Cerâmica em Cunha: 40 anos de forno noborigama no Brasil

Page 1

CerâmiCa em Cunha

40

anos de forno noborigama no brasil

Organização e Textos Liliana Granja Pereira de Morais

Fotos Johnny Mazzilli



Cerâmica em Cunha 40 anos de forno noborigama no Brasil Organização e Textos Liliana Granja Pereira de Morais Fotos Johnny Mazzilli

Instituto Cultural da Cerâmica de Cunha Secretaria Municipal de Turismo e Cultura da Estância Climática de Cunha



Cerâmica em Cunha 40 anos de forno noborigama no Brasil Organização e Textos Liliana Granja Pereira de Morais Fotos Johnny Mazzilli


Ficha Técnica Coordenação editorial e pesquisa: Liliana Granja Pereira de Morais Produção: Liliana Granja Pereira de Morais, Luciano Almeida, Marcelo Tokai Captação de Recursos: Silvana Baierl Textos: Liliana Granja Pereira de Morais Colaboradores: Fernanda Freire, Fernando Aidar, João Camillo Machado de Campos, Marcelo Tokai e Mieko Ukeseki Fotografia e tratamento de imagens: Johnny Mazzilli Assistentes de fotografia & produção: Marcos Amaral de Moraes e Gui Barbieri Mazzilli Costa Direção de Arte: Laurentino Gonçalves Dias Jr. Revisão: Francisco Máximo Ferreira Netto (Chico Máximo) e Vera Idely Cabral Impressão: OM Editora Instituto Cultural de Cerâmica de Cunha (ICCC) Morais, Liliana Granja P. de Cerâmica em Cunha: 40 Anos de forno noborigama no Brasil / Liliana Granja Pereira de Morais – 1a ed. – São Paulo: OM Editora, 2016 156 p; 21x21cm ISBN: 978-85-92940-00-3




Agradecimentos Este livro não teria sido possível sem a dedicação de pessoas que doaram altruisticamente seu trabalho das mais variadas formas, unindo esforços para a concretização deste projeto. São eles: Liliana Granja Pereira de Morais, Marcelo Tokai, Luciano Almeida, Mieko Ukeseki, Alberto Cidraes, Wilmar Andrade, Fernanda Freire, Fernando Aidar, Nayara Vieira, João Camillo, Vera Idely Cabral, Johnny Mazzilli, Silvana Baierl, Laurentino Gonçalves Dias Júnior, Oswaldo Takagi e Construtora HOSS. Vale destacar que este projeto tem sido realizado desde outubro de 2014, sem auxílio de qualquer financiamento de caráter institucional, governamental ou privado. Para sua concretização, contamos apenas com contribuições de alguns ceramistas de Cunha e outros interessados, que investiram na compra antecipada desta publicação, em especial Mauritz Callioux. O valor arrecadado a partir deste financiamento coletivo foi usado para cobrir custos básicos de produção. Contamos também com o apoio e a parceria de empresas de Cunha, especificamente Pousada Candeias (Kika e Antônio Turci) e restaurantes do Gilmar, Quebra-Cangalha (Wilmar Andrade e Vera Sorgiacomo), Melhor Hora (Jaime Lemes) e O Gnome (Caio Penteado). Agradecemos, ainda, à OM Editora, representada por Fábio Mottola, pelo especial apoio na impressão desta publicação.

9


Prefácio

Faz 40 anos que o vento nos trouxe a esta cidade montanhosa de Cunha. Éramos um grupo trinacional.

1975 - 2015

No Japão, havíamos nos encontrado, Toshyuki e Mieko Ukeseki, Maria Estrela Vieira e eu. Os dois primeiros já com atelier próprio, davam apoio às aspirações dos amigos portugueses, na área da cerâmica de estúdio. No contexto de nossa decisão de vir para o Brasil, ao longo de muitas conversas, o então casal de japoneses acabou decidindo se juntar a nós e idealizamos o projeto de construir no Brasil um forno Noborigama. Cheguei em 73, esperando por eles 2 anos. Chegaram no mesmo ano em que Maria Estrela foi passar algum tempo em Portugal, 1975. A chegada dos Ukeseki desencadeou um movimento de procura de um lugar para morar, trabalhar, construir e operar um Noborigama. Cunha acabou sendo escolhida por sua equidistância de São Paulo e Rio de Janeiro, conveniente para comercialização das obras a serem produzidas. Conveniente também sua abundância em argila e lenha de replantio, o eucalipto. Mas o fator decisivo foi, no processo da busca de um local, o fortuito convite da Prefeitura Municipal de Cunha para aqui nos instalarmos, no desativado Matadouro Municipal. Do grupo inicial faziam parte, além dos mencionados portugueses e japoneses, dois irmãos mineiros, Vicco e Antônio Cordeiro, e a jovem japonesa Rubii Imanishi. Cunha era uma pequena cidade tranquila, um fim de mundo dedicado à criação de gado e agricultura de subsistência. O então prefeito Zelão pretendia trazer para este paraíso de montanhas uma cultura urbana e cosmopolita. Nosso grupo trinacional operando com recursos abundantes no município, para produzir peças de arte e design, parecia estar ajustado ao seu plano para Cunha.

10


Foi assim que passamos a viver e trabalhar no edifício do ex-matadouro, insuflando, pelo fogo, vida ao barro, no que antes fora um lugar de abate. O grupo do matadouro não foi um paradigma de estabilidade. Eu passei todo o ano de 76 em Portugal. Vicco, Toninho e Rubii, saíram poucos meses depois de mim e na minha ausência Shugo Izumi e Luís Toledo se tornaram aprendizes de Toshiyuki e Mieko. Voltei no final de 76. No ano de 77 Mieko nos deixou, indo trabalhar com Vicco em Teresópolis. Meses depois, Maria Estrela regressou ao Brasil, se juntando a mim e a Toshiyuki no ateliê. Este acabou saindo para São Paulo em 78 e voltou para o Japão no início de 79. Pode-se considerar esse triênio, 75 a 78, como o período seminal, ponto de partida da cerâmica de autor em Cunha. A partir de 78, Maria Estrela e eu mantivemos o ateliê com a ajuda de aprendizes que pouco a pouco foram se aprofundando nas lides da cerâmica. Modelado à imagem dos ateliês préindustriais, o ateliê funcionou, produzindo meu trabalho e o de Maria Estrela no primeiro Noborigama de Cunha. O forno Noborigama, com sua magia, sua funcionalidade e sua economia de combustível era o carro-chefe de nossa filosofia de trabalho. Nosso foco estava também no uso exclusivo, ou quase, de materiais da região, barro, cinzas, terras e saibros, além de lenha replantável. O barro era um material conhecido e explorado numa região em que era de grande abundância. O grupo do Matadouro trouxe novas maneiras de o transformar, sem abandonar o arcaísmo naturalista da panela e do tijolo, mas avançando mais em temperatura, em engenho e em arte.

se têm instalado nesse quadridecênio. Eles trouxeram novas visões, conceitos e técnicas. Hoje possuímos, além da capacidade de produção de trabalhos autoral, artesanal, artístico e utilitário, nos mais variados estilos e expressões pessoais, também a infraestrutura física e programática para disseminar a cultura assim produzida. O ICCC, Instituto Cultural da Cerâmica de Cunha, na sua Oficina, desde 2010, tem organizado eventos, cursos, seminários e convênios de pesquisa com universidades dirigidos à população local, sobretudo à juventude e a universitários e praticantes da cerâmica de várias origens, nacionais e internacionais. Desta forma cristaliza-se e se expande a ideia inicial de formação de novos ceramistas, praticada de forma espontânea nos ateliês pioneiros e agora institucionalizada no ICCC, dedicado ao fortalecimento cultural da cerâmica em Cunha. Com a cerâmica como carro-chefe, a cidade tem se transformado num polo de gestação de ideias alternativas nas áreas artística, filosófica, ecológica e espiritual, participando assim na busca de um novo paradigma de relacionamento entre o ser humano e o planeta que habita.

Alberto Cidraes

40 anos depois Cunha figura como uma comunidade referência na cerâmica, constantemente atraindo gerações de ceramistas que aqui 11


AteliĂŞ Suenaga e Jardineiro 12


A Tradição da Cerâmica de Cunha Não há dúvidas sobre a relevância nacional da produção artística dos ceramistas estabelecidos em Cunha, pequena e preciosa cidade no Vale do Paraíba, no Estado de São Paulo. E as razões são muitas. A primeira destaca a origem e o pioneirismo do grupo de ceramistas que se instalou na cidade, na década de 1970, iniciando seus trabalhos e compartilhando seus sonhos e dificuldades no antigo matadouro municipal. O grupo dos 6 jovens sonhadores e seguidores da tradição milenar da técnica da cerâmica japonesa – Toshiyuki e Mieko Ukeseki, Alberto Cidraes, Rubi Imanishi e os irmãos Vicco e Toninho Cordeiro –, conhecido como “grupo do matadouro”, representa as raízes fundamentais do polo de cerâmica paulista. Mais tarde, no início dos anos de 1980, outros nomes, como Luis Toledo, Gilberto Jardineiro e Kimiko também participaram ativamente da história dos pioneiros da cerâmica de Cunha, integrando, hoje, o núcleo de ceramistas com mais de 20 ateliês na cidade. A segunda razão de sua importância no contexto da produção da cerâmica artística nacional e internacional é a herança da prática do ensino e da cooperação entre os ceramistas, multiplicando o conhecimento e a experiência da produção de peças de diferentes linguagens estéticas, formas, técnicas e efeitos variados. A missão de formar e capacitar mais ceramistas para somar ao grande grupo de Cunha parece ser uma tarefa herdada até pelos mais jovens artistas ceramistas. Destaca-se o árduo trabalho do Instituto Cultural de Cerâmica de Cunha (ICCC) em manter vivo esse legado, coordenando com poucos recursos, há quase uma década, as atividades e oficinas da escola de formação de ceramistas na cidade, cumprindo, assim, a sua função social. A natureza educativa e cultural do projeto dos ceramistas de Cunha é que os dife-

rencia, os qualifica e promove uma produção criativa e identitária. Ao lado da rica diversidade de criações e de propostas estéticas da produção atual há um grande diálogo entre os trabalhos, que transita entre a influência da tradição da cerâmica japonesa – no que se refere à técnica do forno Noborigama e ao conceito estético wabi-sabi, ao lado das criações mais contemporâneas. O resgate dessa história ao longo de 40 anos, por meio desta publicação, é uma das formas de compreender melhor a trajetória do grupo de ceramistas de Cunha, singular no contexto das artes aplicadas em São Paulo. A característica principal da cerâmica de Cunha é, pois, a sua natureza artesanal, manual, o que já justifica as variadas ações de preservação desse fazer no contexto do mundo globalizado. É, portanto, o ensino, de fundamental importância como depósito de esperança para a mudança de escala dessa produção de alta qualidade.

Ana Cristina Carvalho Membro do Conselho do ICCC (Instituto Cultural de Cerâmica de Cunha) Curadora do Acervo Artístico-Cultural dos Palácios do Governo do Estado de São Paulo 13


14


Maturidade, força e legado contagiante Cunha – a viagem dos sonhos de todo ceramista. Por incontáveis motivos: para ter acesso às mais variadas técnicas de modelagem, ao estilo inconfundível de cada artista local e conhecer os mistérios da queima Noborigama. Cidade envolvida por inúmeras influências, Cunha é repleta de riquezas naturais que se tornaram ainda mais atraentes com a chegada dos pioneiros. A presença de ceramistas, escultores, paneleiras, designers, pintores e artesãos se tornou sua maior característica e seu maior legado. Artistas que arriscaram tudo em busca de uma nova vida. Em Cunha, esses pioneiros prosperaram, perpetuaram seus méritos, geraram frutos, formaram famílias e inspiraram o Brasil. Naturalmente, a história iniciada pelos pioneiros conquistou maturidade e seriedade, culminando na criação do ICCC - Instituto Cultural da Cerâmica de Cunha, instituição idealizada para fortalecer a categoria e estimular a união e a formação de novos talentos da Arte Cerâmica. Em 2005, seus fundadores lançaram um livro retratando a trajetória iniciada havia 30 anos. Essa primeira edição – esgotada – impulsionou a continuidade em novo título: Cerâmica em Cunha: 40 Anos do Forno Noborigama no Brasil. Assim, neste 2016, a diretoria atual do ICCC, representada por Marcelo Tokai e Luciano Almeida, lança nova edição, atualizada, em continuidade à iniciativa, contemplando a memória artística traçada nos últimos 10 anos. O projeto aconteceu espontaneamente: observando a necessidade de uma edição atualizada, a pesquisadora Liliana Morais realizou pesquisa de campo, com inúmeras visitas aos ateliês da cidade e entrevistas com os artistas – conteúdo histórico-didático do livro. Aos poucos, mais profissionais acreditaram no projeto e so-

maram esforços para transformá-lo em realidade. O fotografo Johnny Mazzili refez o circuito de Liliana e produziu as imagens. Para a produção final, a equipe trabalhou exclusivamente online. Cada qual em uma parte do planeta: Laurentino Gonçalves Dias Jr. em Piquete/SP; Marcelo e Luciano, do ICCC, em Cunha/SP; Liliana, no Japão; Johnny em Mairiporã,SP e eu na Baixada Santista. Seria possível concluir um projeto deste porte sem uma reunião física? Quando há confiança, é possível. E havia... E tudo transcorreu em harmonia. Diálogos diários, dezenas de e-mails na semana, centenas ao mês. Essa confiança conquistou a credibilidade OM Editora, representada por Fábio Mottola, que abraçou o projeto e aceitou a parceria. Cerâmica em Cunha: 40 Anos do Forno Noborigama no Brasil não é um livro qualquer. Simboliza a luta da atual diretoria do ICCC e comprova o quanto estavam certos os pioneiros ao criarem o Instituto, pois esta administração é formada por uma geração jovem, de ideias inovadoras, mas com os mesmos ideais de seus precursores. Este livro é fruto de uma luta constante, repleta de altos e baixos e de momentos incertos, mas também de muita certeza. Foram dois anos de trabalho árduo, mas conseguimos! Com este livro, colocamos em suas mãos o símbolo da arte praticada em Cunha, e seu espírito de união registra uma das mais belas histórias de um polo cerâmico do Brasil.

Silvana Baierl Jornalista, escritora e crítica de arte 15


16


CAPÍTULO I A HISTÓRIA DA CERÂMICA EM CUNHA

17


18


1. HISTÓRICO Situada a meio caminho entre as capitais dos estados de São Paulo e Rio de Janeiro, a cidade de Cunha ofereceu desde cedo as condições ideais para o desenvolvimento da atividade cerâmica. Sua localização no Vale do Paraíba, entre as serras da Bocaina e do Mar, propiciou a esta terra montanhosa a profusão das matériasprimas necessárias para o florescimento dessa arte. Foi na beira de riachos, nascentes e rios, abundantes na região, que os primeiros habitantes foram encontrar o material indispensável à fabricação de estatuetas religiosas, urnas mortuárias e recipientes para armazenagem e consumo de alimentos: a argila. A partir de escavações arqueológicas sabemos que há cerca de 2000 anos a cerâmica já era fabricada por populações indígenas que ocupavam o atual território brasileiro. Esta cerâmica era elaborada a partir da técnica de modelagem manual e queimada a baixa temperatura em fogueiras simples escavadas no solo, cobrindo-se os potes com lenha. Em Cunha existem indícios da existência de cerâmica indígena, comprovados pela descoberta de alguns fragmentos por fazendeiros da região. Mais tarde foram as olarias tradicionais produtoras de tijolos e telhas e as chamadas paneleiras, produtoras de panelas e potes de barro na roça, que deram continuidade ao trabalho de criação a partir do barro. A produção de tijolos e telhas começou há mais de cinco mil anos com o desenvolvimento das primeiras civilizações humanas na Mesopotâmia, decorrente da mudança de um estilo de vida nômade, baseado na caça e coleta, para um estilo de vida sedentária, baseado na agricultura. No Brasil, as primeiras olarias surgiram com a conquista portuguesa, que introduziu no país inovações tecnológicas como o torno

de oleiro e fornos especializados. Mas foi a partir do século 19 que esta atividade começou a se organizar como indústria. Em Cunha, as olarias foram uma das primeiras indústrias a se desenvolver na região, existindo, até a década de 1980, quase uma centena em funcionamento. Os tijolos eram fabricados com argila local, modelados em blocos geométricos de madeira, secos ao sol e finalmente queimados em fornos especiais construídos com os próprios tijolos. O tijolo burro, tijolinho, constitui a mais antiga “indústria” de Cunha. Uma produção totalmente manual, sem máquinas, sem edificações, uma relação estreita e impactante entre o homem e o solo. Possibilidade de o homem mais despossuído do lugar se tornar empresário pela relação entre a mão e a terra. Cerâmica na mais pura acepção da palavra. As olarias de tijolo são de uma beleza plástica surpreendente. (Alberto Cidraes) Para o grupo pioneiro do Antigo Matadouro, a presença de olarias na cidade foi fundamental na descoberta da localização de jazidas de barro e, ainda hoje, alguns dos ceramistas utilizam argila das olarias para a produção do seu trabalho. Entretanto, foram as paneleiras as grandes herdeiras da tradição indígena de se trabalhar o barro manualmente. Elas utilizavam apenas alguns utensílios improvisados como um seixo, um sabugo de milho e um pedaço de cumbuca ou uma cuia de cabaça para modelar objetos para uso doméstico a partir do aproveitamento de argilas locais. As peças eram queimadas em for19


nos rudimentares escavados na terra e cobertos com telhas, chamados fornos de barranco. Já as colorações eram extraídas da própria terra, utilizando-se o tauá para a tinta vermelha e, para a branca, a tabatinga. Atividade eminentemente feminina, o ofício das paneleiras era tradicionalmente repassado pelas artesãs às suas filhas, netas, sobrinhas e vizinhas, no convívio doméstico e comunitário, uma vez que a produção era geralmente dividida com outras atividades da roça. Em Cunha, a atividade estava profundamente enraizada no cotidiano da vida rural, em que panelas, potes, moringas, cuscuzeiros e outros utensílios de barro eram usados diariamente na cozinha para produção, consumo e armazenagem de alimentos, e no trabalho da terra. Antigamente, as vasilhas das paneleiras podiam ser trocadas por alimentos e outros produtos de necessidade básica, segundo uma eco-

nomia de troca típica do interior rural. Eventualmente, algumas fornadas especiais eram feitas para ser vendidas nas festas regionais. Havia, ainda, pessoas que revendiam as peças em cidades vizinhas. Sabe-se que, nas décadas de 1960 e 1970, havia um mercador cunhense que toda a semana levava de burro uma carga com produtos de Cunha para Paraty, que incluía, além de vários produtos regionais, os potes das paneleiras. Segundo o historiador José Veloso, até meados do século 20 existia próximo de uma centena de paneleiras atuantes em Cunha. No entanto, quando o grupo do Antigo Matadouro chegou à cidade em 1975, o trabalho das paneleiras já se encontrava em vias de extinção, restando apenas duas em atividade: Annúncia dos Santos, conhecida como Dona Núncia, falecida em 1992, e Benedita Olímpia, mais conhecida como Dona Dita, que faleceu em 2011. O desaparecimento da última paneleira da cidade marcou profundamente os seus habitantes e, por isso, ela foi homenageada com um busto em cerâmica pelas mãos do escultor e retratista Luciano Almeida, erigido no Parque do Lavapés, em frente à Casa do Artesão. A introdução de produtos industrializados feitos a partir de ferro, aço, plástico ou alumínio, mais resistentes e acessíveis, foi um dos principais fatores que contribuíram para a diminuição da procura dos utensílios de barro fabricados pelas paneleiras. Outro motivo para a extinção dessa atividade foi a inexistência da continuidade do seu ofício pelas gerações seguintes. Dona Núncia, por exemplo, era solteira e não teve filhos e, no caso de Dona Dita, nenhuma das descendentes, apesar de conhecerem a técnica, decidiu enveredar pela cerâmica. Entretanto, o trabalho das antigas paneleiras de Cunha tem sido resgatado por vários ceramistas da cidade, como Luiz Toledo e Leí

20


Galvão, que, além de se inspirarem nessa tradição para a fabricação das suas peças, foram um importante suporte na atividade das últimas paneleiras da região no momento da sua velhice, auxiliando-as no preparo do barro, na queima e na venda dos produtos. Também Dona Matilde, que se descobriu ceramista já aos 60 anos, tem recuperado as antigas técnicas das paneleiras, como a modelagem manual a partir da técnica de acordelado e o polimento com uma pedra roliça, que aprendeu ao observar o trabalho de Dona Dita, conhecida como a última paneleira de Cunha. Já Pedro Siqueira, produz potes e panelas no torno, polidos com a mesma técnica usada pelas antigas paneleiras. Outro ceramista da região que bebeu dessa herança indígena-ibérica foi Dalcir Ramiro, mais conhecido como Cizinho que, no início dos anos 1970 veio para Cunha aprender o ofício das paneleiras, intrigado pelos produtos que chegavam de burro a Paraty todas as semanas. Hoje com ateliê na cidade litorânea, Cizinho continua utilizando as técnicas de modelagem manual que lhe foram ensinadas pela filha de Dona Dita, além de queimar em um forno tipo anagama, construído pelo ceramista de Cunha, Luiz Toledo. Esta combinação da tradição de baixa temperatura das paneleiras com as técnicas japonesas trazidas pelo grupo do Antigo Matadouro é um exemplo da miscigenação de influências e técnicas característica da atual cerâmica da região.

Nesta página: Panela, Museu Municipal Francisco Veloso, em Cunha Na página ao lado: A Paneleira Dona Dita posando junto ao retrato feito pelo escultor Luciano Almeida (Foto João Rural) 21


Taça de chá, Ateliê Gallery Tokai

22


2 . A CHEGADA DOS FORASTEIROS Japão: as raízes de uma tradição A criação de um polo de cerâmica de alta temperatura na cidade de Cunha teve sua gênese no Japão. A cerâmica japonesa é uma das mais antigas do mundo, tendo surgido no Período Jômon (13.000-300 a.C.), momento de transição entre a caça-coleta e a agricultura. A cerâmica Jômon era feita a mão por mulheres no âmbito doméstico e queimada numa fogueira ao ar livre, com temperaturas de até 900ºC. Mas a grande mudança na produção da cerâmica do Japão ocorreu no Período Kofun (300-593), com a introdução de três importantes inovações tecnológicas: o torno de oleiro, o grés e o forno anagama. O torno de oleiro, provavelmente trazido para o Japão por ceramistas coreanos, aumentou a capacidade de produção, organizando a atividade em oficinas, o que fez com que a cerâmica adquirisse um caráter masculino e especializado. Já o uso do grés, um tipo de argila mais rígida e densa, permitiu a produção de obras com superfícies impermeáveis e vidradas, conseguidas a partir de temperaturas entre 1000ºC e 1100ºC, possíveis de atingir nos fornos anagama (“forno subterrâneo” em japonês). Trazidos da China e da Coreia, no século 5, sua peculiaridade foi a produção de esmaltes naturais através das cinzas de lenha em suspensão, criando efeitos acidentais e colorações inesperadas nas superfícies das peças. Os esmaltes de cinzas naturais abriram as portas para a produção de esmaltes minerais obtidos por meio da adição de chumbo e cobre. A produção de cerâmicas esmaltadas com cinzas naturais teve seu auge entre os séculos 12 e 16, quando se desenvolveram os chamados “seis antigos fornos do Japão”: Seto, Tokoname, Echizen, Shigaraki, Tamba e Bizen, que se refe-

rem aos nomes das regiões de produção cerâmica. Essas cerâmicas distinguiam-se pela sua aparência natural e pela sua estética simples e rústica, que foi apreciada pelos mestres do chá a partir do século 16. O desenvolvimento do zen budismo a partir do século 12 culminou na apreciação de uma estética distinta, expressa nos termos wabi-sabi, que enfatiza a beleza da simplicidade e do mundo natural. Essa nova estética deu também origem a um novo estilo de cerâmica, o raku, que, pela sua leveza, simplicidade e rusticidade, foi especialmente apreciado na cerimônia do chá. No final do século 16 foi introduzido um novo tipo de forno no Japão, o noborigama. Esse tipo de forno surgiu inicialmente na China como uma evolução do anagama de uma só câmara através da introdução de várias câmaras de queima e a separação da fornalha. Isto permitiu melhor aproveitamento do calor, possibilitando atingir temperaturas de até 1350ºC, o que produziu efeitos pela ação das chamas e das cinzas. Além do noborigama, a chegada de ceramistas coreanos no século 16 contribuiu para a produção de um novo tipo de cerâmica, a porcelana, a partir do século 17, depois de séculos de importações chinesas. E, no século 18, com a crise na China, a porcelana japonesa começou a ser exportada para a Europa pela Companhia Holandesa das Índias Orientais. Pouco depois, foi a vez de os europeus descobrirem a tecnologia necessária para queimar este tipo de argila mais resistente, translúcida e impermeável, levando ao declínio as importações japonesas. Com a abertura dos portos às nações estrangeiras, em 1868, depois de duzentos anos de isolamento, as tecnologias e inovações do Ocidente foram introduzidas em larga escala no Japão, 23


ameaçando de extinção as regiões de produção tradicional de cerâmica. Foi então, com vista à proteção dessas artes tradicionais executadas manualmente por artesãos no cotidiano da vida rural, que surgiu o movimento mingei, literalmente “arte do povo”, praticamente uma versão do movimento arts & crafts, nascido na Inglaterra no final do século 19. Ambos os movimentos surgiram como reação à mecanização imposta pela Revolução Industrial e à expansão dos centros urbanos, que levaram ao declínio o modo de vida tradicional das populações rurais. O movimento mingei foi oficialmente criado em 1929 pelo filósofo Soetsu Yanagi e contou com a participação de vários ceramistas, entre eles Kanjiro Kawai e Shoji Hamada, nomeado Tesouro Vivo Nacional, em 1955. Este título, criado em 1950, visa a preservar as tradições artesanais em perigo de extinção através da nomeação de artesãos possuidores de importantes técnicas e conhecimentos tradicionais. Kanjiro Kawai, conhecido como o Mestre dos esmaltes, recusou este e outros títulos de honra e suas peças não eram assinadas. Ele foi o grande ídolo e exemplo para Toshiyuki Ukeseki, um dos fundadores do Ateliê do Antigo Matadouro, em Cunha, cuja visão inspirou a filosofia dos pioneiros da cerâmica de alta temperatura na cidade. O movimento mingei tornou-se famoso mundialmente graças ao ceramista Bernard Leach, percursor da cerâmica de autor na Inglaterra e cuja filosofia continua a influenciar artesãos e artistas até os dias de hoje. Foram estes conceitos, traduzidos no movimento Arts & Crafts, no movimento mingei e na tradição Leach, que inspiraram os ceramistas do grupo pioneiro do Antigo Matadouro a criar um coletivo de cerâmica de caráter experimental e naturalista na pequena cidade de Cunha.

