Homem na cozinha

homem na cozinha

Livro.

Com palavras será feito. Digo. Sento-me. Estou nos conformes: limpo, aprumado, em companhia de música inacreditável, em tempos de belezas inacreditáveis. Verdades ora nos alcançam em nuvens de vapores intensos.

Comparecem também em águas. Vivemos em tremores.

Queremos mais? – Pergunto. Paro por um momento a procurar minha própria resposta-própria. Fico em pendências de pensamento. Logo, percebo: é preciso prosseguir corajosamente. É o caso de dizer coisas sobre o tudo.

Começarei por mencionar a casa, esta onde estou sentado. Começarei por chamá-la de pequena torre, de forma a facilitar o começo. Uma imagem poderá prontamente acudir à imaginação do leitor, tal e qual acode à minha.

Nela vivo com outros. Cada um cercado por paredes, protegido do contato com o próximo. Há janelas. Verdes, Azuis, Chumbos, Pratas, Brancos, Humanos, Cães, Máquinas e Fumaças existem. Seguem juntos.

Chamo-a também de ilha voadora. Estou no alto.

Quando me recolho ao lar, fecho as portas e aciono o desejo de voar. Então meus aposentos descolam-se dos demais e flutuamos, nós os seres de aqui. Somos muitos e estamos vivos. Percebo então o fato de estarmos sobre a Terra, 6

adstritos à cápsula formada pelo ar. O encontro de muitas substâncias e os delicados processos relacionais entre elas são a tal vida: o mistério.

Dito o cenário, cumpre mencionar a trilha do momento. É por Maria João, em Canções Brasileiras. Aumento o volume do intenso. Volto a voos outros. No passado: o dos dias guardados. A música me transtorna. As palavras são conhecidas desde outras cantorias. Medito. Necessito praticar mais e mais e mais. Tocar e cantar e escrever e cozinhar e desenhar e comer e regar e plantar e ver e ouvir e cheirar e tocar – preciso. Novamente a vida aparece – perene. Em verbos estou.

Dias e suas aventuras fazem-me pensar na possibilidade de prosseguir. Contrito: estou.

Em meio ao cozinhar atribuo-me tarefa de compor parágrafos. Penso um risoto em dourado. Não estou ainda certo de nada. Isto no dizer e no desejo de abarcar assuntos vários. A aventura desta hora é contar. Decidi por quatro porções grandes. Cortei-me levemente ao descascar pinhão.

Percebi estar em dívida com o tudo já dito. Doeu. Coisas e outras, por faca e lembrança, puseram-se a chover. Sangue afora, o sangue escorreu sangue abaixo. As ignorâncias moram em abrigo secreto – semente. Brotarão.

Será já o momento propício? Não sendo já, quando?

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Atalho.

Adentrar nesta onda. Onda movente onde seres e nomes ondulam. Palavras ondas: bruma, neblina, chuvisco, ventinho, erupção – cito.

Tomo rumo de escuro. Sons e furores acomodados ameaçam. Quando ao escuro chegar estarei a salvo da claridade da noite.

Há tempo – ficção – o bastante. Há permissão para fingir-me de eu. Acendo o sagrado e profano: fumo. À cozinha, sento-me: prévio. Em tarefa – pressinto – de concentração. Penso, todavia. Penso mosaicos. Neles a encontrar o alimento – discernimento.

Viver.

Tempos prósperos. Os ditosos reparam sua sina. Devem: a atenção ao mundo. Às emanações voltam-se. Aberto é o estado de seus braços.

Em meu trecho sei ser ditoso. Cogito ondas: palavras, notas escritas e notas entoadas com corpos e restos de outros corpos, instrumentos, meios, barcos, atalhos e música.

Quero entoar cânticos em gratidão pelos dons naturais e pela possibilidade de viver na Terra. Quero prestar 8

homenagens alegres aos frutos do engenho dos homens, nós os de aqui moradores.

Ler. Enquanto música há: deixar-se tocar. Outros mandamentos deixarão de ser ouvidos. A escrita dos pormenores da lei deixará de existir. Sumirão em sopros os entraves. Escribas pronunciarão a si mesmos as ordens. Passo seguinte, darão curso às histórias em suas encerradas gavetas.

Vegano.

Dá para fazer janta sim. Carambola vai em hora de cebola, sobre o óleo de girassol, pimenta vermelha e noz moscada em pó. Desmaiadas as estrelinhas, lá chegam as cenouras e os aspargos cortados em pedaços médios. Colher de pau é de uso. O fogo é baixo. Um tico de suco de laranja é bom. O sal comparece às pitadas, uma para cada um dos momentos de gosto. O macarrão tricolor, sal e fio de azeite, é em água que borbulha e espuma. Passados os tempos certos, escorre um, mistura os dois, cobre e deixa um instante em repouso. Daí come.

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Nem tanto.

Noutra noite a janta foi súbito pesto: trecho de queijo de antanho festejo, um fundo de castanhas, creme de leite de caixa, azeite de oliva, salsa desidratada, manjericão e salsa frescos. Estas últimas criaturas, no recente, viviam em floreira e vaso de varanda. As ervas espalharam perfumes. A máquina de triturar foi usada, depois quebrou-se. Macarrão tricolor foi cozido em água com sal e açafrão. Serve-se em separado. O pesto, além da massa, é bom para juntar ao pão.

Porções foram várias. Na entrada vieram à baila a ameixa umebóxi, o shoyo e o banchá. Poção.

Quase ao fim do serviço, o vinho: tinto.

Poção. Água em ebulição é o lugar do banchá. Umebóxi é macerada no shoyo e com o gengibre. Uns minutos no fogo depois desliga. Junta. Bebe.

Quem ensina diz as medidas, tudo começado por um.

Delicadamente desobedeço. Faço aos punhados, colheres e ameixas. Resulta um assim: xícara é janta. Sensações advém do sorver o troço. Frio também funciona. Equilibra. Alimenta.

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Janta para musas.

Ceia – cena. Pinhão de entrada. Brinde com babosa.

Arroz e cozido. Tâmaras. Arroz na água do cozimento do pinhão, canela em pau, louro e sal. Tempo. Regado umas vezes. Resulta gosto encorpado. Comida forte.

Na manteiga, temperos: sementes de mostarda, pimenta branca, pó de açafrão. Ali folhas grossas de brócolis e couve flor. Sal. Massala.

Taiá, cenouras, chuchu, abobrinhas, flores de couve-flor. Tempo. Um tanto de noz moscada em pó, descansado em sumo de laranja. Rega com sumo e um pouquinho d’água. Círculos de azeite, aos instantes. Vira Taiá em Creme de Legumes. Surpresas.

Suco de babosa, com um dedo de vodca, é também muito excelente. Café forte. Sabores. Beleza. Celebração.

Novo é o domingo.

Acordar em meio a tarde deixa as coisas assustadas.

As panelas estão fora de suas casas. O chão pede vassoura.

As mãos pedem sabão.

O café é com Carolinas. Não as chamemos bombinhas.

Vieram em caixa de plástico, desde o balcão da panificado11

ra. Na esquina, um homem sentado à mureta pitou. Alvorada é o café.

No enquanto a noite e o dia seguiram-se, a verdura murchou. Os humanos da casa dormiam ao sol encoberto do outono florido. Os vegetais colhidos estavam ali, ao lado das facas, em estado de entrega.

A sopa. Água. A verdura murcha. As partes hígidas da flor toda do brócolis. Cebola em forma de barquinhos. Polpa de umebóxi. Sal. Fogo e tempo.

Batatas salsas, aos pedaços pequenos. Alga hijiki.

Uma cenoura ralada.

Escorrido o caldo, da peneira saem as cebolas e as polpas cozidas. É para refogar com pimenta rosa em pó, um tempinho. Juntadas as batatas e o caldo, deixa-se o calor oficiar até mudar de cor. Hora de cenoura e de quase pronto. Fios de azeite, aos instantes. Quando for depois, apaga e cobre.

Os verdes restam reservados. Tigelas à mesa. Isto ao longo de olhar as histórias guardadas nos retratos guardados nas gavetas e espalhados no chão. O dia é de vibrar emoção. O caldo foi forte o bastante para ele.

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Só.

Um homem pita. Está ajoelhado em japonês. Medita assuntos ao sabor do fumo. Vive. No recente esteve entre outros. Cozinhou dias e noites, em alegrias. Canta.

Volta ao lar. É noite e o homem está na casa. Escolhe o cachecol verde e o disco do Quarteto em Cy. Primeiro o fumo. A cozinha flutua limpa, graças à mulher que salva o homem, pondo a brilhar o lugar de brincar.

Depois abre os presentes: sal de ervas e anis estrelado. Da casa escolhe: flores de brócolis cruas. Os talos e verduras usados antes para o caldo doutra sopa, a forte.

Pensa. Relembra a existência do espelho. Mastiga o verde e o pensar volta-se para dentro do estômago. Brinca o sério num momento. Concebe necessidades maiores. Tenta se pôr em trabalho íntimo. Acontece no além do querer.

A sopa é o descanso. O azeite de oliva se esquenta com as estrelas perfumadas. Acrescenta os cozidos e mexe.

Revira com colher de pau. As arvorezinhas seguem para o fogo aos pedaços grandes e prossegue a mexeção. O sal vai às pitadas, vez por outra.

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Ao longo do trajeto: água, pinhão requentado, fumo.

Numa hora veio ideia de escolher discos com as mãos, no escuro. Saltou o Larry Coryell, The Restful Mind – violão, tablas e baixo. O certo é só a música. O espelho é enganoso demais. Não fosse assim, nos daria um só retrato. Isto se diz por ser exato: se existir o verdadeiro, há de ser único.

Acrescenta-se quinua. Um pouco do grão lavado com um acréscimo de água fria, sal e azeite. Nisso as palavras se animam, desaninham e invadem territórios. Escorrem sobre a música e ela por elas. Logo o caldo descansa, amorna.

Está pronto, novo, mudado. É feito de seres.

Depois se descobre tudo. O caldo é denso, quase verde dentro da tigela branca, usada qual caneca. A outra porção é verde e branco-sujo. O anis encolhido aparece em sabor e perfume intensos ao primeiro gole. Guarda-se o que dele se encontrar para renovar o prazer. Sorve-se o sumo aos goles grandes sentindo o calor e a força das ervas tornarem-se ondas fortes, no dentro. Comem-se verdes e grãos em seguida, usando o hachi. É porção delicada de macios. Prepara o comensal para a necessidade de assentar, pois é noite.

Segue-se um momento de estudar música. Tocar.

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Resto.

Remanescia no pote, em amarelo plástico, dentro da geladeira, em branco gelo, a quinua com verduras dantes.

Jantar. Na vitrola em preto antigo, pernoitando no prato preto, o long-play Balãozinho deu-se a fazer de ser entoado na casa, em noite em crescente. Outra vez, tudo se deu de tal forma nova.

O homem está em torre. Seus adornos o adornam. Em especial as palavras. Gosta de si em avental, em laranja e azul. Escolheu o traje em branco e amarelo rajado de vermelho. Cantarola e escreve. Ressente o sentir dos sabores da comida. Chama ao tudo: bom. Tudo? Vaidade, beleza e também as dúvidas. Não esquecer as sobremaneiras de ser em, aparente infinita, crença no tempo.

Em estando à mão, Ravel, O Bolero, indicou-se ao homem. Em seus estudos musicais, no recente iniciados, percebeu-se de ignorâncias muitas e saberes poucos. A música tem trazido alegria entranhada à toa, à tona, à tino e revelação de desconhecimento, por ausência, da percepção de ritmo. Imagina a perfeição.

La Valse-Pavene pour une infante défunte, a segunda faixa, levou o morador aos pratos sujos e à água quente.

Imagina o infinito. Isto de ser a música conhecida, como um 16

rastro na memória, um risquinho na lista, alastrou o esquecimento dela. É como descreverá para si, e ouvintes outros, um acontecimento mental. Será feito no futuro o negócio de contar o acontecido, sentado sobre os calcanhares, sabido dos músculos, devotado, a ouvir o Lado B. Há Daphnis et Chloé: Suíte nº 2. É tocado o todo por muitos: Oschestre de Paris – Daniel Barenboim.

O jardim da varanda encanta o outono em flor. As de maio em maio florescidas. Arantos em explosão de flor de cor invisível desnomeada em chafariz. A sem nome arvorezinha imensa segue os traços e também comparece floridinha. Tem saco para os pedaços devolvidos sem consumação em fogo e dente, partes das envolvidas na comilança humana do homem. Malva gerânio-gigante em verde e vermelho absurdo de flor. Há gerânios, pau-d’água, tangerineira criancinha, beijos, fogo-selvagem em flor guardada em si, manjericão, salsa, sem nomes, vindas desde, sementes, plástico, grades, paredes, luz, alho brotado e além.

O disco próximo é Angela De Todos Os Temas. Coisas de afeto se estabelecem. Comparece à casa da cabeça, responde no peito e assombra a saudade de um companheiro.

Com ele aprendeu assuntos de flores e música e imagens e de amores. A mulher canta a Viola Enluarada. Imagina.

Os discos, uma vez abertos qual ofertas de oráculo, 17

parecem querer mostrar ao personagem a música. Guardada nos homens e coisas, seres, ela está ali no cenário, pronta a deixar-se voar sem a ajuda de qualquer capa. Começa a tocar o primeiro disco do álbum Nude Ants, por Keith Jarrett, Jan Garbarek, Palle Danielsson, Jon Christesen.

Parte real da vida real, a noite de oxalá prossegue. No abrigo, descobre-se a existência de um nome dentro do dicionário. É antropocoria, substantivo feminino. A descrever a coisa, diz o livrão: dispersão de organismo ou de qualquer dissemínula (fruto, semente, esporo, etc.) através do homem, voluntariamente ou não. Serve à designação de afazeres e desfazeres muitos tantos.

Reflete em noite de descansar. Repousa no não fazer senão sobre o feito.

Ao início da noitada suara o contador, obrigando-se aos esforços de mover-se com força. Seguido, lavou-se. Alimentou-se das sobras boas do jantar da noite do anis. Sorveu música e mais mistérios. Limpou. Aclarou-se. Parece.

Fumo.

No recolher da roupa, resgatada aos grampos, veio o impacto. A ampliação da circulação de substâncias transmutou a tarde em sonho. Antes, dormiu e acordou, adquiriu 18

instrumentos e frutos e folhas, alimentou-se à macrobiótica, conversou com camaradas, belos e belas. Serviu café, bolo e música. O menino recebido sugeriu os Beatles, Abbey Road.

Depois vieram visitantes ao canto. Subiram à procura de livros. Coletam pela cidade e depois oferecem a pessoas moradoras de lá longe, logo ali. Levaram fantásticos, volumes antigos e novos e diversos: Pessoa, Rubem Fonseca, Jiddu Khrisnamurti, Manoel Bandeira, outros. Serviu-se café, álcool, babosa, fumo, pão, bolo, música, segredos, histórias. Recebeu-se tanto a ponto de a dor comparecer em sinal de alerta sobre os sentidos, as rotas, escolhas. Veio com eles luz. Foi com eles luz. Livros tomaram rumos.

Nos acontecimentos revelou-se o homem um homem.

Certo foi momento quando dito foi: sou mensageiro do bem e vocês também o são. Seguiu-se o retorno a si consigo – depois do encontro . Foi-se aos copos e às xícaras e colheres, o por lavar. Dia de fumo e café. Importa, ainda, conceber comida.

E a pensar memória recolheu-se ao serviço da alteração do estado dos frutos.

Corta: vagens, chuchu, carambolas verdes. Na panela de barro mergulha em água: uma porção de lentilhas, sal de ervas, louro e uma pitada de tea massala, qual aventura, em 20

fogo brando desde sempre igual.

Na outra, uma estrela de anis, cravos e sementes de coentro começam a ser aquecidas em margarina vegetal, azeite de oliva e sal no fundo. As carambolas são mexidas e seguidas dos pedaços dos legumes, azeite, sal, água aos pouquinhos pequenos. Pelas tantas somam-se folhas de chicória cortada em fitas grossas, no sentido inverso do longitudinal. Fogo menor possível, colheradas, movimentos, noções e emoções perpassando os moveres de mãos e pernas. Uma pitada ou duas de açúcar, entre as idas e vindas pelos trechos iluminados da casa, no tempo do cozimento das lentilhas.

No tacho dos grãos acrescenta água, mais um tanto.

Separa um pote pequeno de grãos para amassar com mais tempero. Quando devolve à panela brilhante, soca um tempo-tanto com o socador-de-feijão-às-antigas. Apaga o fogo dos legumes. Deixa a lentilha apurar e exalar seu perfume de terra.

Come, antes da meia-noite. Medita.

O sabor é suave, qual o foi o dia. A visita esperada de estranhos, chegados para deixarem de ser, emociona o homem em circunspecção. Mundos são reais possíveis. Seres carregam sacolas pedindo livros às portas. Encontram casa com livros. Abduzidos pelo sábado verde na torre, nela per21

manecem por contáveis instantes.

O homem, ao som de Sting, depois de Gismonti, Keith Jarret, Raul Seixas, Cazuza, Simone, Vivaldi e os outros, encerra-se no dentro do dia encerrado. Seguir-se-á o dormir.

A quebra e o encanto.

Saber a fome, desejo, é o começo. Ir por aí, seguir a picada, sem conhecimento a tanto próprio-útil é jeito de dizer, acercando o assunto, o desconhecido corrente além do começo.

Para de escrever redondo – diz de si para si o escriba, em pensamento. Olha a parede e para dentro é que enxerga: um escuro, um limite, paredes outras e o espelho. Responde-se: impossível. Sabe: as mãos só fazem o que fazem os pés e os talos dos brônquios e dos cabelos. As palavras do homem são estas, as dele.

Segue o sorteio dos discos. Ouviu, por graça, Midnight Express, por Giorgio Moroder. J. S. Bach, de Las Sonates pour Violoncelle & Clavecin, tocadas por Pierre Fournier-Zuzana Ruzickova, antes esteve no prato, girando, no tempo de ordenar objetos na casa e observar a ordem de ordenar. Circense, o Egberto Gismonti salta para o centro da sala, bem na hora: experimentar efeitos luminosos, ver, 22

tocar com olhos as figuras, ocupantes do nicho.

Pronto. O de comer é pronto. Comer é tarefa, é servir à tradição.

Assim se assemelha ao homem o fundamento daquilo a ser dito, ouvido pelo narrador. O pensamento, uma vez acolhido qual som, dá cria a um parceiro seu, instrumento, a pensar-se. Restam, para seguir a prosa, ambos dois reprodutivos. Duelam, dialogam, deliram, dão, orquestram.

Somos? É a pergunta, o feito por cada qual realizado. Feito grande. Outras perguntas há muitas. E a memória as vai pendurando às paredes a serem percorridas por todas as imagens do ser.

Corpo, capítulo de transição, vive. Envolto em ondas, move-se a modo não só. Esfomeia-se no produzir o alimento. Invade corpo outro, do seu ou de outro reino, deixa-se tomar pelas dádivas do mundo e nem para quando, em rendição, explode em delícia. Desejo é da ordem do sem fim.

