilidade e afeto. A música também dominará o tempo; ela é aí soberana, ela não se subjuga a Cronos; ao contrário, ela se impõe e o anuncia nos seus recortes e mutações. Embalando em seu colo acolhedor e aquecido, a música acolhe todas as idades, todas as raças, fornecendo-lhes uma referência e um consolo. Como um caleidoscópio, ela se apresenta de múltiplas e infinitas formas para nos indicar que “A” música não existe; ela é multifacetada, multicolorida, multifônica e jamais apreendida totalmente. Aos nossos ouvidos, trazida por seres iluminados, ficam apenas os rastros da música que por nós passaram, nos lembrando de um gozo sempre finito. Cabe aos homens amar a música e cultuá-la para que sempre retorne e nos dê a graça da presença dos deuses, nos humanizando e, por um lapso, ficando perto deles.


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medicina

BIOGRAFIA DESVENDA A HISTÓRIA DO IMPERADOR DE TODOS OS MALES Em linguagem acessível ao público, médico indiano descreve o percurso do conhecimento humano sobre o câncer, desde os primeiros tratamentos até as descobertas mais recentes

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ma análise sobre povos e culturas antigas mostra que o homem sempre manifestou medo da morte e o desejo de adiá-la. Tal temor resultou em numerosos registros acerca de diversas doenças, incluindo o câncer. O primeiro registro de um provável caso de câncer data de mais de 2600 anos a.C., pelo médico egípcio Imhotep, e refere-se a uma mulher com uma “massa no peito”. Neste tratado, ao referir-se ao tratamento desta doença, o médico foi lacônico: “Não existe”. Durante séculos, os registros sobre câncer desaparecem, até que Hipócrates, por volta de 400 a.C., apresenta novas descrições onde surgem os termos gregos karkinos (em grego caranguejo, de onde vem a palavra câncer) e onkos (massa, carga ou fardo do corpo, que originou a palavra oncologia). Séculos após, o médico Claudius Galeno, por volta de 160 Em “Uma lição de vida”, Emma Thompson enfrenta um câncer em estágio avançado d.C., classificou as doenças em termos de excesso de fluidos e atribuiu o câncer ao excesso de “bile negra”. Tais histórias encontram-se relatadas de forma singular no livro “O Imperador de Todos os Males – uma os trabalhos de Sidney Farber, inicialBiografia do Câncer”, do jovem on- mente no Children’s Hospital de Boscologista indiano Siddharta Mukher- ton, usando a aminoptirina, uma subsjee, cuja formação em oncologia deu-se tância que, ao inibir enzimas essenciais em grande parte às margens do Rio da célula cancerosa, levaria à sua morCharles, na cidade de Boston, EUA. É te. A cruzada de Farber contra o câncer nesta cidade também onde muitas das ganhou corpo com a criação de insgrandes batalhas da ciência contra o tituições como o “National Institute of câncer têm sido travadas. Em lingua- Cancer” e o “Dana-Farber Cancer Insgem acessível ao público leigo, o autor titute”, mas também ao incorporar de descreve com detalhes a história do forma inédita celebridades e figuras conhecimento humano sobre o câncer, públicas, angariando fundos para as desde os primeiros tratamentos até as pesquisas, prática salutar que se tornou bastante popular nos EUA. descobertas mais recentes. A batalha de Farber termina em Inúmeras evoluções, como a da cirurgia contra o câncer, das técnicas de 1973, com sua morte súbita e ao mesextirpação radical propostas por Wil- mo tempo emblemática, dentro de sua liam Halsted, no final do século XIX, até sala de trabalho no “Dana-Farber Canas técnicas de intervenção menos des- cer Institute”. Não triunfalista, o livro — trutivas, desenvolvidas nos anos 50 e não se furta a expor as dificuldades da RENAN DOMINGUES e 60, são relatadas. Outra narrativa re- batalha da ciência contra o câncer. SIMONE DOMINGUES fere-se à evolução da quimioterapia. Efeitos colaterais insuportáveis dos traMédicos Impulsionadas pela alta rentabilidade tamentos, pesquisas fracassadas e até da indústria de corantes, as pesquisas fraudes científicas são também alvos químicas levaram ao desenvolvimento desta biografia. Os que se debruçarem sobre este de substâncias sintéticas potencialmente úteis no tratamento de doenças, livro acompanharão inúmeras ruptuinclusive o câncer. Nesta época surgem ras, típicas da evolução do conheci-

O que torna nossos próprios genes causadores de câncer são mutações genéticas com as quais nascemos ou que se acumulam.”

mento médico e científico. Isso fica claro quando, na década de 80, usando poderosos e modernos métodos de medição estatística, os epidemiologistas descobrem que, a despeito de todo o progresso já alcançado, a mortalidade do câncer continuava crescendo. Era preciso uma ruptura, conhecer o câncer por dentro e descobrir formas de preveni-lo. Como em toda ruptura, há vilões e há heróis.