24

Japão: A formação de uma ideia A criação de uma comunidade de ceramistas com forno tradicional japonês no Brasil teve sua gênese numa pequena aldeia no sul do Japão, chamada Koishiwara, no final do ano de 1972. A ideia foi fruto da amizade entre o jovem arquiteto português Alberto Cidraes e o casal de ceramistas japoneses, Toshiyuki e Mieko Ukeseki. O percurso de Alberto Cidraes até Koishiwara começou em Portugal. Em 1970, após terminar o curso de Arquitetura foi-lhe concedida uma bolsa do governo japonês para efetuar uma pós-graduação sobre a habitação tradicional japonesa em Kyushu. Entretanto, instigado pela queima em forno a lenha, tradicional da região, Cidraes decidiu aproveitar os últimos meses da bolsa para visitar o ateliê de vários ceramistas, entre os quais o do casal Toshiyuki e Mieko Ukeseki, que tinham largado a carreira de enfermeiros para se dedicar totalmente à cerâmica. Foi no pequeno polo de cerâmica da aldeia de Koishiwara, na província de Fukuoka, região onde as técnicas tradicionais ainda eram passadas de pai para filho e de mestre para discípulo, que o casal Ukeseki decidiu estabelecer seu ateliê e residência. Segundo a tradição, o polo de cerâmica de Koishiwara foi fundado por ceramistas coreanos que imigraram para a região de Kyushu, no século 16, em decorrência da invasão da Coreia. Entretanto, o objetivo de Toshiyuki, Mieko e Cidraes não era aprender as técnicas tradicionais com os mestres locais, mas explorar várias possibilidades técnicas e artísticas de forma experimental. Assim, Cidraes e sua esposa Maria Estrela alugaram uma casa vizinha à do casal Ukeseki e começaram a participar diariamente das atividades do ateliê, desenvolvendo seu trabalho em casa e queimando no forno do casal ja-


ponês. Rapidamente desenvolveu-se uma amizade e surgiu a ideia de criar uma comunidade de ceramistas no Brasil.

partir de materiais da natureza como ossos, sementes, pedras, galhos e outros materiais coletados na beira do mar.

Cidraes ficou dois meses morando vizinho ao casal Ukeseki, desenvolvendo sua prática de cerâmica até o término da bolsa de pós-graduação. No entanto, seu plano não era voltar para Portugal, onde enfrentaria a prisão por ter escapado ao serviço militar nas colônias africanas em plena ditadura fascista. Já estava decidido a ir para o Brasil, uma nação jovem, de língua portuguesa, plena de oportunidades, espaço e matéria-prima e onde tinha alguns conhecidos. Já decidido a instalar-se no país, convidou o casal Ukeseki a se juntar a ele. Jovens artistas de espírito aberto e aventureiro, o casal Ukeseki não hesitou em considerar a hipótese. O plano inicial era ficarem apenas por alguns meses, já que ambos nunca tinham saído do país. Então ficou assim combinado: Cidraes iria primeiro com Maria Estrela e esperaria o casal Ukeseki no Brasil. Contudo, os papéis da imigração demoraram dois anos e Mieko e Toshiyuki chegaram em São Paulo apenas em 1975.

Em Julho de 1975 Cidraes e os outros membros do grupo Takê voltaram para São Paulo para receber o casal Ukeseki, que estava finalmente chegando do Japão. Em um primeiro momento, os japoneses estabeleceram-se em São Paulo e começaram a articular a ideia de montar um ateliê coletivo fora da capital. Em São Paulo conheceram outros ceramistas japoneses e descendentes residentes no Brasil como Shoko

A vinda para o Brasil Após a chegada a São Paulo em 1973, Alberto Cidraes conseguiu trabalho em um estúdio de arte de publicidade, cujos sócios eram Gilberto Jardineiro e Vicente Cordeiro, também conhecido como Vicco, irmão de Antônio Cordeiro, chamado por eles de Toninho. Juntos, Cidraes e a esposa Maria Estrela, Toninho e Jardineiro decidiram embarcar numa viagem para a Bahia. Entre novembro de 1974 e maio de 1975 viveram numa casa alugada à beira do mar, em Cacha-Prego, uma vila de pescadores na ilha de Itaparica, do lado oposto de Salvador. Lá formaram o grupo Takê dedicado à criação de esculturas em bambu, além de peças diversas feitas a 25


Suzuki e Megumi Yuasa, que contribuíram para a sua adaptação inicial. Em outubro, o grupo Takê fez uma exposição numa galeria em São Paulo e Gilberto Jardineiro conseguiu arrecadar dinheiro para realizar a viagem dos seus sonhos. Assim, comprou um bilhete de navio de Santos para Lisboa e no final do ano saiu do Brasil.

A procura de um lugar O grupo constituído pelos irmãos Antônio e Vicente Cordeiro, Alberto Cidraes e a esposa Maria Estrela, o casal Toshiyuki e Mieko Ukeseki e a recém-formada pintora japonesa Rubi Imashi, que conheceram em São Paulo, começou a procurar um lugar adequado para instalação de um ateliê coletivo fora da cidade. Era o período da ditadura militar e o ambiente em São Paulo era hostil, principalmente para os artistas. O objetivo era criar um ateliê comunitário de cerâmica, de cunho naturalista e experimental, em um local afastado dos grandes centros urbanos, que permitisse maior proximidade com a natureza e

26

um ambiente de convívio mais libertário. Era um projeto subversivo e transgressor para o contexto político da época. Decidiram começar a busca no Vale do Paraíba, região montanhosa entre as capitais dos estados de São Paulo e Rio de Janeiro, os dois principais mercados consumidores do país, mas afastada de grandes centros urbanos e com recursos naturais em abundância. A ideia era criar uma comunidade ceramista autossustentável e autossuficiente que trabalhasse a partir do aproveitamento dos recursos locais e permitisse uma experimentação artística. Esta ideia coincidia com uma filosofia de vida alternativa e marginal para a época, alimentada pelo movimento hippie em voga nos Estados Unidos e influenciada por conceitos orientais de harmonia com a natureza. Assim, no outono de 1975, o grupo de dois portugueses, três japoneses e dois brasileiros chegou à pequena cidade de Cunha, região montanhosa, abundante em barro, eucalipto e rochas, ideais para a obtenção de argila, fabricação de


esmaltes e construção de um forno a lenha tradicional japonês, um noborigama. Curiosamente, no Japão, a queima neste tipo de forno encontra-se hoje em declínio, devido aos altos custos de operação e à falta de recursos e espaço. Entretanto, no Brasil, a existência de lenha reflorestada, além da abundância de espaço e matérias-primas, viabilizou sua utilização. Na Praça da Matriz, o grupo fez conhecimento com dona Maria, irmã do então prefeito da cidade, José Elias Abdalla, mais conhecido como Zelão. Interessado em desenvolver o potencial turístico e artístico da cidade, o prefeito ofereceu-lhes o único espaço disponível, um antigo matadouro desativado, onde poderiam instalar um ateliê sem quaisquer custos. Assim, em setembro de 1975 o grupo iniciou a mudança para Cunha e a montagem do ateliê apesar das condições precárias do espaço, sem água ou energia elétrica. O grupo transformou cinco antigos chiqueiros semi-abertos em ateliês individuais, onde cada um montou seu torno manual de madeira que Toshiyuki havia desenhado. Apenas Mieko tinha um torno elétrico trazido do Japão.

A construção do primeiro noborigama Após a instalação no antigo matadouro de Cunha, o grupo deu início à construção do tradicional forno japonês a lenha, o noborigama, sob as orientações de Toshiyuki Ukeseki. Durante três meses o grupo trabalhou e viveu em conjunto no ateliê, trabalhando na construção do forno durante o dia e dedicando-se à criação cerâmica, individual e experimentalmente, durante a noite. A argila era coletada das olarias locais e as rochas da região eram usadas para se fazer os esmaltes. Tudo era feito do modo mais natural possível e, muitas vezes, até improvisado.

Entretanto, para os habitantes locais, aquele grupo de jovens estrangeiros, cabeludos e barbudos, vestidos com roupas esquisitas, gerava um misto de curiosidade e estranhamento. Mieko recorda ainda do ambiente de troca e convívio que se estabeleceu no espaço do matadouro, que nos finais de semana sempre recebia visitantes de várias origens e lugares, interessados em conhecer o trabalho ali desenvolvido. Assim, os habitantes de Cunha estranhavam a presença de estrangeiros vindos de locais como China, França e Coreia, que se alojavam dias seguidos no matadouro e participavam das festas que aconteciam regularmente. Leí Galvão, com 14 anos na época, conta como a chegada do grupo do matadouro trouxe um projeto de vida e um comportamento totalmente diferentes da norma aceita numa pequena localidade rural do interior de São Paulo, à época ainda muito conservadora. Luiz Toledo, com seus 20 e poucos anos, também viu a vinda do grupo como uma verdadeira revolução. Mas rapidamente o grupo começou a se aproximar dos cunhenses e a fazer amizades na cidade.

Primeira queima e dissolução do grupo inicial Em dezembro de 1975, após dois meses de muito trabalho e dificuldades, o forno noborigama, composto de seis câmaras de queima e com cerca de 10 metros de comprimento, ficou pronto e o grupo efetuou a sua primeira queima coletiva, constituída pela produção de cada um. Mas logo depois deu-se uma dispersão do grupo inicial: Alberto Cidraes partiu para ficar um ano em Portugal e os irmãos Cordeiro mudaram-se para Teresópolis, no Rio de Janeiro, para montar seu próprio ateliê com forno noborigama. Ademais, os recursos financeiros do grupo tinham chegado ao fim e isso foi um dos fatores que contribuiu 27


para a divisão do grupo. A necessidade de fazer dinheiro para garantir a sobrevivência, centralizando o esforço na venda das peças, sobrepôs-se à utopia de uma vivência comunitária, naturalista e experimental.

tir à segunda abertura de fornada em Cunha, realizada em abril de 1976. Mais de uma centena de artistas da comunidade japonesa do estado, destacando-se a famosa pintora japonesa Tomie Ohtake, estiveram presentes na ocasião.

Primeira abertura pública de fornada e a chegada de novos aprendizes

Com o dinheiro arrecadado, os Ukeseki puderam instalar luz e água no ateliê e comprar um caminhão. Com ele começaram a levar as peças para vender nas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro e, nessa época, começaram a fazer exposições em várias cidades vizinhas.

No começo de 1976, restaram apenas Mieko, Toshiyuki e Rubi Imashi no ateliê. Foi nessa conjuntura que o grupo recebeu o seu primeiro ajudante e aprendiz, Luiz Toledo, um jovem morador do bairro do Lavapés, vizinho do ateliê, que assistira a toda a comoção provocada pela instalação do grupo inicial. Na época com 22 anos, Toledo tinha acabado de regressar a Cunha, onde crescera, após encerrar seu trabalho numa fábrica de celulose em Mogi das Cruzes, e costumava observar o trabalho dos ceramistas no Ateliê do Antigo Matadouro. Desde criança brincava com o barro na olaria do pai queimando suas peças juntamente com as telhas. Além disso, conhecia algumas paneleiras de Cunha, cujo trabalho viria a exercer-lhe grande influência. Suas primeiras funções no Ateliê do Antigo Matadouro eram preparar o barro, cortar a lenha e guardar as peças produzidas pelos ceramistas. Em troca, Toledo tinha direito a um torno de pé, que usava para fazer suas próprias peças. Toshiyuki Ukeseki, que hoje considera o seu grande mestre, era quem mais o orientava. Em 1976 Rubi Imanishi, regressou para São Paulo e os Ukeseki ficaram sozinhos no ateliê, enfrentando dificuldades financeiras. Foi neste contexto que decidiram recorrer ao ceramista Megumi Yuasa, que convidou a comunidade artística japonesa da capital paulistana para assis28

No final de 1976 Alberto Cidraes retornou a Cunha e integrou-se novamente ao ateliê do matadouro, mas logo em 1977 foi a vez de Mieko deixar a cidade e mudar-se para Teresópolis, onde dividiu ateliê com Vicente Cordeiro durante quatro anos. Foi nessa época que o jovem cunhense de 16 anos, Leí Galvão, procurou trabalho no matadouro. Desde a chegada do grupo em 1975, Leí havia passado muitas vezes em frente ao ateliê, movido pela curiosidade e pela vontade de entrar e conhecer seus habitantes. No entanto, sempre era repreendido pelos pais e foi apenas no final de 1977 que finalmente se apresentou aos membros remanescentes do grupo inicial. Leí lembra o momento como uma experiência surpreendente: “ali vi as possibilidades do fazer da cerâmica, com uma certa ingenuidade”, o que antes lhe parecia algo inatingível. Assim, conversou com Cidraes e começou a trabalhar como ajudante do ateliê, rachando lenha, limpando o forno e amassando o barro. Depois do expediente, Leí tinha permissão para tornear, técnica que aprendeu ao observar o trabalho dos outros ceramistas. Luiz Toledo foi promovido ao posto de torneiro, mas continuou a produzir suas próprias peças no tempo livre do ateliê, queimando-as em um forno primitivo construído no barranco, como o das paneleiras.


Em 1978 Toshiyuki partiu para o Japão, deixando Cunha por um longo período. Voltaria apenas 32 anos depois, em um programa organizado pelo Instituto Cultural da Cerâmica de Cunha em parceria e financiamento da Fundação Japão, em 2011. Assim, até 1984 restaram apenas Alberto Cidraes e a esposa Maria Estrela, a quem se juntou mais um aprendiz, Augusto Campos, a partir de 1981. Augusto Campos tinha 10 anos quando o grupo do matadouro chegou a Cunha, em 1975. Na época, lembra que costumava brincar de pega-pega perto do local, mas só tomou conhecimento do grupo cinco anos depois, quando foi lá pedir trabalho.

Forno noborigama do empresário Alberto Vásquez 29


AteliĂŞ do ceramista Luiz Toledo

30


3 . O ESTABELECIMENTO DOS ATELIÊS INDIVIDUAIS Os primeiros ateliês individuais com forno noborigama Em 1980 Luiz Toledo montou seu ateliê individual no espaço vizinho ao matadouro, que conciliava com o trabalho de torneiro. Mas logo se tornou um ceramista independente, dedicando-se totalmente à criação das suas próprias peças, que queimava em forno primitivo de barranco. Pouco depois, Toledo construiu um segundo forno, mais moderno, mas foi só em 1985 que ergueu um forno noborigama de uma câmara só, feito de tijolo comum, onde queimava suas peças a baixa temperatura. Em 1981 Mieko voltou para Cunha, onde ficou morando e trabalhando no Ateliê do Antigo Matadouro durante dois meses. Em 1982, iniciou a construção do seu próprio ateliê individual na região chamada Vila Rica, hoje famosa pela concentração de ateliês de cerâmica. Em 1983, ainda sem água ou luz, como na época da experiência coletiva no Antigo Matadouro, Mieko fez sua primeira queima no forno noborigama, que construiu com a ajuda de Leí Galvão. Era o início da década de 1980 e a cerâmica começava a ganhar espaço como arte, assistindose a uma proliferação de ceramistas, galerias, exposições e fornecedores. Assim, nessa época, devido ao incremento do trabalho, Mieko começou também a comprar argila pronta ao invés de depender inteiramente da coleta e preparação local. Em 1984 o artista plástico Mário Konishi mudou-se para Cunha e, pouco depois, juntouse ao ateliê de Mieko para se dedicar totalmente à cerâmica, formando o espaço hoje conhecido como Ateliê Mieko & Mário. Nessa época, a Pre-

feitura de Cunha pediu de volta o terreno do Antigo Matadouro e Cidraes acabou comprando um novo espaço no Cajuru, onde instalou sua residência e ateliê, que continuou chamando de Ateliê do Antigo Matadouro, com forno noborigama, no final de 1983. Em 1985 Cidraes e Maria Estrela viajaram novamente para Portugal e Augusto Campos, que já trabalhava no ateliê como ajudante, ficou responsável pelo espaço. Augusto lembra que foi nessa época que efetuou a sua primeira queima em noborigama. Apesar de participar frequentemente das queimas com Cidraes, aquela foi a primeira vez em que estave responsável por todo o processo sem o auxílio de um mestre ou ajudantes. Em 1988 foi a vez de Augusto Campos dar o passo para se tornar independente, através de uma sociedade com Leí Galvão, que partira para Juiz de Fora em 1983. Leí e Augusto chegaram a trabalhar juntos no ateliê de Alberto Cidraes, mas em horários e funções diferentes. Quando Augusto chegou passou a ser o responsável por preparar o barro e a lenha. Leí já trabalhava como torneiro. Foi só alguns anos mais tarde, em 1988, que surgiu a ideia de montarem um ateliê juntos. Assim, construíram um forno noborigama de três câmaras e começaram a produzir suas próprias peças e a vendê-las para as lojas de São Paulo e Rio de Janeiro. No final de 1988 havia então em Cunha cinco ateliês individuais, pertencentes a Luiz Toledo, Mieko Ukeseki e Mário Konishi, Alberto Cidraes e Maria Estrela, Gilberto Jardineiro e Kimiko Suenaga, Leí Galvão e Augusto Campos, todos com forno a lenha noborigama, herdeiros do grupo do Antigo Matadouro. 31


Em 1989, no local onde antes funcionava o Ateliê do Antigo Matadouro, foi criada a Casa do Artesão, que expunha as obras dos ceramistas da cidade, incluindo os trabalhos das paneleiras e outras peças de artesanato cunhense. A Casa do Artesão foi fundada e presidida por Mieko Ukeseki até 1990.

al e econômico da cidade. Na época Cunha ainda era um município pobre, com pouca indústria e desconhecida como destino turístico. A principal fonte de sustento dos seus habitantes vinha da agricultura e dos laticínios e, por isso, a maioria dos jovens saía da cidade a partir dos 16 anos para procurar trabalho em outras regiões.

A Casa do Artesão surgiu da necessidade dos ceramistas, que já trabalhavam individualmente em seus próprios ateliês, de contribuir ativamente para o desenvolvimento cultural, soci-

Mieko Ukeseki lembra a precariedade da vida dos habitantes da cidade à época da sua chegada com o grupo do Antigo Matadouro e a crescente desvalorização do artesanato regional. As paneleiras, que antes vendiam para quase toda a região e arredores, encontravam-se em extinção devido à chegada de outros materiais como o plástico e o alumínio. O forno a lenha deu lugar ao forno a gás e o modo de vida tradicional foi sendo arrasado pela chegada de tecnologias modernas. Foi perante essa realidade que surgiu a vontade de se preservar o artesanato rural e as técnicas tradicionais da região, e dar-lhes continuidade. Daí, surgiu a ideia de se criar a primeira organização de artesãos da cidade, que teria como objetivo principal constituir-se como um ponto de apoio para a comunidade rural, procurando preservar e valorizar as tradições da roça, como a produção de gameiras e pirões, a cestaria, a taquara e a cerâmica. A ideia era não só preservar e valorizar essas produções em vias de extinção, mas também dar condições para a sua continuidade ao organizar a sua comercialização, cadastrar os artesãos em atividade e possibilitar o acesso aos habitantes da zona rural. Assim, com o auxílio da Prefeitura, a Casa do Artesão foi inaugurada em 1989 com o objetivo principal de incentivar e desenvolver a cultura local. Contudo, nos últimos anos, a Casa do Artesão tem perdido o seu foco no incentivo e valorização do artesanato tradicional, transformando-se em ponto de venda para a produção da população das camadas mais baixas da cida-

32


de, que não têm condições de manter um ateliê próprio como os ceramistas.

A abertura de fornada e a afirmação de Cunha como polo de cerâmica artística A partir de meados da década de 1980, Cunha começou a crescer como polo de turismo rural, impulsionada pela abertura de pousadas e restaurantes por pessoas vindas de fora da cidade. Em 1985 o casal de ceramistas Gilberto Jardineiro e Kimiko Suenaga veio do Japão e estabeleceu ateliê em Cunha. A eles se deve a introdução do evento da abertura de forno, que contribuiu para trazer interessados em cerâmica à pequena cidade, poupando os ceramistas de se deslocarem para vender suas peças em São Paulo ou no Rio de Janeiro. Até então, os ceramistas viam-se obrigados a se deslocar para as capitais dos estados, batendo à porta de lojas e galerias para deixar suas peças em consignação. Isto implicava não só em grande custo de deslocação, mas em desgaste enorme para os ceramistas, impossibilitando o contato direto entre eles e o público, e obrigando a presença de um intermediário, que muitas vezes ficava com uma grande percentagem das vendas e que via o trabalho dos ceramistas mais como mercadoria que como arte. Jardineiro conta que até ao final da década de 80 cada ceramista tinha esquema próprio de colocação de suas cerâmicas, seus próprios clientes, entre colecionadores, galeristas de arte, arquitetura de ambientes, designers, lojas de cerâmica, móveis e presentes, e a quase totalidade da cerâmica produzida em Cunha era colocada nas capitais, principalmente no eixo São Paulo-Rio, por conta e risco dos próprios ceramistas.

No entanto, a introdução do evento de abertura de fornada em 1988 mudou completamente esse cenário. A ideia da realização desse evento surgiu da vontade de Jardineiro e Suenaga de compartilhar o momento de surpresa da abertura do forno com seus familiares e amigos, além de comemorar a inauguração do noborigama após três anos de construção e tentativas de queima. Com o sucesso do evento, o casal realiza hoje a prática cinco vezes ao ano, convidando amigos, turistas e interessados em cerâmica a participarem da comemoração que inclui a retirada das peças recém-queimadas do forno, acompanhada da exposição, comercialização e explicação do processo de produção. Com a grande repercussão das Aberturas de Fornada, aliada à introdução do Festival de Inverno de Cunha a partir de 1993, a cidade começou a consolidar-se como centro de atração turística, impulsionado também pela explosão do movimento de turismo rural a partir dos anos 1980. Ademais, a vinda de centenas de pessoas para Cunha para as primeiras aberturas de fornada gerou a necessidade de desenvolver informações sobre os locais onde essas pessoas poderiam se hospedar, alimentar-se e visitar. O evento da abertura de fornada impulsionou a criação do primeiro folheto turístico oficial da cidade em julho de 1993, ano da realização do Primeiro Festival de Inverno. Já em 1995 foi introduzido o evento “Acordes na Serra”, em parceria com a UNESP, que incluía apresentações de música erudita na Santa Casa de Cunha e de música popular na praça. Poucos anos antes, em 1992, o SEBRAE já entrara com um plano de desenvolvimento local e, em 1997, a Prefeitura de Cunha começou também a participar da organização do festival. Isto gerou a formação de grupos na sociedade de Cunha, que passaram a realizar programas de desenvolvimento em diversas áreas, assim como uma repercussão midiática que contribuiu não apenas para a expansão do 33


turismo na cidade, mas também para o desenvolvimento da própria cerâmica de Cunha. De fato, um dos grandes contributos da abertura de fornada foi trazer o público para dentro dos ateliês, aproximando artistas e interessados por cerâmica e possibilitando às pessoas o contato não só com as peças, como acontecia nas lojas e galerias, mas também com o próprio ceramista, permitindo-lhes o conhecimento de todo o processo envolvido na produção de cerâmica, desde a coleta da argila até a queima final. Para Jardineiro, a aproximação entre o público e o ceramista, proveniente do contato direto no ateliê, foi mutuamente benéfica. Ela não só liberou o ceramista da relação comercial com o mercado, como também propiciou ao público uma experiência didática decidiva na compreensão do fazer artístico. Isto foi ao encontro do ideal milenar da cerâmica: estar presente no cotidiano das pessoas e não apenas no pedestal de templos e galerias.

34

Inicialmente com cerca de vinte a cinquenta visitantes, a abertura da fornada do Ateliê Suenaga & Jardineiro recebe atualmente cerca de 350 a 500 pessoas por dia, a maioria deles vindos de São Paulo e do Rio de Janeiro, além de algumas pessoas vindas de cidades vizinhas como São José dos Campos, Taubaté, Guaratinguetá e Aparecida, e outros vindos de lugares tão distantes como o Ceará. Também o Ateliê Mieko e Mário conta com uma média de três mil visitantes por ano, com mais intensidade em janeiro e julho. E, segundo dados da Prefeitura, a cidade de Cunha recebe atualmente uma média de 130 mil visitantes anuais. Outro ateliê que decidiu introduzir o evento de Abertura de Fornada foi a Oficina de Cerâmica, de Leí Galvão e Augusto Campos. De fato, para Augusto, a concentração de fornos noborigama é o principal destaque da cidade de Cunha: “O diferencial de Cunha é o forno”, afirma. “Sem o noborigama, seria uma cidade qualquer de ceramistas. E é um forno muito complicado de trabalhar”.


Assim, a partir dos anos 1990, a cidade de Cunha tornou-se referência nacional e internacional na cerâmica de alta temperatura em forno a lenha, recebendo a visita de artistas, ceramistas, professores e estudantes de várias áreas, instituições e regiões, interessados na proliferação dos ateliês que concentram hoje as mais diversas técnicas, linguagens e influências na pequena mas prolífica região.