Loucura é livre. Misturar os dois pratos do jantar de ontem de modo a montar a tigela do dia, é permitido. Escrever a pessoas desconhecidas dando-lhes dever de entender percepções próprias, é da lei. Ouvir A Trick of the Tail, do Genesis, logo após As Quatro Estações, do Vivaldi, é certo.

Escrever a pessoas conhecidas dando-lhes notícias de estado, é norma de estado. Parar.

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Chá: hibiscos.

Enquanto água, fogo, embalagens e flores secas transformam-se em bebida, o homem limpa e ordena. Ouve Rick Wakeman, The Six Wives of Henry VIII. O pensamento ainda responde às perguntas do outro, o mundo. Viver-se é só, ele sabe. Todavia segue em conversação com as falas das ruas do dia. Oferece-se imagem de si, mesmo agora, na casa em anoitecer. Vê-se: a esticar as cobertas da cama, dobrar roupas, retirar da bolsa as compras do dia, fumar. Os movimentos assemelham-se à película, em cores mutantes.

Os ajustes de postura, a escolha da iluminação, a busca do disco na estante são gestos desenhados e vistos. Espetáculo especular se desenrola. O ator reage. O desejo de conhecer o sentido de suas ações o impele. Desemboca na cozinha.

Restos poucos na panela por lavar, coisas por guardar, migalhas de pão e sementes sobre a toalha, água e sabão são comparsas do homem. Dão-lhe afazer promissor e avisos.

Reavivam. A rota se ilumina. Contempla as flores e folhas e galhos deixados à beira da janela. Seres secos a prosseguir no visível, passadas eras desde o florido donde vieram. Postas, ainda. Parceiros seus retornaram sem demora aos ares e terras, profundos.

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Declama.

Pão. Farinha, escura o bastante. Um tanto pequeno de farinha branca. Um envelope, ou colherada de fermento biológico. Água morna, sal, açúcar e azeite. É com isto e só, no começo. Depois se descobre outras partes.

O fermento é dissolvido na água com açúcar, enquanto na bacia são misturados os secos. Uma colher média de sal e duas de açúcar, são medidas possíveis não-únicas.

Mistura com gosto, experimentando círculos com as pontas dos dedos, rememorando.

Logo o fermento cresce. A vasilha apresenta uma coisa de cor esquisita.

Vem um momento, o movimento, o criar da massa.

Demora. As mãos estarão com dedos bem abertos e farão força para dentro da mistura da água com a farinha e o óleo.

Bom é não parar. Acrescentar água e farinha branca aos poucos, quando houver coisa demais grudada nas palmas.

Segue movendo, apertando e soltando, forte e suave. Não parar até mudar de ideia é luxuoso.

Dada a hora, a bola gerada no rito precisa descansar, coberta. Procura-se aqui o morno.

Tempo de caminhar, meditar assuntos, por-se para sonhar. Ao começar na manhã, oficia-se o dia, na casa ou na 25

rua. Se percorrido o primeiro trecho à noite, faça-se a noite, em festa e reconforto. O pão fica no antes de ser.

Passado o dia, ou passada a noite, levanta-se o véu.

Aparece a bola grande. É um gosto.

Ao toque a massa murcha. Separa-se em partes. Retira-se uma bolinha com o polegar e o indicador, deixando-o de lado. Cada parte é amassada. Mudar de ideia aqui não é necessário. Vontade de sorriso já é de bom tamanho.

Esculpe-se. Um repouso, ora breve. A bolinha é mergulhada em um copo com água. Depois de um tempinho, milagre, ela boia. É quando o forno morno recebe os pães por minutos.

O aroma é sinal. Depois dele tomar a cozinha é permitido espiar. Apaga o fogo quando o pão chegar.

Há outros passos e outras medidas. Ao fazedor concerne ouvir, ler, inventar.

Em busca do arroz dourado.

Curry poderá vir ao caso, em outro ensejo. Neste recorreu-se ao açafrão e à cenoura. Sal, louro e pedaços de maçã desidratada foram, junto ao pó e as raízes, para a água

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fria. Tudo ao fogo regando duas vezes, quando ameaça grudar. O sabor restou delicado. As maçãs são pausas adocicadas. O ouro foi lembrado ao longe.

Propiciatórios.

Raízes de barbana na fervura, querelas, rock progressivo, desejo contido e a lista a seguir-se sem fim, não fosse necessário vigiar a panela.

Descanso é regra neste cozinhar. O fogo apagado e o pano cobrindo a poção, cozida e regada com shoyo. O começo fora refogar com azeite e sal. Tempo de encontrar assunto.

O desamparo no centro do peito, experimentado no caminho, é tema em retorno. Não é novo o movimento. Um tremor, semelhante a mentira, instala-se na vizinhança do coração. Com ele a verdade da finitude e a outra, da presença. Estar no mundo é só um avesso do antes e depois, quando nele não se está. Pensar acalma.

Comida com o arroz feito ontem, aquecido, a guloseima arrancada da terra ficou acertada. Comer aquieta.

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Meus filhos.

Do centro da noite artística, escolho o destino a deixar escrito na destinação. Comecei desse jeito. E agora? Ei-lo!

O tema eterno do solilóquio se insinua. Discorro. Falo difícil. Falo ao longe. Atento à existência de uma alma vívida, falo. Canto. Toco instrumentos. Toco. Planto. Janto o feito, o prato, com palitinhos e colheres. Cada fala é um tronco.

Frondoso é o presente. História de homem escrevo. As palavras fluem ao som de Bobby McFerrin, em Spontaneous Inventions. Nossos discos são nossa herança, digo aos outros homens, ao homem e aos filhos do homem.

Ao tempo da escrita ao póstero coisas invisíveis correm ao lado daquele a escrevinhar. Menção necessária é concedida às existências percorrendo os todos lados. O disco presente é Olivia Byington, em Melodia Sentimental. O passado compareceu quando tocada a capa. Veio à tona sua chegada à casa. Submergiu, tocou. Restou, no após, na vitrola musicando.

O estudo da música no ouvi-la é desfazer diário. Sabem bem meus filhos. São exemplo. A noite aprofunda. Entre a escrita e o som e as luzes, na casa, intento conhecimento e nutrição.

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Sigo.

A pé. Um lado b é para esta noite. Outra fala mesma do sempre. Enquanto uma receita surge qual trova em repente a música foi essa, a segunda travessia.

Depois: Magico. Pelo gosto que dá viver em presença de Egberto Gismonti, Charlie Haden e Jan Garbarek inclino-me. Eis principal: a existência da música, um fruto, é razão mor de homenagem a se prestar aos homens. Quiçá a passagem de nossa raça por este planeta seja por tanto lembrada.

Por outros entendimentos feitos também é de agradecer a ancestrais e comparsas. Sei não por onde caminhar nesta noite. Então caminho aqui. Ouso escrever em companhia dos mestres senhores emanando. Ouso dizer: não sei. Ouso refutar, retendo-me, a entrega.

Jantar indiano indígena.

Amola a faca e pensa cará. É raiz, deu folha, viveu pra fora e logo vai se misturar noutro corpo, um eu. Descasca.

Verifica a quantas anda o jeito com lâmina em presença de casca forte e fina. Amola outra maior. Pensa. Dedica. Reza.

Corta no sentido da altura e depois ao contrário. Faz pedaços. Água a cobrir, no fogo, com sal e, pensando em cor e 29

invento, páprica. Na tábua pica a chicória e uma ponta de pimenta vermelha. Na pequena de barro esquenta o óleo de girassol com pó de curry, a pimenta picada, sal. Refoga o branco e o verde. Junta as poções. Mistura. Tampa um instante. Apaga logo e deixa lá cozinhando com o calor guardado na panelinha.

Solo.

Egberto tocou. A poção forte foi servida em tigela, em oferta de homem a homem.

A emoção do encontro nas ruas, com companheiro revisto em lugares desde outras décadas, prossegue na pele.

Falaram. O vivente da cidade contou o sossego. O da aldeia contou primeiro o receio. No instante seguinte sorriram-se. Disseram-se amores e artes e belezas. Cada qual por seu lado largaram a esquina aos demais.

Por força de teimar em explicar um modo de compreender o mundo ao outro, perde-se abraços. Este é o entendimento do acontecido. Sabe-se, além, pronunciar o tanto-faz. Artimanha da palavra junto à outra é de uso, para evitar o fazer-pouco de não se estar pronto jamais. A escrita

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significa: contorna, ameaça, consente.

Veio.

Com cabelos, tronco e membros o homem, antes nu, recebeu o outro em abraço, vestido. A palavra, veloz, musicou-se em notícias, toques, divertimentos. Trocaram, humanos, coisas. Mesmo em sonhando carícias pactuaram distância. Trocaram festivos.

Noite do senhor.

Ouve Travessia,com Elis, em Elis. Antes fora a Sinfonia Doméstica, de Richard Strauss, por Wiener Phillarmoniker, Lorin Maazel.

No dia aplicou-se em cuidados consigo e com outros, em ordem.

Nas seis sobe à torre. Sobe-se. Realiza os gestos de chegada. Enche a casa do fumaças e ares invisíveis. Coloca-se sob a proteção de uma lamparina. Requer proteção e ousadia.

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Ao nabo.

Primeiro limpa tudo. Elis canta. A mulher segue no homem. Compassos, a desenharem o símbolo do infinito, círculos e meias-luas, invadem a instantes o corpo do homem. Tremuras. Cozinha. O princípio é o nabo. Raspado, à água abundante, em distração. Corte ao cumprido e em pedaços menores depois. Inhame descascado é deixado em suco de laranja e água e sal.

Panelinha com óleo de girassol, pimenta vermelha em pó, páprica, sal, sementes de mostarda, ao fogo. Quando aquecidos, recebem o nabo. Mexido em círculos longamente, entrega-se ao amarelado. O inhame é também dourado.

Cobre-se com a laranjada e deixa.

Dado um tempo, os legumes são mexidos novamente.

No quase-secar deixa em calor, sem fogo. Cereais com sal de ervas, louro e uma estrela de anis são cozidos na panela ao lado.

A entrada foi com pão feito na esquina e barbana com shoyo. Além, um cuscuz com quinua, recebido em presente de uma mestra da culinária. Restinhos curtidos ao som de Haendel.

A lição de música, prossegue. O ouvir é precário. Iniciante, pouco ainda contempla. Qual em todos os outros 32

seus afazeres, o homem começa. No ouvir os discos, tira o grosso, pede benção, abre janelinha. Crê. Ao jantar, fluem os gostos no corpo. Na vitrola flutua The Best of The Doors.

Dia do senhor.

Decidido o tema. Desconfiadas tarefas. Desejos e ânsias vindos da noite apresentam-se em pontos tensos.

Deixa-se levar pela fumaça da manhã. Vivente em outono vívido. Descreve-se depois da Sétima Sinfonia de Beethoven, musicando ao longe a arrumação de camas e panos e as outras pequenas façanhas da manhã. Na passagem para o começo do desenrolar, tocou Jean-Luc Ponty, Open Mind.

Tem preguiça, por enquanto, para o contemplar as capas, conhecer os nomes dos instrumentos e instrumentistas.

Declina, com honra, do convite. Já com Joseph Haydn, nos Trios pour Piano, Violão e Violloncelle encontra caminho.

O rito do banho acrescenta histórias nas partes todas tocadas por mãos. Rememora mãos outras. O peito sussurra: sente beleza em exalar. Esfrega-se. Afaga-se com óleos extraídos das plantas. Nunca esquece: as coisas a sua volta, todas, estão na vida e na morte, tanto quanto o homem e sua memória. Inocentes, não há. Sorvemos uns aos outros como sorvem os outros aos uns.

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Segue-se um percurso pão. Os elementos desafiam o homem. Farinhas deixadas por época lá no baixo escondido comandam hora de peneirar e esperar que venha a dar no certo. O fermento é largado na vasilha com água aquecida e açúcar cristal. Depois da peneira acrescenta-se uma porção generosa de gersal. Este estava também nos guardados.

Construir com isto e óleo de gergelim é o por fazer depois de almoçar a comida inventada ontem.

Os cereais e legumes, desta vez aquecidos no mesmo tacho, com azeite de oliva e um tico de água, ofereceram risoto de amarelo maior e com tom mais suave ao paladar.

Toma um café forte, qual sinal de estar no denso dia da cidade. Na vez, sorteia um cd. Precisa de mais movimentos e não quer ser interrompido pela ausência da música. O pão será amassado à Kitaro, The Best Of. O músico ensina ritmo. Ele e o pão. As mãos são apresentadas ao homem, cheia de dedos e juntas e peles. Dotadas de uma força particular vão formando uma bola quentinha. O desenlace é de cor esfumaçada, íntegro e macio.

Os insumos caminham para o esquecimento, resguardados na bacia de bambu ao lado da panela com água, sal e açafrão onde se cozinha uma pequena moranga, inteira e com casca.

Pensa um passeio. Trajeto comprido em direção ao lu35

gar de um concerto. Prepara-se cuidando um tanto mais dos objetos e acrescentando à água fervente folhas de manjericão e dois pedaços grandes de cebola. Depois experimenta roupas, em fogo brando.

Ouve Terence Trent D’Arby (Sananda Maitreya). Não se sabe, no consciente, por que mãos o disco chegou à estante. Deu-se no sorteio da tarde, na hora de desligar a fervura e deixar tudo a repousar. Vestido aos conformes, com roupas de homem em azul, preto, cinza e marrom calcula o tempo de caminhada até um outro ponto do mapa. Vai.

Chuvisco.

A lugares se pode chegar movendo as pernas naquele jeito inventado há milênios. Uma hora foi o bastante para encontrar o teatro destino. O outono é verdade. O chuvisco não pode deter o caminhante. Os musicistas entoaram suas belas preces, em amores.

O vento o trouxe de volta. Comeu a moranga, com casca, semente, polpa. Comeu tudo. Guardou o caldo saboroso para o arroz do amanhã, o que virá.

Com o Nó Caipira, a massa do pão volta a girar. Breves movimentos: amassar, esticar, escolher a forma e a forma, deixar em descanso ao lado do copo com uma bolinha da 36

massa imersa em água. Quando flutuar, sabe, será o convite do forno. Espera.

Revê o dia de louvor. O saber guardado serviu-lhe. O pão será pão. A música o fartou de emoções. Em solitude, congratula-se: pode-se ir e vir e ficar.

Dia de branco.

O narrador se aflige. Quer certezas. Deseja ser compreendido. Sabe-se longe da clareza. Está em estranhas dores conhecidas. Está nelas.

O personagem, chegado no começo da noite, viu-se diante de enigma. A bolinha do tempo, passadas dezena e mais de horas, dissolveu-se. Terá flutuado por primeiro? A dissolução deu-se quando ainda estava tocando o fundo?

Insondáveis motivos, conclui. Manda a água, a farinha, os temperos e o fermento para mundo de canos e oceanos.

Ouve Egberto Gismonti e Branquinho, Em Família. Na última peça, quando um menino nascido de pouco cantarola com o pai, decide-se: o pão vai ao forno, em calor baixo desde o começo, por cinquenta tracinhos e, no contínuo, se decidirá.

O homem narrativo lê dicionário. Mudou-se para a cozinha, com seu teclado. Aprende violão com o homem 37

narrado, no ouvir dos discos. Uma peça de Tchaikovsky está no de agora.

O trabalhador move-se. Segue à varanda e lá não suporta contemplar. Retrata. Fere os olhos das flores. As de aranto, as de malva, as de-maio, beijos e as de sem-nome, tocadas por raio de máquina do homem. Ele precisou de fazer força. Presumiu a beleza das imagens fotográficas. Viu-se agressor. Viu. Toma posse de si, em algumas certas vezes. É cozinheiro lírico. Os caldos podem salvá-lo. Firma propósito.

Refletir condição sua de escrevinhador de conjugações estreitas e capaz de mentir, enquanto prepara uma sopa mirabolante.

Interrompe-se demasiado. Circunstâncias difíceis ocupam. O pão não se revelou ainda. Há temor de perdê-lo para o tempo. A farinha, adquirida da indústria, permanecera para além do prazo legal no mocó. Assim, o feito era operação de risco. Sabia o homem, desde o ontem. Insiste. Não pode crer na impossibilidade de produzir alimento apropriado em estando presentes as substâncias mínimas.

Sabe-se em ignorância. Quer qualificá-la: eterna. E o faz, ciente de estar encantado em ego. Medita sobretudo o tempo. Em meio a idades conhece a verdade da morte. Retórica e faca, em sinfonia, esparramam-se pela casa e são levadas 38

as ruas, em sinal de protesto de respeito à inexistência. Desejo de ofícios e utilidades, são dínamo. Portanto o pão foi cortado quente e devolvido ao forno, em anseio de torrada saborosa. Vive-se.

Contar a sopa. É em fogo baixinho, com cenouras, lentilhas e o caldo guardado ontem.

Depois expor. Estamos com incerta tristeza. Homem, homem contador e talvez outros, dotados de entristecimento. O pão não era de comer. Era de ir para o lixo, desde o pacote. Eita! Pobreza nossa, homem, é visível no desperdício.

E o jeito dado agora de resolver vida, o do comércio, produz mais resto do que todo. Estamos envolvidos. Aprofundar o aprendizado das formas de construir o dia e o alimento é a tarefa.

No átimo, escrachar. O velho, morador do homem, comparece a ponto de tomar-se a drástica decisão de amarrar os óculos à cordinha. Perdido, ouve Ternurinhas & Tremendões. Santos! Música! O conhecimento do ritmo ali está, escancarado, grandiloquente, em lição primária. A contar um, dois, três, quarto, sente-se em risco. O pão falido está ainda dentro da casa. Faz o ritual do saco preto.

Manda ao longe de si o erro e outros dejetos seus. Valentes o carregarão na noite.

O homem quer parar. Quer abandonar costumes da39

nosos e descobrir forma menos errada de economia. Tem pergunta. A dor vem de onde, senão do padecente? Tem meia resposta. Tem uma sopa a cozer. Concertos de órgão vieram ao prato de borracha. Keith Jarret toca. A alegria está encolhida. Acovardada talvez por haver guerra. Navios invadidos, fronteiras, golpes, torcidas, vazamentos de petróleo, sintomas gerais, listas e listas com intenção de sem fim, decerto explicam este estado. Saudades do amanhã.

A sopa é o certo.

Repito. No caldo é água, moranga inteira, cebola, manjericão verde, sal e açafrão, em cozimento longo. A moranga vai para o papo antes. Alguns pedaços dela, deixados no caldo por noite e dia, com cenoura e lentilhas, pitadas de sal, sal de ervas e azeite ficam no fogo. Ao lado, o homem se exaure em trabalhos de espírito. Busca tomar distâncias e achegar-se. Busca.

No aparente enfim, sorve. A lentilha em saudade é saborosa. Nutre.

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Ontem.