Heróis e vilões

No campo dos vilões há um, o maior, oculto e indiferente à vista de todos até a década de 50, quando estatísticos e epidemiologistas descobriram que o tabaco causa câncer. “Contar é a religião da minha geração. É sua esperança e salvação”, disse a escritora americana Gertrude Stein. Na medicina, o uso de pesquisas quantitativas estatísticas representa muito bem o que a escritora percebeu de forma perspicaz. Somente os dados numéricos destas pesquisas foram fortes o suficiente para vencer parcialmente o fortíssimo “lobby” da indústria do tabaco, criando contra ela algumas barreiras, ainda que não totalmente suficientes. Além do cigarro, outros vilões foram estudados, como certos pesticidas e vírus oncogênicos (causadores de câncer), que aumentam o risco de certos tipos de câncer. Os heróis, na narrativa do autor, têm sido os cientistas, em especial os biólogos moleculares, que descobriram que o câncer, à semelhança do que pensaram os gregos ao afirmar que o onkos está dentro de nós, está no interior mais recôndito do nosso DNA. Os heróis pesquisadores descobriram que nós carregamos genes com o potencial de formar células cancerosas e outros genes que combatem os primeiros. O que torna nossos próprios genes causadores de câncer são mutações genéticas com as quais nascemos ou que se acumulam. É nesta batalha silenciosa entre genes bons e ruins que se define se nossas células seguirão seu rumo de normalidade, proliferando-se de forma ajustada, ou formar-se-á uma espécie de “bile negra” que faz com que as células se multipliquem aceleradamente, como um onkos interno descontrolado. Robert Weinberb, entre outros

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por RENAN DOMINGUES e SIMONE DOMINGUES

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Siddharta Mukherjee expõe os percalços da luta da ciência contra a doença, incluindo pesquisas fracassadas e fraudes científicas

geneticistas e biólogos moleculares, ao fazer estas descobertas abriu possibilidades de intervenções medicamentosas até então impensáveis. Algumas delas já fazem parte do arsenal moderno da luta contra o câncer.

Pesquisas

Pacientes contam histórias aos médicos para descrever suas doenças; médicos contam histórias para compreendê-las. Permeando todas essas histórias de pesquisas e tratamentos, contadas com riqueza de detalhes, há al-

gumas singulares de pessoas que se confrontaram com o imperador de todos os males, como já foi descrito de forma suntuosa o câncer. Entre elas, a da rainha persa Atossa, que teve câncer de mama em 500 a.C. Como teria sido a história do enfrentamento à doença em cada época? O autor descreve como hoje a rainha teria sido tratada, concluindo que ela teria grande chance de ter uma sobrevida por mais algumas décadas, se tivesse a sorte de ser nossa contemporânea. Outra personagem, Carla Reed, com quem o autor abre o livro, é uma de

suas pacientes. Ela descobre uma forma aguda de leucemia e, após ser submetida a uma forma extremamente agressiva de quimioterapia, sobrevive superando suas probabilidades estatísticas, que eram de 35%. O desfecho do tratamento de outra paciente, Germaine Berne, foi diferente. Ela representa um típico paciente moderno, que frequenta blogs e procura toda a sorte de informações sobre sua doença, tendo participado de todos os estudos clínicos que teve oportunidade. Após seis anos de batalhas, todas elas com

vitórias curtas e seguidas de recidivas, deu-se conta de que sua luta chegara ao fim. “Quero ir para o Alabama, para casa, e ter a morte que havia esperado há seis anos”, foi o que disse Germaine Berne ao Dr. Mukherjee. Foi o que aconteceu. Como um livro que fala de medicina, pesquisa, genética pode interessar a leigos? “Quero ser imortal não pela minha obra, mas por não morrer”, disse Woody Allen. A simbologia do câncer é inextrincável da simbologia da morte; portanto, o câncer tem tudo a ver com cada um de nós, mesmo que ele nunca faça parte direta de nossa biografia. O entrelaçamento de tais simbologias aparece de forma profunda e poética em obras de arte como no filme “Uma lição de vida” (Mike Nichols, 2001). Mergulhar no livro de Mukherjee ou no filme de Mike Nichols nos transporta à sensação de que, a despeito dos heróis e dos vilões, a despeito das cirurgias e medicações, a despeito do universo fantástico da pesquisa médica, a experiência da luta contra o câncer adquire sua dimensão maior no embate individual do ser que almeja a imortalidade, mas que se depara com a sua “bile negra” pessoal, o seu onkos interno. Nesta batalha de resultados incertos, o indivíduo se encontra brutalmente desgarrado das estatísticas, para vivenciar seu maior ônus: sua natureza humana limitada, que Woody Allen compreendeu muito bem. Neste momento, ele sente a mesma sensação, ambígua, de solidão e pertencimento, que o poeta inglês John Donne expressou de forma profunda ao dizer: “A morte de qualquer homem diminui a mim, porque na humanidade me encontro envolvido”.