Nesta página: Queima em fogo noborigama no Ateliê Suenaga e Jardineiro Na página ao lado: À esquerda: Anotações da primeira queima em noborigama do Ateliê Suenaga e Jardineiro À direita: Um dos primeiros convites para o evento da Abertura de Fornada, do mesmo ateliê

35


Alunos do Instituto Cultural da Cerâmica de Cunha (ICCC)

36


4. A NOVA GERAÇÃO Entre 1975 e 1995 Cunha assistiu então à chegada do grupo do Antigo Matadouro, que passou as técnicas japonesas para os jovens da cidade, hoje com seus próprios ateliês: Luiz Toledo, Leí Galvão e Augusto Campos. Entre as técnicas trazidas pelo grupo do Japão destacamse o uso do torno para modelagem, a esmaltação da superfície das peças e a queima de alta temperatura em forno noborigama. Esse período assistiu ainda à dissolução do ateliê coletivo e ao estabelecimento de ateliês individuais, todos com forno tradicional japonês. Foi só a partir do final dos anos 1990 que novos ateliês de cerâmica com outros tipos de queima começaram a se instalar na cidade. Uma das primeiras ceramistas vindas de fora para montar seu ateliê em Cunha foi Sandra Bernardini, em 1999, que mantém até hoje no bairro do Paraibuna com forno a gás. Ela também realiza a famosa queima raku, uma versão americana do raku japonês, que hoje também pode ser vista nos ateliês de Felipe Zuñiga, Flávia Santoro e Mali e Wagner Gambaré. Outro ceramista que se estabeleceu em Cunha na mesma época foi o escultor e retratista Luciano Almeida, que fez sua primeira queima no ateliê de Leí Galvão e Augusto Campos em 1999. Depois de Sandra Bernardini, foi a vez do ex-publicitário José Carlos Carvalho estabelecer seu ateliê com forno a gás em 2001. Logo depois vieram Sandra e Cristiano Quirino, amigos de longa data de Alberto Cidraes, que também trabalham com forno a gás e que trouxeram para Cunha uma tradição inglesa de cerâmica de autor na produção de utilitários. Rapidamente chegou também o forno elétrico, com Clélia Jardineiro, e outros tipos de forno a lenha de estilo ocidental, construído primeiramente por Leí

Galvão e Augusto Campos e, mais tarde, no ateliê e pousada de Marivaldo Rodrigues. Assim, a partir dos anos 2000, mais de uma dezena de ceramistas vindos de fora, majoritariamente de São Paulo, decidiram mudar para Cunha, dando origem à proliferação de ateliês com diferentes tipos de queima existentes atualmente. Entre eles estão Anderson Canhadas (Ateliê Gralha Azul) e Paulo Ambrósio, em 2005, Graziela Awabdi (Ateliê da Grouze), em 2006, Nilvanda Rodrigues (Ateliê Nilvanda), em 2007, Yuan Mung, em 2008, Mali e Wagner Gambaré (Gaia Arte Cerâmica), em 2010, e Rogério David (Casa do Oleiro), em 2013. A maioria veio atraída pelo clima ameno da região, aliciados pela qualidade de vida e pela proliferação de ateliês. Alguns outros ceramistas estabeleceram-se na cidade, mas ficaram pouco tempo, como foi o caso de Sami Khozam, Gê de Castro e o casal Zahiro e Gitika Anand. Outros vieram e ficaram, mas não permaneceram na cerâmica. Em 2010 foi a vez da ceramista e educadora Flávia Santoro instalar seu ateliê-escola na região. Hoje o ateliê Flávia Santoro é conhecido por possuir a maior variedade de tipos de queima da cidade. Ela realiza a queima primitiva de buraco, o raku a gás, raku a lenha, queima a sal e saggar. E o mais interessante é que o público pode assistir a todo o processo. Outra ceramista que se mudou recentemente para Cunha foi Célia Flud, que manteve ateliê em Paraty durante dez anos. Seu ateliê Terra e Tal, hoje em fase de finalização, pretende estabelecer-se como um local de troca entre ceramistas, estudantes e interessados em cerâmica. 37


Nos últimos anos, a cidade tem recebido também ceramistas vindos de fora do país, como o chileno Felipe Zuñiga (2005), o escultor suíço Daniel Maillet (2007) e o ceramista francês René Le Denmat (2009), que introduziu em Cunha o celadon, um esmalte de origem chinesa geralmente utilizado sobre a porcelana. Ademais, o retorno de Toshiyuki Ukeseki para Cunha, em 2011, graças a uma parceria entre o Instituto Cultural de Cerâmica de Cunha (ICCC) e a Fundação Japão, contribuiu para o ressurgimento do interesse por um esmalte de origem chinesa, conhecido no Japão como tenmoku. Assim, em abril de 2011, depois de 32 anos ausente do país, Toshiyuki voltou pela primeira vez a Cunha para ministrar um workshop dedicado à produção de tenmoku a partir de uma mistura de ferro com materiais locais, como terra vermelha e cinzas de madeira. A proposta era resgatar o espírito de sustentabilidade e autossuficiência do grupo do Antigo Matadouro, de que foi um dos fundadores. Isto fez surgir um renovado interesse dos ceramistas da cidade por este tipo de esmalte, propiciando também a pesquisa de suas próprias receitas a partir do aprovei-

tamento de matéria-prima local. Alguns dos ceramistas que estão aprofundando esta pesquisa atualmente são Marcelo Tokai e Mateus Reis, aprendiz da pioneira Mieko Ukeseki. O retorno de Toshiyuki também contribuiu para a retomada do Encontro de Ceramistas em Paraty, que surgiu em 1979 da iniciativa e amizade entre o ceramista paratyense Dalcir Ramiro e os fundadores do Antigo Matadouro, Alberto Cidraes e Toshiyuki Ukeseki. A iniciativa teve como objetivo retomar a relação surigda nos anos 1970 e fortalecer o eixo histórico Cunha - Paraty, conectado pelo Caminho do Ouro desde o século 16 e separado com a deterioração da estrada. O último encontro havia sido realizado em 1982 e, portanto, no V Encontro de Ceramistas de Paraty, em 2011, Toshiyuki recebeu uma justa homenagem. Entretanto, a influência japonesa em Cunha não para por aqui. Em 2008, um casal de ceramistas vindos do Japão, Marcelo Tokai e Luciane Yukie Sakurada, têm contribuído para o renascimento do espírito de sustentabilidade e autossuficiência, característico da cerâmica japonesa e trazido para Cunha pelo grupo do Antigo Matadouro.

A partir da esquerda: Peça de Marcelo Tokai, com esmalte tipo shino, feito a partir de matérias-primas locais Taça para sakê de Toshiyuki Ukeseki Garrafas para sakê com esmalte celadon de René Le Denmat 38


Mais recentemente, alguns jovens formados em faculdades de artes plásticas têm vindo a Cunha beber da variedade e riqueza da cerâmica da cidade. Entre eles estão João Camillo, em processo de montagem de seu ateliê desde junho de 2014, e Fernando Aidar, que cursa artes plásticas na Universidade de São Paulo e veio para Cunha realizar estágio no ateliê de Alberto Cidraes.

Assim, hoje o visitante pode ver em Cunha uma diversidade de técnicas e tipos de queima, que vão desde a queima em baixa temperatura, como a queima primitiva de buraco ou o raku, passando pela queima a sal e saggar, até a queima de alta temperatura em forno noborigama, forno elétrico, forno a lenha ocidental e forno a gás. Atualmente, existem em Cunha mais de quarenta ceramistas em atividade e cerca de vinte ateliês abertos a visitação. Cunha acolhe também sete dos cerca de vinte fornos noborigama existentes no país, constituindo-se como o maior polo de concentração deste tipo de fornos na América do Sul. Os mais recentes noborigama de Cunha foram construídos na Oficina do ICCC (hoje desmontado) em 2010 e no ateliê e residência do empresário Alberto Vásquez, que abriu recentemente uma loja de cerâmica na entrada da cidade, a Aldea Terras de Cunha.

E, sobretudo, vários cunhenses têm-se formado como ceramistas nos ateliês mais antigos da cidade. Entre eles estão: Pedro Siqueira, que começou a trabalhar como ajudante no Ateliê Mieko e Mário, em 1985, e hoje é torneiro no ateliê de Leí Galvão e Augusto Campos; Mateus Reis, aprendiz e ajudante no Ateliê Mieko e Mário desde 2000, e hoje em processo de montagem do seu ateliê individual; Hélio Avelino Neto, funcionário do ateliê de Leí e Augusto desde 2004; Wellington Emmerich, formado no Instituto Cultural de Cerâmica de Cunha em 2012 e que, atualmente, trabalha na Oficina de Cerâmica; e Matheus Burger, ex-aluno da oficina do ICCC, que recentemente voltou de Portugal, onde realizou um intercâmbio na Faculdade de Belas Artes de Lisboa com foco na cerâmica. Outros ceramistas cunhenses que mergulharam mais recentemente na cerâmica são Benedito Luiz da Silva, mais conhecido como Dito Cajuru, e sua mãe, Dona Matilde, que tem dado continuidade ao trabalho das antigas paneleiras.

O aglomerado de ceramistas na região gerou, a partir de 2005, a necessidade de uma mobilização conjunta, que se traduziu em organizações coletivas de ceramistas e na realização de vários eventos. O ano de 2005 assistiu à introdução do I Festival de Cerâmica de Cunha e ao lançamento do livro sobre os 30 anos de forno noborigama na cidade que conta a história do gru-

Neste sentido, o casal do Atelier Gallery Tokai tem efetuado pesquisas de argilas e feldspatos locais com a intenção de reproduzir esmaltes típicos da terra do sol nascente, onde estudaram cerâmica por mais de dez anos na tradicional aldeia de Mashiko. A proposta é criar esmaltes de Cunha elaborados inteiramente a partir de matérias-primas locais, mas que reflitam o espírito e a sensação dos esmaltes tradicionais japoneses.

Neste sentido, a cidade de Cunha é hoje vista por muitos como o principal núcleo de cerâmica artística do país. Mesclando a tradição oriental com a tradição indígena-ibérica das paneleiras, os ceramistas de Cunha trabalham sob o conceito de cerâmica de autor, que se caracteriza pela produção de objetos únicos e em pequenas quantidades, por meio da execução de todos os estágios de produção no espaço do ateliê. Assim, o trabalho de cada ceramista apresenta uma estética diversa, fruto do desenvolvimento de diferentes técnicas, influências e tradições, cultivando sua própria identidade e expressão artística.

39


po pioneiro do Antigo Matadouro. Motivados pelo falecimento dos dois integrantes do grupo inicial, os irmãos Vicente e Antônio Cordeiro, Mieko e Cidraes sentiram a necessidade de escrever a história da cerâmica de Cunha desde a chegada dos primeiros ceramistas vindos do Japão. No ano seguinte, em 2006, foi fundada a Cunha Cerâmica – Associação dos Ceramistas de Cunha, uma organização profissional que tem como objetivo promover os interesses profissionais dos ceramistas, proporcionando um suporte para atividades de cunho comercial. A história da cerâmica em Cunha pode dividir-se então em quatro fases distintas. A primeira, antes de 1975, caracterizada pela produção de cerâmica de baixa temperatura pelas olarias e pelas paneleiras. A segunda, entre 1975 e 1980, que introduziu a tradição da cerâmica japonesa de alta temperatura e em forno a lenha com a chegada do grupo pioneiro do Antigo Matadouro. Uma terceira fase, entre 1980 e 1999, de instalação de ateliês individuais, herdeiros do grupo do Antigo Matadouro, todos com queima em forno noborigama. Esta fase assistiu ainda à introdução do evento de abertura de fornadas,

que contribuiu para o aumento do fluxo de visitantes na cidade e para a venda da cerâmica nos próprios ateliês. A última fase teve início nos anos 2000 e continua atualmente, caracterizada pelo estabelecimento de novos ateliês por ceramistas vindos de fora, muitos deles desvinculados da tradição japonesa e que trouxeram uma variedade de técnicas e queimas para a cidade. Esta última fase é caracterizada também pela organização coletiva dos ceramistas traduzida na fundação da Cunha Cerâmica, em 2006, e a institucionalização da cerâmica de Cunha, com a criação do ICCC – Instituto Cultural da Cerâmica de Cunha, em 2009.

A partir da esquerda: Escultura do pioneiro Vicente Cordeiro Detalhe de peça do ceramista José Carlos Carvalho Peça esmaltada pronta a entrar no forno, no Ateliê Leí & Augusto 40


5. O INSTITUTO CULTURAL DA CERÂMICA DE CUNHA A criação do Instituto Cultural da Cerâmica de Cunha – ICCC, em 2009, surgiu da necessidade de criar uma instituição focada no desenvolvimento cultural, social, econômico e educacional da região, abrindo possibilidades para o futuro desenvolvimento da atividade cerâmica em Cunha. Sem fins lucrativos, as atividades do ICCC são voltadas à realização de projetos para o desenvolvimento da arte cerâmica na região a partir de atividades pedagógicas voltadas aos jovens da cidade, de intercâmbios nacionais e internacionais, e da realização de cursos, workshops e experiências de imersão na cerâmica, direcionados tanto a profissionais quanto a leigos, habitantes ou visitantes da cidade. A ideia surgiu após uma visita de Mieko Ukeseki ao Parque de Cerâmica de Shiragaki, no Japão, criado em 1990, com o objetivo promover várias atividades relacionadas à cerâmica e desenvolver a cultura e indústria locais a partir do intercâmbio de pessoas, informações e materiais. A visita a este parque inspirou Mieko a elaborar um projeto semelhante para Cunha. O primeiro projeto do ICCC foi criar o Memorial da Cerâmica de Cunha que, com o apoio da Secretaria de Estado da Cultura pelo Proac, dedicou-se à identificação e catalogação do acervo de cerca de 200 peças em cerâmica produzidas pelos ceramistas do grupo pioneiro do Antigo Matadouro e pelas paneleiras da cidade. O projeto foi concluído em 2010 e, o seu acervo já pode ser consultado no website do museu virtual (www. mecc.art.br). Todavia, o objetivo final do projeto, que inclui a construção de um espaço físico para o memorial, ainda não foi alcançado por falta de financiamento.

O projeto do Parque Cultural da Cerâmica de Cunha inclui a construção de um parque temático em uma área central com 36 mil metros quadrados, permeado por caminhos e trilhas integrados com a mata ciliar preservada. A proposta é que o espaço reúna várias atividades relacionadas à produção de cerâmica e à valorização desta atividade como manifestação artística. O projeto do parque inclui um núcleo educativo, um núcleo museológico, um núcleo de pesquisa e desenvolvimento de novas tecnologias e produtos e um núcleo de desenvolvimento comercial. O Instituto Cultural da Cerâmica de Cunha foi fundado como consequência da publicação do livro comemorativo dos 30 anos da chegada do grupo do Antigo Matadouro e da documentação do acervo do futuro memorial. Ele veio da colagem de vários projetos encabeçados por várias pessoas, incluindo os remanescentes do grupo inicial, Mieko Ukeseki e Alberto Cidraes. 41


Os principais objetivos do ICCC são: propiciar condições de manutenção e crescimento da atividade de cerâmica artística no município de Cunha; difundir a arte da cerâmica, democratizando o seu acesso como lazer, fruição e ensino à população em geral; e promover e apoiar a formação e o aperfeiçoamento de artistas interessados na arte da cerâmica. As principais áreas de atuação são o ensino da cerâmica em seus aspectos técnicos, artísticos e como veículo de formação de caráter, personalidade e cultura; a reali-

zação de ações de pesquisa em parceria com instituições e pessoas físicas, nas várias disciplinas envolvidas na atividade cerâmica, no sentido de aprofundar e alargar suas fundações; o resgate e documentação da história da cerâmica em Cunha; e o intercâmbio nacional e internacional através de residências com incidência pedagógica de ceramistas e outros profissionais. Assim, apesar de o Instituto ainda não ter o espaço físico para exibição das peças do memorial, a criação da Oficina do ICCC tem possibilitado o acesso da população local à cerâmica, por meio de ações educativas e culturais, que incluem aulas de cerâmica para promover o intercâmbio entre os jovens e os artistas da cidade. Em maio de 2010 teve início o “Curso Básico de Cerâmica”, resultado de uma parceria tripartida entre o ICCC, o Governo do Estado e a Prefeitura Municipal. O curso é ministrado pelos ceramistas associados ao ICCC aos alunos da rede pública de ensino médio, de idades entre 14 e 18 anos, com duração de um ano. A articulação com as instituições locais visa a desenvolver os aspectos educativos, culturais e também de lazer que a prática da cerâmica proporciona. O público-alvo são as novas gerações e o objetivo é dar continuidade à atividade da cerâmica no município como fator formativo da pessoa, desenvolvendo a habilidade manual, a capacidade de pensar e a valorização dos materiais da terra para a autoexpressão e a autodisciplina. Eventualmente, o conhecimento adquirido pode levar à opção de a cerâmica se tornar o principal meio de subsistência.

Técnica denominada “caracol” para amassar a argila 42


Em 2012, o Instituto organizou, em parceria com a Cunha Cerâmica (Associação dos Ceramistas de Cunha), o VI Festival da Cerâmica de Cunha, quando, também, se realizou o I Seminário Internacional de Cerâmica na ArteEducação através de uma parceria com o Instituto de Artes da UNESP. No Festival tomou forma a ideia de uma aliança entre os ceramistas do Alto Vale do Paraíba, Litoral Sul Fluminense e Litoral Norte Paulista, que aconteceu através de uma exposição reunindo a maioria dos ceramistas de Cunha, Paraty e Caraguatatuba. Em 2014 foi realizada a primeira experiência de uma Feira de Cerâmica durante o Festival da Cerâmica em outubro. Atualmente o ICCC continua realizando o “Curso Básico de Cerâmica” para os alunos de rede pública, além de outras atividades voltadas à população local, como a comemoração do Dia do Ceramista a 28 de maio, que inclui apresentações de torno e raku na Praça da Matriz, com o objetivo principal de sensibilizar as crianças cunhenses para esta arte. Em 2015 foi dada continuidade à Feira de Cerâmica, realizada nos dias 5 de 6 de junho no espaço em frente ao ICCC, que incluiu a realização de cursos, palestras, workshops e oficinas, além de demonstrações de raku e a exibição de filmes sobre cerâmica. E, em agosto do mesmo ano, o ICCC teve a honra de receber o ceramista Takashi Nakasato, da 13ª geração da família Nakasato, com uma tradição de 300 anos de história de produção cerâmica na região de Karatsu, sul do Japão, para uma demonstração de modelagem em torno.

43


44


CAPÍTULO II DA TERRA AO FOGO: O PROCESSO DA CERÂMICA EM CUNHA

45


Panela de barro, Museu Municipal Francisco Veloso

46


A

cerâmica é uma das manifestações culturais mais antigas do planeta. O hábito pré-histórico do cozimento de argila resultou, em um primeiro momento, na criação de estatuetas de figuras humanas de uso religioso a partir de 29.000 a.C., no período paleolítico, quando os grupos humanos ainda eram nômades e dependiam da caça e coleta para subsistência. A mais antiga peça de cerâmica conhecida, a Vênus de Dolní Vìstonice, data dessa época. A estatueta representa uma figura feminina, provavelmente símbolo de fertilidade, encontrada na República Checa juntamente com outras figuras em cerâmica representando animais. De um período posterior, cerca de 18.000 a.C., datam os fragmentos do que seria o primeiro utensílio em cerâmica conhecido, possivelmente um caldeirão para cozinhar alimentos ou para a fermentação de bebidas, escavados na caverna Xianrendong, na província Chinesa de Jiangxi. Nesses períodos mais antigos, a cerâmica não era somente necessária, mas também popular, sua tecnologia sendo criada, esquecida, reinventada e perdida novamente. Com a sedentarização e o estabelecimento da agricultura e pecuária por volta de 5.000 a.C., a cerâmica começou primeiro a ser usada para a fabricação de telhas e tijolos e, depois, como recipiente para armazenamento, consumo e processamento de alimentos. O processo básico de manufatura de cerâmica é essencialmente o mesmo em todo o mundo. Mas cada civilização desenvolveu o seu próprio estilo utilizando os materiais que estavam mais à mão. Ademais, ao longo dos seus milhares de anos de história, a cerâmica foi sendo melhorada com a invenção de novas técnicas de trabalho. No caso do Japão, praticamente todas as possibilidades de cozimento, da argila, das cinzas de madeira, vegetais e folhas foram sendo utilizadas de modo a obter os efeitos de superfície e esmaltes característicos da cerâmica japonesa. Em Cunha, uma das características mais importantes é a ampla gama de técnicas utilizadas pelos ceramistas atuantes hoje na cidade, que tiveram formações diversas, provenientes de vários lugares do Brasil e do mundo. Essa variabilidade está presente nos muitos fatores de cada etapa da manufatura das obras, desde a utilização de diferentes massas de argila, as múltiplas formas de modelagem, o tipo de queima em diferentes fornos, os esmaltes aplicados e outras técnicas de acabamento e finalização das peças.

47


2.1. A ARGILA O barro é extraído da natureza pelo próprio ateliê, na região onde este fica localizado. Extraído de terreno úmido, é deixado ao ar até secar. Os torrões secos são socados num pilão e peneirados e o pó assim obtido é misturado com água num tanque, até formar pasta. A pasta é colocada sobre telhas de barro, onde seca até se tornar massa. Esta é amassada manualmente e estocada em caixas de cimento. O barro pode ser simples ou uma mistura de vários barros (Alberto Cidraes). A argila é produto direto do envelhecimento geológico da superfície da terra. A crosta terrestre foi se formando ao longo de bilhões de anos através de mudanças causadas nas rochas pela ação da água do mar. O sal do mar, inclusive, é resultado da dissolução das rochas pela ação da chuva. Montanhas inteiras foram lavadas para o oceano nessas eras geológicas. A argila é produto dessas dissoluções de rochas. Quando se retira a maior parte do material solúvel dessas rochas desintegradas o que sobra é justamente a argila, principal material-prima para a fabricação de cerâmica. Material denso, úmido e maleável, a argila é composta de minerais de silicatos, metais e matéria orgânica que, ao juntar água, se tornam plásticos e possíveis de trabalhar. A argila pode ser extraída de depósitos geológicos – mais conhecidos como barreiros – formados a partir da decomposição das rochas.

Jazida de argila nos arredores da cidade, de onde é retirado material para produção de telhas e tijolos 48

Apesar de alguns depósitos de argila serem suficientemente puros para uso direto, a maioria da argila é encontrada com muitas impurezas (principalmente areia), o que influencia no momento da modelagem e da queima. Por esse motivo, ela normalmente passa por um proces-


so simples de tratamento, que basicamente consiste em: coletar a argila bruta, secá-la, moê-la, dissolvê-la em água e, finalmente, peneirá-la para a remoção dos grãos maiores. A partir daí é possível se adicionar vários minerais para agregar diferentes características à argila como quartzo, areia ou cinzas vulcânicas, de modo a equilibrar sua porosidade, permeabilidade, plasticidade, temperatura de cocção, resistência mecânica, resistência ao choque térmico e outros, de acordo com sua função e técnicas utilizadas pelo ceramista. A argila pode ter várias cores: do branco ao preto, passando pelo castanho, laranja ou vermelho, amarelo ocre e até um esverdeado ou azulado. Em Cunha são utilizadas argilas das mais variadas fontes. Há quem utilize argila retirada diretamente do próprio terreno. Há quem a processe, remova as impurezas e agregue outros complementos para adquirir as características desejadas. Argilas mais claras, entretanto, não são abundantes no município. Em Cunha, existem apenas em alguns lugares, diferentemente da argila de cor mais escura, que pode ser encontrada em abundância em diferentes regiões. Quem busca argilas mais claras ou com alguma plasticidade ou característica espe-

cial costuma comprar da indústria nacional ou importada. Muitos ceramistas preferem, ainda, misturar argilas de Cunha com argilas que passam por processos industriais de preparação para conseguir obter o equilíbrio que buscam para suas peças. Cada trabalho exige que a argila tenha certo grau de plasticidade. A cor da peça queimada é função dos componentes presentes na própria massa. Esses componentes podem fazer com que uma argila se funda a uma temperatura não muito alta, o que impossibilita que ela seja utilizada em fornos de alta temperatura, pois as peças poderiam se deformar e até derreter.

Argila em várias fases de preparação: bruta, moída, em água e final

Vários tipos de argila: argila branca primária com caulim, refratária; argila amarela tipo de olaria; argila cinza secundária, refratária e mais plástica 49


2.2. A MODELAGEM Um barro pode ser puro ou misturado com outros barros, ou ainda com materiais como feldspato, cinza ou chamote. A formação das peças pode seguir métodos variados que vão do torno à modelagem livre. Ainda cruas e molhadas, podem ser mergulhadas em engobes de barro de cor diferente e sofrer um tratamento de faca (entalhe ou textura) ou outra ferramenta. Ao secarem, elas são queimadas a mais ou menos 800 graus, o que é conhecido como queima de biscoito. Passam, depois, pela esmaltação e finalmente são queimadas a uma temperatura variável entre 1280 e 1300 graus (Alberto Cidraes). Após a secagem a argila é amassada para se eliminar as bolhas de ar e homogeneizar a massa. Existem várias técnicas para se amassar a argila, desde golpeá-la com toras de madeira ou comprimindo-a repetidamente com os pés descalços, até ao uso das mãos, criando formas como a chamada “cabeça de boi” ou o “caracol”, esta última utilizada no Japão. Outra técnica de origem coreana consiste em bater a argila em placas com um instrumento de madeira específico para essa função. Depois da argila amassada e homogeneizada, pode dar-se então início à modelagem. Devido ao seu caráter plástico, a argila pode ser modelada livremente à mão para criar esculturas, como as figuras humanas e animais fabricados nos primórdios da civilização humana, há mais de 25 mil anos. No caso de recipientes para uso doméstico, uma das técnicas mais antigas é a modelagem manual através do acordelado (sobreposição de tiras de argila) ou da técnica do beliscão (efetuada a partir da pressão do dedo polegar numa bola de argila para se criar uma abertura). O tra50


balho da argila unicamente com as mãos gera superfícies irregulares, muito apreciadas no Japão, especialmente na cerimônia do chá, mas que podem ser retificadas através do uso de um fio metálico. O método de acordelado continua sendo utilizado até hoje especialmente na fabricação de vasos de grandes dimensões elaborados com o auxílio do torno. Atualmente a técnica mais comum na produção de recipientes de cerâmica é através do uso do torno ou roda de oleiro, inventado há mais de cinco mil anos na antiga Mesopotâmia. A sua introdução contribuiu para o aumento da capacidade de produção, organizando a atividade cerâmica em oficinas. Com isto, a cerâmica saiu do âmbito doméstico e feminino, adquirindo um caráter masculino e especializado que respondeu à demanda de sociedades em crescente desenvolvimento. Os primeiros tornos eram formados por dois planos circulares unidos por um eixo central. A roda inferior, mais ampla, imprimia um movimento de rotação ao disco superior, de tamanho menor, onde se colocava a massa de argila para modelagem. Estes primeiros tornos eram acionados a mão, normalmente por um ajudante do ceramista, e só mais tarde se introduziu o torno de pé, no qual o disco inferior é acionado com o pé pelo próprio oleiro ou mediante a ação de um motor elétrico, no caso dos modelos mais atuais. O torno de oleiro pode girar em sentido horário ou anti-horário, dependendo da região e da preferência do ceramista. No caso de o torno girar no sentido anti-horário (e do ceramista ser destro), a mão direita opera normalmente no interior do recipiente. Este processo de trabalho sobre o interior da peça é geralmente associado à cerâmica japonesa que, pela a sua estreita relação com a culinária, tem a tradição de dar maior preferência à parte interna. Entretanto, mesmo no

Japão, o sentido de rotação do torno varia de acordo com a região. Outra técnica recorrentemente utilizada na modelagem da argila é a partir da elaboração de placas. A vantagem das placas relaciona-se com o fato de permitirem a fabricação de objetos diversos, aproveitando-se as possibilidades plásticas da argila: ela pode ser pega, curvada e enrolada como se fosse um papel. Depois de uma primeira secagem, as placas podem ser recortadas e unidas com a ajuda de barbotina, reforçando-se a união com golpes sobre argila nos pontos de adesão. Uma técnica de modelagem mais recente consiste no uso de moldes de gesso para se obter a forma desejada. Existem ainda outros tipos de moldes, como moldes de pressão, manuais, mecânicos e outros. Todos eles têm como vantagem permitir a repetição de uma mesma forma. Depois de se obter a forma desejada, o objeto em cerâmica pode ser manipulado e alterado de diversas formas. Excessos de argila podem ser aparados e removidos com um objeto cortante e elementos adicionais podem ser acrescentados, como a asa e o bico de um bule, por exemplo, após a secagem da peça até ao chamado ponto de couro. Ela também pode ser decorada antes ou depois da queima, através de técnicas como o polimento, incisão, impressão, esgrafito, pintura, engobe ou esmalte. Depois disso, a peça é secada e levada ao fogo, o que a transforma em um material mais duro, resistente e durável.

Na página ao lado: Foto de cima: Técnica de modelagem em beliscão (em inglês, “pinch pot”) Embaixo: Técnica de modelagem em acordelado 51


2.3. ENGOBES E ESMALTES

lorido e deixá-la secar para depois tirar o engobe, sobrando apenas o desenho inciso na cor do engobe aplicado.