Outro veio. Tocava-se ainda o órgão, quase no lavar panela. Alívio, em que-bons e graças por todas as vezes, pronunciou-se. Já em Alma, de Egberto, fumou-se. O homem considerou um nicho macio e o construiu aos pés do móvel residência da vitrola. Tocaram-se mais em segundos.

Próximos, ocuparam o chão com alguma doçura e sem palavras. Dançaram. Estabanaram-se e perderam-se do encontro umas quantas vezes. Suavizaram-se um tanto ao termo.

Atenderam, na vez como noutras, ao pedido comum de silenciar o momento e seguir.

O amanhã foi cogitado pelo homem, tão logo reviu-se um só. O descanso em trama de braços deu milagre. A dor cansou-se de doer. Prometeu-se o macio aos músculos. Dos trilhos seguidos pelo outro, nada se sabe.

Assunto.

Falta ilustração. Faltam coisas de mulher. Panos, linhas, longos, entre tantos imprescindíveis, faltam. Homem brinca de tudo e sempre. Mulher, parece, brinca nunca de nada. Homem quer entender o difícil. Avança em direção à casa. Aloja-se no alheio. Provoca as cores. Provoca os 41

outros. Desafia-se. Pratica maternagem. Caça nas mãos o jeito de mudar lavoura em pão. Delira e crê possível aprender a fazer qual mulher, começando no avesso. Quer forra, confessa-se. Envergonha-se. Encurva-se. Desculpa-se.

Transforma, em abstrato, o desejo insano. Fabrica nobreza de propósito. Desconfia ocasião de sonho. Nela estariam todos completos. Cada um com certeza de haver nascido de si.

Assim, mastigados os cozidos ontem, deseja-se sono.

Em fome.

As guitarras e os elétricos outros, ao largo e dentro da voz são às costas do homem. Ele assim pensa: Janis Joplin, inacreditável prenda de sorteio, justo em hora de quase apavoramento. Ciente da incapacidade de permanecer quieto, teme o surto. O narrador quer conversa. O homem quer palavra. O ouvir da voz, pronunciando vocábulos inacessíveis entre os compreendidos, é prazer. Rememora Maria João, nas peças em inglês. Está perplexo. Jantou os restos todos misturados. Consumiu o resto de biscoitinhos naturebas do saquinho. Deve duas noites à cozinha. Faz promessa de atender ao desejo de não trazer mais comida de plástico à

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casa. Segue o temor. E o faz com os olhos nas costas. Pensa o dentro. O frio desconsola. Vai aos ingredientes. Retira potes, cheira as coisas, decide por chá de maçã. Começa o invento de amanhã. Nada será desperdiçado. Tudo há de ser usado até sumir. Para um arroz vermelho irão os restos do chá. Quer se fazer entender. E entender. Sabe estar entre os sortudos vivos. Pode, sem saltar linha, saltar da moça para a Música Aquática, de Haendel. Sabe estar entre os perdidos. Deve muito. Nada conhece direito. Jamais penetrou em qualquer selva. Vê-se, de fato, às vésperas de existir. Nas mãos, contadoras nos dedos, anuncia-se para breve. Segue fio enredado. Onde o começo?

O conto carece de compreensão e generosidade, para poder sair do homem. A história é de comer. E a história da história é o desconhecido. Sabe-se: é na cozinha a locação principal. Voltado ao leste o homem escolhe grãos, frutos, raízes e ervas. Defronte ao sul é escolhido pelos discos. Come sentado com o peito aberto a oeste ou sudeste.

Rodopia os olhos aos vegetais plantados na varanda. Ali vê os arantos. Seus olhos, então, miram ao sul. Nada do dito é falso. E, sabe-se, não é necessária coisa qualquer. Há confusão. Deve de ser fruto da ausência de outro, humano, nas cercanias da pele do homem. Procura em fazeres o conforto.

Coloca-se em obras simplórias. Manter a casa e os pés lim43

pos. Colorir a fala aliando a ela os cânticos. Dá-se dever de descanso. Quando na noite em alta passa ao Bolero, em outra execução de Ravel, por orquestra cujo nome permite-se não ler, sabe estar em movimento e acredita ser o bastante.

Suas pernas estão fortes o bastante. O tronco desordenado é sólido, qual todo sólido, construto de partículas invisíveis.

As águas em si percorrem os riachos seus. Lembra o alegre do arroz amanhã vermelho. O sangue levará então em vermelho o vermelho, no futuro. Palavra difícil. Diz nada. Diz o inexistente. Diz desconfiança e fé. As farinhas e uma passagem do tempo podem dar um pão. Será este um começo?

Quando não a cozinhar o pensamento do homem é qual casca. Tem que lavar, raspar, arrancar. Depois enterra.

Para virar germinadeira.

O jardim suspenso na torre progride em brilho. Trechos recolhidos, folhas, galhos e flores repousam em um vaso, garrafas e garrafinhas. Formam jardinete, sobre o lugar do fazer-comida. Relembra o desejo de chegar à capacidade de comer só o que a ele chegar por própria vontade.

Frutos caídos nas mãos e águas de chuvas, seriam os aliados seus no encalço da vida.

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Dia santo.

Pressente e vai ao reservatório da música. De lá retira Homem de Bem, nos Mantras Indianos. Os sinais são sinais do sinal. Nos instantes da quase uma-hora próxima põe-se a caminhar pelos aposentos. Pega-se louco ao fim. Fedendo a esforços de ontem age sobre objetos. Houve momento de produzir, no cabide para chapéus e cachecóis, uma imagem disfarçada de si. Um outro em ferro e pano, com as mais de dúzias de fabricados de vegetais, minerais e bichos para o serviço de manter cabeça e pescoço de homem protegidos de perigo vindo de águas e gelos. Acomodou outros trastes.

Sobre o descanso viu os bonés em desuso na temporada.

Nela nuvens – cápsula de prata – guardam a superfície do fogo vindo do céu. Ali também, na madeira comida por bicho cupim, está um retrato. Sandálias, tigela, mala, pano, roca, óculos, livro, expostas com o nome de pertences do Mahatma Gandhi. Aviso.

Enquanto um coro entoa Gregorian Chants, prepara-se o homem para o cozinhar do dia. Sabe ser fato: colher com respeito dá em ensinamento. Preciso é o banho.

No tocar a pele, com água aquecida e perfumosos, ca-

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lha o perceber as emoções em curso. Dominam. Aperta-se o coração do homem. Respira-se. Promete melhorar a qualidade do ar penetrando em si. Corre a começar o encontro com o arroz e o espinafre.

As folhas e os talos separados quando o arroz – em água temperada com páprica picante, sal, pimenta vermelha em pó e as maçãs fervidas antes para o chá – já está no fogo. A massala é com óleo de girassol, coentro em pó, sal e sal de ervas. Os talos são tostados primeiro. As folhas acrescentam-se mão a mão. Ouve-se Soda, os argentinos.

Já ao som de Cida Moreira, os cozidos descansam cobertos a tempo de o homem procurar na memória assuntos refletidos: fumo, emoções, coragens. Prega botão e agasalha-se qual nobre em castelo: vinho, branco, preto, vermelho e outro tom, quase vermelho quase vinho.

Passeio.

Na praça senta-se pela primeira vez. Escreve no caderno.

Praça do Japão. Nos beirais da casa acolhem-se grupos de moços a fazer origamis. O Buda reluz sobre a água movediça. Os veículos produzem o som, além de distrações

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visuais. O homem está lânguido – é do que se convence o próprio. O passeio existe. O passeador o cria e nomeia. Volta produzindo no mapa um círculo. Em dado trecho as pernas doem. Sente-se. Felicita-se por sentir-se. Sorve, em fim de caminho, o açúcar recompensa. Sorve, à chegada, o fumo.

Ouve The Survivors’ Suite, Keith Jarret.

Passada é a hora do crepúsculo, aquando vieram moços trazer livro e o homem até cantou em presença deles duas peças em estudo, acompanhando-se ao violão. É noite.

Desenhou-se a ouvir Ahmad Jamal. Ora se está encantado por Chick Corea, The Leprechaun.

Cabe contar o pensamento voando no passeio, quando em tarefa de verde. Era reflexão acerca da condição de viver na cidade, na condição dos muitos homens. Uma senhora a varrer a calçada, em momento, pareceu-lhe reminiscência de terra justa. Entretanto era escrava velha e branca, oficiando em dia de louvor e descanso. Notou então: os palácios todos vão cerrados e os palacianos residem presos na proteção de pedras ordenadas. Só. Percorreu a vizinhança extensa.

O jantar será com uma parte das folhas de espinafre e outra do arroz avermelhado. Os crus refogados no azeite com sal recebem o arroz e um pouquinho de água fresca.

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São luxos. O morador das margens da nobreza nela está desejoso de alavancas.

Saciado veste-se e calça o chapéu. Seguirá para as ruas.

Façanha.

Por vielas e estreitas, passagens, esteve o homem.

Sentiu o conhaque arder. Sentou-se em sarjeta honesta.

Pediu licença ao entrar e sair do canto, esquina, meio-fio, gelado. Deu-se ares de alegre e cantarolou quase todo o tempo. Descreveu península com os pés e pescoço aquecidos. Usou o chapéu português. Às tantas encontrou o moço a desejar seu corpo e tempo bem guardados. Declinou desejo seu também. Retornou à casa para o lado b do Pergolesi e o lado a, ao menos, do Dilermando em Abismo de Rosas.

Quer.

Os leitores haverão de encontrar aqui – deseja – uma dedicação e um pedido de apreço. No dia do corpo do cristo fez procissão de busca. Amor e gozo foi o buscado. Nas ruas não deixou de sorrir a alguns dos passantes e baixar os olhos em presença de outros. Amou notívagos e gozou o estar entre os tais. Em amanhã será fantástico ter-chegado-

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-a-tanto. Em horas e lugares progride o homem, há que se dizer. Pequenas coisas são as existentes. Grande é o mundo, o planetário, o cósmico, o de nascimentos e ausências.

Grande é também o homem a percorrer uma vida a cada vez. Espera.

Noturno à manhã.

Sem o escuro, os objetos da casa parecem perdidos.

O lugar está aberto às luzes da chuva. Busca-se produzir sentidos para as ações corriqueiras. O homem ensaia o homem-do-ofício. Está lavado e os cabelos foram puxados para trás com um fino pente preto. Ainda em pijama, ao lado da cama em caos de pano, enxerga-se perdido entre os habitantes da cidade. Tem saudades de campos habitados por animais muitos e campesinos poucos. Neles não esteve, mas de lá vieram seus ancestrais e outros fabricadores de lendas. Contaram-lhe honra e temores. Os tempos deviam parecer com infinitos.

No hoje, curto, deixará por lavar o sujo retido na pia.

Para a noite prevê um trago e um cozido de frutos verdes.

Pensará nas falas deixadas na casa. Dirá.

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Noturno.

A voz da chuva confunde-se com Folk Songs, Egberto, Jan, Charlie. O disco da meia manhã é retomado no despertar da noite. Ao fumo vai o homem logo depois de desprender-se das botas dando-lhe aos nervos dos pés. No dia falou sobre suas histórias, expressou-se no escritório dando impulso a risadas. Faz isto. Vive anedoteando o viver.

Seu ofício é de olhos e mãos. Com a boca ocupa-se em uma segunda via. Ambos os deveres, ao final de cada jornada, parecem-lhe cumpridos a contento. Está satisfeito consigo o homem, em diversos assuntos. Sabe-se raro. Está em jornada buscadora das fontes do ego. Talvez então, se chegando a alguma delas, possa livrar-se e seguir livre desdestino.

Insiste na reflexão, no reflexo, no espelho. Segue até a parede que antecede o quarto de dormir. Nela, a luz devolvida da areia tratada, retrata uma cabeleira construída. Vê-se em movimento, justo na parede, justo em lugar de não estar, justo assim cobertinho por roupas, ansioso.

Depois de admirar-se parcamente, sabe. Cozinhar é o bonde, o noturno. Virá um cozido verde. Das caixas virá Clara Crocodilo, do Arrigo Barnabé.

Primeiro: limpar o espaço aéreo, soprar os ciscos de pão para o chão, levantar a panela pequena de barro, retirar 51

do gelado o arroz pregresso. Lavar os poucos utensílios na pia é do dever.

Segundo: lavar os legumes e perceber sua densidade.

O chuchu está duro, por verde ou em razão de vir de banca barateira. Desafio se apresenta. Sentir a presença das coisas do mundo. E sente. As palavras na mente prosseguem. Debatem. Deliciam-se na rememoração de quão poucos foram os dinheiros entregues na troca de tempo seu por tempo do banqueiro de cozinháveis. Afirma aos próximos: dinheiros são tempo, eis o melhor ensino do dito.

Intervalo nenhum: Trem Caipira, tocado por Egberto e orquestra, é o exagero possível. Operadores de delícias, os vegetais, as palavras e os músicos, estão com o homem.

Terceiro: massala com azeite de oliva, louro, sementes de feno grego, pimenta branca moída e sal. Folhas de espinafre picadas começam a trova. Vem o chuchu em pedaços, recortados antes no sentido em flor e após no contrário. Mexer, mexer, mexer, tomar o calor para si. Completar com as abobrinhas em verde e branco. Seguir com a colher.

Mudar um pouco para esquerda. Manter o movimento no sentido horário. Deixar-se tocar na emoção e no todo pela música circundante. A ela comparecem os aviões e a chuva, o borbulhar dos frutos expostos ao calor vindo do barro co-

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zido, as notas geradas no impacto descompassado produzido pelo contato da colher revolvendo, por força própria e do homem, os seres verdes em mutação.

Quarto, iniciado em meio ao terceiro: o resto de chá de maçã d’ontem, com o arroz d’anteontem são postos à prova. Renovados no encontro, são levados ao fogo, em intenção de risotilho.

No antes do servir-se ouve Milton Nascimento, em A Barca dos Amantes e esvazia. Lava.

Retira o avental voltando a emitir somente o branco, preto e o verde. Ajeita os cabelos. Comemora a alegria das canções do jovem cantor. Sabe já qual é o trabalho musical da noite. Deve procurar os baixos, os densos e delicados fundos das canções. Antes, jantar.

Aprende, sobre misturas, cascas, comércios, dinheiros. Tem sabor de inteiro. Nutre. Entretanto: o chuchu, se duro, deve ser descascado. O feno-grego ainda não pode ser compreendido desta vez. O arroz com maçãs cumpre seu périplo, com honras.

No Amor de Índio, cantarola o Milton aos frutos sagrados. Dados sagrados, se os houver, jogam os deuses, se os houver.

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Rolling Caicó.

Estudos musicais demonstraram, à larga, ter sido o jantar fortificante. Caicó em começo. Ouvido a Egberto inda faz pouquinho, no fazer com as cordas ouviu melhor e trabalhou o sustentar pestanas. Cuidou de transitar nos graves. À direita cumpriu o esforço de libertar movimentos – dedos abertos, palmas abertas, pulsos livres, ares e largos e largos passos.

No descanso, o oráculo ofereceu The Rolling Stones.

Desarrumou cabelos. Agasalhou-se. Levou para a residência da vitrola arranjos florais. Comeu uma tâmara. É festa. O jardinete outonal abre frentes. Perene, o desejo de jardinar.

Manhã virá. Almeja o homem. Arantos tantos desejam solo profundo.

Minutos, minutos, minutos entregam-se ao homem, sucessivos. Bilhões e bilhões dele minutos são potencializados na mente vagueante. Levado em memórias e premonições, planos e plasma, ocupa ondes e quandos vários.

Em quaisquer deles apresenta-se, em fato, inteiro. Em todos flutua desacordado. Percebe o processo. A dissolução de construtos é acontecimento visto. Palavras brotam das mãos e do fundo do ventre aquecido e movente.

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Páginas.

Camaradas há em encontro para meditação em movimento e, depois, à mesa em refeição macrobiótica. Eis o cenário festivo do sábado do homem. Compra: batatas-salsas, brócolis, raiz de lótus, nabo, gengibre, beterraba, couve, arroz, grãos com bicos, óleo de girassol, bifum. Anota os dinheiros. Parecem-lhe poucos.

Toca a viola – depois de ouvir em coro As Canções de Chico Buarque e antes da Sinfonia Número 1, em Dó Menor, Opus 21, de Beethoven. Suas mãos estão se transformando.

As costas e pernas e o interno e o todo pedem completa atenção. O instrumento quer ser tocado. A música quer ser ouvida. A língua pede sabor. Os olhos indicam frestas.

Em véspera e vizinhança de muitas guerras, capitão em outras, descobre-se em vias estreitas, a caminhar em fila por um. Vai de serviço. Servo de sabe-se lá, em troca de ser liberto, cumpre deveres lúdicos. Embaralhar palavras, sorrir envergonhado, usar vozes macias, confeitar a casa, cantarolar e adiante, estão entre os tais. A alforria é oferta presente.

No centro da tarde o homem poderá ser visto a escolher roupa por cor. Ouve Chick Corea, Piano Improvisations, vol. 1. Sairá a passeio. Premeditado é pensar em movimento e ver. Insuspeito é o devir. Quando em fluxo os encontros 55

lecionam. A casa arranjada ficará só, no giro seu de ser fincada em terra.

A caminhada será em direção a pessoas: alguns entre os seus. O que no retorno será dito? Haverá o retorno?

Oh vida de verdade, oh vale dos vales, eia ei. O sensível no homem está, a posto, em apropriado compasso. Saberá o homem conduzir-se em equilíbrio? Assim, em perguntas, parte-se.

Lento.

Desabrochar. Antecedido de contrações e expansões, o nascimento começa a nascer. No avesso o nome é dor.

Homem: caminhei pelas ruas com o olho em chamas e usando vozes novas sem qualquer ensaio.

O narrador: percebi, no seguir seu passeio, ter havido no caminhar do homem uma rememoração do pronunciado no passado.

Pensou. Sementes lançadas pelo aqui da terra, encapsulada em ar, chegaram até aqui.

Inquieto. Qual desejo o trouxe? Quais perguntas deixou estancadas? Com qual cara seguirá em direção ao vento?

Parece: o tempo segue apressado.

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Motivo.

As janelas estão fechadas. Pela porta lateral, que o convida à varanda, o outono a brilhar insinua-se prazeroso e o procura sob o roupão preso ao corpo, nu. O gelo em brisa invade o território virilha do homem. No quarto verde, gradeado, vê-se: preso em alturas, descabelado, engordurado, sólido. Acende a pira. Aquece o interno, enxaguando órgãos com líquido negro.

Inicia os exercícios. Quartetos para cordas, duos para violoncelo e piano, Haydn, Mozart, Beethoven, são as indicações da manhã. A luz quer entrar. Prepara-se para o banho. Observa os trecos espalhados pelos quartos. Sente, no tocar-lhes dedos, os objetos vivos. A cada sinal de medo volta o olhar a eles, e os nomeia: frutos. Vê as mãos, com leve inchaço, aguadas nos trabalhos da noite, no escuro do corpo em sono.

Limpa-se com água quente e diversos tipos de sabão.

Esfrega os cabelos com óleos. Esfrega artefatos no couro.