O IMPERADOR DE TODOS OS MALES - Uma Biografia do Câncer Siddhartha Mukherjee. Trad.: Berilo Vargas. Companhia das Letras. 648 páginas. Quanto: R$ 54 (livro) e R$ 38 (e-book)


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artigo por FERNANDO DUARTE

QUAL O LUGAR DA MÚSICA NOS BARES, NAS RUAS E NA CIDADE? Para acadêmico, a falta de entendimento de músicos, empresários e público sobre a atividade musical acaba por colocar essa arte como mais um “barulho” no cenário urbano

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discussão sobre música ao vivo nos bares de Vitória vem tomando proporções cada vez maiores, envolvendo Associações de Moradores, Ordem dos Músicos, Sindibares, Prefeitura Municipal, Ministério Público, entre outros. Colocada dentro de uma definição maior de Lei do Silêncio, a proposta traz à tona uma antiga crise de identidade entre um pensamento provinciano e uma suposta vocação turística da cidade. A Lei exige que os bares se adaptem a um critério de tratamento de som considerado adequado para a música ao vivo. Todo músico que toca na noite conhece bem a realidade dessa rotina. Ninguém duvida que precisamos de melhores condições para exercer nossa profissão, desde espaços com estrutura adequada até maior sensibilidade por parte das autoridades, de donos de bares e até do público. No entanto, quem teve seu mercado de trabalho fortemente reduzido neste primeiro momento da discussão foi o músico. Porém, é possível que estejamos deixando passar a oportunidade de discutir um aspecto mais profundo da questão: a ocupação racional do espaço sonoro e o lugar da música nesse contexto. Como parte de um mundo intangível, o espaço sonoro não é tão facilmente medido e analisado quanto o espaço visual, por exemplo. Já ouvimos sobre tentativas de limitar outdoors, preocupação com fachadas de edifícios históricos ou preservação de paisagens que são cartão-postal da cidade, mas e o nosso ambiente sonoro? Conceitos como Paisagem sonora e Ecologia acústica são discutidos há tempo no meio acadêmico, mas pouco (ou nada) foi feito para tentar ordenar a ocupação caótica do espaço sonoro. Lembro do poeta Caê Guimarães contar com tristeza que da casa de sua mãe, em Jaburuna, não se ouvia mais o apito da fábrica de chocolates Garoto, que dirigiu sua rotina por toda infância e agora era engolido pelo ruído da cidade. Cabe perguntar se a fiscalização da Lei do Silêncio também incidirá sobre alarmes de carro disparando em qualquer horário ou sobre o caminhão de lixo que acorda muita gente no meio da noite. Claro que, dentro desse panorama, a música é um elemento especial, carregada de conteúdo cultural e portadora

de valores específicos. No entanto, sofre de um desentendimento que muitas vezes a coloca como mais um “barulho” no pano de fundo sonoro. A música assume várias funções. Ela pode servir para dançar, para um serviço religioso, para fazer a vida valer a pena, para fazer refletir sobre a finitude humana ou sobre os profundos abismos da teoria musical e, certamente, para servir de fundo a uma noite agradável de conversa ou combinar com a proposta de um restaurante, exposição, ou qualquer outro evento. Isso não diminui em absolutamente nada a beleza e importância da arte e pode ser feito com eficiência e dignidade por profissionais capacitados. Exemplos do desentendimento do lugar da música são muitos. É normal um dono de restaurante investir num car-

dápio especializado, uma identidade visual compatível com sua proposta, contratar arquiteto, um decorador, e para a música… qualquer coisa, ou mesmo uma televisão ligada. Recentemente um museu da cidade anunciava dentro de sua programação (que envolvia sérias palestras, debates e exibição de filmes) apresentações musicais como “um momento de descontração”, desconectadas da discussão e da reflexão que acompanhavam as outras atividades. Por que a gastronomia, a decoração e as artes plásticas são tratadas com cuidado por profissionais capacitados e a música passa como um detalhe sem importância? A deseducação que essas abordagens geram é difícil de medir e vai desde as propostas para que o músico toque “em troca de divulgação” até o

cliente do estabelecimento que acha que não tem que pagar couvert artístico. Uma música inadequada, oferecida a um público que não a valoriza, certamente acaba sendo tocada alta o suficiente a ponto de incomodar os vizinhos. É preciso que haja regularização, ordenação do som e do silêncio. E também que os músicos repensem sua atuação e os donos de bares e restaurantes entendam que a música tem que ser tão adequada e especializada quanto sua cozinha. É urgente que o público se sensibilize à óbvia questão de que o músico é um profissional e tem que receber dignamente pelo seu trabalho. E ainda que entidades culturais compreendam a posição de importância da música junto às outras artes. Para o bem da música e de nossos ouvidos.


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