Os esmaltes usados são infusões aquosas de rochas pulverizadas, eventualmente misturados com cinzas ou óxidos metálicos. O combustível empregado na queima é a lenha, geralmente eucalipto. Cada ciclo de queimas (biscoito e esmalte) consome aproximadamente 8 m2 de lenha (Alberto Cidraes).

Uma técnica semelhante é a aplicação de corantes metálicos (principalmente óxidos, de ferro, manganês ou corantes) nos vincos e rugas de uma peça para sobressaltar a tridimensionalidade. Eles podem ser esfregados nas peças e removidos com um pano para que a sobra no fundo dos vincos sobressaia, mesmo embaixo de esmaltes.

Depois da peça modelada e com sua forma definida, muitas intervenções podem ser realizadas na superfície antes da queima final. A peça pode ficar em estado natural, como modelada, mas o mais comum, na cerâmica contemporânea de Cunha é a aplicação de esmaltes e engobes. Basicamente, os engobes são argilas líquidas de colorações diferentes, utilizadas para alterar a cor original da peça. A cor natural do engobe pode ser modificada ao se adicionar certa quantidade de óxido colorante. Geralmente, a decoração com engobes é efetuada quando a peça está crua, mas já no ponto de couro. A aplicação do engobe permite o uso de uma técnica chamada esgrafito, que consiste em, após a aplicação da camada de engobe, realizar desenhos com alguma ferramenta (pode ser um simples estilete ou agulha) que remova a primeira camada, deixando o desenho aparecer pelo contraste entre as diferentes cores de barro. A aplicação de uma cobertura final de esmaltes cobrindo o esgrafito é outra variação à disposição do ceramista. Engobes também podem proporcionar superfícies interessantes quando o artista busca uma superfície não vítrea para sua peça. No entanto, hoje já existem esmaltes opacos e foscos que proporcionam efeitos semelhantes. Outra possibilidade de decoração é fazer incisões na peça, cobrindo-a com um engobe co52

Processo de adição de alça pelo ceramista Marcelo Tokai


Sabe-se que, há cerca de cinco mil anos, certos tipos de esmaltes já eram utilizados para cobrir objetos cerâmicos. Esta técnica desenvolveuse na zona do Mediterrâneo, em parte devido às relações comerciais entre a China, Turquia e Pérsia. No Egito, por exemplo, aplicavam-se sais de chumbo solúveis que geravam uma superfície brilhante e cristalina formada pela fusão, durante o cozimento de 850-950ºC, dos sais contidos na argila. No entanto, hoje em dia, sabemos que o uso de chumbo nos esmaltes de baixa temperatura tem propriedades tóxicas e, por isso, não deve ser utilizado em utensílios para conter bebidas ou alimentos. Entretanto, na China, na Coreia e no Japão, desde o século 5 já eram aplicados esmaltes que alcançavam temperaturas de 1200 a 1350ºC, o que foi possível devido ao desenvolvimento de fornos horizontais como os anagama e noborigama. Estes primeiros esmaltes eram basicamente constituídos por argila, feldspatos e cinzas de madeira e as peças eram queimadas em atmosfera oxidante ou redutora, proporcionando efeitos de superfícies muito apreciados nesses países. Basicamente, o esmalte consiste numa camada ou recobrimento vítreo que é fundido na superfície da cerâmica durante a queima. Composto essencialmente por uma mistura de minerais pulverizados, ele pode ser aplicado por imersão, pulverização ou com um pincel sobre a superfície da cerâmica em biscoito, na forma de uma pasta líquida. Além do caráter decorativo, o esmalte tem um motivo funcional, impermeabilizando as peças para uso. Normalmente, no uso de esmalte, as peças são primeiramente queimadas a baixas temperaturas, o que é chamado de queima de biscoito (normalmente entre 600 e 1000ºC). O biscoito permite que a peça adquira maior resistência, podendo ser manipulada de maneira mais fácil do que o barro seco cru, que é bastante frá-

gil. Quando o barro seca, perde a plasticidade, não se deformando mais. No entanto, as suas moléculas ainda não estão presas umas às outras, permitindo a aplicação de esmaltes e engobes. Após a aplicação do esmalte, as peças vão novamente ao forno. Esta queima final é o que caracteriza a peça como uma cerâmica de baixa ou alta temperatura. A formulação dos esmaltes tem que ser adequada para fundir com o corpo cerâmico a esta temperatura final. Este tem que derreter, sem escorrer demais, nem queimar a ponto de borbulhar ou criar falhas na superfície. O excesso de temperatura também pode fazer com que seus corantes se evaporem, perdendo a peça a coloração desejada. Assim, a aparência final de um esmalte não depende apenas dos materiais usados para produzi-lo, mas também das condições de temperatura e da atmosfera dentro do forno durante a queima. Esmaltes queimados em atmosferas oxidantes tendem a gerar cores claras e brilhantes, enquanto a queima redutora dá origem a efeitos mais irregulares. Há também um tipo de queima especial na qual a peça é esmaltada durante a própria queima através das cinzas da lenha depositadas na superfície das peças. Esta técnica tem sido utilizada no Japão desde o século 5 e é provável que sua descoberta tenha sido totalmente ocasional, já que o cozimento alcançava temperaturas de 1200 a 1400ºC, suficientes para fundir a cinza de madeira. Nesta ocasião, as cinzas são transportadas pelos produtos de combustão que saem pela chaminé e, ao se fundir, depositam-se na superfície das peças, formando uma película vítrea colorida. Desde a sua descoberta, a esmaltação com base em cinzas de madeira, plantas e folhas tem sido aperfeiçoada no Japão, mas podem ser também preparados esmaltes à base de cinzas, aplicados antes da queima. 53


54


2.4. A QUEIMA A queima de cerâmica tem duas funções essenciais: tirar a água da peça e transformar a argila em cerâmica através da vitrificação da massa, transformando-a de modo irreversível. Para queimar a cerâmica existem diversos tipos de fornos, cuja estrutura varia de acordo com a região e época, e também com o tipo de combustível utilizado para obter a temperatura desejada. Na pré-história o tipo mais primitivo de forno era a céu aberto. Mais tarde surgiu o forno de buraco, no qual o cozimento era obtido a temperaturas baixas que variavam entre os 600ºC e 900ºC, geralmente em uma simples cova escavada no solo, alimentado a lenha e coberto por folhas, galhos e outros materiais orgânicos. Gradualmente, os fornos primitivos foram evoluindo para vários tipos de fornos em que a fornalha era separada da câmera de cozimento, onde as peças eram queimadas. Isto permitiu um controle mais preciso da combustão, minimizando o número de perdas. Os fornos podem dividir-se em duas categorias principais: os de estrutura vertical, usados principalmente no Ocidente; e os de estru-

tura horizontal, desenvolvidos no Oriente. No primeiro, o calor é produzido na fornalha colocada na parte mais baixa do forno e os produtos da combustão saem pela parte superior. Já no segundo, a fornalha e a chaminé encontram-se dispostas em dois extremos e o calor segue uma trajetória horizontal, saindo pelo extremo do forno. Atualmente existem vários tipos de fornos, que são basicamente um espaço insulado como um forno de cozinha, mas que podem atingir altas temperaturas (normalmente até 1400ºC). Dependendo da combinação de matériasprimas usadas e da atmosfera e temperatura dentro do forno, um objeto em argila pode resultar em diferentes corpos cerâmicos, que dão origem a peças mais ou menos resistentes, translúcidas e porosas. Os tipos de corpos cerâmicos mais conhecidos são: terracota (até 1000ºC), grés (até 1300ºC) e porcelana (até 1280ºC). Em Cunha, são utilizados fornos que aquecem por combustão, movidos a lenha ou a gás (GLP), e fornos elétricos. Taça de chá em 4 fases de produção: crua, biscoitada, esmaltada e final (Ateliê Suenaga e Jardineiro)

55


Forno elétrico Os fornos elétricos são normalmente cilindros (às vezes cubos) de tijolos ou materiais isolantes com várias reentrâncias ao longo de sua circunferência, onde são localizadas resistências elétricas. Essas linhas de resistências são distribuídas ao longo da altura dos fornos, e ao aquecerem, aumentam a temperatura do forno, fazendo a queima da cerâmica. Eles são muito mais fáceis de ser operados do que os outros fornos, uma vez que hoje são quase sempre eletrônicos, automatizados e

programáveis. Assim, o ceramista pode programar o forno para executar uma “curva de queima”, isto é, ele programa o forno para que a temperatura suba na velocidade desejada, podendo subir mais lentamente nos pontos críticos, e ainda pode manter a temperatura por um patamar de tempo no momento desejado. A praticidade dos fornos elétricos faz com que muitos ceramistas prefiram esse tipo de forno, já que não é necessário estar presente durante as muitas horas de queima. Por não haver chamas (combustão), a temperatura de todo o forno normalmente é constante e o resultado das peças pode ser bastante homogêneo, diferentemente dos fornos a combustão, que dão resultados mais irregulares. Se alguns ceramistas valorizam esse controle maior sobre o resultado que o forno elétrico permite, isso desagrada aoutros que preferem as marcas da chama nas peças durante as queimas. Por não haver queima propriamente dita (pois não existe fogo), o forno elétrico também não produz fumaça, sendo assim mais apropriado para lugares fechados e cidades. Entretanto, uma desvantagem desse tipo de queima é que sua atmosfera é naturalmente oxidante.

56


Forno a gás Os fornos a gás difundiram-se especialmente nos últimos 50 anos. A sua vantagem em relação ao forno elétrico é o custo menor de manutenção, além de permitir maior economia de energia. Outra vantagem é a possibilidade de se obter várias espécies de combustão, da oxidante à redutora, já que permite um controle mais fácil da atmosfera, criando os efeitos de esmaltes desejados. Dependendo do posiciona-mento das peças, estas podem sofrer maior efeito da redução do forno. Também uma maior proximidade das chamas e o contato com elas podem criar efeitos diversos, apreciados por muitos ceramistas. Neste sentido, o forno a gás permite uma gama de cores e esmaltes mais diversificados que o forno elétrico, possibilitando aos ceramistas sem forno a lenha obter os efeitos de surpresa característicos da presença do fogo e das chamas.

Shuttle kiln do ceramista e escultor suiço Daniel Maillet 57


Fornos a lenha O forno a lenha é um dos tipos mais antigos de forno usados durante séculos por ceramistas das mais diversas regiões. Sua vantagem é a possibilidade de se obter efeitos de superfície, com ou sem o uso de esmalte, decorrentes da ação do fogo e das cinzas da lenha. No Oriente os fornos a lenha costumam ser de chama direta, isto é, deixando os objetos em

contato direto com as chamas, proporcionando efeitos surpreendentes. As cinzas que saem da fornalha fundem-se a uma temperatura entre 1200 e 1250ºC e, ao serem transportadas pelos fumos da combustão que saem pela chaminé, podem criar efeitos inesperados de transparência e cor ao se depositarem sobre os esmaltes aplicados. Esses efeitos gerados pela ação das cinzas e do fogo, em grande parte incontroláveis pelo ceramista, é que proporcionam à queima a lenha a sua magia. Entretanto, este efeito das cinzas, como vimos, só pode ser obtido em fornos de alta temperatura devido à sua temperatura de fusão. Foi precisamente no Oriente, mais especificamente na China, que surgiram os primeiros fornos passíveis de alcançar altas temperaturas de até 1350ºC. No Japão, esta técnica de origem chinesa foi introduzida por volta do século 5, com a construção de um tipo de forno horizontal alimentado a lenha: o anagama, em japonês, “forno de buraco” ou “forno subterrâneo”.

Forno noborigama do Ateliê Suenaga e Jardineiro 58


Fornos anagama O anagama consiste em uma câmara de queima com uma fornalha alimentada a lenha numa extremidade e uma chaminé na outra. Sua estrutura é geralmente escavada em aclive, não existindo separação entre a fornalha e o espaço onde as peças são dispostas. A lenha é jogada entre as peças durante todo o processo, o que faz com que as cinzas subam durante a queima e se depositem sobre as superfícies, geralmente sem esmalte. Os fornos anagama são queimados e mantidos em altas temperaturas de cerca de 1200ºC, entre 48 horas e doze dias. Isso faz com que a grande quantidade de cinzas depositadas sobre as peças se derreta, formando uma camada vítrea que, pela ação dos depósitos e das chamas, adquire colorações inesperadas, com a mistura de tons brancos, azuis, verdes ou amarelos. Assim, as peças colocadas sem esmalte ficam esmaltadas pelo próprio depósito das cinzas. Isto permite a produção de superfícies impermeáveis e vidradas através das cinzas da lenha em suspensão. Mais tarde o forno anagama de uma só câmara evoluiu para o noborigama que, devido à existência de várias câmaras de queima, permitiu atingir temperaturas de até 1350ºC.

Forno anagama do Ateliê Cosmos 59


O antes e o depois da queima final. Oficina de Cerâmica, de Leí Galvão e Augusto de Campos 60


Forno Noborigama O forno noborigama (em japonês, “forno que sobe”), foi introduzido no Japão no século 16. Ele surgiu na China como uma evolução do anagama de uma só câmara, que se desenvolveu com a introdução de várias câmaras de queima e a separação da fornalha. Isto permitiu melhor aproveitamento do calor, possibilitando atingir temperaturas de até 1350ºC. Em relação ao anagama primitivo, ele apresenta três grandes modificações: sua estrutura é construída a partir de tijolos refratários, que otimizam a contenção do calor em seu interior; seu desenho, em arcos permite um controle mais homogêneo das câmaras; o modo ascendente dos degraus contribui para melhor distribuição do calor por todo o espaço interno. Ele é, por natureza, um gigante: devido às suas dimensões: em Cunha há fornos com mais de 12 metros de comprimento; em seu espaço interno: capaz de acomodar centenas de peças; na capacidade de atingir altas temperaturas: há Ateliês que queimam peças a 1400°C; no tempo de queima: entre 26 a 40 horas ininterruptas; na quantidade de lenha necessária para aquecê-lo: cerca de 5m³ apenas para queima em alta temperatura; no número de tijolos necessários para sua confecção: consideramos razoável apontar cerca de 1.000 para cada câmara, dependendo das dimensões a serem aplicadas (José Kleber da Silva).

Em Cunha existem atualmente sete fornos noborigama em atividade. A queima começa em um grande compartimento, a fornalha, onde uma grande quantidade de lenha é queimada até atingir uma temperatura entre 1200 e 1250ºC, o que demora cerca de 12 horas. Aí começa então a queima do segundo patamar, isto é, a primeira câmara, onde ficam as peças, e que, nesse momento, já deve estar a uma temperatura bastante elevada. Nesta fase a lenha vai sendo colocada diretamente na câmara de queima até atingir a temperatura desejada (normalmente cerca de 12801300ºC). Posteriormente, passa-se a jogar lenha na segunda câmara de peças até esta alcançar a mesma temperatura, e, assim, consecutivamente, até que todas as câmaras atinjam a temperatura desejada. A lenha deve ser constantemente inserida no forno, em intervalos de poucos minutos, desde o início ao fim da queima, que pode durar de 20 a 48 horas. Uma característica interessante dos fornos a lenha de alta temperatura é que a chama entra pelo lado da frente das câmaras, as atravessa e sai pela parte de trás (em lâminas que podem chegar até sete metros). Assim, as faces das peças que estão viradas para frente recebem a ação direta da chama. Como no Brasil o solo é extremamente rico em ferro, as madeiras utilizadas para alimentar os fornos também o são. Por isso, as peças tendem a ganhar uma coloração avermelhada que dá um efeito especial e demonstra a ação direta do fogo durante a queima.

61


62


Forno noborigama do AteliĂŞ Suenaga e Jardineiro 63


Forno ocidental a lenha Tipo de forno a lenha de estrutura vertical, com uma ou mais fornalhas dispostas embaixo da câmara de queima, onde as peças são colocadas, fazendo com que o calor suba, passe pelas peças e saia pela chaminé localizada na parte de

cima. Inventado no Ocidente, começa a ser usado para queima de alta temperatura no século 18, com o aparecimento dos tijolos refratários.

Forno Ocidental da Oficina de Cerâmica, de Lei Galvão e Augusto Campos 64


Como se não bastasse toda essa magnitude, o domínio de seus “humores” relaciona-se diretamente com uma mística votiva expressa de diferentes formas nos ateliês. Em alguns deles encontramos sobre a fornalha uma peça feita pelo ceramista figurando como um totem a proteger o forno de eventuais intempéries ou qualquer tipo de situação que, porventura, possa vir a causar algum desequilíbrio no processo de queima. Um recipiente com saquê para alegrar os “deuses” que regem os elementos da natureza (água, terra, ar, fogo), uma pequena vasilha de arroz com votos de fartura para a casa e uma ramagem verde evocando a beleza singela da natureza também figuram como elementos pertencentes a esta vivência que envolve, com inúmeras variações formais e conceituais, a produção ceramista desde seus primórdios (José Kleber da Silva).

“Protetor de queima”

Cones pirométricos

Eles sempre despertam a curiosidade nos visitantes. O que são e para o que servem estes pequenos elementos de cerâmica presos a uma base de argila? Os cones pirométricos são termômetros, elementos indispensáveis para o controle da queima nos fornos. São posicionados dentro das câmaras de queima, em lugares onde possam ser observados pelo lado externo através de pequenos orifícios, que podem ser abertos e fechados. Cada cone amolece e cede a uma determinada temperatura. O ceramista, então, prepara seu kit alinhando cones que reagem a temperaturas crescentes de, por exemplo, 1.250ºC, 1.280ºC, 1.330ºC, 1.350 e 1.380ºC. Dessa forma, quando o ceramista observa pelo orifício e vê o primeiro cone amolecendo, ele sabe que a temperatura naquela câmara atingiu os 1.250ºC, e assim por diante. Assim ele sabe se é necessário ou não colocar mais lenha na fornalha, se a temperatura desejada já foi atingida ou ultrapassada (Johnny Mazzilli). 65


Queima de buraco A queima de buraco foi um dos primeiros métodos descobertos pelo homem para queimar a argila, há cerca de 30 mil anos. Este processo é normalmente realizado em um buraco escavado no solo, ou em um poço, no qual as peças cruas são colocadas e cobertas com materiais combustíveis como lenha, folhas, galhos, serragem, estrume, óxidos metais, sais e materiais orgânicos. Antes da entrada no forno as peças podem ser decoradas, polidas ou receber engobes como terra sigillata. O forno de buraco pode ser depois coberto com argila úmida, cacos de cerâmica, pedaços de madeira ou defletores de metal. O buraco é então incendiado e queimado até a maioria do combustível interior ser consumida. As temperaturas máximas atingíveis giram em volta dos 800°C. Neste processo todas as cores e padrões são derivados da própria queima, decorrentes da ação do fogo e da matéria orgânica, já que não são usados esmaltes. Os materiais queimados juntamente com as peças vão evaporar e, se as peças estiverem suficientemente quentes, vão entrar nos poros da argila criando efeitos especiais; senão, as peças ficarão com uma cor preta, cinza ou branca. Após o arrefecimento, as peças são removidas e limpas, revelando padrões e cores deixados pelos depósitos das cinzas e do sal. As peças podem depois ser polidas de modo a se criar um acabamento suave e brilhante. Existem várias possibilidades na realização da queima de buraco. Algumas delas incluem a queima com saggar e queima a sal, através da utilização de vários tipos de sais, óxidos e materiais orgânicos variados. 66

Ceramista Flávia Santora efetuando queima de buraco com uso de sais e saggar


Queima de saggar A queima de saggar é uma técnica de criação de atmosferas fechadas dentro de um recipiente (saggar) usado para proteger as peças dentro do forno. O saggar pode ser feito a partir de vários materiais, dependendo do tipo de queima, desde argila refratária até papel de alumínio ou jornal. Originalmente, o saggar foi usado para proteger as peças dos detritos que ficavam suspensos dentro da câmara depois de uma queima com madeira ou carvão. Eles também foram usados para se evitar que as peças sofressem o efeito direto das chamas, gases ou fumos dentro do forno. Entretanto, há cerca de 200 anos atrás, os ceramistas decidiram reverter esse processo e usar o saggar para segurar o material perto das peças, alterando dramaticamente o seu acabamento, criando peças decorativas com efeitos inusitados e surpreendentes. Atualmente o método saggar é usado para criar uma atmosfera redutora localizada ou concentrar os efeitos dos sais, óxidos metálicos e outros materiais e elementos orgânicos na superfície das peças. Estas podem ser decoradas com engobes, terra sigillata ou ainda receber polimentos gerando efeitos brilhantes. As peças são cobertas com vários elementos combustíveis como serragem e materiais orgânicos menos combustíveis como sais e metais, que evaporam durante a queima, criando efeitos dramáticos e cores que vão desde o negro até aos dourados, verdes e vermelhos. A queima de saggar pode ser feita num forno de raku, elétrico ou de buraco. Peça com casca de banana, em processo de produção pela ceramista Flávia Santoro 67


Queima a sal A queima a sal consiste em criar uma atmosfera rica em íons reativos de sódio, cálcio e cloro, que aderem à superfície das peças e dos esmaltes formando uma película vítrea. Isto gera resultados inesperados, já que é impossível controlar os lugares em que a atmosfera de sais irá criar mais ou menos efeitos sobre as peças. Acredita-se que esta modalidade de queima tenha surgido acidentalmente na Alemanha, por volta do século 10, tendo sido aperfeiçoada a partir dos séculos 15 e 16, difundindo-se depois pela Inglaterra e Europa Setentrional. Durante a queima são introduzidos sais de sódio e cálcio (carbonatos e bicarbonatos ou cloreto de sódio ou sal de cozinha) que se pulverizam em contato com a atmosfera de alta temperatura dentro do forno, criando uma nuvem de gás hidroclorídico que vai bater na superfície das peças e se combinar com o quartzo ali existente, criando esmaltes e texturas. A queima a sal precisa de uma temperatura maior para formar esmaltes, no mínimo 1280ºC. Os sais podem ser adicionados ao forno tanto em sacos de papel quanto em soluções concentradas, nas aberturas sobre os queimadores. Os efeitos, obtidos nas peças, bastante variados, dependem, ainda, do posicionamento de cada uma no forno. Devido à ação corrosiva da atmosfera, recomenda-se que o forno seja construído com tijolos refratários ao invés de isolantes, e que as camadas de engobe para a proteção das placas e superfícies sejam feitas sem sílica, que irá combinar com os sais da queima. Inclusive a superfície de baixo das prateleiras deve ser protegida com engobes de alto teor de alumina para sua proteção, que deverão ser raspados entre cada queima para que não caiam sobre as peças das prateleiras mais baixas. 68

Os sais criam uma espécie de esmalte nas superfícies de barro e engobes, que podem apresentar superfícies lisas brilhantes, um pouco craqueladas, e texturas bastante inusitadas, como o efeito chamado “casca de laranja”. Além dos efeitos criados diretamente sobre o barro, o sal age também sobre a superfície dos esmaltes mudando, inclusive, sua textura e a sua coloração. Este tipo de queima pode ser feito tanto em fornos a gás quanto em fornos a lenha, contanto que tenham entradas para os sais. Entretanto, não deve ser feito em lugares com moradores próximos, pois o gás que sai pela chaminé é geralmente tóxico. É recomendada também a utilização de roupa de couro, óculos de proteção, luvas e respirador.


Peรงas da ceramista Flรกvia Santoro 69


Raku O raku é uma técnica de origem japonesa inventada no século 16 para a finalização de chawan (tigelas de chá) e muito apreciada na cerimônia do chá. Tradicionalmente, o raku japonês deve ser uma cerâmica inteiramente modelada a mão, de modo a expressar a individualidade de seu criador e transmitir o sentimento do ceramista diretamente para a mão do bebedor de chá. Alternativamente, é possível moldar as peças no torno deformando-as posteriormente. As cerâmicas raku eram queimadas em baixas temperaturas, entre 800ºC e 1000ºC. As peças são retiradas do forno ainda incandescentes e colocadas em água de modo a gerar um choque térmico, o que produz um vidrado de coloração escura ou avermelhada. Isto cria um tipo de cerâmica macio, relativamente frágil e poroso. Ademais, os chawan (tigelas de chá) de raku devem ser delicados, leves e com uma sensação terrosa no toque.

Queima de raku no Ateliê Gaia

Segundo a tradição, o inventor do raku teria sido um fabricante de azulejos conhecido como Chojiro, de ascendência coreana, que conhecera o mestre do chá Sen no Rikyu, em Kyoto. Na época Sen no Rikyu estava formulando seu próprio estilo de cerimônia do chá, conhecido como wabicha. Foi sob sua orientação que Chojiro começou a fabricar utensílios para chá, especialmente tigelas, de um modo totalmente novo. O nome de raku originou-se a partir da recompensa concedida pelo chefe militar Toyotomi Hideyoshi a Chojiro: um selo de ouro com o ideograma “raku” (que significa “lúdico”, “alegre”) gravado. Atualmente o raku é uma das técnicas de cerâmica de origem japonesa mais utilizadas fora do Japão. No final da década de 1950 recebeu uma versão americana graças ao ceramista

70


estadunidense Paul Soldner (1921-2011): a peça incandescente é colocada em contato com serragem e folhas gerando um efeito craquelado. Assim, hoje em dia, o termo raku ganhou um sentido mais amplo. Ele é utilizado para designar uma queima de baixa temperatura com o que pode ser chamado de pós-redução. Basicamente, a técnica consiste em esmaltar peças em biscoito, colocá-las em um forno próprio para raku e subir a temperatura rapidamente em oxidação até 1000-1100ºC, o que demora cerca de uma hora. O forno é então aberto com as peças ainda incandescentes, que são colocadas em uma atmosfera de redução, total ou parcialmente. Hoje em dia, esse ambiente de redução pode ser conseguido ao se colocar as peças incandescentes numa caixa com matéria orgânica (serragem, jornal etc.), provocando uma combustão imediata, deixando-se as peças fechadas nesse ambiente por algum tempo. Outra possibilidade mais próxima da queima original é criar a redução ao mergulhar as peças em um recipiente com água. Além do efeito da redução, obtém-se um choque térmico muito mais forte. Outra opção consiste ainda em reduzir apenas algumas partes da superfície da peça, que apresenta o esmalte derretido, no momento em que esta sai do forno. Esse efeito é obtido pela deposição de algum tipo de material orgânico, que, ao queimar em contato com a peça incandescente, faz um desenho negro na superfície branca do esmalte. A matéria orgânica pode ser, por exemplo, fios de crina de cavalo, técnica chamada de raku horse hair. Penas e plumas de aves também são utilizadas, deixando um lindo desenho negro com o seu formato. Basicamente, o que acontece no momento da abertura de um forno de raku é um choque térmico com a temperatura do ambiente (de 1000ºC para menos 40ºC). Ao se colocar a peça numa atmosfera redutora, o efeito mais comum

é o craquelamento do esmalte. Este, por reduzir com o resfriamento um pouco mais rápido que a peça, fica completamente rachado. Assim, durante a redução, as peças ficam impregnadas de fuligem preta, que se instala nessas rachaduras do esmalte ou nos locais onde as peças não foram esmaltadas. Uma variação, chamada de raku nu, é muito parecida, exceto pelo fato de que o esmalte cai depois da lavagem que é feita no final da queima para remover a fuligem sobre as camadas de esmalte não craquelado. Neste caso, o contraste é dado não pelas superfícies com e sem esmaltes, mas em uma superfície completamente sem esmaltes, mas que mostra as rachaduras e as partes que não haviam sido esmaltadas durante a queima. Outro efeito observado devido à completa heterogeneidade da atmosfera que circula pelas peças durante o momento de redução (alguns pontos de redução mais intensa, alguns menos, alguns pontos com oxidação) é a grande variação da gama de cores que os esmaltes apresentam. Os esmaltes de raku utilizados atualmente apresentam grande variabilidade de cores em função da quantidade de oxigênio da atmosfera (desde vermelhos que podem chegar ao verde até azuis que podem ficar furta-cor). Então, além das rachaduras e enegrecimentos, as peças geralmente apresentam uma variação de cor bastante interessante e inusitada, que o ceramista pouco controla, mas com a qual sempre se surpreende no final. Todo este processo faz com que o raku seja visto também como um espetáculo, ideal pela sua curta duração e pelo fato de ser possível ver os resultados quase que imediatemente.