Estica-se. Veste panos quentes e sai para a feira. A luminosidade e a flutuação – jeito humano de andar – dão-lhe delícia. Pronuncia, em tom velado, uma exaltação. Recolhe café, salsão, sementes secas de funcho, frutos do jiloeiro e nabos nascido fora de terra. Encontra mulher uma e con57

versa. Em exibição nomeia-se herbívoro. Emite outros sons, inesperados, desesperados, provocativos, qual minúsculas surpresas.

Tomado outro café com pão, concebe ordem do dia.

Desvelar sabor. Para cumprir há centenas pedaços de fazer.

O palavrório envaidece e aí fica pobre. Mãos paradas não levarão o homem a lugar. Vivas dá ao rock progressivo. Rick Wakeman exala, em outro título extenso, Arthur e seus cavaleiros.

A escolha dos verdes e do branco é consequência do desejo. O almoço será com bifun. Separa, corta, escolhe diversos tamanhos e formas. O cd sorteado na caixa tem defeitos. Algumas das peças de Minha Loa, do Naná Vasconcelos, não podem ser ouvidas. Contrito, acende o fogo.

Ao fundo da panela de aço média menor, óleo de girassol, sementes de funcho, polpa de umebóxi, sal e, ao primeiro sinal de calor, o salsão. Giros e giros depois, um pouco mais de óleo e, um a um, em porções: talos de couve, folhas de brócolis, jiló, nabo da terra. Em água e sal, desde quando fervente em pequena ao fundo, vão as folhas de couve em tiras. Cardamomo, em pó e preces, é acrescido aos dois tachinhos. A água, em conchas poucas, é derramada por vezes sobre os legumes. Apagado, o bifun é posto junto à couve. Deixa em descanso.

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A ansiedade no homem, um tanto vem da fome. Outro do desejo de inteireza e do saber estar sobre um fio de rede sem fim, sem imagem senão inventada. Prepara a mesa, dela retirando coisas. Escolhe a tigela e o hachi. Deixa a mesa limpa e vazia, sentando-se à margem da varanda, para ser tocado por réstia de sol. Comemora o almoço. Os sabores todos ali estão. Íntegros, os vegetais e a massa são para mastigar de leve. Vichi! É bom.

Café, fumo, boina, jaqueta, cachecol, são acrescentados ao corpo já tão ocupado. Vai-se ao bosque.

Trecho.

Exaure-se, exala, expulsa, entrouxa o calor. No seguido, o diurno cavou pelas paredes e fugiu para o passado.

Lá, espia o homem, e vê-se em quadras, túneis luminosos, calçadas de pedras lavadas, verdes em cinza no chão do outono. Vai vestido coberto guardado. Dado o mote do esforço, dadas as mãos entre si e com as de outros encontrados, a dádiva deu-se ao cúmulo: em gozo e dor.

Palavras estranhas comparecem. Permanecem por átimo entre as demais grafadas. E somem. O escriba não simpatiza com elas. Noutras vezes vê nelas o reflexo de falatório seu a ser mantido em cativeiro. No mais, não se ex59

plicam de pronto. Deixam medonhas vias abertas sem indício de destino. Sofre, momentâneo, o homem. Desarma-se em assuntos propícios a desentendimentos. Vela a razão.

Dificulta-se o treino, prevê.

Do caminho, cumpre lembrar. Deu-se nome, esquecido, para um arbusto generoso. A memória está aquecida ao brando. Cada pedaço juntado aos outros e mexido, almeja produzir em si um espectro a ser visto em reflexo emanado por um lago. Assim descreve-se um psiquismo e um caldo de comer pensado, pensa o homem.

Descobriu-se herbívora. Parte de parte de raça humana, em contato com vidas e mortes e transmigrações de animais e vegetais e minerais e aéreos e vastos. E escolhe. Cada ação com mão tocando é da sorte. Os dedos anotam. São eles os que anotam. São os dedos também os arranjadores de formas de tocar as cordas, as facas, as flores e as notas.

Junta os pedaços dos vegetais difíceis de mastigar e tornar líquidos. Ferve-os longamente. Inclui shoyo. A água é aquela usada antes com sal e cardamomo para ferver a couve e hidratar o bifun. A cozinha está quente. Fumaça e vapor. Os perfumes seguem perdidos. Lembra: ali estão partes verdes do salsão, cascas do chuchu ainda guardado, tecos dos legumes usados na manhã, separados por duros.

Enquanto ferve o caldo, as tralhas do almoço são re60

feitas, ficam limpas, frescas, prontas. No enfim bebe-se o sumo, com missô diluído, deixando os verdes com um pouco da água para os vindouros. Então não se sabe o demais a fazer. Louvou-se aos senhores e senhoras todos e todas.

Comungou-se diversas vezes. Cânticos foram entoados.

Confissões fluíram formando cápsula, amniótica. Perdoou-se a todos como a si mesmo. Amém.

Capítulo. É barnabé, tido por excêntrico. Não sem dar e, com propósitos, alimento à fama. Observa-se, homem, metido em circo de tipos fantásticos. Retribuídos por função exigida pela comunidade dos homens, deixam-na no lado escuro. Dedicam-se aos assuntos seus, à luz dos astros. Deveras, não são de comportamento desviado. Seguem a norma. Os bandos existem e, entretanto, o estar cada qual em si fechado, temeroso do próximo, tomando seu quinhão, é conduta tida por própria. Em desacordo íntimo, ao desocupar-se de tais falcatruíces, busca caminho diverso. Busca.

Perguntas no dia-e-noite estão. Para nomear, discorrer ou intentar explicações, é preciso estar reto. Para estar no mundo, ondulado é o que basta. Talvez por desconfiado tenha o homem deixado de ler qualquer coisa senão fic61

ção. Sua leitura teórica foi precária. Aprendeu coisas. Falou sobre coisas aprendidas. Ensinou. Nos romancistas, em especial, encontrou ignorâncias expostas, abertas, belas.

Felicitou-se no percorrer centenas de histórias longas de inteligência, rebeldia, desamparo, encontro.

Pelas tantas encontrou serviços outros, para expansão da alegria. Encontrou parceiro e mestra de culinária.

Aprendeu coisas. Ofereceu refeições. Iniciou estudos independentes e, desde então, dedica-se à arte. Quer retornar à prática de produzir suas próprias refeições. Reflete sobre o lugar do alimento na existência sua de homem. Escolhe aproximar-se dos herbívoros e estar entre eles. Deu-lhe à telha escrever diário, gracejado em livro de cozinha.

Seguinte.

Do pão vive o homem. Seu ser todo é de alimento. As funções percebidas por abstratas e invisíveis – qual o pensamento e a fruição amorosa – carecem de nutrição tanto quanto as da ordem do tido por perecível. Seus restos são sorvidos por outros comilões do mundo. Troca.

Um caneco de missô diluído em caldo guardado de ontem, dá-lhe repouso. Escreve capítulo. Ouve Mariza Monte, em Mais, concertos de Haydn e Pat Metheny. Com o Cé62

rebro Magnético, de Hermeto Pascoal, cozinha beterrabas com salsão e sal. Quando prontas para entregar-se em janta são retiradas da água e cortadas com capricho. Deixa-se o salsão, acrescenta-se sementes de erva doce e uma raiz de lótus em fatias finas. O fogo é mantido aceso, quando come e depois. Traz calor e brumas.

Desenha. Nisto também começa, como na música.

Reencontra-se em reinícios. Seus recursos depõe. Desacredita de excessos. Acredita em necessidades. Desvencilhar uns das outras, clareando o entendimento, é dever eleito.

Desafia-se a conhecer medidas: de sal, de força de dedos em contato com instrumentos, de água e, principal, de tempo.

Saber parar, completo, é anseio, alvo.

Apaga o fogo. A raiz é beleza avermelhada, tem sabor segredo de amanhã. Nos últimos minutos alguns damascos secos foram à fervura. A noite e o dia prometido darão curso incontável às substâncias ora quentes.

Vindas.

O retorno é sonhado quando em ruas. Lá nelas, plenas de gentes, cumpre vivificar. O lar é presente, retribuição. A refeição constrói. Bela qual verbos, cedros, tulipas em varandas. O caldo deixou as pequenas fatias da raiz de lótus 63

em estado de rosa. Água e sal vão lá, com elas, os desaparecidos pedacinhos de salsão e os damascos, ao fogo. No prazo de arranjar um pito, guardar as roupas, amarrar-se um cachecol e ouvir Egberto Gismonti, apaga-se. Logo um tanto do bifun é enviado em dever de hidratação. Visto: é bonito, em rosa, branco e adamascado.

Outra volta é o sonho. Quando menino, o homem senta-se às poltronas, deita-se nas camas, caminha pelas ruas e vê-se em outras vidas, fabricadas nele mesmo. Detalhes todos acrescentam-se às visagens: cores de roupas, paredes, cabelos, olhos e lugares e coisas. Ao ofício dá nome de sonhar. E pratica no tempo livre de menino, sempre em momento de estar só. Vezes há de assustar-se com a presença do outro mundo, o fora-do-sonho. Nele as imagens viram outras e dão susto. Sonhar é ação de criar boniteza.

Chegado à casa, revê, tem medo de conseguir de novo.

Parece-lhe imprudente mudar o plano de avermelhar arroz com a poção guardada. Faz o desejo. Depois de fartar-se, percebe: conseguir é agradável e possível. As sementes de erva-doce ajeitam-se nos pequenos canais internos da raiz e, dali, emitem nota surpresa. Sabores carecem de nomes no repertório do homem. A comida trazida para fora-do-sonho é milagre.

Retornam as canções concebidas em passado. Se64

guem tocando. Parecem iguais das substâncias fundidas às outras em terras, ares, águas e fogo – o que aplaca, reúne, desconstrói. Seguem. Visitam o homem ainda menino. Nos dias aprende a misturar o visível com o concebível, a acolher o som doado e a retribuir com afago. Vem de não saber.

O novo, em fartura, desafia. Acredita em vir a ser crescido.

Amor.

Ao sol concebe. Todos poderiam estar juntos. Aberta a rua ao encontro, os moradores dali e os passantes e os outros exerceriam os beijos e as tagarelices. Liberte-se, avisariam ao incauto, procurador de amor próprio seu. É da lei, discursariam. Não mais possuirá alguém a um outro. Não mais carece o homem. Fica em saudade a saudade. A um só tempo finda a fome e a dor.

Na noite relembra. E sorri de soslaio. Disfarça o pulso, o acelerado. Sabe. Sonha na tarde. Os ares pesados e as demais tormentas, incompletas, não servem ainda a tanto. O desencontro permanece em aparência de modo possível. O sonhador, todavia, perambula e estaca. Existe. Procura com olhos seus pares. Está pronto.

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Noite verde.

Precioso, o método. O feito em início foi a Schubert para Violoncelo. Conta-se sob Sex Pistols. Olha para o que tem. Mãos, abobrinhas, couve, brócolis, jiló e gengibre, estão sobre a bancada instalada no jardinete de outono. Saiu, dos lugares de guardar os tesouros, o tema. Corta as cascas das abobrinhas, antes picadas em crescente, e deita à panela para o caldo. Destino igual terão os talos da couve e do brócolis. À água e ao fogo são levados, tocados por sal, orégano, sal de ervas, além de galhos de salsa e folhas amareladas de manjericão, recolhidos à varanda.

Pausa em pensamento. O rock penetra cava estranha à cabeceira do homem. Pelos cabelos escorre em fios. Em nascente, ao desvelo toca o serviço. Ao chamado da forma cumpre atentar com olhares e dedos, istmos. Afluem memória e ritmo, dons, e segue a função. Lembrar.

A couve é picada em fios. O brócolis é debulhado.

Do jiló recortam-se as tampas. Gengibre picado, pimenta branca moída, sal e azeite de oliva, mexidos e socados um pouquinho. Os temperos são aquecidos até sinal de perigo sobre óleo de girassol. As abobrinhas repicadas são acrescentadas e mexidas com a massala até desmanchar. Imagina-se um creme. Quando creme ficar, junta a couve e segue 67

mexendo em intenção de verde em creme. A concha menor pega água da fervura e sugere suavizar o movimento. O jiló é depositado no caldo.

Há o tempo incerto. Enquanto canta o Beto Guedes, o homem pensa inteiros: vegetais comestíveis, ferramentas, corpos, receptáculos, leitos. Cantarola trechos. Anseia.

Pensa medidas: um temor diário, duas mãos, dez dedos, dois pés, um talo, pitada. Segue. O brócolis é deitado sobre o creme verde-água-escuro. Entre as florezinhas fica o jiló já cozido. Segue no fogo, sem mexer, até que as partes se aconcheguem. No calor da panela permanece, enquanto o homem passa ao Egberto, em Sol do Meio Dia. Abrir-se ao sabor, dizendo o pronto, é o sinal de terra, anúncio de margem. Falta nada.

O caudaloso verde é

poção. Desemboca na boca, arde e encharca.

Noite do meu bem.

Estuda-se canção. Durezas e molezas devem dar caminho ao intenso e leve, o centrado. Sabe-se: quando dorme cresce. Depois de febre também cresce. Correndo cresce.

Tocar o instrumento, abraçado a ele, é a tarefa.

Cresce – ensina a canção – no abrir-se para receber o outro ser construído e vindo até você. E, junto, entregar-se 68

a ele. Prepara-se. Ainda é cedo para chegar. É ida. No ir-se indo segue o homem. Abraça pouco. Toca ainda em peso, em longe.

Aberto.

Nem a manhã, nem o fato de estar a cozinha limpa dos poucos objetos usados no jantar, fazem o abraço apropriado existir. O homem esquece suas tarefas. Desconcentra-se e vai para longe do instrumento tocado. O som resta nas ondas. Os dedos alcançam velocidade maior. Porém falta.

Decide perdoar a si e aos outros. É dia de ofício. Torna a ferver o caldo nele acrescentando água aquecida na panela do cozido, para resgatar um trecho do sabor. Uma sopa prospera, primeiro na ideia do homem. Ainda há nabos e batatas-salsa guardadas, tocadas só pelo tempo. Assim, tomadas medidas, parte.

Desaberto.

Anda o dia a premir as ideias em quadros, formas no pensamento imaginado. Desenha-se em cabeça, tronco e membros, em agitação pelas ruas. Estuda equilíbrios. In-

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corpora este e outros afazeres ao momento: o de aprender-se. De ontem rememora a limpeza. Ocorreu-lhe até deixar os utensílios de fogão separados em prato. Hábito de mãe agrega-se ao fazer do homem.

Cuida das formas e de estados de alma no raspar, desta vez mais rápido, ensaiando ritmos e direções, raízes amarelas. Corta-as em círculos e os frita em azeite aquecido com sal de ervas. Primeiro em imagem, depois com ajuda das mãos, sementes erva-doce são salteadas ali. Logo se vê mudança de estado, amaciamento. O caldo com verdes e temperos, guardado, já em fervura é acrescentado com uso de concha e peneira.

Há futuro. O tempo de cozimento será de preparação para visita à música, em concerto. Roupas há. Jeitos diversos de cobrir-se podem ser experimentados. Entra no armário, desejoso de vermelho, sai em vinho e preto. Escolhe boina de senhor, cachecol de senhora, calça de homem, sapato de moço andrógino. Reprisa, no espelho, a lição da existência do bicho sob os paramentos. Acrescenta caldo à raiz.

Milton Nascimento, Nana Caymi e Mercedes Sosa, em Sentinela, estiveram na casa. Beethoven, na Sinfonia Pastoral, conduz o amassar um pouco, dissolvendo parte das pequenas esferas amolecidas e, logo, desligar o fogo e cobrir a pequena de barro. Sabe que a sopa é para depois do passeio.

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Refastela-se com biscoitos trazidos em saco de papel. Cumpriu, até aqui, a regra de não trazer os prontos e guardados em plástico.

Medita. Ingredientes não podem ser esquecidos. Ferveu-se: talos de brócolis e couve, cascas de abobrinha e jiló.

Este retirado em outras fervuras. Foi sal, orégano, sal de ervas, manjericão e salsa frescos, além de lembrança de óleo, gengibre e erva doce que serviram ao caudaloso. Sobre o futuro, pensa movimento. Os relógios existem. Há quadras, jardins, pessoas, travessas, teatros.

Lar. O homem fala em distância à mãe. Conta-lhe estar agasalhado. Conta frio. Diz lembrança, em meio ao esticar cobertores, deixados em mosaico, no quarto. Sabe, mãe, descobri calor e frio, dentro. Capaz de expandir sou, diz à mãe. Encantado, conta à mulher. Conta ouvir Elis, Luz das Estrelas, presente de filho. E segue saltando – capaz de interromper-se – levando ao fogo um caldo ancestral. Nele – segue saltando – deixou-se na ausência do dia uma porção de cereais, misturados pela indústria. Ferveu-se antes.

Os cereais foram ao calor, num súbito. Ficaram na casa. Há beleza em toda parte, conta-se o homem. Quando em luga71

res não estamos os arantos residentes alçam-se em flores nascentes e acolhem, em tantos braços, pétalas-de-maio, inventantes de voo solo. Revigora-se a pensar pensamentos voltados à mulher filha. Terno é o encontro, o sabem. Vive na beleza, esparrama em boato, a todos. Haydn comparece, dadivoso. É o que insiste em emitir na linguagem perfeita.

Reforça com mãos. Mete-se em folguedos. Ventos, fogo e águas, em vida, dão-lhe susto e sossego. Salvou-se. Decisão de viver sozinho, pai, tomei. Vivo. Atento às tarefas da casa lírica, do ateliê dos meninos, dos encontros com os antigos e irmãos.

Está certo o homem. Não há a menor possibilidade de qualquer comunicação telepática ser interrompida. Verdade seja dita, sempre. É real estar contido em real fabricado, em intenção de reunir-se aos demais, mediante a fé e o afeto, em fé, em afeto. Depois de susto, o antes importa. Aprofunda-se a busca do a-ser-tocado. Seres contemporâneos e legendários, vizinhos e de reinos longínquos, entidades do porvir, merecemos plenos – à multidão proclama o homem.

Antes cantou.

Preciso é o risoto perfeito. A mistura de diversos, em dias diversos, acaba por ocultar sabores – leciona-se. Comida é força guardada. E o jantar entregou ao homem seus direitos. Está sólido. Os trechos percorridos pelas ervas e 72

sementes, transtornadas por águas e vapores, são no agora dentro. Dá-lhe à mente um passeio. Chove.

Avesso.

Gelo e água na brisa estão a fabricar manhã. De ontem vem o toque do mal-passar de ontem. O homem perdeu: horas, encontros, nomes e demais diversas inexistências não suas. Sobra-lhe um fio. Está suspenso. Sabe a sujeira.

Deve removê-la para longe dos sentidos. Viver é dever de manter vivo.

Nisso fala e canta e toca. Parece melhor. Há instantes os dramas mandam notícia de estarem a circular em vísceras do homem. Busca linguagem de narrar os invisíveis compartimentos ocupados, transbordados de emoção. É dia. Mesmo em havendo chuva, cheia do céu, vai ao armazém.

Antes, banha-se com vagar. Depois, abre as janelas.

Sonha ao vento. No acontecimento, meio, trocou palavras, toadas, moedas. Trouxe vagens, pinhões, brócolis, capim-limão seco, carambolas, azeite de oliva, inhame, em matéria.

Ganhou convite a concerto. Comeu obra das mãos vigorosas de cozinheira maior, servida por vigoroso homem.

Antes, escolhe a roupa, medida em calor e cinza e azul 73

e branco e preto. Depois prossegue vestido. Em meio à conversação homens e homem e mulher e meninas sorriram em vezes. Estão de acordo sobre assuntos. Noutros não tocam. Homem pronuncia. Compromete-se. Ouve baixo. Sabe que voltará a casa e lá estará o passado, o momento.

Depois fala a si do antes e do antes antigo. Aeronavega. Escolhe um pouso futuro. Trilha entre os extremos circundantes. Paredes, fronteiras, veículos, almas, estórias das fadas e dos fantasmas, percebidos. E o homem atravessante, atravessado, do infinito. Por tanto limpa. Por salvação ordena. Por sorte há o muito a fazer.

Novo princípio marca o fim, de novo. Joguetes, palavras, são mandantes. O mandatário aplica as bordas dos dedos no tocável. Transfere os troços lá para lugares. Inunda a imagem de som. Mente. Oculta. Planeia. Acrescenta panos.

Cerra algumas entradas de vento. Repousa próximo das escotilhas ainda abertas.

O passeio firma-se em anunciação. Não pode perder-se o homem se em movimento estiver. Eis a mensagem trazida por vento tardio. O calor deve ser deixado à casa.

O trecho a seguir é no mistério. Escolher praça exata para apontar a seta é o desafio. Saberá olhar? Assim parte já uma face sua do homem. Seguem-na as demais.

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Lago.

Para ser centro na construção do ir-voltar escolhe o bosque, por primeiro. O rumo desenhado em pedra segue, com precisão mesma igual da praticada em ida. Canta nas ruas, espantando o som dos carros. Ali, sob arvoredo, cuida de silenciar. Ininterrupto circunda o riacho, rio estreitado, conduto. Segue o túnel, outro arvoredo. Percorre as margens. Afasta-se tomando ruas de moradas. Recolhe-se em cantilena pelo demais do tempo, em volta.

Acolhe-se à casa. Entrega-se alegre. Paul Simon, em Graceland, é ensino de compassos. Mergulhado em outono, o noturno acende novas cores, mundanas. O trabalho do homem é passar dia de verdade e noite. As lamparinas aquecem. A comilança noturna é guardada secreta. É o por ser feito. Como outrora, em vez de saber destino, da resposta se desencontra. Com mãos encontrará o reduto da receita do porvir.

O movimento afasta o cansaço. É grande o cujo. Mora no homem e deseja fraco. Porém já há espaço para tirar o grosso e por-se em assunto de inhame. Construído pelo homem em passos e esfregações, suaves. Projeta nos objetos o estado seu. Eles o chamam, qual argila em desejo de mo-

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dulação. Se bem cortar, separar, escolher, juntar, com ajuda de aço e fogo, novas formas virão à luz. É hora. Sublime, manda o superior.

Depois do lago.

Descobre medida. O cru ocupa o lugar do cozido. Uma tigela de inhame é para um comensal. Ou dois, se calhar desejo e ensejo de dividir. Cortar é difícil. Faz-se. As folhas do brócolis são eleitas para o fundo da panela, onde sementes de mostarda e pitada de sal são aquecidas. Tigela menor com água quente, capim limão desidratado, pó de açafrão e sal está preparada. Quando o óleo parecer pronto, peneira-se a marinada e aquece primeiro os pedaços. Água pouca é tirada do caldo já formado pelo inhame. Vai à panela.

Ali tudo segue em arrumação. A colher circula, imprecisa, com propósito de reunir ao centro a base sobre a qual, depois, ajeitam-se as raízes reduzidas a pedaços assimétricos e pequenos. O caldo amarelo cobre o tudo. A tampa é deixada em repouso sobre as bordas. Resta, inclinada por força da presença do cabo da de-pau mais antiga.

A cozinha casinha está aquecida. Os pinhões estão queimando à pressão. O ensopado encorpa-se no barro. Vapores chegam à sala sem visitas, senão Sting, memorável.

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Os discos pretos desceram quase todos ao chão. Os compactos, mais jovens e perecíveis, estão próximos do entrar em sorteio. A música não se acaba. Do baú sai Zizi Possi, em trechos de amor romântico. Era uma vez preciso girar para o outro lado. Não é mais.

O inhame ao bafo de capim-limão e folhas de brócolis é precioso. Erra o homem ao deixar os talos secos na panela. Permanecem duros, qual espinhas. Para outras feitas preserva, em memória, o sabor aberto que o sumo da infusão confere ao corpo do cozido. Delícias e alegrias são o substrato de artes quaisquer. Transformações são necessárias, na consumação de rango ou canção. O ensinamento é agora. No mordiscar as madeirinhas saborosas, aprende.

Aprender é impulso de homem. O pulso é forte o bastante para impulso. O escorrer de círculos celestes sobre nós é decerto o primórdio da força. Enraizado, o inhame tem conforto a oferecer. Afogado, ele some. Vira em pedaço de gente. Volta ao dentro escuro.

Café.

Disse o moço ser o pó preto de fruto nascido em terra mineira. Abre a trabalheira do corpo, sorvido junto ao pão com melado. Manhã tem sol. O foco do céu clareia o estado.

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Aberta a casa revela-se a sujeira em detalhes de cinza, preto, marrom, branco. É preciso falar do resto. Dos legumes há, na varanda, um pacote de cascas. Na floreira há sementes. A pacoteira é guardada em pacotes maiores. A gordura é escorrida por canos de plástico e pedra. Vai aos rios e mares, misturar-se a enchentes. A merda do homem é mandada às distâncias, ao longe-dos-olho, destino.

O plano é simples. Caminhar e pensar, beber luz, comer almoço em casa sua outra, de seus. Os trapos seguirão na casa. Dever há de perceber os ritmos no andar, respirar e cantarolar. Partir. Começar. Crer. Repetir. Missões se apresentam.

Filho de mãe.

Homem nasce de mulher. Mulher alimenta o nascituro sobrevivido de incursão a palácio. Só, o feto gente, o visita na mulher, senhoria cega de região sua interna. Homem semeia em mulher. Seu desejo de fruto é invasor. Os invisíveis se encontram e se arranjam em novo animal. Seguem lutando alimento e lutando abrigo.

Na casa sua vê-se em sede e desgosto. A dor compareceu ao encontro. Busca alívio em descrição. Vistos em quadros, os dizeres deixam de doer. Ficam lá parecidos ao 79

lixo das ruas: papéis, bitucas, latas, exigências, rugidos, admoestações. Os dedos do homem apontam a dor, na parte invisível, no centro inacessível aos dedos, nas encostas.

Recorta as ideias em trechos. Quer deixar de produzir qualquer dor. Quer dizer macio e doce e leve. Quer redimir-se de dívidas. Deve: estudos de ritmo, silêncios, gentilezas, modéstia. A ver-se em espelho, em assombros, em carências, em delicadezas, deve aceitar a mulher moradora do ser, homem.

No caminho, o verde, pode o homem meditar esses e aquele, assuntos. Morte, principal, ensina. Devir é assim encerrado. Sabe-se. E nisso vai o só, o vivido, o entregue e dócil, ao fora-do-mundo, virado em d’outro-mundo. Assombra. A dor é ducto, é linha traçada em centro de pista, é linha traçada em mapa.

Afasta-se do nicho-emoção, à força de mover-se na casa, atear fogo sob o panelão, beber o líquido preto, mascar pão branco e engolir fumaça desencantada. Anoitece. Em brinquedo de sério o homem deixa entrar em si a música.

No sorteio vieram cânticos, vozes, notas. Imagina o jantar . Outro um, composto de seres em partida. Lembra: capim-limão, em infusão.

Segue com a mulher, em mente. Veste o avental e o perfume adocicado está ao lado do brócolis. Debulha. Se80

para as flores dos talos, recorta-os em dois. Árvores minúsculas e as proximidades das raízes vão para os potes, separados. As folhas e talos moles vão à panela com azeite, sal, pimenta branca moída e sementes de coentro. O nabo é cortado. Capricho é exigido. Resulta um quase bonito, quase perfeito, corte sabe-se lá. O chuchu fatiado e guardado por dias é recortado à semelhança do nabo. Os legumes vão à panela, um por vez. Cada parte, desde a primeira, é tostada.

Há pequenos estralos. Talvez as sementes, talvez as folhas, talvez os dois, avisam a intensidade do fogo. Em hora cobre-se com o sumo do capim, desta vez separado e mandado ao saco de terra.

Logo é o pronto. Sabor diverso, aprazível, é o saldo. As coisas não se misturam por completo. Em momentos, uma lembrança exata do coentro apresenta-se nas folhas cozidas. A refeição é leve, digna de homem. É sem dor. A memória traz e leva. A mãe perpassa o homem. Avançar, assim, em seus domínios, é o fazer bagunça, o tal. Felicitar-se, em serviço de escravidão, é a rebeldia, a tal.

Alegria e dor.

Bravo! É o dizer do homem. Congratula-se por escolher, em desobediência a primeiro impulso, termos opostos 81

como tema. Fala consigo. Na manhã, ao cuspir a água branca em direção ao ralo, ocorreu-lhe: dor. É hora, pensou. No ofício e nos caminhos seguiu matutando. À noite, à beira de horas mágicas, insiste em deixar o nome transitar. Dor é um nome. Mal tirado o sapato, veio alegria. Outro nome, o segundo a chegar, posto em primeiro. Dor é coisa das de memória. Repete. Repete. Repete.

Entre uma e outra ideia-faísca, vai cozinhar. Temperos desconhecidos o encaram. Pimenta síria e mahlat, mistérios do oriente distante. A alegria é fato do dia. Pedaços de brócolis, separados em talos e flores, uma porção de macarrão tricolor, o azeite e a vontade estão no presente.

Saltita.

Na panela com água para a massa põe duas pimentas e sal. Na maior, para aquecer com azeite, uma quantia de mahlat e sal e, loguinho, os talos duros. Depois de fritar, experimentando mexer a panela à canhota, junta água fervente da massa, aos poucos. As flores ficam para o momento em que o macarrão já está comestível. Com elas vão à panela mais água, desejos e tempo.

Escolher o momento de juntar massa e molho é tarefa delicada. Ciente de pequenos erros, quanto a quantidades, treme. Sente-se vigiado, apontado, acusado. É de brincadeira. É alegre encontrar o crítico, o gênio da intriga. Debate.

82

Opõe às regras a invencionice, a segunda via, o gentil e o quântico. Remexendo o prato bonito e perfumado escolhe, alegre, o vencedor. Todavia, a dor dói.

Quer desvendamento. Às costas, vai o que e às quantas? Pergunta desvenda? Água branca levando a sujeira dos dentes desvenda. Imagina-se em cama, cercado dos seus, a dizer toda a verdade. Ri o homem. Ri de si. Corre a encontrar trilha sonora para vontades últimas. Pasmo, no sorteio, vê calhar Albinoni, em Adágio. A comida macia, da noite de outono fresco, deu em sossego. É real. Brócolis é real e, se cozido, perde alegria, vira em sabor de nada.

As costas pedem movimento. Albinoni pede ouvidos.

O homem senta-se para ouvir e colorir. Rabisca em lápis.

Sobrepõe ao risco o risco. Esfrega o papel. É menino em deveres de brinquedo. Peças seguem-se no disco feito para esparramar emoções. Percebe a música. Sabe ignorância de cores. A dor se esvai no mover dos dedos. Na próxima rodada, a caixa dos discos dá romantismo barato. Repetição desvenda?

Alegria.

Direitos: ocultar-se em Piazzolla. Quando os todos, aqueles, alteram o estado de suas forças no ouvir músicas 83

outras, em ruas tomadas pelos torcedores de alguma partida, pode o homem rebelar-se. Em si: sim, pode estar. Alterado por propiciatórios eleitos e Meditango, dança os ombros.

Localiza, acima e além de, ao lado e mais além, o mundo internado e exposto ao sol. Enquanto há lá fora, nas outras casas, o jogo, e nos bares, o jogo, nas explosões, o jogo, homem julga.

Imagina-se. Faz atos. Levanta persianas, abre janelas, abre instrumentos de lida com fotos do céu. Pretende-se.

Fazer um mostrador de céus e flores, um alvo. Repetir para não esquecer. Permanecer entre seus pertences, a eles pertencendo com honra. Mover-se. Chegar, no agora, a outros cantos. Tocar no silêncio do jogo.

Estuda. Acordes fracos, dias duros explicam. Estar cercado de gritos, em dever de memoriar sussurros, aumenta defesas umas e minora umas outras. Explica-se. Tessitura de dias, escolha de retalhos quais, é assunto de homem.

Tem razão. Com ela descreve, inscreve e amostra-se. Divide-se. Esfarrapa e remenda com dedos e omoplatas. Apura, enquanto pode, os sentidos. Joga homem de bem.

Regra: acordar a cama, vesti-la em bonito ao som da Música de Sobrevivência do Egberto. Segui-la. Vestir-se mais. Olhar-se reiterado na parede de vidro. Pensar.

Na tarde, rememora o alegre a caminhar nas fendas 84

demarcadas, nas emoções do jogo. Mantém-se em grito, em contido, em périplo de silêncio. Contempla o matraqueador em mente. Disto, sabe, resulta um sumo. Inda agora desconsola-se por vaidade. Anseios o visitam. Transmigram em chá. Vai capim-limão, erva-doce, secos, pitada de tea massala, colherinha em dois movimentos, tampa e espera.

O jogo deu em festejo nas ruas. Vê, enquanto o Chico e o MPB4 mandam, do passado, o Samba de Orly.

Dor. Chora. Sabe-se lá. Gritos duros do jogo batem-lhe à testa, como tatuagem, explica a canção. Assim, súbito, o treco vira um troço. Boquiaberto, o homem percorre sua lista de instrumentos da salvação. A cozinha é abrigo. O chá é delicado. É intensa a memória dos condimentos. Sabores, formas e misturação, seus pés, apontados ao centro da terra, escoram. Dividir o tempo ajuda. Não chora. Move.

A incomodação é de reino parado. O senhor é rei e geme. Espalha-se em vassalos, travas, tomadores de pedaços do homem. Firmam-se, heróis. Armam marcas de fronteira. O menino é guardado no escuro. Sorte é o existir a fome. Lágrimas, por igual, militam. Lavam muros, arcam frestas. Há demais: vagens, carambolas, lima, pinhão e A 85

Banda. Vitória apertada, dizem homens por artérias, pulmões e ossos. Segue vivo.

Durante.

Chora e geme: afasta de mim este cálice, pai. Permite-se. Declara-se assustado e aberto. Aberto e assustado, vê-se em moveres de braços, abaixo, dançantes, livrantes, lentos. Quase! É travessura. Os líquidos e os passos estão, por força e fraqueza do homem, acontecendo no chão. Sabe, lógico que sabe. Tem razão. E está sem chinelos, aos brados em canto. Em afronta e assim mesmo. Negócio de chorar é de menino. Quem não disse mentiu.

Dado o de graça vento íntimo, altaneiro o homem toma as vagens. Aprecia uma a uma. Remove minúsculos, raspa mínimos e não faz pedaços. A carambola multiplica em estrelas e as leva a dourar no líquido vindo de girassóis.

Sementes de erva-doce nele estavam antes. Espreme uma lima. No amarelo derrama mistério: cardamomo em pó, sal, mahlat. As estrelas estufam, tossem, explodem, entregam seus líquidos. Não se cansam. Mexer com hachi, mover as pequenas para outras partes da panela e de si, é brincadeira de perigo, tanto quanto. Quando basta, sobrepõe as vagens, em imagem de cerquinha. Derrama os gostos. Deixa. Depois 86

mexe mais e mais, devagar para as mãos, alucinado para os frutos. Em momento, traz os pedaços amarelo-água-mole para repousar sobre as vagens. A água segue em busca de sumiço. O homem, reconfortado, descasca uns pinhões tirados de fervura e os mistura ao cozido de outono em flor.

Dá graças. Nem se torceu, nem endoidou, ganhou bronca pouca e tem janta.

Majestade.

A árvore, no escuro alumiado das praças e alamedas, está. Homem pensa estado dos seres e recolhe, a caminhar e respirar e crescer, um pequeno bambu. É qual sua lança.

Quixoteia e, adiante, encontra escudo antúrio expresso em folha abandonada, pedindo vaga em lixo. Recolhe. Plano de arranjo, lirismo, com vaso beberrão, de barro. Vê, no além, o encontro. Uma folha mais sobe.

Chega. Junta os tesouros. Escolhe lugar de obra humana. Nomeia: de não jogar fora. Revê, recolhidos os olhos, o caminho do arruaceiro. Enxerga e pensa, um ou outro.

Tenta estudar o ritmo da andança e inventar maneira de guardar palavras. Quisera levar consigo sobra do fuxico de moradores de jardins. Tocado, contorna um trecho. Carre-

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ga-se em sapatos a procura de chão e chapéu em rumo de céu.

Depois dedilha e canta baixo. Crê em todas as coisas e crê ser possível viver em gozo e desdita. Seu rimar é desenho de galheira vista em parte de paineira. A rainha da praça lança seus macios no verde macio, molhado, gramado. O homem pisa ali, na pedra, e decide largar mão de temer deuses. Morrer-se vai cada um de todos. Surgem ruelas, convite de rumo, memória de sabor da janta feita invisível.

Pureza.

Palavra antiga, perdida em memória, soprou-se ao homem em caminho de almoço. Congratulou-se. Andar presenteia o andante. Há o que precisa ser dito. Há o que se carece dizer. Diferir palavra que não se entende da que diz, é preciso. Escrever frases sem nenhum sentido acontece. Pode-se crer: em futuro, o percebê-las está. Pode-se: dar-lhes, desde os sentidos, um sentido qualquer. Onde a pureza?

Posto enigma, vai a banho. Confere diversos espelhos.

Em trajes decide lugar da verdade. É ali, no macio e tranquilo e cabeludo e calvo, o lugar onde mora o olho. Lava-se com gosto. Esquece-se de ser uns segundos. O gosto abai89

xa. Aí lembra. Toca o gosto acima. Lampeja uma comida de homem. Seca à mão e à máquina. Veste roupa interior, em branco e preto. Quase desiste. Quer pinhões como estejam.

Um quase-outro entende. Não é puro comer sem preparar surpresa. Bota fogo à panela com os pinhões refervidos. Separa um pouco do maço de coentro. Talos são, em maioria, picadinhos. Uns esbeltos convencem o homem da necessidade de alguma solenidade. Ficam maiores. Galhinhos folhudos, um com cabo, são a outra parte. Vão ao azeite aquecido, na ordem: talos, um tiquinho de casca de lima recordadíssimo, galhos, pinhões. É quando se insinua a lima. Por furadinha, talvez, reclama presença em comida de homem. Foi-se com espalhafato e confusão. Emocionado homem, estabanado fica.