71


72


CAPÍTULO III OS CERAMISTAS DE CUNHA

73


74


Os Ceramistas de Cunha Mieko Ukeseki - Ateliê Mieko & Mário

Mali Gambaré – Gaia Arte Cerâmica

Alberto Cidraes - Ateliê do Antigo Matadouro

Wagner Gambaré - Gaia Arte Cerâmica

Luiz Toledo - Cerâmica Toledo

Rogério David - Casa Cunha

Mário Konishi - Ateliê Mieko & Mário

René Le Denmat

Gilberto Jardineiro - Ateliê Suenaga e Jardineiro

Célia Flud – Ateliê Terra e Tal

Kimiko Suenaga - Ateliê Suenaga e Jardineiro

Mateus Reis

Leí Galvão - Oficina de Cerâmica

João Camillo Machado de Campos – Atelier Rocha do Campos

Augusto Campos - Oficina de Cerâmica Clélia Jardineiro - Atelier Clélia Jardineiro Sandra Bernardini - Ateliê Morro do Pinhão Luciano Almeida – Casa do Escultor Pedro Siqueira José Carlos Carvalho - Carvalho Cerâmica Marivaldo Rodrigues - Ateliê Cheiro da Terra Cristiano Quirino - Ateliê Sandra e Cristiano

Matheus Gonzaga Burger - Atelier Cosmos Hélio Avelino Neto Welligton Emmerich Minami Suenaga Jardineiro Fernando Aidar Yuan Mung Maurício Flausino – Casa do Oleiro

Sandra Quirino - Ateliê Sandra e Cristiano Felipe Zuñiga - Ateliê Adamas Anderson Canhadas - Ateliê Gralha Azul Paulo Ambrósio Graziela Awabdi - Ateliê da Grouze Nilvana Rodrigues - Ateliê Nilvanda Dito Cajuru – Ateliê B. Cajuru Dona Matilde – Ateliê B. Cajuru Luciane Yukie Sakurada - Atelier Gallery Tokai Marcelo Tokai - Atelier Gallery Tokai Daniel Maillet - Atelier Maillet Flávia Santoro - Ateliê Flávia Santoro

75


MIEKO UKESEKI Ateliê Mieko & Mário Mieko Ukeseki - natural de Mie, Japão 1946. Formada em Enfermagem, toma contato com a cerâmica no começo dos anos 1970. Juntamente com Toshiyuki Ukeseki, monta um ateliê em Koishiwara, prefeitura de Fukuoka (Japão), onde conhece, em 1972, o arquiteto português Alberto Cidraes. Desse encontro nasce a ideia de criar um coletivo de cerâmica de caráter experimental e naturalista no Brasil, com forno a lenha. Chega a São Paulo em 1975 e estabelece-se em Cunha, onde inicia, juntamente com Toshiyuki, Alberto Cidraes, Maria Estrela, Vicente e Antônio Cordeiro e Rubi Imanishi, a construção de um ateliê coletivo com forno a lenha. Em 1977, transfere-se para o Rio de Janeiro, montando novo ateliê com Vicente Cordeiro. Retorna a Cunha em 1981 e instala seu ateliê individual como forno noborigama, que mantém até hoje e a quem se juntou, a partir de 1989, Mário Konishi. Em 1988, funda e preside a Casa do Artesão e, em 2009, é um dos sócios fundadores do Instituto Cultural da Cerâmica de Cunha. Desde 1974, tem participado de várias exposições coletivas e individuais nos EUA, Brasil e Japão. Em 1987, participa do projeto Arte Litoral Norte com os artistas plásticos Antonio Carelli e Sandra Mendes e, em 1995, participa do projeto Arte no Metrô São Paulo. Em 2013, realiza uma exposição retrospectiva na Caixa Cultural de Salvador, juntamente com Alberto Cidraes. O trabalho de Mieko transita entre os universos da cerâmica utilitária, decorativa e escultórica. Suas obras são feitas a partir de argilas refratárias locais, misturadas com argilas de outras proveniências, e queimadas em forno a gás ou em forno noborigama a uma temperatura de 1350ºC. A modelagem é feita no torno, em placa 76


ou manualmente e os esmaltes são preparados pela própria ceramista. Óxidos de vários minerais também são usados para fazer delicados desenhos sobre as peças que remetem à pintura tradicional japonesa. A influência da natureza mostra-se presente nas esculturas orgânicas, especialmente na série “Sementes”, símbolo de fertilidade e renovação. Para Mieko, “toda a arte tem muito a ver com a natureza, não só cerâmica”. Seu trabalho apresenta uma estética simples e feminina, representada nas linhas curvas, nos traços delicados e na temática naturalista e com clara influência da tradição e técnicas japonesas, como o movimento de arte popular japonês (mingei). Composição 2004 16 x 25 cm Queima em forno noborigama a 1320° C

77


ALBERTO CIDRAES Ateliê do Antigo Matadouro Alberto Cidraes - natural de Elvas, Portugal - em 1945. Em 1970, forma-se em Arquitetura pela Escola Superior de Belas Artes de Lisboa e, no mesmo ano, parte para o Japão com uma bolsa de pós-graduação em arquitetura tradicional japonesa. Lá conhece os ceramistas Toshiyuki e Mieko Ukeseki e surge a idéia de formar no Brasil um ateliê coletivo de cerâmica de cunho experimental e naturalista, com forno a lenha. Vem para o Brasil em 1973 e, pouco depois, estabelece-se em Salvador, onde forma o Grupo Takê com Maria Estrela Vieira, Gilberto Jardineiro e António Cordeiro. Em 1975, juntamente com Toshiyuki e Mieko Ukeseki, Vicente e Antônio Cordeiro e Rubi Imanishi, constrói o primeiro forno noborigama da cidade de Cunha, localizado no antigo matadouro municipal, hoje Casa do Artesão. Em 1984, estabelece um novo ateliê em parceria com Maria Estrela. Em 1987 parte para Portugal onde funda, com Maria Estrela, o Departamento de Cerâmica do Centro de Arte e Comunicação Visual (Ar.Co) em Almada, que dirige por três anos. Em 1990, parte novamente para o Japão como bolsista da Fundação Japão na Universidade de Arte e Design de Kanazawa e, em 2002, retorna a Cunha definitivamente. Desde 1972, tem participado 78


de exposições coletivas e individuais em vários países, como Portugal, Brasil e Japão. Em 2013, realiza uma exposição retrospectiva na Caixa Cultural de Salvador, juntamente com Mieko Ukeseki. Alberto Cidraes tem o primeiro contato direto com a cerâmica no Japão através da observação livre e experimentação em vários ateliês no sul do país. Seu trabalho é influenciado, portanto, da tradição japonesa, mas seu processo é essencialmente casual e espontâneo. Ele começa com a coleta local de argila nas olarias da cidade, que são processadas no próprio ateliê. A modelagem parte do torno e continua de forma livre. A maioria dos esmaltes que cobrem suas peças tem origem nas cinzas produzidas na queima, feita em forno noborigama a uma temperatura de 1300ºC. Os efeitos do fogo a lenha são também visíveis nas superfícies das peças não esmaltadas. Sua obra destaca-se pela predominância de formas fortes e figurativas, com destaque para a representação do rosto de guerreiros com elmos e outras figuras mitológicas, e formas geométricas, com clara influência da arquitetura e do design. Cidraes também se destaca pelo trabalho com instrumentos de som em cerâmica, principalmente de percussão. Suas influências vão do Oriente ao Ocidente e passam pela mecânica quântica, pelo surrealismo antropológico e pelo questionamento do caráter absurdo do universo e da raça humana. Para ele, a cerâmica é “uma oportunidade de dialogar com a mãe terra, gerando entidades-objetos para além da existência”. Pundit 2006 20cm X 20cm X 45cm Grês, engobe, esgrafito, torno, modelagem manual e colagem. Queima a lenha em forno noborigama a 1300oC 79


LUIZ TOLEDO Cerâmica Toledo Luiz Toledo - natural de Cruzeiro, SP 1952. Desde criança, tem contato com a cerâmica através do pai, dono de uma olaria, onde queima suas primeiras peças junto as telhas. Aos 12 anos vem para Cunha e trabalha em vários ofícios, como o couro e a selaria. Depois de um tempo em Mogi das Cruzes trabalhando numa fábrica de celulose, regressa a Cunha e toma contato com o Grupo do Antigo Matadouro, em 1975, com 22 anos de idade. Lá, torna-se o primeiro ajudante do ateliê, preparando o barro e cortando lenha. Em troca, tem direito a um torno de pé e, observando os pioneiros do grupo, especialmente Toshiyuki Ukeseki, que considera seu mestre, aprende a arte do barro. Em 1980 monta seu próprio ateliê no espaço vizinho ao Antigo Matadouro, com forno de barranco semelhante ao usado pelas paneleiras e, durante um tempo, divide seu trabalho entre seu ateliê individual e o ateliê coletivo, onde trabalha como torneiro para Alberto Cidraes. Em 1985 constrói um forno noborigama de duas câmaras, reconstruído em 2013 com uma câmara só. Ao longo da sua vida adulta, convive com várias paneleiras de Cunha, como Dona Mica, Dona Núncia e Dona Dita, esta última que ajuda na queima e venda das peças no momento da velhice. Em 1988 é vice-presidente da Casa do Artesão na sua primeira diretoria. Desde 1976, tem participado de várias exposições coletivas em Cunha, São Paulo e Rio de Janeiro, entre elas Retratos de Cunha, realizada em Santos em 1991. Luiz Toledo utiliza argila de Cunha para produzir peças utilitárias, escultóricas e decorativas feitas no torno ou através de modelagem manual. As peças são decoradas com incisões representando rostos e esmaltes à base de cinzas 80


de eucalipto e casca de arroz. A queima é realizada em forno noborigama a uma temperatura de 1300ºC. O trabalho de Luiz Toledo mescla a tradição local das paneleiras, visível na sua série de vasos antropomórficos, com a influência oriental, presente na técnica e na utilização de recursos da natureza local. De fato, ele mesmo se considera um híbrido da raiz brasileira com a tradição japonesa: “eu sou uma mistura dos dois”, afirma. Sua inspiração no folclore, tradição e cultura cunhenses revela-se na produção de cabeças e outras figuras que misturam o elemento escultórico com o utilitário.

Quem sou eu 40 x 22 cm Queima em forno a lenha, 1300ºC 81


MÁRIO KONISHI Ateliê Mieko e Mário Mário Tetsuo Konishi - natural de Cambé, no Paraná - 1950. Forma-se na Faculdade de Belas Artes de São Paulo em 1976 e é nesse ano também que visita Cunha pela primeira vez, continuando as frequentes visitas até 1984, época em que decide sair definitivamente de São Paulo. Em 1989, junta-se ao atelier de Mieko Ukeseki e no ano seguinte passa se dedicar exclusivamente à cerâmica. O trabalho de Mário alimenta-se de outras artes como o desenho e a escultura, já que seu interesse pelo barro se relaciona mais com a forma e o processo de criação do que com os materiais e procedimentos técnicos em si. Suas obras vão do utilitário ao decorativo, sempre com ênfase no escultórico, e são feitas com o auxílio do torno ou a partir de placas, modelagem manual e livre. Os acabamentos utilizados passam por esmaltes e pintura com engobes e a queima é feita em forno a gás ou em forno noborigama a uma temperatura de 1350ºC. A maioria das peças de Mário são desenhadas previamente e só depois modeladas como uma escultura. “Para a cerâmica eu uso o traço”, afirma. Outra influência no seu processo criativo vem da arquitetura, pois considera suas formas “meio arquitetônicas, mas também anárquicas”. Isto porque a maioria do seu trabalho parte de uma desconstrução da forma, pois já que a cerâmica tem essa conotação de arte menor, “a ideia é brincar com o utilitário e fazer uma provocação”.

82


Sem título 2006 16 X 25 cm Queima em forno noborigama, 1320° C 83


Vaso Rústico 2012 26 x 26 x 29 cm Grês com técnica de tobigana e engobe, queima em forno noborigama a 1400º C

84

GILBERTO JARDINEIRO Ateliê Suenaga e Jardineiro Gilberto Jardineiro - natural de São Paulo, SP - 1947. Antes de se tornar ceramista, trabalha com fotografia, música e como assistente de direção de cinema. Em 1973, forma o Grupo Takê em Salvador, juntamente com Alberto Cidraes. Em 1976, sai do Brasil em direção à Suécia, onde vive por três anos e, em 1979 vai para o Japão, onde fica por cinco anos e se inicia na cerâmica em Tokyo. Entre 1982 e 1983 faz estágio em forno noborigama rakushôgama na província de Fukuoka. Em 1984 retorna ao Brasil e, no ano seguinte, estabelece ateliê em Cunha juntamente com Kimiko Suenaga, onde constrói um forno noborigama de quatro câmaras, reconstruído em 2009. Em 1988 introduz o evento de Abertura de Fornada, que contribui para trazer o público interessado em cerâmica à cidade. Entre 1992 e 1997 participa do Conselho de Desenvolvimento do município, contribuindo para a realização do primeiro roteiro turístico da cidade. Em 1995 começa a trabalhar na Prefeitura de Cunha, onde ocupa o cargo de Secretário Municipal de Turismo e Cultura entre 2001 e 2004. Desde 1977 participa de várias exposições coletivas e individuais no Brasil, Suécia e Japão, como A


Arte da Cerâmica – Forno Noborigama, em comemoração ao Centenário da Imigração Japonesa, realizada no Hall Monumental da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo em 2008. Jardineiro utiliza argila primária branca e argila secundária cinza, que processa em seu ateliê com oito meses de envelhecimento, para produzir utensílios para a culinária oriental, utilitários de mesa, potes, vasos, objetos decorativos, escultóricos, mosaicos, painéis, luminárias e outros. As peças são modeladas no torno, em placas e em modelagem livre e esmaltadas com matérias-primas locais, como pedra de ferro, cinzas de eucalipto e cinzas de casca de arroz e queimadas em forno noborigama a uma temperatura de 1400ºC. Todas as suas queimas, desde a primeira, são detalhadamente registradas, de modo a conseguir o máximo de controle do processo e obter um resultado homogêneo nos efeitos de superfície e esmaltes. Isto porque seu interesse pela cerâmica tem mais a ver com o seu processo de produção. “Estou mais ligado ao processo. O processo me encanta”, afirma. Desde 2004, Jardineiro tem-se afastado gradualmente da criação cerâmica, dedicando-se à Astronomia, sua atual paixão. Assim, recentemente tem-se dedicado à organização do evento “Lua na Luneta”, realizado anualmente em Cunha. No entanto, continua participando de todas as queimas realizadas no ateliê e introduzindo o processo de cerâmica aos visitantes durante o evento de Abertura de Fornada, dividindo com o público o fascínio que tem pelos resultados surpreendentes da ação das chamas e do fogo.

85


KIMIKO SUENAGA Ateliê Suenaga e Jardineiro Kimiko Suenaga - natural de Yokohama, Japão - 1949. Entre 1970 e 1980, após se formar em Ciências e Letras pela Universidade Aoyama Gakuin, em Tokyo, faz vários cursos de cerâmica: no Ateliê Jun Ooka aprende as técnicas de raku e queima em forno a óleo e forno anagama, faz curso de esmaltação no Centro de Cerâmica de Kasama e aprende queima em forno noborigama com o ceramista Sato Seta, em Fukuoka. Em 1976, monta ateliê em Tokyo com forno a gás, que mantém até 1984, quando se muda para o Brasil. No ano seguinte, juntamente com Gilberto Jardineiro, estabelece ateliê em Cunha, onde constrói o quarto forno noborigama da cidade. Desde 1984 participa de exposições coletivas no Brasil e no Japão e, em 1992, realiza uma exposição individual na Galeria SESC Paulista, em São Paulo. Suenaga utiliza argilas refratárias coletadas de olarias locais e de barreiros da região, processadas em seu ateliê, o que demora cerca de seis a oito meses, para produzir peças utilitárias, escultóricas e decorativas. Estas são modeladas no torno, em placas, no gesso ou em modelagem livre e decoradas com desenhos de traço delicado e espontâneo feitos com óxidos de cobre e cobalto e aplicados sob ou sobre os esmaltes com um pincel tradicional japonês usado na caligrafia (fude). Para os esmaltes, são utilizadas matérias-primas da natureza local tais como pedra de ferro, cinzas de eucalipto, cinzas de casca de arroz e outros minerais abundantes em Cunha. As peças são queimadas em forno noborigama a uma temperatura de 1400ºC. Desde 1988, Suenaga e Jardineiro compartilham o momento de abertura de fornada com os visitantes, o que acontece cinco vezes ao ano, recebendo entre 300 e 500 pessoas por dia. “O 86


momento de abertura é um momento de muita emoção, que seria uma pena não compartilhar”, afirma. A demonstração dos desenhos com óxidos de Kimiko Suenaga é um dos momentos altos do evento, ao qual o público assiste, silencioso, com surpresa e admiração. Durante esses minutos é possível apenas ouvir o clique das câmaras fotográficas eternizando o momento. Pois, como costuma dizer seu companheiro, em tom de brincadeira, durante as Aberturas de Fornada, “eu sou o Jardineiro, mas ela que é a flor do ateliê”.

Árvore 2013 35 x 25 x 30 cm Grés em modelagem livre com deposição de cinzas Queima em forno noborigama a 1400º C

87


LEÍ GALVÃO Oficina de Cerâmica Leí Galvão - natural de Cunha, SP - 1961. Durante a infância na zona rural convive com o trabalho das paneleiras através das panelas de barro usadas em casa pela família, o que lhe vem marcar a obra. Aos 14 anos, assiste com um misto de curiosidade e entusiasmo à chegada do grupo do Antigo Matadouro em Cunha, mas é só no final de 1977 que vai ali pedir trabalho aos membros restantes do grupo inicial, Alberto Cidraes, Maria Estrela e Toshiyuki Ukeseki. Começa rachando lenha, limpando torno e amassando o barro e, mais tarde, é elevado ao posto de torneiro. Continua o trabalho no ateliê até 1983 e é lá que aprende praticamente tudo o que sabe sobre cerâmica, especialmente a modelagem no torno e a queima em forno noborigama. É nessa época também que começa a produzir suas próprias peças e que decide entrar em contato com as últimas paneleiras de Cunha, Dona Núncia e Dona Dita, com quem aprende a localização de jazidas de barro, desenvolve várias técnicas de produção cerâmica e começa a queimar junto com as paneleiras. Este contato leva-o a construir seu primeiro forno, um forno de barranco igual ao usado pelas paneleiras, onde queima suas peças em baixa temperatura. Pouco depois parte para Juiz de Fora, onde se diploma em Artes Plásticas e, em 1987, retorna a Cunha formando uma sociedade com Augusto de Campos, que também fora ajudante de Alberto Cidraes no Antigo Matadouro. Juntos, montam um primeiro ateliê, que mudam para a localização atual em 1999, com forno noborigama e, desde 2011, também com um forno a lenha de estilo ocidental. Leí trabalha com argila de alta temperatura, que extrai localmente como terra bruta e processa até ao produto final. A modelagem é feita 88


no torno, em placas e a partir de outras técnicas mistas. A grande maioria do seu trabalho atual é utilitário, produzindo também algumas peças decorativas. Estas são decoradas com esmaltes de cinzas de madeira, minerais moídos, cinzas de casca de arroz, engobes e óxidos, e queimadas em forno noborigama ou forno a lenha de estilo ocidental a uma temperatura de 1350ºC. Para Leí, a cerâmica é seu principal sustento “tanto da alma quanto do corpo”. “É um processo criativo único de transmutação pelo fogo que define toda a minha vida”, afirma.

Sem título 2015 35 x 35 cm Queima em forno noborigama a 1300º C

89


AUGUSTO CAMPOS Oficina de Cerâmica Augusto de Campos - natural de Cunha, SP - 1965. Com 10 anos, assiste à chegada do Grupo do Antigo Matadouro, onde vai procurar trabalho seis anos depois, em 1981, quando só ali restavam Alberto Cidraes e Maria Estrela. Suas funções iniciais eram as típicas de um ajudante, rachando lenha, amassando o barro e organizando o ateliê. Em 1985, Cidraes parte para Portugal deixando Augusto sozinho no ateliê pela primeira vez. É nessa época que faz a primeira queima em forno noborigama sem qualquer ajuda, quando começa a produzir os próprios esmaltes, iniciando seu trabalho em cerâmica de forma independente. Em 1987 monta sociedade com Lei Galvão, antigo torneiro de Cidraes e, em 1988, constroem um primeiro noborigama de três câmaras. Nos primeiros tempos, já com forno, mas ainda sem ateliê, produzem suas peças em casa, que levam para vender em lojas de São Paulo e do Rio de Janeiro. Em 1999 montam o ateliê atual com forno

Sem título 2015 100 x 45 cm Queima em forno noborigama a 1300º C 90


noborigama e, a partir de 2011, com forno a lenha de estilo ocidental. Desde 1984 Augusto tem participado de várias exposições coletivas, tais como: Mostra Aberta de Cerâmica, São Paulo, em 1988; Setur Caraguatatuba, em 1992; e Pioneiros da Cerâmica, São Paulo, em 2011. Augusto utiliza argila local de alta temperatura para produzir peças utilitárias e decorativas modeladas no torno e em placas, decoradas com esmaltes de cinzas de madeira, minerais moídos, cinzas de casca de arroz, engobes e óxidos. As peças são queimadas em forno noborigama ou forno a lenha de estilo ocidental a uma temperatura de 1350ºC. Sua relação com as paneleiras reflete-se na produção de utilitários, que modela no torno como herança do seu aprendizado no Antigo Matadouro. Seu foco nos utilitários também traduz uma preocupação quanto à democratização da cerâmica: “Cerâmica utilitária é uma coisa que a população em geral pode adquirir. Mas não é qualquer um que pode adquirir uma escultura”. Para ele, a descoberta da cerâmica surgiu como “uma oportunidade de trabalho e aprendizagem”, transformando-se depois em “desafio, busca, contemplação e sentido da vida”.

91


CLÉLIA JARDINEIRO Atelier Clélia Jardineiro Clélia Jardineiro - natural de São Paulo, SP - 1945. Forma-se em Letras Português-Francês e, nos anos 1970, dedica-se ao ensino de idiomas no Japão, França e Inglaterra. É neste último país que conhece o casal de ceramistas Sandra e Cristiano Quirino, a partir de quem toma conhecimento do grupo de ceramistas de Cunha. Em 1980 estabelece-se em Cunha, onde dá aula de Português por 25 anos. A partir de 1995, estabelece ateliê com forno elétrico e forno noborigama de uma só câmara, onde queima peças pequenas, utilitárias e decorativas, em baixa temperatura, de até 1000ºC. Seu objetivo é desenvolver um trabalho que possibilite o fácil transporte e acessível a qualquer bolso. Por isso, Clélia produz essencialmente peças pequenas, leves e coloridas. O aprendizado de Clélia na cerâmica desenvolve-se de modo informal e autodidata, através do contato com vários ceramistas e amigos e da leitura de livros e revistas sobre cerâmica. Seu processo parte geralmente de folhas e têxteis feitos em tricô, crochê e rendas para a criação de pratos e bijuterias texturizadas a partir da impressão desses elementos em diversos tipos de argila, como argila preta, marfim e terracota vermelha. A modelagem é feita manualmente e as peças são decoradas com corantes, esmaltes e pintura de minerais na superfície.

92

Para Clélia a cerâmica é não só um complemento da aposentadoria como professora, mas também um trabalho muito prazeroso: “Desde os tempos de ginásio, eu já gostava de trabalhos manuais e certa professora nos trouxe argila para criarmos o que queríamos. E agora, já aposentada na profissão de professora, além se ser um extra, é também muito prazeroso”.


Prato Texturizado 1990 36x36 cm Terracota e engobe Queima em forno noborigama a 1000ยบC 93


SANDRA BERNARDINI Ateliê Morro do Pinhão Sandra Bernardini - natural de São Paulo, SP - 1953. A relação com a cerâmica vem de família, já que seu bisavô, o italiano José Zappi, construiu a primeira fábrica de louças de São Paulo, em 1913. Formada em Comunicação Visual pela Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP), estuda com o mestre torneiro Lelé na década de 70 e, em 1978, estabelece seu ateliê individual na cidade de São Paulo, onde dá aulas durante 20 anos. No final da década de 80 e início da década de 90, preocupada com a toxicidade do chumbo utilizado nos esmaltes de baixa temperatura, começa a explorar os caminhos da cerâmica de alta temperatura, técnica que utiliza até hoje. Foi uma das primeiras ceramistas de fora a estabelecer seu ateliê de cerâmica em Cunha depois do grupo pioneiro do Antigo Matadouro, em 1999. O trabalho de Sandra centra-se na produção utilitária, aliada ao ideal “forma e função”. Todas suas peças são projetadas previamente num caderno de desenhos e modeladas no torno. Tudo é minuciosamente planejado, desde a dimensão de um jarro até a forma da alça de um bule, passando pelo acabamento. “Quando a pessoa faz um utilitário, tudo tem que ser pensando. Tudo começa na argila, pois ela tem que ser lisa e agradável ao toque. Depois a peça precisa ter um acabamento e uma forma adequada ao uso que ela vai ter. Uma peça que vai à boca tem que ser agradável ao toque”, explica.

94

Além do planejamento rigoroso da forma, é ela que prepara os próprios esmaltes. Além disso, recentemente começou a pesquisar esmaltes de cinzas obtidas a partir produtos de Cunha, como cinza de palha de feijão e cinza de casca de pinhão. Já a queima é feita em forno a gás para as peças utilitárias e raku para algumas peças decorativas.