Feito, deu calma. O buquê deitou-se à panela. A tampa, à direita, o controle do fogo, à esquerda, em uníssono, encerram pinhão ao coentro e lima.

Comer é máximo. Na tigelinha cambojana, presente de mestra, cabe tudo. Sorve o caldinho. Prazer é conhecer.

Coentro é de comer macio. Pinhão suaviza ao tempo. Envaidece o homem. Sugere o Caicó. O canto rouco e trêmulo flui e vai ao ar no espaço. O homem está em transe. Produz, come, excreta. Concebe, toca, sopra. Titubeia, divaga, avoa.

Vira tudo em palavra, em jogo de mostra-oculta.

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Peões, cavalheiros e bailarinos chegam a tabuleiro. Ganha ao dançar. Gargalhar faz parar em casa. Palmas liberam.

Peões andam de duas em duas. Cavalheiros nas riscas. Bailarinos saltam. Todos podem voar quando o quiserem os dados. Dá sempre homem no placar. Tem razão. Perdoa-se.

Joga em si.

Teme pouco agora. Teme: desencontrar-se da pureza, perder-se, largar do gosto, do cheiro, da luz e do contato.

Quando move os dedos fica de bem. Renova votos de viver tranquilo em tempo de guerra. Dor e alegria resplandecem, em formas, no mundo finito do homem. Desenha utopia.

Lá faz com mãos uma concha. Nela derrama poção única, feita de coisa só. Da tal sai tudo do que se carece em mundo sonhado.

Dissolução.

Lágrima dilui, dissipa. Costume toma lugar de costume. O homem – em razão – consulta as lixeiras encontradas no caminho. Invoca solução. Se vem o choro, lamento sem motivo conhecido, em sorte o revela e deixa escorrer em tapetes. Mancha ali é signo de limpeza, de se ter deixado uma dor guardada em passado. Todavia, ao cruzar faixa em homenzinho verde, supõe existir possibilidade maior. Quer 91

viajar a destino.

Segue-se a tarde em ofício e falas. Homens trombam com homens. Risco grande – pensa – é o de perder.

Memória, órgão, voz, vista e mais são resultado de furto.

Pensamento, fórmula, receita e mais são também. O potentado, arrisca, está na prontidão de vir reclamar o que é seu.

Desconfia disso tudo o homem. Vê os sinais. Seus olhos reclamam. O coração nem se ouve. Desvela-se no corpo da tragédia. Abre o tema da dor na mulher. Ouve notícias de rasgos no ventre e sangueiras. Desentende. Homem sangra em doença e corte. Parece contente. Apronta-se para deixar largado o problema do espírito e come pinhões, qual bruto.

Em noite de ir às ruas insiste em futricar substâncias. Inicia um purê de cará. Descasca-se. Vai mal de olhos e mãos por agora. Fere a raiz. Porém conclui em rodelas levadas ao vapor, salpicadas com sal de ervas e açafrão. Passou-lhe dever de chegar ao doce. Guardou em futuro como outros. Percebe. Para seguir crê em destino. A tais dias-lugares dedica os gestos, em oferenda, presentes. Dramas de ideias, pensares, forças medidas, são matéria posta em buraco para compostagem. Serão raiz de outro homem? Será outro ciente de um? Toma-se, em foco, por desconhecido. Um eu-invento

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vai escapando pelos dedos do homem. Apaga-se o fogo. A raiz, antes sólida, já é massa.

Verdade.

Homem inventa viver. Insiste em espalhar-se em signos. Deixa rastros. Move-se entre lugares, mesmo em dor.

Modula-se. Expressa-se em palcos. Tem tentáculos. Deixa-se tomar por aberração. Conta-se. Ouve-se em toda parte.

Contenta-se no existir. É coisa humana. Encontra-se entre faca e marmelo.

Homem põe avental. Reverencia vegetais, secos e a secar, em altar. Esculpe. Arranja-se. É verso. Vem à cabeça.

Está em monte, em abrigo familiar. Está em pensamento.

Palpita em coração. Não para. Pode estar em ideia cantada em canção. Está nas substâncias. Vive em colheita. Dói no pescoço, às vezes. Nos encaixes do bicho manifesta-se. Juntas contém. Move-se.

Homem toma o marmelo. É necessário fitar e esfregar na entrada do olfato. Corta-se ao meio criando um duplo marmelo. Há sementes. Pontas de faca podem remover sementes. Pontas de dedos podem plantar. A casca fica onde sempre esteve. De corte resultam fragmentos de formas e

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de disformes. É breve, em humana medição do tempo.

Homem usa panela. Há cará. Vem do ontem. Vai à fervura. Um socador pode ser usado. Colher de pau serve. Panelas podem ser colocadas ao fogo, lado a lado. Sobre o óleo de girassol há louro, cravo e sal. O marmelo é posto sobre massala aquecida. Infusão de erva-doce resta ao lado, em repouso. Mexer é preciso em todas as partes. As cascas dão sinais. O chá suaviza.

Homem abre panela. A raiz tingida de açafrão, salpicada de ervas, aguada em calor, vira em polenta de cará.

A fruta condimentada reside em caldo. Come-se. Combinações são possíveis. Comer uma coisa de cada vez é bom.

Misturar é bom também. Pasta de cará ao marmelo existe.

Saber existe mesmo sem palavra. Sabor é afrodisíaco.

Mentira.

Homem inventa viagem. Está em todos os jornais.

Enlouquece. Descreve-se em códigos. Arranca cabelos. Vive em segredos. Circula pela casa. Tem pernas curtas. Encolhe-se para não dar pinta. Quer ser de verdade. Nunca dá certo. Não funciona. É sofrimento. Tem saída. Está na moda.

Apresenta-se em vários tamanhos.

Homem intenta ver. Todas as coisas parecem iguais.

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Passa noite e passa dia, segue com olhos abertos. É coisa de cego. Tem meia cegueira. Difícil é chegar aos vegetais.

Insiste em disfarce. Pensamento é repetição. Até os mestres dizem. Quase se acaba quando as unhas cavocam a terra.

Homem interior vivido. Também é verdade. Nunca se saberá quando acaba. Vai à deriva. Tem tarefa de aumentar tempo e espaço. Usa restos das substâncias. Invade os sacos de terra. Enche vasos. Não sabe se haverá desvendamento.

Envolve-se em transplantações. Está na música, no real da música, no irreal da música. Um dia nasce.

Chega.

Não tarda o sol a dizer. O repetir foi já o bastante. De parágrafos medidos, de sinais a interromperem o trânsito, de não ir, o homem está cansado. Nesta vida não cabe mais.

Silenciar é preciso. Silencia. Entrega. Está pousado em fronteira. Há os demais reinos e impérios. Os pratos estão por lavar. Move.

Não duvida. Milagre vê em coisas. Renova arranjos.

Contempla. Muitas partes estão limpas. Para de falar. Segue limpando. Lembra trecho de canção. Purificar o canto é preciso. No canto mora o desejo de purificar o canto. Avermelha uma roupa. Aceita o convite. O canto, por igual, é puro.

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Esta é hora de transporte.

Não fica de mãos abanando. Não cruza os pés. Não teme a dor. Deixa a dor passar. Pensa um pouco no pito.

Ordena as ordens. Considera pentear a manta sobre a cama.

Considera a presença de mãe e pai e pai e mãe. No fazer está tudo. Cada sentença pode ser compreendida diretamente.

Em outra chave, pode-se juntá-las, de per si, ao título.

Códigos e decifrações começam e findam. Não será difícil. Meio marmelo esteve dormindo. Seu parceiro foi-se ontem. Toma postura de homem. Faz um café. Qual mulher, come um doce. Sua palavra importa. O doce tem jeito de fazer. Ao vapor vai o marmelo. À caneca o sumo de limas.

Sobre o centro, buraco de semente do fruto, escorre melado de cana. Depois chove poeira de noz moscada. Na caneca derrama o cardamomo.

Rega o fruto com o suco. Rega as plantas com a água.

Rega o homem, com café. O regente é o invisível. Numa hora ferve. Tem coragem. Muda de panela. Derrama em novo lugar o líquido fervente. Deita o marmelo. Deixa o calor voltar. Já tem calda. Os trapos e polpas da lima devem ser mencionados. É preciso mais e mais melado.

Não importa quantas pausas são necessárias. Para quieto. Teme perder-se em memória. Não esquece o doce.

Leva o fruto a pote. Escolhe abrigo de seu tamanho. Refaz 96

os arranjos com o fogo. Põe no vapor o fruto já em lugar de servir. Derrama o rescaldo. É importante procurar o centro.

Faz com capricho. Deixa para o calor o trabalho de força.

Está em anoitecimento. Presta os louvores. Recolhe-se mesmo em vigília. Canta com alegria. Não precisa esforço. Entoa reverência e prece. Dá de seu ar o seu tanto. O ar entrega ar e ar. Não teme os temores. Há sendas, seres e espaços. Vai e vai e não vai e vai não e vai. As divisões são matéria de estudo. Se em tremor, se em desafinação, seja assim. A lição é grande. O capaz aprende. Descobre aos pedaços.

Contenda.

Em visitação, homem prepara banana pão, carambola, mixirica, cravo, erva doce, angélica e mel, em formas e tempos. É em casa de encanto. Moram lá umas mulheres, cachorra e gato, em fazimento de plantação, cozinhação e artes outras. Homem leva o doce de marmelo. Fabrica, em companhia. Acontece na beleza.

Falam, enquanto, de ousadias e profundezas. Comilança, miséria, beatitude, beleza, espíritos e vários, são assuntos em trato. Tomadas de tento e expressões de desejo de criar mundo, em ideias pronunciadas ou caladas, têm 97

curso. São camaradas. Nem discordam. Vão somando, em admirações, os fôlegos de cada um.

Ao centro, pronuncia-se o doce. A banana é aberta. A faca percorre um dos fios, marcas de ângulos desmedidos.

Os frutos brancos repousam em suas barcas cascas, sobre água ainda fria. Na xícara, em lindeza, infusão de erva-doce, angélica e mel, junto ao sumo de mixirica. Sua polpa é separada da casca e deitada ao lado das bananas. As carambolas, estrelas, fazem bandeiras, telha, mirante. Flutuam sobre os barquinhos, trazendo em seu centro, fincado, um cravo. O fogo age e o homem rega e rega e rega, descansa, deixa com tampa, rega, rega, tampa, rega. Ao sinal – perfumes – inicia o repouso da poção banana pão estrelada, constelada.

Comemora-se, depois, nomeando bom e frugal.

Digamos, diz o homem, digamos ao que viemos. Chegamos já. Há rebelião em tramas, arranjos musicais, casas de vidro, convívio no modo do afeto e atos de muitos. Há nós e nós. Nada seja dito senão o verdadeiro ou em fé no verdadeiro. Segue o homem no ditar, com apreço, nomes de heróis. Há inspiração, conhecimento e medos. Sobre estes, no que lhes cabe, agem as mãos. Cuidam para torná-los defensores. Cuidam para liberá-los, um a um, da condição de serviçais de cárcere. Não desejamos, não mais, conhecer inimigos. Antes, buscamos pares, ímpares, fibrosos todos, 98

para fazer legião de caminhadores.

No interno, homem vai em lutas. O estar junto, reunido, parte, é das difíceis. No visível, brinca o bonito. Aclara aos convivas seu estado. Pede-lhes direito de canto. Concedido, o violão faz aparição. Dialogam seus trechos. Costas, ares, dedos, unhas, canais internos, vêm à tona. Dos embates resultam evocações. A música conduz, ao rancho, um estado de afago. Isto no sentir do homem.

No dizer das mulheres ecoaram afagos também. Falemos elas, inspira o homem. Amantes são. Descobrem-se cozinheiras, pensadoras, musas. Cruzam-se, enlaçam-se, percorrem-se. Seu jardim habita um lago. Frondoso, veloz, qual riacho, impera e expressa em verde e cores. Dá de comer, de cheirar, de adestrar, de servir, tudo ele terreiro-em-lago dá. Em habitantes é grande. Homem reverencia. Ainda em amanhã futuro as cores do encontro vivem. Encontra-se em prece. Tem esquecimentos. Cai em levezas. Narra ambíguo. Vai apagar por algum tempo.

Paz. Primeiro de tudo precisa aceitar. Em horas o sangue carece de ânimo. Pede alento a seres próximos. E eles dão, em alimento, a seiva sua para juntar à do homem. Viver é 99

no um, no tudo, no sempre. Se o fim parece existir, deve de existir, deve de ser necessário.

Dizem ser certa a guerra. Nela, dizem, recortam-se as figuras para os álbuns usados no ensino. Importa encher a coleção escolhida. Completos, plenos, ocupados, os retratados vivem nas honras. Servem de guia. Servem para saber quem é o outro.

Ao homem importa manter-se ao longe, ao largo, ao fluido. Travas, viseiras e ferraduras no homem estantes, são seu dever de limpeza. Cumpre-lhe dar cabo de vícios e mazelas. Uns e outras são de enterrar, em tarefa de dar força ao sangue e ao solo.

Separa – na demora – as cascas dos grãos-de-bico. É com pontas de dedos. Separa das cenouras os galhos e, nestes, separa talos e folhas. Na água vão ao fogo as tais folhas, outras de capelinha e uma roxa de nome esquecido, com sal, gersal e pitada de pimenta calabresa.

Em panela de barro, os grãos secos são tostados. Com o tempo acrescenta-se sal, sementes de mostarda, mahlat, folhas de coentro e uma poção preparada para falafel, com coentro, pimenta malagueta, pimenta síria, cravo e mahlat.

Coberto com o caldo, recebe óleo de gergelim. É deixado a perfumar, viril, a casa do homem. Abre lugar de aventuras. Enquanto ferve e descansa, a comida oferta alegria 100

e ar. O triste é forte. Um passo, segundo, é perder. Recuar, reservar-se, renunciar, entregar aos mercados o que a eles pertencem. Deixar por perto instrumentos de uso próprio, poucos. Por-se em obra, no dia, na noite e no sonho. A lista segue. O perfume do cozido, encanta o canto.

O saber da comida é o sabor. Agasalha, no dentro, em espírito. Os grãos, a água, os dedos, o aço e os vegetais, transmigram. Dadivosas, as substâncias instigam o homem a seguir em direção a sombras e iluminações. A lua cresce e vai alta.

Pito.

Por sorteio, vem à baila The Pink Floyd’s Dark Side of the Moon. Insinua-se. Das caixinhas saem os concentrados de fumar. Homem, em avental, programa-se para noite de arroz. Aquece o caldo reservado. Folhas de cenoura, capelinha, sem nome roxa, sal, gersal e pimenta calabresa lá vão ao calor, quando os moços cantam. A louça de ontem, a cama desfeita, o pão ainda guardado na bolsa, encaram o homem e o convidam para temporada em movimento.

Fuma. Faz. Na próxima onda, a pia limpa, as panelas limpas, o homem, dançante em congratulações por façanha, dá lero 101

à função. Pica talinhos de cenoura e nabo. Refoga no azeite com sal de ervas. Na massala, frita o arroz. Derrama o caldo, aumentado de capim limão. Sobre o todo instala um nabo, de cabeça para baixo, com folhas, membros, em cúpula. No centro uma flor, capelinha. Benze com pitada de açúcar, cristal dourado.

Arruma os trajes. Separa o certo do errado, o limpo do sujo, estica, dobra, guarda. Veste a cama e pensa: é tudo verdade. Leitor desatento duvida. Nada se pode provar. É regra. A fé resta estendida em solo de caminho. As escolhas, trilhas, são abertas em direções. Leitor retruca. Quer clareza de medidas. Parece tudo a olho. Espanta.

Sabe, leitor caprichoso, tudo é a dedos. Soldadinho, bailarino, enrugado e os outros, em diminuta, sustenida, natural e desconhecidas tocam. Pode-se vê-los, renomeados, grudados a palmas, dorsos, braços, regendo a função.

Pode acreditar. Os ditos brotam na cabeça. As ervas, flores, frutos, raízes e mistérios chegam à casa. São levadas para dentro do homem, pendurados nas paredes, largados em caixas e sacos. Quintilhões de simultâneos – atos, corpos, modos – envolvem-se no acontecimento. Não é preciso entender, sequer dezenas. Basta o seguir, atento, em busca de despertar. Tornar-se outro homem, mesmo, é dever em destino.

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O pito ensina. Dá em vertigem, dia um ou dia outro.

Em caso, come, espalha flores pela casa, faxina, canta. Escuta. Aprende sobre ramas de cenoura. Servem a caldo. No risoto, arrisca fazer bagaço. Folha de nabo é macio. Arroz forte, em corpo, vibra. Não sabido fica, no eterno.

Elogio Herbívoras habitam planeta. Entre outros, entre pedras e mares, a clamar por aço e plástico, paz, poder, sossego. Diz-se: noutras eras, a fraqueza diante da carne levou dinossauros. Dá de ombros o homem. Os gemidos dos ameaçados assustam. É isto. Trocar os bichos grandes, por invisíveis moradores dos vegetais, diminui o vigor do medo.

Além, o homem sabe destinos seus de plantador e adubo.

Homenageia a justiça. Honra os fracos. A mente estampa, faz ver. Vegetal é dádiva. Fenece em graça. Dá-se, cor e perfume, em mistério de casca e raiz ou em escracho de fruto e folha e flor e galho.

O homem toma o espinafre macio, o coentro firme, os grãos sem a fibra envolvente, bicos partidos em dois.

Pica as folhas e os talos, no seu melhor menor. Derrama, em descuido, óleo em abundância. Girassóis estão, pois, presentes. Vêm por máquinas, colheitas, memórias. Sem 104

retorno possível, o caldo começa com coentro, segue com grão, enche com espinafre. Pedem passagem pimenta-síria e malaguetinha. Tudo ao fogo, com sal, em dever de fusão.

O homem visita seus entendimentos. Relembra suas falas.

Recolhe as roupas espalhadas pelo quarto. Volta ao cozido, mexe e louva.

Sobre a verdade pouco sabe e muito diz. É homem.

Dá-se aos esforços do costume. Fraqueja em propósitos. Repete desvios. Toma atalhos que, ao fim, aumentam lonjura de caminho. Duvida, leitor, duvida. Todavia, desconfia de possíveis. Quando desliga o fogo, deixando ao calor da panela o serviço de por pronta a ceia, o fazedor repousa. Está feito. Recebe graças a ilusão, a dádiva inventada, o tempo.

Dos sabores do encontro vindouro, fala um perfume sem nome.

A casa, musicada por Carlos Santana, é real. O grão-de-bico em espinafre e coentro é macio. Com ele em si o homem real canta e toca. Pergunta-se. A resposta é o afazer.

Nele o humano manifesta. Em comida e canção consagra.

Contempla o pouco conhecido. Quer saber onde dói. Quer discernir obrigação de vontade. O conflito é íntimo e falso.