Sem título S/d 37 x 26cm Grês e esmalte com óxido de cobre Queima Raku 95


LUCIANO ALMEIDA Casa do Escultor Luciano Almeida - natural de Lorena, SP 1979. Por anos frequenta a vizinha cidade de Cunha antes de aqui se estabelecer definitivamente em 1999. Autodidata, desenha desde criança, mas até aos vinte anos seus planos de vida não incluíam ser artista. Foi a vinda para Cunha que lhe despertou essa vontade e aqui se descobriu escultor, apesar de não possuir formação específica na área. A presença abundante do barro na região despertou-lhe o dom para a escultura em cerâmica, que se tornou sua principal atividade. Seu trabalho centra-se majoritariamente na escultura. O retrato, considera, é a sua especialidade. De fato, Luciano é um dos retratistas mais famosos da cidade, autor do busto em homenagem a Dona Dita, considerada a última paneleira de Cunha, situado em frente ao Parque do Lavapés e à Casa do Artesão, onde antes se localizava o ateliê do Antigo Matadouro. Apaixonado pela fisionomia, seu trabalho tem como foco o tema das cabeças, refletido na produção de bustos representando os rostos de pessoas comuns. Olhar as pessoas “é quase uma obsessão”, considera. Quanto à técnica, trabalha só com modelagem livre e não usa esmalte, dando prevalência às formas e texturas que surgem naturalmente do trabalho escultórico. A queima é feita em forno noborigama, por ocasião de queimas coletivas, uma vez que não possui forno próprio. Atualmente trabalha essencialmente por encomenda e há quatro anos iniciou-se no ensino de artes, ministrando oficinas especializadas na escultura de cabeças, com enfoque nos traços étnicos, etários e de gênero. Graças a isso, ensina pelo Brasil inteiro. 96


Ukeseki Toshiyuki 2010 Tamanho real (17 x 20 x 30 cm) Terracota

97


PEDRO SIQUEIRA Pedro Siqueira - natural de Cunha, SP 1960. Envereda decisivamente pela cerâmica em 1985, quando começa a trabalhar como ajudante no ateliê de Mieko Ukeseki, onde fica por cinco anos trabalhando na preparação de argila e na modelagem em placas. Em 1992 começa a trabalhar no ateliê de Leí Galvão e Augusto de Campos, onde aprende a tornear e onde trabalha ainda hoje como torneiro. No entanto, o primeiro contato com a cerâmica deu-se na infância, quando conheceu a paneleira Dona Dita, que fabricava as panelas de barro usadas em sua casa. Além de trabalhar como torneiro, desde 2000 Pedro desenvolve também suas próprias peças utilitárias, feitas com argila coletada de olarias locais e preparada por ele. A modelagem é feita no torno e as peças são depois polidas com uma pedra roliça, tal como faziam as antigas paneleiras. A queima é de baixa temperatura e feita em um forno de barranco construído de tijolos e alimentado a lenha. Suas influências, acredita, vêm do trabalho das paneleiras e da herança do Ateliê do Antigo Matadouro, que carrega a partir dos seus mestres Leí Galvão e Augusto de Campos.

98


Moringa 21 x 45 cm Argila de Cunha polida e queimada em baixa temperatura em forno a lenha, 750°C 99


JOSÉ CARLOS CARVALHO Carvalho Cerâmica José Carlos Carvalho - natural de Marília, SP - 1941. Forma-se em Publicidade e Propaganda pelo Instituto Técnico Oberg e, durante alguns anos, trabalha como diretor de arte em agências de publicidade. Em 1982 faz aula de torno com o mestre Lelé e passa a dedicar-se integralmente à cerâmica. Na década de 1990 monta uma escola de torno em São Paulo juntamente com a ceramista Regina Escher, onde permanece por 10 anos. Em 2001 estabelece ateliê com forno a gás na cidade de Cunha, onde produz peças decorativas e utilitárias, modeladas no torno e queimadas a 1240ºC em forno a gás, com redução de temperatura. Desde 1977 participa de exposições coletivas e individuais, como a exposição “Poesia das Mãos”, realizada na Livraria Cultura do Conjunto Nacional, em São Paulo, em 2009. O trabalho de Carvalho é elaborado a partir de seis tipos diferentes de argilas nacionais e importadas e um tipo de porcelana. A decoração parte da combinação de várias técnicas que incluem esgrafitos, esgrafitos com colagem, decoração com esmaltes próprios e importados, por imersão e aspersão, e ilustrações com engobes coloridos. Esta última pode implicar até cinco queimas da peça: quatro a uma temperatura de 850ºC e a quinta a alta temperatura (1240ºC). No total, 45 horas de queima. “Meu trabalho é apoiado na possibilidade que o material me dá para fazer”, afirma. Segundo ele, seu percurso em busca de uma identidade como artista de cerâmica pode se resumir nos seguintes passos: “primeiro foi ignorar as formas por que todas já foram feitas”; depois, começou a fazer estrias sobre a argila: “a filosofia é mostrar as argilas para se ter uma peça colorida sem 100


precisar usar esmaltes”, que usa mais para detalhes e decoração; finalmente, descobriu uma ferramenta de odontologia que o permitiu agir sobre as estrias, criando um efeito inédito sobre as peças. Assim, seu trabalho parte das formas clássicas da cerâmica, sobre as quais age como uma tela de pintura tridimensional, misturando argilas de diferentes cores, adicionando grafismos por meio de incisões, colagens, desenhos ou pinturas. Segundo Lalada Dalglish, “o que vemos é um design contemporâneo, porque a imposição desse design em cima da forma é muito forte”.

Sem título 1999 22 x 21 cm Esgrafito e esmaltes Queima em Forno elétrico 101


MARIVALDO RODRIGUES Ateliê Cheiro da Terra Marivaldo Rodrigues - natural da Bahia 1957. Entre 1977 e 1978 faz curso de decoração, mas durante muitos anos trabalha com Publicidade, sua formação. Frequenta a cidade de Cunha desde a década de 1980 e estabelece-se aqui definitivamente em 2002. No ano seguinte, abre a pousada Cheiro da Terra e começa a estudar cerâmica com Alberto Cidraes. Durante seis meses, faz curso básico de argila e modelagem e aula teórica de esmaltação, e logo abre um ateliê dentro da pousada, com o objetivo de proporcionar aos hóspedes uma vivência na cerâmica: “a ideia era fazer um ateliê onde as pessoas entrassem e não quisessem sair”. Assim, hoje oferece aos seus clientes oficinas de modelagem com a duração de duas horas, dando-lhes a oportunidade de criar peças que são depois esmaltadas e queimadas por seus funcionários no próprio ateliê, que pode abrigar até 200 pessoas. Seu objetivo, afirma, é divulgar o potencial turístico da cidade de Cunha através da cerâmica. Marivaldo trabalha com argilas locais, que modela no torno, em placas ou manualmente, para produzir peças utilitárias e decorativas, com enfoque na produção de luminárias. As peças são decoradas com engobes, esmaltes e óxidos, e queimadas em forno a lenha de estilo ocidental, a uma temperatura de 1300ºC. Para ele, a cerâmica é “um momento de expressão artística e celebração da vida com o uso da terra que pisamos ao longo da vida”.

102


Sem tĂ­tulo 2013 40 x 38 cm Queima a lenha em forno Anagama a 1280Âş C 103


CRISTIANO QUIRINO Ateliê Sandra e Cristiano Cristiano Quirino - natural de Vinhedo, SP - 1948. A arte entra em sua vida por acaso, através das aulas de pintura que cursa com 17 anos de idade, quando ganha também o primeiro prêmio do Salão Estudantil em Valinhos, SP. No ano seguinte recebe a medalha de prata em desenho no 1º Salão de Arte Contemporânea de Valinhos e, em 1969, é homenageado com medalha de bronze em pintura no II Salão Nacional de Artistas Jovens do M.A.C. de Campinas. Em 1970 ingressa no curso de computação da UNICAMP e, durante algum tempo, dedica-se às Artes Gráficas, até ser atraído pela cerâmica. Em 1976, mudase para a Inglaterra, onde estuda cerâmica na Sir John Cass College of Art entre 1977 e 1979. Regressa ao Brasil em 1980 e estabelece seu primeiro ateliê em conjunto com a esposa Sandra Quirino, em São Paulo, que transfere para Itupeva em 1992. Em 2004 monta ateliê em Cunha por incentivo do colega e amigo Gilberto Jardineiro, onde constrói um forno a gás em 2009. Desde 1977 participa de exposições coletivas de cerâmica. Em 1989 participa do Seminário de Cerâmica Brasileira no Centro de Arte e Comunicação Visual (Ar.Co) em Almada, Portugal, juntamente com Alberto Cidraes, Gilberto Jardineiro e Megumi Yuasa. Em 1995 é artista convidado do II Salão de Arte Contemporânea em Vinhedo, São Paulo. Cristiano trabalha com argilas coletadas localmente e preparadas em seu ateliê, que modela no torno, em placas ou através da modelagem livre para produzir peças utilitárias, decorativas e escultóricas decoradas com engobes, esgrafitos, esmaltes e pintura. A queima é feita em forno a gás a uma temperatura de 1300ºC. O trabalho de Cristiano parte do ideal de arte e 104


função, influenciado pela cerâmica japonesa e sua difusão no Ocidente através do movimento britânico de cerâmica de autor. Sobre o significado da cerâmica em sua vida, Cristiano afirma: “A prática de cerâmica provoca em minha vida muitas emoções trazidas por incertezas, surpresas e conquistas. São tantas as possibilidades de escolha que permitem ao ceramista um jogo de criação que envolve riscos e desafios. A argila toma a forma que modelamos, mas também se altera por vontade própria. A textura e a cor que planejamos são muitas vezes determinadas ou alteradas pelo fogo. O processo é demorado, exercita a paciência, mas o resultado pode ser tão surpreendente, que motiva novas experiências a cada ciclo de criação”.

Da Irmandade 2015 13cm X 10cm X 21cm Grês, esmalte e óxidos Queima em forno a gás a 1.300°C 105


SANDRA QUIRINO Ateliê Sandra e Cristiano Sandra Quirino - natural de Campinas, SP 1950. Em 1971 forma-se em Tecnologia de Alimentos, mas logo passa a dedicar-se à cerâmica, fazendo curso no Sir John Cass College of Art, na Inglaterra, entre 1977 e 1979. Em 1980 regressa ao Brasil e estabelece seu primeiro ateliê com o marido Cristiano Quirino, em São Paulo, que transfere para Itupeva em 1992. Em 2004, monta ateliê em Cunha, onde constrói um forno a gás, inaugurado em 2009. Desde 1977, participa de exposições coletivas como: “Adult Education”, no Chelsea-Westminister College, Londres, em 1977; Galeria Toki Arte, São Paulo, entre 1980 e 89; “Cerâmica Contemporânea” - Paço das Artes, São Paulo em 1983; “Movimento Arte Litoral Norte”, em 1988; e “Arte que nasce na terra” - Espaço Cultural Conjunto Nacional, São Paulo, nos anos de 2011, 2012 e 2013. Sandra trabalha com argila de fabricação própria para alta temperatura, utilizando matéria-prima da cidade de Cunha e outras, que modela no torno e em placas e decora com engobes, esmaltes, óxidos, pintura e esgrafito. As peças, de caráter utilitário e decorativo, são queimadas a uma temperatura de 1300ºC em forno a gás. Seu trabalho tem influência da cerâmica utilitária japonesa e suas traduções britânicas, aliado ao desenvolvimento de um design próprio centrado no ideal arte e função.

106


Para Sandra, a cerâmica é parte integrante da vida. É um “exercício diário de aprendizado, desafios e realizações: a preparação da argila, a confecção das peças, a decoração, a queima do forno e sua abertura, marcando o final e o recomeço do trabalho, numa simbiose perfeita”. O ateliê de Sandra e Cristiano proporciona ainda ao público visitante a realização de um “tour didático”, no qual os artistas mostram as diversas fases da sua produção, desde a preparação da argila, passando pela composição dos esmaltes, até ao produto final.

Sem título 2015 Grés e esmalte de titânio. Queima em forno a gás, 1300ºC

107


FELIPE ZUÑIGA Ateliê Adamas Felipe Zuñiga - natural de Santiago, Chile - 1947. Estabelecese na cidade de Cunha em 2005, após um percurso atribulado que inclui a fuga da ditadura militar chilena em 1978. Depois de fazer parte da resistência armada e escapar do seu país pelas montanhas geladas em direção à Argentina, percorre a América do Sul vendendo artesanato até se estabelecer no Brasil em 1981.

Ancestral 2015 8 x 8 x 12cm Terracota, engobe Queima a 1000ºC 108

Formado em Artes Visuais pela Universidade Católica do Chile, também estuda arquitetura, psico-pedagogia, prosa e poesia durante a década de 1970. Quanto à cerâmica, aprende com as populações indígenas do Chile, que serviram de tema para o seu mestrado. Apesar de também ter estudado cerâmica na faculdade, Felipe sempre considerou a atividade como hobby. Foi só em 2005, após fazer contato com Alberto Cidraes e Mieko Ukeseki no Congresso Nacional das Artes do Fogo (CONTAF), que surgiu a ideia de estabelecer um ateliê em Cunha. A região agradoulhe não só pela localização estratégica entre São Paulo e o Rio de Janeiro, mas também pela abundância de argila e pelo clima frio de montanha.


O projeto inicial era estabelecer um ateliê de artes, já que, além da cerâmica, se dedica também ao desenho, pintura e decoração. No entanto, foi na cerâmica que centrou o seu foco e atualmente desenvolve seu trabalho de baixa temperatura com argila coletada da região. Além da modelagem manual, em torno e com placas, Felipe usa também moldes de gesso, técnica que aprendeu com os índios. Já esmaltes, usa poucos, dando preferência aos engobes. Quanto à queima, tem um forno de raku, um forno elétrico e um forno a lenha de caixão, de inspiração indígena. Suas influências são claras: além das populações indígenas chilenas, as ancestrais civilizações incas, maias e aztecas que existiram nas Américas Central e do Sul antes da chegada dos espanhóis são sua grande inspiração.

109


ANDERSON CANHADAS Ateliê Gralha Azul Anderson Canhadas - natural de São Paulo, SP - 1953. Forma-se como Técnico Ambiental. Na década de 1990 começa a fazer cerâmica como hobby, graças a um curso oferecido pela Prefeitura de São Sebastião, onde trabalhava. Em 1999 forma-se como Técnico em Cerâmica pelo SENAI e em 2005 estabelece ateliê em Cunha, instigado por uma palestra de Gilberto Jardineiro e atraído pela qualidade de vida, tranquilidade e pela oportunidade de trabalhar profissionalmente com cerâmica. Anderson utiliza argilas locais modeladas em torno, placas e moldes de gesso, para produzir peças majoritariamente utilitárias, mas também decorativas e escultóricas, decoradas com engobes, esmaltes e outras técnicas decorativas e queimadas em forno a gás ou em forno noborigama, em ocasião de queimas coletivas, a uma temperatura de 1300ºC. Apesar de possuir ateliê próprio, Anderson vende também suas peças na Casa do Artesão. Suas influências são variadas, mas faz questão de mencionar o caráter autodidata do seu trabalho. Para ele, a cerâmica é um contínuo aprendizado: “ela exige que você esteja sempre fazendo. Quanto mais você faz mais você aprende”, afirma.

110


Tubos 2014 35 x 30 cm Queima em forno a gรกs a 1280o C 111


PAULO AMBRÓSIO Paulo Roberto Ambrósio - natural de Nova Europa, SP - 1951. Antes de se iniciar na cerâmica, dedica-se à pintura e ao desenho, trabalhando com decoração, arquitetura e marcenaria. Nos anos 70 faz curso de cerâmica utilitária na Fundação Mokiti Okada e desde então começa a frequentar vários cursos na área: em 1985 estuda com o Mestre Zé Maria, no Ateliê da Igreja Messiânica de São Paulo; em 1988 faz aula com Cintia Gavião; e em 1990 aprende com Israel Kinslansky. Em 1998 muda-se para o bairro do Paraibuna, em Cunha, mas é só no começo dos anos 2000 que retoma seu trabalho em cerâmica, realizando uma primeira queima no Ateliê de Leí Galvão e Augusto de Campos em 2005, seguida de uma exposição individual no Espaço Lavapés, em 2005 e 2006. Entre 2009 e 2011 participa da Grande Exposição de Arte Bunkyo, em São Paulo e, no último ano, realiza também curso de queima e esmaltes com Lu Leão. É nessa época que decide dedicar-se integralmente à escultura em cerâmica e estabelecer seu ateliê atual, onde trabalha majoritariamente com o tema de cabeças, representando seres fantásticos como gnomos, faunos, bruxas, demônios, tritões e soldados. Paulo usa vários tipos de argilas modeladas em placas, de modo manual e livre para produzir objetos escultóricos, que decora com engobes, esmaltes e pintura, e queima em um pequeno forno a gás de tijolo comum a uma temperatura de 1000ºC. Suas influências vêm de sonhos e fábulas, da pintura, da iconografia bizantina e da religião refletida na representação de Nossas Senhoras. Paulo também produz alguns objetos decorativos e utilitários, como bicas d’água, vasos e luminárias, tudo tendo como base o tema das cabeças. Para ele, seu trabalho em escultura é de tema livre, “sem compromisso com estilos e influências”. 112


Sem título 2015 26 x 22 x 26 cm Terracota Queima em forno a gás a 1000ºC

113


GRAZIELA AWABDI Ateliê da Grouze Graziela Awabdi, mais conhecida como Grouze - natural do Rio de Janeiro, RJ - 1955. Em 2002 envereda pela primeira vez pela cerâmica em Embu das Artes, São Paulo, onde começa a estudar no Memorial do Sakai, dedicado ao famoso escultor de terracota de origem japonesa Tadakiyo Sakai. Seu interesse pela cerâmica vem através da Psicologia, área em que se forma após uma primeira graduação em Direito. É assim, através da arte-terapia, que começa a mexer na argila, já que, segundo as suas palavras, “a arte é mágica, é cura de alma”. Vem para Cunha em 2004, como muitos outros, em busca de um lugar tranquilo. Aqui surpreende-se com a proliferação de ateliês, fator decisivo para seu estabelecimento definitivo na cidade. Autodidata e inventora de seu próprio estilo peculiar, Grouze trabalha com argila de Cunha para criar peças utilitárias e decorativas, modeladas de modo manual em placas e no torno, e queimadas em forno noborigama. Apesar de possuir apenas um forno elétrico, que geralmente usa para a queima de biscoito, utiliza frequentemente o forno dos colegas ceramistas para queimar suas peças, especialmente na ocasião de queimas coletivas. Sua temática de preferência relaciona-se a flores e folhas, já que a natureza é-lhe algo especialmente querido. “Eu acredito na unicidade do Universo. Minha flor tem cara e é flor, vem disso o meu trabalho”, afirma. O fogo também é um componente essencial no seu trabalho, não só devido à queima em forno a lenha, mas também pela ausência de esmalte no exterior das peças, que permite ao barro reagir naturalmente à ação desse elemento. No interior das superfícies, por 114


motivos de impermeabilização, utiliza esmaltes brancos e transparentes, deixando as formas falarem por si mesmas.

Caracol 2014 50 x 35 x 25 cm Queima em forno noborigama, 1400Âş C 115


NILVANDA RODRIGUES Nilvanda Cerâmica Nilvanda Rodrigues do Carmo - natural de Fernandópolis, SP - 1954. Em 1980 forma-se em Artes Plásticas, e entre 1984 e 1986 realiza curso de extensão universitária em cerâmica na Faculdade Teresa D’Avila (FATEA), com a Hisae Sugishita, com quem também faz curso de alta temperatura em 1988. Em 1990, cursa cerâmica no SENAI, com enfoque na modelagem em torno, preparo do barro e formulação de esmalte. Em 2006 monta ateliê em Cunha atraída pelo potencial artístico da cidade: “Minha impressão, quando cheguei aqui e que me prendeu, foi esse ar de arte, esse cheiro de barro e de madeira, que é muito inspirador”, afirma. Em 2011 Nilvanda cursa a disciplina “Processos e Conexões com a Cerâmica Contemporênea” na Universidade de São Paulo como ouvinte, ministrada por Norma Grinberg e, no mesmo ano, entra como aluna especial no curso de mestrado em “Cerâmica Latino-Americana: tradição, transformação e contemporaneidade” da UNESP, coordenado por Lalada Dalglish. Em 2013 faz curso de formulação de esmalte de baixa e alta temperaturas no SENAI. Desde 1985 participa de várias exposições coletivas, e em 1996 realiza uma exposição individual no Centro Cultural Volkswagen Clube. Nilvanda trabalha com argila branca, rosada e vermelha de alta e baixa temperaturas, que modela no torno, em placa e de modo manual, para produzir peças utilitárias e artísticas decoradas com esmaltes, óxidos e cinzas. As peças são queimadas em alta e baixa temperaturas em forno elétrico, construído em São Paulo em 1984, ou em forno a lenha, que mantém em Cunha desde 2007. 116


Sua inspiração vem da cultura oriental, que lhe é referência não apenas na cerâmica, mas também em outras artes, como o arranjo de flores (ikebana) e a cerimônia do chá, além de filosofia de vida: “Eu gosto da questão da tradição do Oriente, mas eu acho que o Brasil é mais criativo. E acho legal essa fusão”. Assim, essa possibilidade de ter acesso ao material, às técnicas e transformá-las com a própria criatividade, é algo que a fascina: “Como artista plástica experimentei vários materiais e fiquei fascinada pelas amplas possibilidades do barro. Ele me permite exercitar, desafiar e desenvolver o meu potencial criador, pela sua maleabilidade, troca de energia, facilidade de imprimir texturas, cortar e rasgar, que abre um leque de elementos que resultam em formas artísticas surpreendentes”.

Sem título 2012 50 cm de diâmetro Queima a 1040° C

117


BENEDITO LUIZ DA SILVA Ateliê B. Cajuru Benedito Luiz da Silva, mais conhecido como Dito Cajuru - natural de Cunha - 1973. Na década de 1990 adquire uma olaria, especializada na produção de tijolos e telhas, que dirige por 12 anos. É lá que tem o primeiro contato direto com a cerâmica e que desenvolve interesse pela atividade de manipulação do barro. Em 2007 através do primo Luiz Toledo, começa a fazer cerâmica e constrói um forno noborigama de uma só câmera, feito com tijolo comum segundo o mesmo projeto arquitetônico do primo ceramista. Assim, começa a produzir peças utilitárias, escultóricas e decorativas, queimadas a baixas temperaturas de cerca de 800ºC, a partir do uso de argilas locais. A modelagem é feita de modo manual e com o auxílio de placas. Quanto aos acabamentos, utiliza apenas engobes preparados com matéria-prima local. Além de queimar no seu forno em seu próprio ateliê, Dito costuma também participar nas queimas coletivas em ateliês de outros ceramistas da cidade. Atualmente, vende suas peças e as da sua mãe, Dona Matilde, em seu ateliê no Bairro do Cajuru, onde também possui algumas peças das paneleiras, como da Dona Mica, que conheceu pessoalmente.

118


Sem tĂ­tulo 2014 25 x 35 cm Engobe Queima em forno a lenha a 1000Âş C 119


MATILDE DE CARVALHO SILVA Ateliê B. Cajuru Matilde de Carvalho Silva, mais conhecida como Dona Matilde - natural de Cunha, SP - 1935. Ao longo da sua vida toma contato com o trabalho de várias paneleiras, produtoras de potes, panelas e outros utensílios de barro tradicionais da região para uso doméstico no cotidiano da roça. No começo dos anos 2000, começa a frequentar a casa da Dona Dita, falecida em 2011 e considerada como a última paneleira de Cunha. É ao observar o seu trabalho que Dona Matilde aprende as técnicas tradicionais de manufatura de cerâmica, como a modelagem manual através da técnica de acordoamento e polimento das superfícies com o auxílio de uma pedra roliça usada pelas paneleiras da região. Entre 2014 e 2015 faz curso de escultura com o ceramista de Cunha, Luciano Almeida, na Escola Carlito Maia, em Cunha, que a incentiva a desenvolver o seu trabalho. Atualmente, Dona Matilde utiliza a argila de Cunha para a produção de potes e panelas, seguindo o processo tradicional das paneleiras de Cunha, além de produzir esculturas influenciadas pelo folclore local. Algumas peças são depois decoradas com engobe e queimadas em forno noborigama de uma só câmera, processo feito pelo seu filho, Benedito Luiz da Silva, mais conhecido como Dito Cajuru, com quem atualmente divide o ateliê.

120


Mรฃe da Terra 2012 35 x 25 cm Queima em forno a lenha a 1000ยบ C 121


LUCIANE YUKIE SAKURADA Atelier Gallery Tokai Luciane Yukie Sakurada - natural de Santa Isabel do Ivaí, Paraná - 1968. Em 1991 vai para o Japão e, a partir de 2000 começa a fazer cerâmica com Regina Goto na pequena cidade de Mashiko, com quem aprende a técnica de modelagem em placas. Em 2004 faz curso de modelagem com o mestre coreano Kim Youngman e entre 2004 e 2006 trabalha como instrutora de cerâmica no Mashiko International Ceramic Club. Em 2006 faz parte da comissão organizadora do Festival Internacional de Cerâmica de Mashiko e, em 2007 retorna ao Brasil, estabelecendo seu ateliê em Cunha em 2008, juntamente com Marcelo Tokai. Desde 2009 tem participado de várias exposições coletivas, tais como o 3º Salão Nacional de Cerâmica, em Curitiba, em 2010 e no Pavilhão Japonês do Parque Ibirapuera, São Paulo, em 2014. Luciane trabalha majoritariamente com placas e modelagem manual para produzir peças utilitárias, decorativas e escultóricas, decoradas com desenhos delicados e minuciosos, representando formas da natureza como cogumelos, libélulas e as famosas flores de cerejeira japonesas sakura, que lhe conferiram a Medalha de Ouro na 4ª Grande Exposição de Arte Bunkyo, São Paulo, em 2010. Os desenhos são feitos ora com a técnica de esgrafito sob o engobe, ora com a aplicação de óxidos com um pincel japonês utilizado na caligrafia chamado fude. A inspiração na natureza também se reflete nas grandes esculturas de sementes que encontra na mata de Cunha. Outro recurso utilizado pela ceramista é o uso de uma placa de madeira, instrumento de origem coreana, para bater argila, conferindo uma textura particular às peças. A queima é feita em forno 122


a gás, com redução de oxigênio, a uma temperatura de 1300ºC. A influência japonesa está presente não apenas nas técnicas utilizadas e nos objetos produzidos como as famosas tigelas (chawan) para a cerimônia do chá, modeladas em placas, mas também na filosofia que coloca no seu trabalho, que é feito para ser usado no dia a dia e fazer parte da vida das pessoas. Isto porque, para ela a cerâmica é “uma arte viva”, feita para “ser tocada, apresentada, posta, sentida”.