Os senhores e escravos, os vícios e viciados, os comedores e as comidas, não se separam. Só fazem juntar-se em palácios, becos, mesmos e balaios.

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À mão.

Trata-se de tratado acerca dos tratos a serem no mundo feitos e cumpridos. Menção à comida, obrigatória, em primeiro. A ocupação do espaço. As cores e seus nomes.

Frases sem verbo. Três delas e mais esta. Parar.

A mensagem é difusa em substâncias, instrumentos, mãos e, assim, listando ao infinito e além. Métodos importam. Não falar pessoa é um limite, qual uma panela, uma varanda ou um vaso. Em poucos movimentos pode-se estar em hecatombe.

Coentro é picado e espinafre reduzido a pedaços, aumentado em nomes, galhos e flores. Quinua lavada em peneira descansam enquanto o coentro é tostado com azeite e sal, primeiro, depois com louro também. No quente cai a quinua e, depois, o espinafre. Um tanto de água, um outro de azeite, salpicando ao mesmo tempo. Meter dedos é bom.

Usar hashi para mexer os refogados refina a percepção e o contato.

Num átimo vira porção exata, alegre. Tem memória de vida vegetal antiga, em tempo de raízes no chão. Indica serviço de jardinagem. Os seres presos à terra são movidos pelas forças dos outros, moventes. Abstratos, construtos, os reinos tocam-se. O plástico moldado, retirado de profunde106

zas, recebe terra. A terra recebe o desejo de flor. Flor vem.

Ternura nasce. Mostra um lado. Revela muitos.

Toada à noite é de tons vários. Espécimes, madeira e aço, plásticos, formas, buracos e traços formam o violão. A voz é movimento de tomada de ar. Juntos, os elementos, invadem espaço. O resultado é invisível, é o invisível, é som.

Malas com pertences, com as dádivas, está pronta.

Nela muitos, versos, livro de preces e talhares de pau para presentear aos moços do monte.

Voo. Terra sobrevoada. Muitos reunidos às margens do céu.

As máquinas podem transtornar os tempos, os corpos.

Chega-se. Corpos agarrados, reunidos sob pressão intensa, mesmo eles, tendo mascado chocolate, tendo sido tratados qual senhores, chegam. Debruçam-se uns sobre outros. Arrastam-se para novo lugar. As cidades estão postas para os jogos. Os valentes deste tempo suportam. Treme o normal. Pausas não há. Mundo moinho de poeta pode ser nome do real. Árvores estão no real. Quais olhares são os certos? Quais falas são apropriadas para fundar uma interpretação justa?

A comida é pouca e desviada. Refeições das ruas da 107

metrópole: café e bolo, em séries de semelhantes. A ocultação da pessoa, do particular, é um resultado. O texto, vez por outra, esvazia, perde o ar. Sem o sujeito, sem os nomes e os pronomes a história escorre desgovernada. Bate-se em paredes. Os sons as ficam em um solo semelhante ao sem fim. A solidão em pântano de estradas, em pântano antigo, seco, é vivida. Cada parte expressa no vácuo, espaço aberto à beira da próxima parte. As coisas carecem de descrição. O desejo de dizer é uma fome. Todos os dias há gênese. O fantástico é moeda rodopiando, à procura de certeza quanto à correção da face. Só no tombar-se ela escolhe e mostra-se.

Batatas e baroas cozidas longamente com acréscimo de açafrão, da metade para a frente. Os verdes quase perdidos são classificados. Dedos trabalham, sob auspício de olhos, quando não no invisível. Um relato sobre mutação é o que se apresentam. Verdes tornam-se em pretos e em lama preta; verdes persistem em memória da higidez do estar fincado ao próprio pé. Em pinça n’água, com ajuda de peneiras, mãos recortam, diminuem a pedaços, pimentão, talos de salsão, cebolinha, uma prima da acelga. Lentilhas lavadas estão por perto. Torra-se o gergelim branco com sal e pimenta rosa. Refoga-se os verdes menores, depois a lentilha e, por fim, a prima da acelga. Cobre-se com um caldo da fervura de restos de verdes e água do cozimento das 108

batatas. No liquidificador, as batatas com sal e azeite, viram em caldo dourado. As lentilhas, servidas ainda inteiras, tudo junto, criam janta forte, refeição do dia.

Sujeitos moram, operam máquinas, transferem seres de estado, fabricam. E, no enquanto, pensam.

Falas.

O ensino é de palavra e de gesto. A costura segue existindo. Máquinas não fazem. Mãos e olhos são ainda o substrato. Roupas são imagens. Comida é imagem.

As beterrabas são cozidas na água e sal. Dão-se em doce quando sua calda forte é usada para o preparo de arroz – o que vai ao fogo com uma cenoura ralada, folha de louro e sal. Bardana é cortada em rodelas e posta em cozimento prévio.

Em panela larga e rasa frita-se gengibre, pimenta e cominho. Vagens, espinafres e a barbana são mexidos na massala pelo tempo de costume. A água do cozimento da raiz serve para cozinhar até que as vagens ficam a ponto.

Tempo de prece, de pensamento voltado ao bem estar dos comensais. Deseja-se vigor. O alimento e o movimento somam-se no manter a vida em curso, em corpos.

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Domingo de branco.

Está no monte o acontecer. Costureiras e costureiros, mestres e visitantes movimentam-se em meio à beleza. É nas laranjeiras o existir dos atos. Cortar e juntar, pedaços e pedaços, para o serviço de tirar coisas do invisível. Há alimento. Memória é instrumento de usar muito.

A comida do almoço dá em tons laranja, verde e arroz manchado. O arroz é cozido com sal, água e suco de laranjas.

Cenouras e batatas são fervidas com açafrão e sal, primeiro.

Depois um tanto de curry, suco de maracujá, pimenta do reino e um pouco de farinha são misturados aos legumes.

Abóbora d’água refogada com cebola roxa, sal, pimenta calabresa e salsa desidratada, completa a refeição.

Uma vez foi dito: escreve, senão a gente esquece. Outra vez: escreve uma hora por dia. Nesta vez, no monte, as palavras existem. Seguem o curso, o trilho, o trecho. Afloram no jantar com arroz com sal e manteiga. E no feijão temperado àquela moda do alho, pimenta-do-reino, sal e azeite. As palavras são das memórias. Nos pinhões, com pimentões amarelos, ervas diversas, tomates, sal, vinagre e, no fim, misturados com creme de leite, moram histórias a serem ditas.

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Lava-se tudo, deixando uns restinhos bem conservados para o amanhã.

Honra.

Homem visita monte. Residência de mocidade o recebe. Costura-se, no contínuo dia e noite. Ensinam ali uns aos outros, muitos, coisas várias. Há música e risos, conversações fantásticas, dor humana, trânsito entre planos e a transcrição do conhecimento em objetos. Chapéus, roupas, canções, alterações da imagem dos corpos, estudos de geometria, fofocas, deixam de inexistir em feitio veloz de aparições. Em meio a frondosas e montanhas vive-se.

Em retorno à sua torre, vê-se novo o homem. A estada deu em implosão de afeto. Rememora o estado cozinheiro, vívido, no lá. Preparar alimento para o nutrir de moços e moças e mestres, acontece no monte. Sabe-se dizer nutrição e contar necessidade de atos para o seu acontecimento.

Praticar é assunto de urgência. Reduzir o contato com substâncias umas, escolhendo outras, é direito e obrigação a ser entregue, em elegância de forma e fundo, aos protetores.

Difícil é. Difícil ser. Generosidade pratica-se, em primeiro, dando gentilezas a si.

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O enigma é segredo. É um dito do homem. Quando em outra torre, próxima ao monte, conversa com pensadora.

Mulher em equilíbrio, de alegre estado, dá-lhe contorno em fundo preto. Abre-lhe portas de percepção e pede-lhe história em fala. Feito. Os tratos alegres, por suavidade e força, dão aos encontrados um centro de partida. Conhecem-se.

Tocam-se. Tocam nos pontos dos contos seus do viver. Inventam-se o homem e a mulher, no saber do mito de ser.

No relembramento insiste o homem. A comida o conduz. Enquanto ensaia o primeiro cozido de nabos, cenoura e quinua, quer dizer do arroz – com sal e uma colherinha de manteiga – e feijão – temperado com alho, pimenta do reino, sal e louro – acompanhado do pinhão – refogado com pimentão amarelo, cebola roxa, sal, salsa e creme de leite.

Feito para servir aos artistas, o jantar paranaense, alimenta emoção em memória.

Homem revê, em sentimento, umas infâncias. Ilumina o passado próprio, em meio de si. Afluem imagens de outros vistos em encontros. Vê-se, qual câmera, qual espectador, defrontado com construção imaginária suposta.

Quando no monte, o manuseio é obrigação. Chega-se a ele com mãos. Descascam as mãos as batatas e cenouras, de manso, raspandinho. Mergulhadas e cozidas com açafrão e sal. Depois massa de curry, com colherada de farinha, sumo 113

de maracujá e tantinho de água são misturados e cozidos até dar-se o cremoso.

A busca momentânea, em cada quando, é por contador do perfeito. O mundo é direito, as perfeições resultam incontáveis e contáveis. O desejo é saber. Outro, é não esquecer desejo. Louvores às mãos capazes presta-se. Tenham elas para si ambicionado um triunfo, deseja-se. Perde-se o homem, no contar. Abate-se em noite de tarefa heroica.

Disfarçado, ouve mantras e canta canção amorosa. Deve encontrar-se. Isto não para.

Entre os chamados seus vive o homem. Deve-lhes tributo, no corriqueiro. Comuns são os moços, filhos de homem. Comuns são os velhos, pais de homem. Comuns são tais homens e mulheres, viventes em família, em real.

Membros, olhos, pernas, manchas, unhas, bundas e cantos, entre outras, estas coisas, estão reunidos na comunidade do homem. Cada parte, cada qual em suas todas partes, projeta-se em emoções na direção de cada outro. É intenso. Em tribo de nomes compartilham saberes e ignorâncias.

O homem não é capaz de retornar ao estado antigo do homem. Os encontros no monte, o enlace com filhos, convidam a estado novo. Rebelde, revoltoso, sério, qualificado assim, segue no almejar livração. Desencontrado de alegria, prepara cozidos singelos. O nabo e a cenoura refogados no 114

óleo de girassol e sal, acrescidos de quinua em flocos. Em outro, a mesma semente tratada engrossa o refogado de talos de espinafre e abobrinhas, no óleo, sal, sal de ervas e sementes de coentro. Tem fome.

Deve. Nos dias e noites seus engole fumaça. Teme entregar-se ao ar. Pendura-se nas portas, procura com o lábio os joelhos, quer apagar. Dores instruem o homem. Indicam carência ou excesso, disto ou daquilo. Acertar medidas, encontrar lugar de conforto para os ossos e músculos, afinar o canto, livrar-se de venenos e mais, são deveres de toda hora. Sabe. Sente-se em jornada, com os seus, em caminho de limpeza para produzir limpos. A criação de vida dentro da vida, antes de morte, é a labuta.

E ar.

Chega a casa e acende o pito. Conversa com os seres, agora animados, moradores da casa. Enrola outro, com um tabaco, antes guardado. A sensação é um ruim. Livra-se do resto no saco de compostagem. Lava a boca e alegra-se.

Veste-se e cobre a cabeça. Apresenta-se ao espelho. Está lá em preto, musgo, laranja, azul, gris, verde, com lentes em aro, com seus traços, suas linhas, seus olhos, seu dentro íntimo. Há urgência de comida.

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Nada pode restar sem uso certo. Um tanto de alho, cebola e salsa desidratados, deixadas desde o jeito antigo, vão com azeite à panela e com água e sal em outra. Esquenta-se tudo antes de deitar as abobrinhas cortadas em pequenos na primeira. O bifun chega à água fervente e já sem fogo.

Passados momentos de atenção à presença das substâncias no homem e da substância homem, mistura as duas partes e acrescenta um pouco de quinua em flocos.

No descanso do cozidilho, decide-se por mais um dos últimos embrulhados pela indústria. Fuma. Lança os restos misturados ao seu ar em direção ao ar. Janta sentado à beira da janela. Percebe a comida forte, diversa, de massa e tempero abrasivo. Acende o segundo. Percebe a fumaça percorrendo o sangue vermelho. Sabe, o próximo, é o dito último destes. Ritualiza, conta o conto em quando acontecendo.

Homem deseja mergulho em mar de ar.

Sabe-se, no ainda, de poder pouco, por novo, por outro. Segue, em trocas de roupas e ares, para o andar. Segue por ruas em busca de coisas que faltam. Segue, mesmo sabendo faltar um nada. Segue em retorno. Carrega pacote de tabaco novo. Enche com ele o bolso, o vácuo, o antes espaço. Deposita na casa. Retira as roupas. Acende o pito. Deixa-se levar pelo desenho visto ao espelho.

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Honrar Vésperas correm. Julho vai morno. Inverno vai fresco.

Homem recolhido é pensante. Defronta-se consigo a tragar.

Percebe em si veias traçadas a tabaco. Revolve-se no serviço de inventar-se novo e desconhecido. Sabe ser parte. Dá graças por tudo o que ao homem foi contado. Quer brincar-se.

Vai à cozinha. Acende a lamparina. Abre o rito no lavar os instrumentos. Logo é momento de abrir o alforge.

Inhame, nabo, chuchu, vagem, cenoura, lima, carambola e gersal acomodam-se na casa. A raiz de casca escura e turva é de descascar e cortar em fatias, na longitude. A carambola, em estrelas da temporada, vão ao azeite com sal e pimenta rosa. O inhame, depois, é refogado ali, ligeiro.

Um potinho com água, açafrão e páprica picante cobre os tostados. O homem contentado permite-se mais uns tragos.

Revira-se pelos aposentos. Afazeres salvam. O tabaco impulsiona atos invisíveis no interno do homem. Seus territórios são tomados. A figura move-se. O fundo move-se. Na comida pronta, em repouso, mais e mais substâncias perfilam-se na espera de fundir-se às entranhas do homem.

Atento aos fenômenos, descreve-se o cozinheiro, palavreiro, tragador. Intenta desobrigar-se, alforriar-se, lançar ao passado o cilício.

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O cozido dá em rango forte, ardente. O tabaco apresenta carta de exigências. Deixa o homem na troca do ar, no mover das pernas, no exercício do flutuar. Na fronteira, o fumo revira o rumo do olhar. Dá espelho para vidência. Nos passos, homem em apuros, não encontra rota certa. Conhece só o dever de andar. Resiste e enrola em papel de arroz outro de erva marrom. Ainda se obriga ao tragar.

Armistício.

Paz é horizonte em visagem. Desejo orienta os passos do homem. Coloca-se, em fila, na quietude do lugar último.

Carece de permanência para apreender os sentidos, os contidos e o mistério do acontecer.

Visita e desentende a mãe do homem. Dita ordem ao pai do homem. Vai às pressas ao jardim do éden, donde recebe um chuchu, tomado ao baldio, e folhas de mostarda, manjericão, beterrabas, capelinha e perfumosas outras de nome perdido em mente.

O tabaco e o fumo aquecem os humores do homem, em dia de tomar atalhos que aumentam trajetos. Está ligado às forças. Está envolvido em amores, feridores. Na noite aceita. Carece de silêncio. Carece de mutação. Cozinha.

Leva ao fogo, sobre óleo aquecido, folhas de louro, 118

manjericão e salsão. Nisto refoga o chuchu e acrescenta água pouca, sal e perfumosas. Grãos de quinua ajeitam consistência e substância. Na panela já desligada deposita folhas de mostarda, beterrabas e capelinhas.

Sabor é de comida de casa. Em era de mutação, o homem quer energia capaz. Seu intuito é rebelião. Fazer-se ao oposto do antes feito é o mote. Nutrição é coragem. A audácia é viver em gentileza e riso.

Procura comparsaria. Sua cozinha em torre musicada é retiro. Nela e nele, pratica e almeja. Em jornadas ligeiras age em benefício do contágio. Espalha-se alvissareiro.

Deixa-se tocar por dor e alegrias, alheias, visitantes.

Guerra em estado íntimo tem lugar. Defensores são pedaços do espírito. Protetores são outros. Rusgas, contendas, tremores, gozos, azedos, fluem. Tanto quanto fluem seus avessos. Riachos são tomados ao mesmo tempo, por todos, vindos do dentro e lados.

No descrito permanece oculta a verdade. Sobre a tal, sabe-se lá. No amanhã é quando se está certo. Hoje é desconsolo e breve. A claridade reside em trecho do escuro. O homem recolhe os olhos ao dentro. Há estrelas ali. São estrelas de lá fora.

As substâncias voltam ao pensamento do homem.

Tema dos dias, companheiras dos dias, ameaças dos dias, 120

tudo junto no fabrico das vivências. Quando cozinha encontra a mãe de todos. Quando fala encontra o pai de todos.

Quando alegra encontra os filhos todos.

O dever de casa é simples. Tem de criar o singelo. Fosse de música o dever seria o simples também. Tem de fazer e fazer e permitir. Parece assim ao homem a coisa. Tem parecência de sincera a coisa. Há método e recurso.

Regras.

Cumprir o combinado. Pintar com verdade o prato do dia. Suspender os assuntos, os desejos, os medos e deixá-los em moldura própria, emparedados na mente. Não esquecer coisa qualquer. Tomar todas as folhas trazidas do jardim.

Cortá-las em tiras, juntas, não sem antes observar os roxos, verdes, brancos, encantados. Picar uma cenoura e rodelas de salsão. Refogar, partindo da ordem inversa à lista. Colocar no azeite um tanto de basílico e sal. Começada uma transmutação, juntar uma porção de arroz, fritar um pouco, juntar água e mais sal e azeite. Deixar na panela de barro, regando às vezes.

Deixar crescer. Ampliar movimentos. Atentar às formas e cores. Contar o arroz transtornado por água e calor.

Sentir os tons do risoto escuro a exalar perfume. Sentir a 121

fome. Cortar as palavras voltadas a redemoinhos de impressões passadas. Respeitar. Comer tudo. Raspar a panela.

Aceitar. Pitar o pito. Consumir o tabaco, com capricho. Desistir da dor. Vestir roupa quente. Sair a passeio. Caminhar na neblina. Receber o inverno. Não esquecer de ser. Não resistir à mutação.

Sonhar amor expresso, aberto, sólido. Sonhar amor encontrado na trilha do arvoredo. Sonhar esvaziamento.

Olhar as árvores. Poupar os olhos das construções estéreis, edifícios, masmorras. Olhar os canteiros medidos. Sonhar explosão de praga florida. Recolher-se logo. Vestir saia vermelha e macia. Sentar à janela e pedir auxílio aos deuses.

Acordar em madrugada amanhecente. Recordar o menino.

Brincar o menino. Passear o menino. Viver o menino vivente no homem.

Senhas.