Oni Umi Ushi 2013 87 cm x 28cmx12cm Grês com esmalte transparente, engobe e desenho no esgrafito Queima em forno a gás a 1300º C

123


MARCELO TOKAI Atelier Gallery Tokai Marcelo Tokai - natural de Mogi das Cruzes, SP - 1973. Em 1992 vai para o Japão, onde estuda cerâmica com o mestre Ryo Furuki, em Mashiko, a partir de 1998. Entre 2000 e 2003 estuda a queima e construção de fornos a lenha anagama e ittekoigama com o mestre Masakazu Kusakabe, em Miharu, Japão e, entre 2003 e 2005 estuda a queima e construção de forno noborigama com o mestre Masaho Ono, em Mashiko. No ano 2000 faz parte da Comissão Organizadora do Festival de Cerâmica entre a Coreia do Sul e Mashiko e expõe pela primeira vez seu trabalho na Gallery Tho, em Seul, Coreia do Sul. A partir desse ano participa de várias exposições individuais e coletivas no Brasil, Japão e Austrália. Retorna ao Brasil em 2007 e estabelece seu ateliê em Cunha em 2008, juntamente com Luciane Yukie Sakurada. Em 2010 é homenageado com a Medalha de Ouro na 4ª Grande Exposição de Arte Bunkyo, em São Paulo e, em 2014 é convidado para participar do Festival Internacional de Queima a Lenha, Edge of the Self International Woodfire Festival, realizado na Austrália. Marcelo utiliza argila de Cunha, que mistura com argilas de outras proveniências para a produção de peças utilitárias, decorativas e escultóricas queimadas com redução de oxigênio a alta temperatura de 1300ºC em forno a gás ou, na ocasião de queimas coletivas, em forno noborigama. A modelagem é feita de forma manual, no torno, em placas, com gesso ou de modo livre, e as peças são decoradas com esmaltes, engobes, esgrafitos e óxidos, produzindo um resultado de aparência natural e espontânea.

124


A influência japonesa é clara não apenas na simplicidade das formas e nos esmaltes utilizados como shino, tenmoku, oribe e esmaltes de cinzas naturais, mas também na preocupação em utilizar elementos da natureza local como a argila, cinzas de eucalipto, de pinus e de casca de arroz, além de feldspato e caulim, abundantes na região. Da natureza, principalmente do mar, vem também sua inspiração. Além de esculpir formas que lembram corais, conchas e outros elementos marinhos, Marcelo utiliza também as próprias conchas para produzir efeitos nas superfícies das peças durante a queima. Por isso que, para ele, a cerâmica se pode definir como uma “arte feita com elementos naturais”.

Concha 2013 55 x 45 x 25 cm Grês com esmalte de cinzas de pinus com cobre e engobe branco Queima em forno a gás 1300º C

125


DANIEL MAILLET Atelier Maillet: desenho pintura escultura Daniel Maillet - natural de Zurique, Suiça 1956. Forma-se em Design Gráfico e estuda desenho, pintura e gravura como aprendiz no ateliê do seu pai, o artista plástico Leo Maillet, entre 1977 e 1979. Em 1978 faz curso de pintura com Verena Anderegg, em Zurique e, entre 1979 e 1980 trabalha como assistente do escultor Reini Bruderlin. No ano seguinte estuda gravura no Mornley Colledge London e, entre 1984 e 1988 cursa a Academia de Belas Artes de Milão, onde aprofunda seus estudos na pintura, pedagogia e história da arte. Em 1994 viaja para o Brasil pela primeira vez, onde começa a fazer escultura em cerâmica de baixa temperatura. No mesmo ano estuda cerâmica no ateliê de Rita Vinhas, em Salvador e, em 1999 faz aula de escultura em Peccia, na Suiça. A partir de 1999 envereda pela escultura de alta temperatura para obras de grande porte. Em 2002 estabelece-se definitivamente no país, primeiro em Fortaleza e, em 2007 muda-se para Cunha, onde constrói um forno do tipo shuttle kiln, em 2015. Desde 1976 participa de exposições coletivas e individuais,tais como: “Retrato Baianos”, Instituto Goethe, Salvador, em 1995; “Poço da Draga”, Museu de Arte Contemporânea do Ceará, Fortaleza, em 2006; e “Quando a gravura interpreta o teatro”, Espaço Cultural dos Correios, Fortaleza, em 2015.

126

Daniel trabalha com receitas próprias de argila específica para esculturas de grande porte em alta temperatura. Sua técnica parte da modelagem em placas para a criação de interiores ocos com estruturas feitas com a própria argila, método que tem desenvolvido nos últimos anos. Suas esculturas de grande porte podem ser queimadas ao natural ou decoradas com


engobes, óxidos, esmaltes ou técnicas mistas, dependendo da temática da obra. A queima é feita em forno a gás ou em forno a lenha, na ocasião de queimas coletivas, a uma temperatura de 1300ºC. Sua produção é unicamente escultórica, de cariz realista e expressivo, feito com modelo ao vivo e outros recursos. Suas influências vêm da tradição clássica das antigas culturas mediterrâneas e da Europa Central. Além da cerâmica e da escultura, Daniel dedica-se também à pintura e ao desenho. É o único artista trabalhando com escultura figurativa de grande porte em alta temperatura no Brasil: “A argila é o meio com que mais me encontro para criar esculturas. Com o tempo me dei conta que não existem muitos escultores que trabalham com estilo figurativo clássico utilizando a terracota; isso foi um incentivo para aprimorar mais a minha técnica de modelagem para grande formato, que permite a queima da peça. Na tradição escultórica o barro é usado como modelo para esculpir o mármore ou para tirar moldes para a fundição de cera perdida; depois é reciclado. Nas Academias de Belas Artes não existe formação especifica para as duas disciplinas: modelagem para grande porte e queima para alta temperatura”, revela.

Ninfa IV, Geórgia reading on the polyhedron 2014 145 x 56 x 58 cm. Argila crua 127


FLÁVIA SANTORO Ateliê Flávia Santoro Flávia Santoro - natural de Belo Horizonte, MG - 1968. Diplomada em Psicologia pela UNIP, em 1990, inicia seus estudos de cerâmica com os índios Caraivas, na Bahia, em 1991. Entre 1992 e 1993 desenvolve práticas de cerâmica com artesãos locais em Esmeraldas, no interior de Minas Gerais, e, no ano seguinte faz curso de Escultura na Academia Brasileira de Arte. Entre 1995 e 1996 frequenta a Escola de Belas Artes de Vallauris, na França e, em 1997 retorna ao Brasil, estabelecendo ateliê em Pedro do Rio e, a partir de 1999, em Itaipava, no Rio de Janeiro. Em 2010 muda seu ateliê-escola para Cunha e associa-se ao ICCC, onde ministra aulas do Curso Básico de Cerâmica desde 2010 e atua como Diretora Artística e Cultural desde 2015. Desde 1996 participa de exposições coletivas e individuais tais como: Exposição solo na Galeria do Sesc, Petrópolis, Rio de Janeiro, em 1997; Exposição “Raku Suprema Alegria” no Centro Cultural Raul de Leôni, Petrópolis, em 2001; “Transgênicos, um Certo Olhar”, Centro Cultural dos Correios, Rio de Janeiro, em 2007; e Exposição “Transitórios”, Centro Interpretativo do Castelo de Montemor- O-Novo, Portugal, em 2013.

Vaso Vulcão 2014 17 x 17 x 30 cm Engobe de Sal e Esmalte de Cinzas Queima de Sal em Forno Noborigama, 1300ºC 128

Flávia produz peças utilitárias, escultóricas e decorativas a partir da modelagem em torno, placas e manual, decoradas com engobes, esgrafitos, pinturas com óxidos, baixo e sobrevidrados e sobreposição de esmaltes de cinzas, que tem pesquisado nos últimos 15 anos e que produz a partir de plantas locais como jacarandá, anjico ou candeia. Seu ateliê possui


cinco tipos de fornos, que usa para vários tipos de queima: queima de saggar em forno de buraco, queima raku a gás e a lenha, queima a sal e queima de alta temperatura em forno a gás e a lenha de uma única câmera, este último que introduziu depois de se mudar para Cunha, influenciada pela tradição da região. A argila é coletada localmente e processada pela própria ceramista. Desde 1998 Flávia trabalha com ensino de cerâmica paralelamente ao seu trabalho artístico, ministrando vários workshops e cursos intensivos em seu ateliê e em vários locais do Brasil e do exterior. Suas influências passam pela cerâmica primitiva dos índios brasileiros e pela cerâmica a sal europeia. Para ela, seu fazer cerâmico tem a ver com sua busca por Deus. “É a minha meditação. É uma busca. É quando eu entro em contato com Deus, com a natureza. O próprio material, a terra, já me liga à natureza e a Deus”, afirma.

129


AMÁLIA GÓMEZ Gaia Arte Cerâmica Amália Fernandéz Gómez, mais conhecida como Mali - natural de Orense, Espanha - 1959. Faz graduação em Administração de Empresas e pós-graduação em Administração de Hotéis e, durante um tempo trabalha como docente do Ensino Superior. Começa a fazer cerâmica como hobby, para se libertar das atividades cerebrais que realiza em São Paulo. Assim, durante dois anos faz aula de torno, esmaltes e raku no Atelier Janú Capuano e, depois, especializa-se em raku no Atelier Osvaldo Perez. Com Janu e Osvaldo aprende os conceitos básicos da queima raku e o resto vem da experimentação, de modo a alcançar os resultados desejados. Em 2011, 2012 e 2013 participa de uma exposição coletiva sobre a cerâmica de Cunha no Conjunto Nacional, em São Paulo. A vontade de sair da capital para morar no interior, em busca de paz e tranquilidade, culmina em visitas frequentes a Cunha a partir de 2002, motivada pela proximidade com Paraty. Finalmente, estabelece ateliê em Cunha, em 2009, juntamente com o marido Wagner Gambaré, que se mantém desde 2011 no espaço atual. Mali trabalha com argilas nacionais, importadas e com porcelana para criar peças utilitárias, decorativas e escultóricas, modeladas no torno, em placas ou com modelagem livre. As peças podem ser decoradas com esmaltes, engobes, óxidos, esgrafitos, pintura a mão livre, recortes, entalhes e terra sigillata e queimadas em forno a gás a uma temperatura de entre 1250 a 1280ºC ou em forno de raku a uma temperatura de 1000ºC. Muitas peças são feitas em conjunto pelo casal: Wagner modela e Mali faz o acabamento e a decoração. 130


Ambos têm uma herança mourisca e europeia, que usam como referência para a realização dos trabalhos. Mali, nascida na Espanha, tira inspiração de tudo o que é belo e da natureza, proporcionada pelo contato diário em Cunha. Para ela, a cerâmica é uma atividade que lhe permite pesquisa e aprendizado constantes.

Jardim de Sombra 2013 36 x 21 cm Entalhes, recortes, esmaltes Queima a gás a 1250ºC 131


WAGNER GAMBARÉ Gaia Arte Cerâmica Wagner Gambaré - natural de Santo André, SP - 1967. Faz curso superior em Administração de Empresas com habilitação em Comércio Exterior. Começa a fazer cerâmica como hobby, iniciando seu aprendizado no Atelier Regina Esher, onde fica por dois anos fazendo aula de torno, modelagem e raku. Durante um ano estuda torno, esmaltes e raku no Atelier Janu Capuano e, depois, especializa-se em raku no Atelier Osvaldo Perez. Em 2011, 2012 e 2013 participa de uma exposição coletiva sobre a cerâmica de Cunha no Conjunto Nacional, em São Paulo. A vontade de sair da capital para morar no interior, em busca de paz e tranquilidade, culmina em visitas frequentes a Cunha a partir de 2002, motivada pela proximidade com Paraty. Finalmente, estabelece ateliê em Cunha em 2009, juntamente com a esposa Mali, desde 2011 no espaço atual. Wagner e Mali trabalham com argilas nacionais, importadas e com porcelana para criar peças utilitárias, decorativas e escultóricas, modeladas no torno, em placas ou com modelagem livre. As peças podem ser decoradas com esmaltes, engobes, óxidos, esgrafitos, pintura a mão livre, recortes, entalhes e terra sigillata, queimadas em forno a gás a uma temperatura entre 1250 a 1280ºC ou em forno de raku a uma temperatura de 1000ºC. Muitas peças são feitas em conjunto pelo casal: Wagner modela e Mali faz o acabamento e a decoração. Ambos têm uma herança mourisca e europeia, que usam como referência para a realização dos trabalhos. Para Wagner, a cerâmica é seu “meio de expressão”. 132


O ateliê Gaia apresenta também periodicamente ao público interessado uma queima de raku, com a duração de cerca de uma hora, quando os espectadores podem ver o espectáculo de retirada das peças do forno ainda incandescentes. Estas são depois colocadas em serragem e folhas, criando resultados surpreendentes nas superfícies, que podem ser vistos imediatamente após a queima.

Pagoda 2015 14 x 14 x 40 cm Esgrafito e esmalte Queima de raku em forno a gás a 1000ºC 133


ROGÉRIO DAVID Casa Cunha Rogério David - natural de São Paulo, SP 1964. Forma-se em Artes Cênicas pela Escola de Artes e Comunicações da Universidade de São Paulo, e nos anos 1990 muda-se para Londres, onde fica por 19 anos e desenvolve interesse por cerâmica. Inicialmente começa a colecionar peças de cerâmica européia moderna com influência japonesa e a frequentar feiras de cerâmica e antiguidades. Em 2008 decide finalmente estudar cerâmica, fazendo vários cursos na Inglaterra e sul da França. Assim, faz aula com Akiko Hirai no Chelsea & Kensington College, curso de torno com Lisa Hammond no Hackey College e curso de queima com Nic Colins e Ritsu Takahashi. A partir de 2009 começa a frequentar Cunha e em 2011 decide estabelecer-se aqui definitivamente, abrindo seu atelier ao público em 2013, onde possui um forno elétrico e um forno a lenha para queima de raku, queima a soda e fast firing (queima rápida). Rogério usa porcelana e argilas locais para fazer peças utilitárias, escultóricas e decorativas inspiradas pela estética britânica de influência oriental. Assim, utiliza esmaltes de cinzas e vários esmaltes de origem japonesa como shino e tenmoku, além de engobes de várias cores, inspirado no estilo britânico slipware. Outra técnica utilizada é o carbon trapping, que consiste na criação de fumaça de redução com bicarbonato de sódio, criando efeitos inesperados na superfície das peças. A modelagem é feita no torno, em placa e de forma livre.

134


Jarra 2015 16 x 9 x 15 cm Grês com engobe branco hakeme, decoração em cobalto, esmalte transparente Queima em forno elétrico 135


RENÉ LE DENMAT René Le Denmat - natural de Nice, França 1942. Autodidata na cerâmica, faz sua primeira tigela no torno em 1970, no ateliê de Jacques Gretha, no País Basco, França, como resultado de uma brincadeira entre amigos. Durante anos, simultâanemanete à profissão de militar paraquedista, trabalha em diferentes ateliês na França e no estrangeiro, o que lhe permite abordar diferentes técnicas e adquirir experiências diversas. Na década de 1980, na Alemanha, descobre a queima em alta temperatura com o ceramista japonês Aisaku Suzuki. Em 1992 tem o primeiro contato com a queima a lenha com o ceramista Hervé Rousseau, no Centro Francês de Cerâmica Contemporânea La Borne. Entre 1990 e 2013 é secretário da associação francesa de ceramistas Printemp des Poitiers. Participa de inúmeras feiras de cerâmica na França e no estrangeiro, e realiza várias exposições coletivas na França e em Kasama, no Japão. Possui também uma peça no Museu Gangjin do Celadon, na Coreia do Sul. Em 1998 realiza exposição individual em Tokyo, e em 2010, no Ateliê Hideko Honma, em São Paulo. Em 2009 instala-se no Brasil e divide seu tempo entre o ateliê Hideko Honma e o Ateliê Suenaga e Jardineiro, em Cunha, onde realiza uma primeira queima em 2010. Atualmente está em processo de montagem de seu próprio ateliê em Cunha, com forno a gás em fibra leve, que trouxe da França. René usa argila grês e porcelana para criar peças utilitárias para uso cotidiano com exigência decorativa. As peças são modeladas no torno e em placas, frequentemente combinando as duas técnicas, e decoradas com engobes, sobreposições de esmaltes, escarificações e muitas vezes deformadas, utilizando recursos diversos como o verso de um prendedor de roupa. A queima é feita em forno a gás ou em forno noborigama, a uma 136


temperatura de entre 1300ºC e 1400ºC. Suas influências partem do Extremo Ocidente, fomentadas em particular por duas estadias no Japão, em 1998, no ateliê de Mamoru Teramoto, em Kasama. Sua especialidade são esmaltes celadon e vermelho de cobre, conseguidos apenas com um bom controle da atmosfera do forno em redução. A influência francesa também se faz presente na técnica de sobreposição de esmaltes.

Jarra para folhas de chá 2013 28 x 35 cm Grés, esgrafito e sobreposição de esmaltes Queima em forno a gás a 1300ºC

Sobre a cerâmica, admite ser algo que se tornou uma necessidade em sua vida: “É mais uma arte de viver do que uma profissão. Sua prática sem interrupção desde 1970 modificou meu olhar sobre todas as coisas, desenvolveu minha faculdade de observação, alargou meu campo de visão e de julgamento, mas também, e é o mais importante: o aprendizado da humildade”. É por isso também que frequentemente recusa o título de artista: “Eu não aceito, no que me diz respeito, o nome de artista. Eu sou um artesão criador. Eu nunca consegui compreender bem o que é ser um artista, a partir de que momento nos tornamos artistas… Por isso, me reconheço muito bem no título de artesão criador”.

137


CÉLIA FLUD Ateliê Terra e Tal Célia Flud - natural de São Paulo, SP - 1951. Forma-se em Letras e Literatura. A paixão pela cerâmica carrega desde que tem memória, mas é em 1997 que envereda decisivamente pela arte do barro, após um curso intensivo de esmaltes e massa cerâmica em Belo Horizonte, com Nícia Braga. “Eu comecei a fazer cerâmica com todas as facilidades, argila pronta, ferramentas etc.” conta. “Mas eu não tinha uma tradição nas costas. Só tinha uma curiosidade”. Em 2001 mudase para Paraty e durante dois anos estuda e forma seus próprios conceitos sobre cerâmica, até abrir o seu ateliê em 2003. Vem para Cunha em 2013, atraída pelo clima ameno de montanha da região e, no ano seguinte, transfere seu espaço “Terra e Tal” para a cidade. As obras de Célia passam pelo utilitário, decorativo e escultórico, mas o de que ela gosta mesmo é “trabalhar com peças pequeninas”, admite. Além de utilizar várias técnicas de modelagem no torno, em placas e de forma livre, e recorrer à mistura de vários tipos de argila, como grés, terracota, porcelana e argila produzida no próprio ateliê, dedica-se também à pesquisa de esmaltes para queima em alta temperatura. De fato, segundo a ceramista, 95% dos esmaltes que aplica em suas peças são feitos por ela a partir de cinzas e minerais, e têm como objetivo a manutenção das cores em temperaturas altas. Além dos esmaltes, a decoração é feita também com engobes, óxidos e esgrafitos. A queima é feita em forno a gás ou forno elétrico a temperaturas que vão de 1180ºC a 1300ºC. Célia trabalha também com painéis, em que mescla o trabalho em ferro e a cerâmica, ora costurados com fio de cobre, ora fundidos no próprio forno. Outra preocupação da ceramista 138


relaciona-se com o aproveitamento de materiais que, de outra forma, iriam para o lixo, além do uso de materiais locais que introduz na massa cerâmica com o uso de argilas de Cunha, ou nos próprios esmaltes, como é o caso das cinzas de casca de pinhão. Sua grande inspiração, afirma, reside na mata que rodeia sua casa e ateliê. Outra curiosidade no seu processo de fazer cerâmica é a utilização de pó de café, que adiciona à argila, ao esmalte ou introduz no forno durante a queima. “A cerâmica é meu equilíbrio, minha expressão, meu olhar”, sublinha.

Primavera 2010 Argila, ferro e cobre 100 x 40 cm Queima à gás, entre 1200 e 1300º C

139


MATEUS REIS Mateus Reis Justino - natural de Lorena, SP - 1985. No ano 2000, com 14 anos de idade, inicia seu aprendizado em cerâmica no Ateliê de Mieko Ukeseki e Mário Konishi, onde começa trabalhando como ajudante. Nos primeiros tempos dedica-se à preparação da argila e só mais tarde aprende a tornear. “Tudo o que aprendi sobre cerâmica foi aqui”, afirma. Em 2010 começa a montar seu próprio ateliê, com forno a gás a partir de 2014, mas seu projeto é construir um forno noborigama. Apesar de já possuir ateliê próprio onde produz seu trabalho individual, Mateus mantém seu trabalho no Ateliê Mieko & Mário, pois sente obrigação de contribuir com quem lhe ensinou tudo o que sabe. Em 2014, participa da 9ª Mostra de Arte Cerâmica de Caraguatatuba, realizada no Museu de Arte e Cultura de Caraguatatuba. Em seu ateliê, Mateus trabalha com argilas locais coletadas na região, modeladas no torno e em placas para produzir peças utilitárias e decorativas. As peças são decoradas com engobes e esmaltes naturais e queimadas em forno a gás a uma temperatura de 1300ºC. Atualmente está desenvolvendo uma pesquisa de esmaltes com matérias-primas locais, inspirado nas pesquisas com tenmoku do pioneiro Toshiyuki Ukeseki.

140

Por incentivo de Mário Konishi, Mateus dedica-se também ao desenho, de modo a desenvolver sua própria expressão. Seus trabalhos são inspirados nas raízes das árvores bonsai, com as quais trabalha nos tempos mortos do ateliê de quem considera seus mestres. Assim, considera como sua maior influência a cerâmica japonesa, cuja técnica aprendeu através de Mieko. Para ele, a cerâmica é uma forma de “entender minhas emoções, respeitar o tempo e a dedicação que a argila me impõe”. “É dar forma e vida ao fogo, que concretiza minhas ideias”, afirma.


Sem título 2015 17,5 x 21,5 x 16 cm Queima em forno noborigama, 1320° C 141


JOÃO CAMILLO MACHADO DE CAMPOS Atelier Rocha do Campo João Camillo Machado de Campos - natural de São Paulo, SP - 1983. Finaliza o Bacharelado em Artes Visuais pelo Centro Universitário de Belas Artes. Entre 2003 e 2010 frequenta o ateliê de Lucia Ramenzoni, com quem faz aulas de cerâmica. Em 2005 faz curso de extensão com Rosani Vieira na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo e em 2012 estuda com Mark Shapiro no Centro de Arte Curaumila, no Chile. No ano seguinte frequenta o Centro de Artes Anderson Ranch, nos EUA, onde estuda com Doug Casebeer e Pelusa Rosenthal. Em 2014 estabelece-se em Cunha e realiza sua primeira exposição coletiva no SENAC, intitulada “Arte Cerâmica de Cunha”, juntamente com outros artistas da cidade. Atualmente faz parte do Conselho Superior do Instituto Cultural da Cerâmica de Cunha e ministra aulas de cerâmica para crianças e adolescentes em escolas da região. João utiliza argila de alta temperatura, porcelana e terracota para produzir peças utilitárias e decorativas, modeladas em torno elétrico, em placas, de modo manual e em moldes de gesso, decoradas com engobes, esmaltes, óxidos, esgrafitos, terra sigillata e serigrafia. As peças são queimadas a baixas e altas temperaturas em forno elétrico, a gás, a lenha ou soda. Para ele, a vinda para Cunha propiciou-lhe o potencial de pesquisa de matérias-primas locais, contribuindo para sair do âmbito comercial do que chama de “ceramistas de boutique”, dominado pela compra de materiais prontos. Assim, em Cunha, enveredou por um processo mais naturalista, escolhendo e pesquisando os próprios 142


materiais, inspirado pelo movimento back to the land (volta ao campo) e pelos pioneiros do grupo do Antigo Matadouro. Suas influências passam pela cerâmica popular espanhola, pré-colombiana e oriental. Para ele a cerâmica “é uma linguagem sem fronteiras, um jeito de entender o mundo e suas histórias, e de se relacionar”.

Roda do dharma 2010 16cm X 9cm X 25,5cm Terracota, transferência de serigrafia com engobes coloridos Queima em forno elétrico a baixa temperatura 143


MATHEUS GONZAGA BURGER Atelier Cosmos Matheus Burger - natural de Cunha, SP - 1994. Foi o primeiro aluno do ICCC a enveredar decisivamente pela cerâmica. Formado na primeira turma do Curso Básico de Cerâmica em 2010, que considera ter mudado sua vida, atualmente cursa o Bacharelado Interdisciplinar em Artes e Design na Universidade de Juiz de Fora. Em 2014 fez intercâmbio na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, com enfoque em cerâmica. Recentemente construiu um forno de barranco feito de adobe, inspirado no japonês anagama, onde queima suas peças em baixas temperaturas de até 800ºC. Está também pesquisando várias possibilidades de argilas locais, que coleta no terreno onde reside. A modelagem é feita no torno, em placa, manualmente e de forma livre. Ademais, também faz esculturas em barro cru seco, com uma taca como se fosse gesso. Seu trabalho é dominado por um experimentalismo, primitivismo, naturalismo e espontaneidade que se reflete nas queimas caseiras, na produção de cerâmicas negras e defumadas, nas pesquisas de esmaltes com cinzas e feldspato locais e no projeto “Corpos Sonoros” para a fabricação de instrumentos em cerâmica. Os acabamentos incluem ainda a aplicação de engobes e a elaboração de texturas através de incisões, brunidos e polimento. Suas influências passam pela cerâmica indígena, africana, coreana, japonesa e, claro, pela cerâmica de Cunha. Pinha 2015 30 cm de diâmetro Terracota Queima em forno elétrico 800°C 144


HÉLIO AVELINO NETO Hélio Avelino Neto - natural de Cunha - 1988. É um dos jovens cunhenses que escolheu a profissão de ceramista. Funcionário da Oficina de Cerâmica desde maio de 2004, onde chegou sem nenhuma noção sobre cerâmica, começou por dedicar-se à preparação da argila. Foi lá que aprendeu a tornear, ensinado por Leí Galvão, e depois de um ano já trabalhava no ateliê como torneiro, função à qual se dedica hoje. Além disso, há um ano e meio começou também a fazer suas próprias peças, que queima no forno a gás do ICCC e vende na Casa do Artesão. Seu trabalho é utilitário e decorativo, modelado no torno a partir de argilas locais e decorado com engobes, óxidos e esmaltes. No entanto, após de ter participado num curso intensivo de esmalte ministrado por Flávia Santoro, começou a tentar desenvolver seus próprios esmaltes. Suas influências passam obrigatoriamente pelos ceramis-tas Leí Galvão e Augusto Campos, que considera seus mestres. Seu desejo é ter o próprio ateliê com forno a gás, por questões ecológicas e de praticidade.