Cenho é sinal. O homem visita o espelho – pira. Queima as imagens, umas após e antes de outras. Pede ao homem nome. Diz homem. Responde a que veio. Traz o presente panela de pedra. Escolhe um nabo e um chuchu. O branco cortado na longitude uma única vez. O verde mudado para formas várias, aos trechos, flores, orelhas, dadinhos. É pre122

ciso aquecer o óleo com pimenta branca, sementes de mostarda e sal. Nabos antes do chuchu, misturados vezes e vezes, tostando. Depois suco de lima e, mais depois, pedaços de lima. Sal e azeite umas poucas vezes e uma aguasinha.

A comida fica forte, mal passada. O homem está apressado. Há distâncias para percorrer. Sente urgências.

Sem. O tabaco acabou-se. O fumo acabou-se. O uísque acabou-se. O drinque com vodca é o último. Dia após dia o homem abandona costumes de homem. Quer encontrar a raiz. Quer fundura. Em crepúsculo recolhe as vagens antigas. Há também salsão e carambola, desde a outra era. Corta o verde em rodelas, o amarelo em estrelas, tira um talinho de cada vagem. Na pedra, com azeite, refoga por partes, a começar dos menores com sal, alecrim desidratado, cardamomo em pó. Um pouco de cada coisa, outro pouco de água, torrentes de pensamento e desejo sem objeto.

Ouve canções guardadas nos discos negros, ainda vivos. Saudades de um futuro alegre, sonhado, construído em dores de crescimento, em fé. Chega o dia do homem deixar o dia claro, a noite clara, a mente clara. Cozinha e procura perfumes. Afasta-se das fumaças o quanto pode. Inva123

de, com cautela e tristeza esquisita, umas fronteiras suas próprias, ocultas antes, denunciadas neste presente quase solene, quase invisível, quase nada.

Os cozidos salvam o homem. A música salva o homem. Depois de comer a janta condimentada, depois de ouvir Sentinela, segue aos caminhos da cidade. Procura.

Berinjela.

Caminhadas ajudam o homem. Sem fumaça o tempo se expande. Em volta, corta o fruto de casca preta em quadrados. Refoga com salsão em rodelas, alho desidratado, sal, sementes de erva doce e folha de louro. Uma porção de arroz é frita quando o legume amolece. Depois cobre com água e um pouco mais de sal. Deixa ao fogo, na pedra. O risoto acontece, regado com azeite, no quando a música e o isolamento trazem lágrimas às portas dos olhos.

O sabor é quente, macio. O homem não teme mais a fome. Não teme abstinências. Seu medo é da tristeza. Vive o dia em berinjela, guardado em capa escura, em ácido. Mais adiante, pernadas e pernadas depois, toma a outra metade do fruto. Pica em quadrados menores. Refoga com um preparado para falafel, com coentro, pimenta síria, pimenta malagueta e mahlab, acrescido de coentro em grão e manje124

ricão desidratado. Quando está bem tostada com os temperos junta grãos de bico, partidos e descascados em processo de uma hora, a observar o entardecer e ouvir Philip Glass e Artur Moreira Lima, este a interpretar Ernesto Nazareth. Água e fogo fraco na panela de barro pedem tempo.

O novo sabor é forte, com trechos rascantes. O cozido apronta o homem para novo passeio. Liberar-se de entorpecentes é trabalhoso. O tabaco circula em veias e pede tabaco. A mente pede fumo, suavidade, explicações. O homem nega-se tudo. Quer ouvir o sonido de sangue embalado só em comida. Sai a procura do amor.

Brindar.

Homem brinca o herói. Priva-se de coisas, apruma-se em gestos próprios, veste-se em vermelho, beberica o tinto e cozinha. Dá-se por justo. Corta o salsão às rodelas e os talos de couve aos minúsculos. Refoga com folhas de manjerona, louro e sal. As batatas, em cubos pequenos, deixadas por instantes na água com sal e páprica são tostadas depois.

A água cobre tudo e a panela é tampada no momento de abrir a garrafa e anunciar o feito.

Medita o momento, o longo de estar na cozinha. Os papéis sobre a escrivaninha, os discos espalhados pela sala, 125

as paredes por pintar, as janelas por lavar, avisam ao homem sobre os trechos da vida a ordenar. Deixa-os ao lado, para os outros tempos, para os outros lugares. Acolhe -se à margem do fogo e contempla os alimentos. Come. As batatas, íntegras e macias, tomam pouco do tempero. Os verdes transpiram os sabores misturados, criando um novo seu, sem nome. Homem dá-se por contentado. Beberica, ainda, desejoso de apagar o anseio pelas fumaças ausentes. Sai a procura do amor.

Elegância.

Sem tabaco e sem fumo e homem toca-se com dedos de vinho. Ainda não pode estar só no ar. O absoluto é muito. Os perfumes penetram. Há o imenso. Há o oxigênio. Há o olfato. Vontade de misturar levam à tábua um tanto de cebola e outros de jiló. Cortados em pequenos, vão à panela no óleo com sal, sal de ervas, manjerona, pimenta síria e orégano. Nesta mistura deitam-se os pedaços de cará, salpicados com o verde. A água é em desejo de caldo generoso.

Fica pronto e descansa em instantes.

Noite alta, céu risonho, diria a canção – informa a memória do homem. A quietude é quase um sonho, prossegue a mente a contar Celestino. Andar por aí, usando o casaco 126

comprido e chapéu à Pessoa, é o plano para o futuro, o território do mistério, no depois de sorver o caldo perfumado.

Aceitar-se é dever do homem. Enfeitar-se em jeito próprio é dever do homem. Comer, beber, dormir, respirar, andar, conversar e tantos outros são os verbos deveres do homem.

O caldo é luxuoso. Encorpado, pleno da história de seres miscigenados, o rango dá vontades. Tesão é coisa presente no homem. Cogita passeio em vantagem. Prepara a garrafa presente, carmenére. Pensa em vermelho ou bordô.

Ouve Bilie Holiday. Ama viver. Ama mesmo viver mesmo, sempre e agora. Alegra-se mesmo o homem. Sai a procura do amor.

Genuflexório.

Sonha o homem. Chega à cozinha e lá está o objeto a esperar. Acorda e dormita atento à imagem de si, construída na noite comprida. Pessoas muitas comparecem ao amanhecer estranho, novo. Na noite, ainda, as relíquias da memória ajudam o homem. Escolhe a panela de ferro, guardada no canto. Vai uma porção grande de arroz. Vão pedaços restantes de cebola e jiló. Vai sal e folha de louro. Vai um fio de óleo de girassol. Vai à garganta uma dose pequena de conhaque. Alivia, pensa o homem. Adoça, sente o homem.

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Permite, percebe o homem.

O menino a brincar de padre comparece à cozinha do homem. Décadas de sonhos unem pontos de história.

Noutra noite de joelhos, entregue ao suplício, sente a pressão no vão dos dentes. Vem de frustrações, de não conseguir outra e outra e outra vez o gozo, o sossego, o entendimento. Homem tem culpa. Distribui a culpa entre os seus.

Quer encontrar o culpado original, o violador primeiro, o inventor da saga, da dor.

Concebe moranga no vapor. Sente-se apressado. Corta o fruto em dois. Toma uma parte e coloca sobre a peneira. Tempera com sal, pó de coentro, pimenta do reino, uma ameixa umebóxi, uma pitada de açúcar. Não sabe mais nada. Serve um cálice de vinho. Acende o fogo. Respinga azeite de oliva sobre a conchinha. Rega com a água fervente. Percebe ausências. Está sem pai, sem mãe, sem filhos, sem amante. Está presente negociando com o passado e com os sujeitos todos, os ocultos. Prepara comida delicada e selvagem. Desobedece muitas regras.

Diz o homem A história é igual esta moranga. Não se acaba. Fiz, com as cascas e beiradas, um refogado no óleo, sal, sal de 128

ervas e o composto para falafel. Derrubei lentilhas e água.

Criaram-se três porções. Comi tudo. Nada mudou muito. A vida seguiu quase sem graça. Umas lágrimas fabricadas pelo vapor saído da caneca e umas saudades de sei lá, escorreram. As grandes águas do inverno tomam conta de tudo.

Os pedaços restantes da fruta sem fim vão com polpa de maracujá e açúcar cristal na peneira. Vão pegar vapor de um tantinho de água com mahlab e noz moscada. Quando der-me à telha misturo e acrescento melado de cana. Antes mantenho a cozinha limpa, ouço Beirut e desejo sair um pouco. Preciso da troca do ar.

A falta do tabaco faz um buraco no peito. É um buraco igual ao feito pela fumaça de cada tragada. Presença e ausência dão no mesmo efeito, ocupam o mesmo lugar. Derramei uma dose pequena de brandy no cozido doce e, com uma colher de melado, deixei os frutos cozinhando na água condimentada. Fiz os percursos: de um espelho ao outro, de uma janela à outra, da cozinha ao banheiro, do quarto à sala. Não saí do lugar. Derrubei os livros no chão. Arrastei a estante para encostar em outra parede. O doce de moranga e maracujá perfuma a casa.

Deixo a sala desmoronada. Troco a roupa. Esquento-me sem banho. Os livros no chão, os discos no chão, as

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poltronas voltadas para lugares errados são o espelho de hoje. A alma está amarrotada e recolhida. O pensamento está úmido. As paredes estão esverdeadas com o mofo. O tempo penetra a casa e o corpo. Não saio do lugar.

O doce depois da caminhada é um carinho. O sabor é delicado. Cria um outro passeio, um sem destino, só para ver as pessoas em movimento. E para afugentar a agonia das substâncias ausentes. Pois é isto, há este estado beirando a tristeza, por não se poder sentir a energia do tabaco.

Todavia, sigo alegre. Consumo oxigênio e outros todos ares espalhados na casa e na cidade. Farei caldo de missô, para aumentar o poder de descansar.

Vermelho.

As cascas retiradas vão para o saco de compostagem.

As beterrabas vão para a água com sal e hortelã desidratada.

Os talos e folhas são picados bem pequenos e refogados no azeite com cebola, azeite, sal, mahlab e pimenta do reino.

O triguilho é posto de molho em um tanto da água das beterrabas.

Quando cozidas, as raízes são amassadas, misturadas

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ao refogado e a batatas baroas, cozidas na mesma água e amassadas também. Tudo é mexido com vigor, aumentado de sal e azeite e posto em forma untada para assar por um tempo. É um bolo de bocadinho, sem farinha. Com mais batatas, decerto, teria mais liga. Em próxima, quem sabe. De gosto é bom. Comida forte a sugerir caminhada na chuva.

Na pedra.

Chuchu, abobrinha e batatas salsas são tostados longamente sobre massala com folha de louro, sal, sementes de mostarda e pimenta síria. Segue, quando começa o amolecimento, uma infusão de hortelã e sal. Depois é tempo. O óleo para o refogado é de girassol.

O homem produz sob efeito de uma dose pequena de uísque. Já não consome tabaco. Não tem fumo. Passa dias sem tais aditivos. Anda e anda e anda nas noites, depois do jantar. Seu momento é de percorrer calçadas e asfaltos.

Come mais. Dorme mais. Pensa devagar. Brinda, em noite sexta, ao espaço. Lá onde corria o tabaco, ora corre um silêncio. Nada pode ser acrescentado ao nada ali residente.

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Porre.

Em sábado o homem não se aguenta. Anda por horas.

Come em lugares. Ouve Baden Powell e Ravi Shankar. Não comporta. Cansa-se de não vibrar. Bebe vodca com fruta fresca e gelo. Acredita na possibilidade de alterar estados de coisas e estados de ser. Acredita na necessidade de regras e de jogos. Acredita em paciência.

O passado vive no homem. À beira de vale de lágrimas, sabe-se perdido em estranhos momentos vividos.

Quando menino, outrora, antes, em tempos, nomeados, inventados, lá em lonjuras tem estado a mente do homem.

Ignora motivos. Vê-se em súbita visitação de histórias. A clausura-cozinha é a região propiciatória.

Não se deve fugir, pensa o homem. A noite apresenta suas canções, percebe o homem. A casa em desordem é seu discurso de agora, entende o homem. Os confrontos da vigília noturna construirão os sonhos, espera o homem. Em crença, o amanhã-futuro, existirá, deduz o homem. Qual um lado b de um disco preto, afirma o homem.

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Arroz pru’spírito.

Quando é começo, há uma angústia. Alecrim e manjerona ficam em infusão. Raiz de lótus cortada em finíssimas fatias cozinha em caldo com açafrão, folha de louro e sal.

Dá-se o tempo certo sabido e o arroz é misturado às duas outras misturas. Acrescenta-se maçã picada. Fica lá na panela de barro enquanto o homem tricota e ouve Waldir Azevedo, Radamés Gnattali e Rafael Rabelo. As aflições vão se projetando ponto a ponto ante os olhos do homem. Quando o risoto começa a secar já está tudo calmo no corpo humano do homem. Basta fazer e atentar, fazer e atentar, fazer e atentar.

O sabor é dos excelentes. Forte por suave e por impreciso. Os caminhos do dia retornam ao entendimento do homem. Percebe o ciclo vivido sem encontro qualquer, senão em memória. Um e outro cumprimento acontece nas andanças ao sol e ao luar. O ar é leve na noite.

Silêncios.

Noites na rua resultam em beber café e comer bolo e pão. Ao menos é feito por mão de gente. O homem não mais suporta comida vinda de máquina, embrulhada em plástico.

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Não suporta a palavra pronta. Foge de todo excesso. Segue em caminhadas meditativas nas noites frescas. Precisa encontrar seus motivos. Precisa encontrar-se. Sabe umas coisas. Ignora. Esta é a primeira coisa sabida.

Em casa, pensando esses assuntos, inventa um risoto com lima, carambola, talos de couve e salsa. Tudo é refogado com pimenta rosa e sal. O arroz é integral, cateto.

O óleo é de girassol. Bebe vinho tinto. Escreve mensagem aos seus. Ouve Caetano, em Muito. Ouve uns cães nervosos, presos em apartamentos. A comida é adocicada, macia, generosa. É comida de festa. É comida festiva do homem, só do homem, do homem só.

Viver no entendimento das regras é o decidido viver do homem. A ordem de violar as regras é para ser seguida também, quando assim for o caso. A beleza é a lei proferida pelos deuses. Senão em beleza só há desordem, desgraça, desvario. Assim segue o homem, na direção de um futuro vazio e sem forma. Tem fé.

Quiabo aventureiro.

Lá vai o homem. Em noite fria, noite extrema, lava os quiabos em água quente. Corta-os em pedaços pequenos e

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seca. A gosma é uma ameaça. Lembra lição antiga: é preciso secar, colocar vinagre, não mexer. Refoga cebola, sal e pimenta branca moída. Frita arroz na mistura. Cobre com uma infusão de hortelã. Derrama ali um tanto de vinagre de maçã e sal. Derruba os pedaços do fruto. Acrescenta um punhado de maçã desidratada e deixa cozinhar.

Vai pensar o homem, no enquanto o fogo fabrica os gostos no risoto de atrevimento. Pensa no curso dos dias.

A vida prossegue, mesmo depois dos medos profundos, das tristezas vastas, das dores desmedidas. Sempre segue até o fim desconhecido. Gosta disto o homem. Aproveita-se do momentâneo: indolor, suave, jeitoso. Prepara a janta, beberica vinho, aquece a casa-corpo.

O cozido, decerto, está feito e é certo. Quando quase seco recebe mais infusão. Tem perfume um tanto ácido, um tanto adocicado. O homem tem fome. Tem desejo.

Quieto.

Na madrugada o homem sonha vida em movimento, em carros, em números, em comoção. Acorda em desacordo, em susto. O café com pão dá sustento. O amanhecer é esperado atrás de cortinas fechadas. Os pássaros avisam que o escuro logo estará afastado. Canta um tanto. Prepara-se 135

para a caminhada. Os pelos do rosto são arrancados.

Na tarde cumpre-se. Está vestido aos conformes.

Mexe-se em afazeres seus de sempre. Sente-se sem qualquer importância. Come o do bom e melhor. Bebe café forte. Como o doce. Enfraquece. Caminha lento. Vê-se. Deseja voltar à casa. Sente falta de sua cozinha.

Na noite, para suavizar, escolhe cerveja preta boa e sem gelo. Uma garrafa é o bastante para adoçar o momento.

Quieto ouve, atento, canções dos oitenta. Aproveita a última carambola e a penúltima lima. Refoga no azeite com sal, páprica, cardamomo e alecrim. Este em galho seco trazido em tempo de estar verde. Junta, em pequenos pedaços, cenoura e moranga com casca. Quando os legumes estão macios, acrescenta uma porção de quinua em grão. Tudo em panela de pedra, com sal e água somados aos poucos.

Deixa-se cozinhar e, depois, em repouso até que se beba o último gole do líquido forte e escuro.

Coragem – diz o homem em solilóquio. Exclama-se, clama a céus em sussurros, pede luz a deuses luminosos.

Tem desejos e os mantém calados. Espera. Duvida de buscas. Crê em encontros. À comida e à música, ao ar e ao tempo agradece o homem, imensamente.

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Trabalhos do pensamento.

Quando o homem começou a inventar-se em comidas, o mundo lhe parecia outro. Entendimento havia, porém, era em jeito antigo. Quando coloca o shitake de molho, em um resto de vinho tinto suave resguardado, admira-se da certeza: o presente. Sabe sobre as possibilidades das múltiplas combinações. Aguarda a hidratação e leva ao fogo com uma porção igual de água, arroz, ervilha, sal e cardamomo. O perfume se espalha pela casa, forte, desafiador. É rango de preparar movimentos. Ainda não sabe um destino, mas está para a caminhada, sob chuvisco. Acrescenta uma folha de louro, quase ao fim do cozimento.

Homem tem problema com o tempo. Seu destino é o curto, sabe. Atento, espera encontrar coragem e entendimento. Nega-se possibilidade de derrota. Tem a vida por aventura, qual viagem de busca.

Em noite, corta em rodelas dois pedaços de bambu fresco e um pimentão vermelho. Prepara infusão com anis estrelado e erva-doce. Refoga em óleo de girassol, com pimenta rosa e sal, os úmidos, acrescenta uma porção de arroz cateto. Frita até ficar bem seco. Junta a infusão e mais duas porções de água, em intenção de risoto. Deixa ao fogo e deseja descobrimentos.

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FONTES PARA TRILHA SONORA Maria JoĂŁo Quarteto em Cy Larry Coryell Eduardo Gudin Maurice Ravel Angela Maria Keith Jarret Jan Garbareck Palle Danielsson Jon Christesen Beatles Sting Egberto Gismonti Raul Seixas Cazuza Simone Vivaldi Giorgio Morodes Bach Genesis Rick Wakeman Bobby McFerrin Olivia Buyington Charlie Haden Elis Regina

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Homem na Cozinha Haroldo Machado desenhos Silvia da Silva coordenação editorial, projeto gráfico e revisão Selo Dois

Haroldo Machado Homem na cozinha 1a edição Curitiba: Marcos Frankowicz, 2017 148 pp.

ISBN 978-85-917733-2-9 1.Ficção e contos brasileiro.

I. Haroldo II.Título.

fonte PT Serif papel pólen soft 90 g/m² tiragem 200 exemplares

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