Vaso sem título 22 x 61 cm Esmalte transparente e óxidos Queima em forno noborigama 145


WELLINGTON EMMERICH Wellington Emmerich - natural de Cunha, SP - 1996. É um dos mais recentes jovens de Cunha formado pelo ICCC e que enveredou pela profissão de ceramista. Após terminar o Curso Básico de Cerâmica em 2012, onde teve o primeiro contato com o barro, entrou no ateliê na Oficina de Cerâmica como ajudante e hoje trabalha também como torneiro. Atualmente está produzindo suas próprias peças utilitárias e decorativas com argila local, modeladas no torno e decoradas com engobes, óxidos e esmaltes, que queima em forno noborigama e em forno de raku. As peças são produzidas na Oficina de Cerâmica do ICCC e vendidas na Casa do Artesão. Ateliê próprio é um dos planos para o futuro, e faz questão que seja com forno noborigama, “para manter a tradição”. Suas influências passam todas por ceramistas atuantes na cidade como José Carlos Carvalho, Marcelo Tokai, Leí Galvão, Augusto de Campos e os colegas Hélio Avelino Neto e Pedro Siqueira.

Vaso sem título 12 x 32 cm Queima de raku 146


MINAMI SUENAGA JARDINEIRO Minami Suenaga Jardineiro - natural de Cunha - 1987. Nascido “dentro de um pote”, como gosta de brincar. Filho do casal de ceramistas com um dos ateliês mais prolíficos da cidade, Suenaga e Jardineiro, começa a fazer cerâmica mesmo antes de aprender a falar. No entanto, até recentemente, seu projeto de vida não incluía ser ceramista. Em 2010, parte para Bauru para cursar Relações Públicas na UNESP e lá começa a frequentar o ateliê de uma ceramista local, que o instiga a se aprofundar de modo mais intenso na arte do barro. Durante uma viagem de nove meses pela Inglaterra visita diversos ateliês e começa a tomar contato com as várias possibilidades da cerâmica. Atualmente, Minami trabalha com argila de Cunha para produzir peças utilitárias, decorativas e majoritariamente escultóricas, como cabeças, e esculturas abstratas, modeladas no torno, em placas, com gesso, de forma manual ou em modelagem livre e queimadas em forno noborigama a uma temperatura de 1400ºC. Em suas principais influências incluem-se seus pais, Gilberto Jardineiro e Kimiko Suena-ga. Para ele, a cerâmica “se tornou parte do meu possível caminho de vida”.

Figuras 2012 18 x 18 x 22 cm Grês, queima em mufla com serragem e salmoura, forno noborigama, 1400º C 147


FERNANDO AIDAR Fernando Ngan Aidar - natural de São Paulo, SP - 1983. Com graduação e mestrado em Engenharia, larga a profissão para ingressar no curso de Artes Plásticas na Universidade de São Paulo. É um dos mais recentes jovens vindos de fora a se juntar à comunidade de ceramistas de Cunha. Apesar de morar na capital do estado, está em Cunha quase todos os fins de semana, produzindo e queimando suas peças na Oficina de Cerâmica do ICCC. Em São Paulo fez aula com Norma Grinberg e frequentou o ateliê de Mayy Kofler. Em Cunha fez estágio no ateliê de Alberto Cidraes e aula de torno com Sandra Bernardini. Quanto à queima e esmaltes, afirma dever grande parte do seu aprendizado ao casal de ceramistas Marcelo Tokai e Luciane Yukie Sakurada, do Atelier Gallery Tokai. Fernando usa argila de Cunha para produzir peças modeladas no torno e em placas, no caso dos utilitários, e em modelagem livre, no caso das esculturas. Suas formas utilitárias sempre passam por processos de transformações plásticas através da adição de matéria e remodelagem posterior ou pela retirada e cortes de material. Assim, seus recipientes são sempre esculpidos posteriormente ou remodelados durante o intervalo entre a forma original, feita em torno ou placas, e a forma final, mesclando os universos utilitário e escultórico em uma só peça. Quanto aos acabamentos, utiliza engobes para esgrafito, óxidos para desenhos e detalhes, esmaltes ou deixa a peça ao natural. A queima é feita em forno a gás com redução a uma temperatura de 1280ºC. Suas peças escultóricas trazem influência de desenhistas e gravadores como Alfred Kubin, Oswaldo Goeldi, Marcelo Grassman e Cláudio Mubarac, e dos escultores Alberto Giacometti e Maria Martins. Sua cerâmica utilitária apresenta afinidades com alguns ceramistas japoneses contem148


porâneos. Entretanto, seu trabalho em cerâmica nasce poeticamente quando incorpora as características da sua produção escultórica e de seus desenhos na produção utilitária. Para ele, “a cerâmica é talvez o meio de expressão artística que permite uma maior flexibilidade de formas e gestos, de cores e linhas. É simplesmente universal: foi utilizada desde sempre em todo o planeta, por praticamente todas as civilizações que já habitaram a Terra. A argila é o material escolhido pela produção escultórica até hoje na arte contemporânea, nem que seja apenas para a primeira modelagem que dará origem aos modelos dos quais sairão os moldes para peças de silicone, resina ou cobre, bronze”, afirma. Em 2015, foi premiado com a medalha de ouro em Arte Craft, na 9ª Grande Exposição de Arte Bunkyo, em São Paulo.

Jarra galinha azul 2016 14 x 15 x 24 cm Grês com esmalte de cinza de casca de arroz e celadon Queima em forno a gás a 1300º C 149


YUAN MUNG Yuan Mung - natural de Hong Kong - 1953. Visita o Ateliê Antigo Matadouro pela primeira vez em 1975, que passa a frequentar a cada dois meses. Publicitário de profissão, começa a fazer cerâmica em 1983, como hobby. Em São Paulo faz aula de torno com o Mestre Lelé e frequenta o Ateliê de Célia Simbalista e Lucia Maggi. Em 1987 fica por seis meses no ateliê de Alberto Cidraes, onde chega a montar um forno a gás e a realizar as primeiras tentativas de produção de esmalte. Nessa época acompanha também a instalação do ateliê Suenaga e Jardineiro, participando das suas primeiras queimas em forno noborigama. No final da década de 1980 viaja para os Estados Unidos, onde fica por 16 anos e frequenta a Escola Greenwich Pottery House entre 1989 e 1990, e, a partir de 1996 a cooperativa de cerâmica Morning Side Gardens, ambas em Nova Iorque. Em 2003, de regresso ao Brasil, monta ateliê com forno a

gás em São Paulo e, em 2008 mudase para Cunha definitivamente. Atualmente está instalando ateliê na cidade e vende suas peças na Casa do Artesão. Yuan usa argilas locais para produzir peças utilitárias e decorativas a partir da modelagem manual, em placas, no torno e com moldes de gesso, decoradas com engobes, esmaltes e óxidos e queimadas em forno a gás a uma temperatura de 1300ºC. Yuan pesquisa também esmaltes de cinzas, num desejo de quebrar a uniformidade das superfícies das suas peças através da introdução de cinzas vulcânicas. Além disso, trabalha com o esmalte tenmoku, influenciado pelo movimento mingei japonês de arte popular. Para ele, a cerâmica é “uma atividade prazerosa que atende a necessidades práticas, estéticas e emocionais com infinitas possibilidades”. Sem título 2015 25 cm de diâmetro Queima em forno a gás a 1280º C

150


MAURÍCIO FLAUSINO Casa do Oleiro Maurício Flausino - natural de São Paulo, SP - 1957. Começa a fazer cerâmica com 13 anos de idade no Ateliê Elga, onde trabalha como aprendiz de ajudante, dedicando-se à limpeza e ao acabamento das peças. Lá trabalha junto com o mestre Lelé e aprende cerâmica com os imigrantes portugueses da fábrica de filtros Salles. Abre o primeiro ateliê em São Paulo, no bairro da Mooca, em 1978, e mais tarde mudase para a região de São Mateus. Na década de 1990 vai para Talavera de La Reina, na Espanha, para trabalhar com azulejos recortados. Por indicação de conhecidos, decide abrir uma loja em Cunha, onde vende as peças produzidas em seu ateliê em São Paulo.

De descendência espanhola e italiana, o trabalho de Maurício apresenta uma influência ibérica e mourisca, presente não apenas na tradição de baixa temperatura, mas também nos motivos decorativos. Para ele, a cerâmica é tudo na vida: “Eu me sinto como uma minhoca; como ela precisa de barro eu também”, afirma.

Maurício trabalha com argila branca preparada por ele para produzir peças utilitárias e decorativas modeladas no torno e decoradas com pinturas em baixo vidrado, técnica que aprendeu na Espanha para decorar azulejos. As peças são queimadas em forno a gás a uma temperatura de 1000ºC para o biscoito e em forno elétrico a uma temperatura de 1180ºC para a queima de esmalte.

Sem título 2015 38 cm de diâmetro Argila branca com esmalte Queima em forno a gás a 1050º C 151


EPÍLOGO: O FUTURO DA CERÂMICA EM CUNHA Alunos do ICCC

Nos últimos quarenta anos, a cidade de Cunha afirmou-se não só como o local de maior concentração de fornos noborigama da América do Sul, mas também como um importante polo de cerâmica artística, aberto a ceramistas de diferentes origens, tradições, técnicas e expressões. Com a criação do Instituto Cultural da Cerâmica de Cunha em 2010, mais jovens da região estão se formando como ceramistas, abrindo espaço para a participação da população local na formação de um cenário que teve origem na hibridização de tradições culturais japonesas e brasileiras. Para Luciano Almeida, diretor executivo do ICCC, o sonho é que “a própria comunidade, os nascidos aqui, consigam viver disso, para que o polo seja genuíno, que as pessoas da cidade trabalhem com essa técnica, dando continuidade a essa tradição que veio de fora e se enraizou aqui”. De fato, a semente que os pioneiros do grupo do Antigo Matadouro plantaram brotou, enraizou-se e já está dando frutos. O polo de cerâmica de Cunha temse afirmado como uma referência nacional e até internacional: “Cunha é venerada por todos os ceramistas, em todo o Brasil e na América do Sul”, declara Célia Flud. Assim, a raiz plantada pelo grupo do Antigo Matadouro contribuiu não apenas para a introdução de uma técnica, a da queima a lenha em forno noborigama, mas principalmente para o desenvolvimento de um trabalho de caráter artístico e, em maior escala, para a divulgação da atividade cerâmica e sua aceitação como arte no Brasil.

152


A expansão dos intercâmbios nacionais e internacionais com universidades e outras instituições também é um dos objetivos do ICCC, que tem se fortalecido, nos últimos anos, com visitas de ceramistas e profissionais de fora da região e do país, que têm trazido novas visões e saberes sobre a cerâmica. Segundo Alberto Cidraes, um dos sócios fundadores, o objetivo é transformar o instituto numa escola, num organismo de pesquisa, de integração sociocultural, de intercâmbio, num museu vivo. Também para Mieko Ukeseki, idealizadora do projeto, a cerâmica é um meio através do qual é possível realizar atividades de cunho educacional, cultural, social e econômico. Marcelo Tokai, presidente do Conselho Superior do ICCC, gostaria de ver a cidade de Cunha transformar-se em um local onde “as crianças de hoje possam se inspirar e ter uma profissão na cerâmica, fazendo arte”. Ele espera que a cerâmica “possa inspirar as crianças de Cunha”, vendo nela uma arte e não apenas um utilitário. Ele deseja ainda que mais jovens formados em faculdades de artes plásticas se estabeleçam na cidade, contribuindo para a formação de um centro “que inspire universidades a trocar ideias e informações”. A maioria dos ceramistas em atividade na cidade acredita no potencial de Cunha como espaço de pesquisa em cerâmica, não apenas pela proliferação de ateliês, mas também por todos os diálogos e troca de ideias, experiências, culturas e conhecimentos que estão sendo levados a cabo, diariamente, em grande parte graças à organização coletiva dos ceramistas, ora através da Cunha Cerâmica – Associação dos ceramistas de Cunha, ora do ICCC. Assim, o que começou como um sonho pessoal de cada ceramista, de desenvolver seu trabalho livremente em meio à natureza, está-se tornando em um sonho coletivo, cada vez mais organizado e real.

Para os mais jovens, Cunha tem-se revelado como um espaço com muitas oportunidades de aprendizado, não só na cerâmica, mas possibilitando um estilo de vida natural e comunitário que muitos procuram ao fugir das grandes cidades. A estada em Cunha tem proporcionado a muitos jovens ceramistas e estudantes a possibilidade de diversificar suas experiências, observando o trabalho de diferentes ateliês e o aprendizado de técnicas diversas. Ademais, a liberdade para experimentar diferentes estilos, tradições e influências também é algo a se destacar. E é esse conglomerado de pessoas e essa variedade de trabalhos que têm tornado Cunha um espaço tão interessante, não apenas para estudantes e ceramistas, mas para o público em geral. Neste sentido, importa também destacar o papel da cerâmica no desenvolvimento do turismo local. Foi ela que trouxe o turismo para Cunha e, apesar da cidade ter se desenvolvimento muito além dela com o turismo rural, de montanha e o ecoturismo, a cerâmica ainda movimenta grande parte do público visitante da cidade. A oportunidade de apresentar ao público não apenas o resultado de um longo e dedicado trabalho, mas todas as etapas envolvidas, dando a conhecer o artista e seu processo de criação, tem vindo a contribuir para valorização da cerâmica não apenas na cidade, mas em nível nacional. Apesar de, no Brasil, a aceitação da cerâmica como arte ainda estar em processo de amadurecimento, o polo de Cunha tem-se mostrado da maior importância para essa mudança de mentalidade. Para isso muito contribuiu a introdução do evento de Abertura de Fornada, iniciada pelo Ateliê Suenaga e Jardineiro, o que atualmente acontece também no ateliê de Leí Galvão e Augusto de Campos. Cinco vezes ao ano, os ceramistas apresentam ao público interessado todo o processo de produção de cerâmica desde a coleta da argila, passando pela modelagem, decoração e queima em forno noborigama, até ao produto final. 153


Entretanto, para alguns ceramistas, o diferencial da cerâmica de Cunha ainda é a concentração de fornos noborigama. De fato, a cidade é o único local onde o visitante, seja turista, ceramista ou estudante, pode tomar contato direto com todo o processo de produção cerâmica em forno a lenha tradicional japonês. Por esse motivo, alguns ceramistas temem pela sua preservação. Augusto de Campos expressa sua preocupação nas seguintes palavras: “O diferencial de Cunha é o forno. Sem o noborigama, seria uma cidade qualquer de ceramistas. E o noborigama é muito complicado de trabalhar. Não sei se o pessoal jovem vai encarar”. A verdade é que nos últimos 20 anos, apenas dois novos noborigama foram instalados na cidade. O primeiro foi construído no Instituto Cultural da Cerâmica de Cunha, em 2011 (hoje demolido por questões ambientais, devido à sua proximidade com o centro da cidade), e o segundo na residência e ateliê do empresário Alberto Vásquez, em 2013. De fato, o noborigama tem sido atacado pelo ambientalismo, especialmente devido à fumaça produzida durante a queima, que tem gerado confrontos de alguns ceramistas com moradores que buscam áreas de residência em locais onde antes não existia quase nada. Assim, o problema da expansão da área urbana é algo que está colocando a tradição de quarenta anos deste tipo de forno na cidade em perigo. Para Augusto de Campos, o noborigama não pode ser esquecido: “Ele tem que estar sempre em atividade, seja individual ou coletivamente”. Entretanto, a cidade de Cunha, por suas características históricas e geográficas, tem permitido a muitos ceramistas a pesquisa dos materiais e tradições locais, potencializando o ideal naturalista de uma sociedade cada vez mais afogada na tecnologia, desigualdade e consumo desenfreado. Ademais, o fortalecimento do polo tem permitido aos ceramistas viver do seu

154

próprio trabalho, sem depender de atividades paralelas, e permitindo a venda direta em seus ateliês. Assim, além de espaço de criação e comércio, Cunha é também um núcleo de exposição permanente, onde os artistas podem mostrar seu trabalho a pessoas de todo o Brasil e do estrangeiro, sem necessidade de intermediários. A cidade tem-se constituído como espaço de formação de pessoas que valorizam e entendem o valor da cerâmica, além de uma fonte abundante e rica em conhecimentos, que não se restringem apenas ao saber técnico ou artístico. Eles refletem uma escolha de vida pautada pela vivência coletiva, na harmonia com a natureza, na simplicidade e na solidariedade, que caminha lado a lado com movimentos de ecologia, sustentabilidade e neorruralismo, como a volta ao campo (back to the land), a agricultura orgânica, a produção artesanal ou o “faça você mesmo” (do it yourself). Um dos exemplos dessa escolha é a ceramista Sandra Bernardini, que, além de ter saído da capital do estado de São Paulo para montar seu ateliê de cerâmica na região rural de Cunha, no bairro do Paraibuna, dedica-se também à criação de vacas para produção de queijo, atividade que realiza paralelamente ao trabalho do ateliê. Neste sentido, vivenciar a cerâmica de Cunha é muito mais que conhecer uma arte: é experienciar um jeito de viver, um futuro alternativo às mazelas da sociedade contemporânea pós-industrial.


Escultura da paneleira Dona Dita, por Luciano Almeida

155


GLOSSÁRIO Acordelado – técnica de modelagem manual feita a partir da sobreposição de tiras (ou cordões) de argila.

Caulim – tipo de argila pura, de cor branca e pouco plástica, usada na composição da porcelana.

Adobe – argila crua seca ao sol, geralmente usada na construção e misturada com palha para dar maior resistência.

Celadon – tipo de esmalte translúcido de cor verde pálida, utilizado em grés e porcelana, conseguido com queima em atmosfera redutora.

Argila – matéria-prima básica para a produção de cerâmica, também conhecida como barro ou massa. Fruto da decomposição de rochas feldspáticas ao longo de milhares de anos e que, quando queimada acima de cerca de 500ºC, se torna dura e resistente, transformando-se em cerâmica. Alta temperatura – é considerada a queima de cerâmica a uma temperatura maior do que 1150ºC. Sua porosidade não ultrapassa 3,5%, gerando uma peça mais rígida e resistente. Anagama – Ana = buraco + kama = forno. Literalmente, forno de buraco. Tipo de forno a lenha em formato de túnel, passível de alcançar altas temperaturas. Originalmente, era escavado numa colina com uma fornalha em baixo e uma chaminé na ponta mais alta, tendo adquirido, mais tarde, uma estrutura independente. Devido à inexistência de uma separação entre a fornalha e a câmara de queima, sua peculiaridade é a produção de esmaltes naturais através das cinzas de lenha em suspensão. Atmosfera oxidante – a queima em atmosfera oxidante caracteriza-se pela presença, no forno de cerâmica, de oxigênio suficiente para a combustão total do combustível usado (gás, lenha ou óleo). Atmosfera redutora – a queima em atmosfera redutora acontece quando não há oxigênio suficiente para consumir o carbono que emana da argila, formando-se monóxido de carbono que retira o oxigênio do esmalte gerando mudanças de cor nos óxidos colorantes. Baixa temperatura - é considerada a queima de cerâmica a uma temperatura mais baixa do que 1150ºC. Uma cerâmica de baixa temperatura é bastante porosa e possui uma resistência muito menor. Baixo vidrado – decoração feita com óxidos ou corantes minerais, feita antes da camada de vidrado ou esmalte. Barbotina – argila em estado líquido, usada durante a modelagem para unir suas partes de argila, geralmente em ponto de couro. Biscoito (biscuit) – objeto de cerâmica queimada em baixa temperatura, não esmaltado. 156

Cerâmica de autor (studio pottery) – cerâmica criada por artistas que trabalham sozinhos ou em pequenos grupos, produzindo objetos únicos e em pequenas quantidades, por meio da execução de todos os estágios da produção. Grande parte do desenvolvimento da cerâmica de estúdio contemporânea deve-se ao ceramista inglês Bernard Leach (1887-1979). Cerimônia do chá – em japonês, chadô, sado ou chanoyu. Atividade tradicional japonesa, enraizada no ideal do zen budismo de veneração da beleza da vida do dia a dia. É uma forma estética e cerimonial de receber convidados, servindo-lhes chá verde em pó (em japonês, matcha), segundo regras definidas. Cinzas vegetais – cinzas de madeira, folhas e palhas utilizadas na composição de esmaltes de alta temperatura. Chamote – biscoito moído utilizado para dar maior resistência à argila. Cone pirométrico – material cerâmico feito para fundir a uma determinada temperatura, utilizado para medir a temperatura dentro do forno. Engobe – mistura de argila líquida, óxidos e outros componentes, que pode ser aplicada a uma peça crua ou biscoitada, como método de decoração. Esgrafito - Método de decoração que consiste em raspar parte do esmalte ou engobe aplicado em uma peça, criando um contraste entre as diferentes cores de barro. Esmalte – camada vítrea resultante de uma mistura de substância minerais que, aplicada por fusão, adere às superfícies de cerâmica. Faiança – tipo de cerâmica branca de baixa temperatura com esmalte de estanho. É semelhante à porcelana, porém mais porosa, menos rica em caulim e menos plástica e resistente. Forno – caixa de argila refratária que pode ser aquecida até 1400ºC, à base de combustível (madeira, óleo ou gás) ou eletricidade, para queima de argilas e esmaltes.


Grês (stoneware) – tipo de massa cerâmica queimada em altas temperaturas, de composição semelhante à das rochas, tornando-se mais impermeável, opaca, densa e refratária que a cerâmica de baixa temperatura. Modelagem manual – trabalho da argila unicamente com as mãos, gerando superfícies irregulares. Movimento mingei – movimento de preservação da arte popular japonesa, fundado oficialmente em 1929 por Yanagi Soetsu. O movimento, do qual fizeram parte os renomados ceramistas Shoji Hamada e Kanjiro Kawai, procurava a valorização dos objetos executados manualmente por artesãos anônimos. Movimento Arts & Crafts – movimento liderado por William Morris, que floresceu entre 1860 e 1910, na Inglaterra, que defendia a preservação do trabalho do artesão tradicional. Noborigama – Noboru = subir + kama = forno. Forno que sobe. Tipo de forno a lenha construído em aclive aproveitando-se a inclinação do terreno. É composto de uma fornalha e múltiplas câmaras de queima, cada uma em um nível, interligadas entre si e na última das quais há uma chaminé. A queima é feita de baixo para cima, atingindo temperaturas de até 1400ºC. Originalmente constituído por até doze câmaras de queima, os modelos mais modernos variam entre três e cinco, e a duração da queima pode variar entre 25 e 40 horas. Sua vantagem é poder queimar grandes quantidades de peças esmaltadas. Óxidos – vários tipos de minerais (como ferro, cobre ou cobalto) ou corantes químicos que têm como objetivo dar colorações às superfícies das peças. Podem ser aplicados diretamente com pincel na peça biscoitada ou acrescentados às formulas de esmaltes e engobes. Polimento – também chamado de brunido. Consiste em polir a superfície da peça em ponto de couro, tornando- a mais lisa, brilhante e menos permeável. Pode ser feito com uma pedra roliça ou com outros objetos lisos e convexos, como as costas de uma colher de metal. Ponto de couro – estado físico da argila em que esta se encontra menos plástica e mais rígida, devido à perda de água, permitindo manipulá-la e fazer-lhe acabamentos, sem que as peças sofram grande deformação.

e colocá-las em contato com água, serragem ou folhas. Esse processo gera a combustão do material e a queima do oxigênio (ver atmosfera redutora) seguida da transformação dos óxidos metálicos e originando efeitos característicos. Introduzido no Japão no século XVI e muito utilizado na cerâmica da cerimônia do chá. Saggar - técnica de criação de atmosferas fechadas dentro de um recipiente (saggar) usado para proteger as peças dentro do forno. O saggar pode ser feito a partir de vários materiais, dependendo do tipo de queima, desde argila refratária até papel de alumínio ou jornal. Tenmoku – termo japonês dado a um tipo de esmalte saturado de ferro, de cor bem escura. Terracota – Argila cozida no forno a baixas temperaturas (cerca de 900º) e, geralmente, sem vidrado. Popularmente conhecida como “barro”, é majoritariamente usada na fabricação de figuras ou ornamentos arquitetônicos como tijolos e telhas. Terra sigillata – tipo de engobe preparado com partículas extremamente finas de argila. Tesouro Vivo Nacional - título concedido pelo governo do Japão desde 1950 a determinados mestres artesãos vivos, com o objetivo de preservar habilidades técnicas e ofícios tradicionais. Torno de oleiro – prato circular de madeira ou metal que gira sobre um eixo vertical. Wabi-sabi – estética japonesa com influência do zen budismo, centrada na aceitação dos conceitos de transitoriedade e imperfeição. O wabi-sabi representa uma beleza simples, natural, caseira e mundana que está na base da cerimônia do chá. Vidrado – ver esmalte. Zen budismo – Linha do budismo que surgiu na China na dinastia Tang (619-910) e se desenvolveu no Japão a partir do século 12. Seus ensinamentos colocam ênfase na meditação, contemplação e intuição para alcançar um estado de iluminação pessoal. Sua expansão no Japão deu origem às artes zen como a cerimônia do chá, centradas nos conceitos de simplicidade e naturalidade.

Porcelana – cerâmica de alta temperatura, branca, densa e translúcida, de textura muito fina, dura e não porosa. É composta principalmente por caulim, quartzo e feldspato. Raku – termo japonês dado às peças que sofrem uma queima em baixa temperatura, que consiste em retirá-las do forno ainda incandescentes, com o esmalte no ponto de fusão 157


Cerâmica em Cunha 40 anos de forno noborigama no Brasil

Setembro de 2016 Impressão:

Apoio institucional:

Instituto Cultural da Cerâmica de Cunha Secretaria Municipal de Turismo e Cultura da Estância Climática de Cunha O Instituto Cultural da Cerâmica de Cunha (ICCC) é formado por ceramistas e outros agentes culturais que se associaram em 2009 para promover o crescimento e a difusão da atividade cerâmica em Cunha, abrindo seu acesso à população em geral, por meio de ações educativas e culturais. Escola, oficina e centro cultural, o ICCC apóia a cultura local de forma global promovendo eventos e ações através do estabelecimento de intercâmbios nacionais e internacionais com outros centros e instituições educacionais voltados para a pesquisa nas áreas da cerâmica artística e artesanal. 158


159


“O maior perigo para a maioria de nós não está em definir o nosso objetivo muito alto e ficarmos aquém. O perigo está na definição do nosso objetivo muito baixo e alcançarmos a meta” teria dito Michelângelo. Este “Cerâmica em Cunha: 40 anos de forno noborigama no Brasil” é fruto de um objetivo muito alto atingido por um grupo. Coeso, focado e bem orientado, esse grupo venceu obstáculos e esculpiu a muitas mãos uma obra artísticodidática, representativa da história da cerâmica em Cunha e valorizadora de seus representantes – pioneiros e atuais. A resiliência e a persistência valorizam o trabalho dos artistas e enriquecem sua história, pois evidenciam a paixão e a razão, ambas necessárias para uma caminhada de sucesso. Este livro é, portanto, ao mesmo tempo legado e propositor de novos objetivos, pois destaca o sucesso obtido após quarenta anos e atribui responsabilidade aos que têm de mantê-lo. Participar deste projeto rendeu-me amigos, conhecimento e mais encantamento por Cunha e sua cerâmica, rica em estilos e técnicas. Rendeu-me, portanto, crescimento cultural e pessoal, o que, estou certo, também será o retorno àqueles que lerem esta obra... Laurentino Gonçalves Dias Jr.

Engenheiro Químico e Diretor de Arte

160


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.