{CARTA DO CAPITÃO}
A
gente se encontra toda semana. Eu só levo a bússola. A marujada traz vinho, comida e histórias. Há três anos, os tripulantes do Submarino se reúnem toda semana pra ler, analisar e comentar as histórias escritas a partir das propostas que dei na semana anterior. Crio os exercícios roubando temas e estruturas de ficções de escritores do mundo todo [veja abaixo nossa lista de constelações]. Toda aula é assim um mergulho em mares nunca dantes navegados. A maruja e o marujo partem deste GPS para singrar uma narrativa nova. Nosso porto é SP, mas a marujada vem de sete mares: Bahia, Amazonas, Santa Catarina, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul. Como a navegação é livre, a tripulação muda todo o tempo. A cada mergulho, partilhamos risadas, lágrimas, sustos, reflexões. Nenhum tema nos é alheio: iluminamos fossas abissais, driblamos tubarões e orcas, dividimos mapas secretos. Tudo vira literatura. Aos poucos, a/o tripulante – uns ainda em primeira viagem, outros experientes – foi definindo sua profundidade própria, seu jeito estrito de mergulhar, seu norte na escrita. Aqui você tem vinte cartas de navegação. Recline a poltrona, escolha a trilha sonora, apanhe o drinque favorito. Boa viagem. {RB}
{CONSTELAÇÕES} Alan Moore | Alberto Moravia | Alejandro Zambra | Alice Munro | Ali Smith | Antonio Prata | Antônio Viana | Ben Lerner | Cadão Volpato | Campos de Carvalho | Carmen Maria Machado | Carson McCullers | Charles Bukowski | Chimamanda Adichie | Chuck Pahlaniuk | Clarice Lispector | Cristina Peri Rossi | Dalton Trevisan | Daniel Galera | Daniel Kehlmann | Dave Eggers | Dorothy Parker | Etgar Keret | Flannery O’Connor | Franz Kafka | Gaël Faye | Gabriel García Márquez | Geoff Dyer | George Saunders | Geovani Martins | Georges Didi-Huberman | Giovana Madalosso | Gustavo Pacheco | Haruki Murakami | Horacio Quiroga | Italo Calvino | Isaac Bábel | Jamil Snege | JD Salinger | Jennifer Egan | John Haskell | Jorge Luis Borges | José J. Veiga | Junot Díaz | Jorge Luis Borges | Julio Cortázar | Kristen Roupenian | Liudmila Petruchévskaya | Lucía Berlin | Luis Buñuel | Luiz Vilela | Lydia Davis | Lygia Fagundes Telles | Marçal Aquino | Margarita García Robayo | Marcilio França Castro | Mariana Henríquez | Michel Laub | Milton Hatoum | Miranda July | Moacyr Scliar | Murilo Rubião | Nate DiMeo | Otessa Moshfegh | Paul Bowles | Paul Theroux | Paul Auster | Paulo Leminski | Raymond Carver | Raymond Chandler | Ricardo Piglia | Rodrigo Blanco Calderón | Roberto Bolaño | Ryonosuke Akutagawa | Rubem Braga | Rubem Fonseca | Sérgio Sant’Anna | Silvina Ocampo | Victor Giudice | Vilma Arêas | Wander Piroli
espelhos Um lugar ao sol Mulher, profissional, mãe de dois Tinha uma vaca no meio do caminho À sombra dos abacaxis Uma cerveja antes do almoço Arte
Angélica de Barros Camila Mag Jan Bittencourt Ian Uviedo Wagner Machado
Mari Casalecchi
Cinco quilos a menos. Desmarco o psiquiatra, não largo o celular por nada, os remédios ficam de lado. Corro para o salão. Mostro a foto de Bibiana para o meu cabeleireiro. Quero ficar igual. Ele fica animadíssimo. Tintura preta azulada, progressiva sem formol, sobrancelha de henna e unhas de águia. Pena que não faz plástica. Passo horas rodopiando na cadeira. A escova me dá uma dor de cabeça danada. Fora a dor no pescoço para segurar a cabeça enquanto a bicha puxa meus cabelos sem piedade, ainda queima minhas orelhas. Levo um susto quando olho para o espelho e vejo os meus cabelos negros. Acho que envelheci uns dez anos. Meu cabeleireiro sussurra poderosa no meu ouvido. Acredito.
Um lugar ao sol {Angélica de Barros} Os dedinhos correm. Três cliques e entro na página da Bibiana Zabarovisky. Nenhuma novidade. Sei que estou neurótica. Já vi tudo o que ela postou umas mil vezes. Encasquetei com essa miga. Na verdade, não é bem uma miga. Mas é questão de tempo. Já me meti em algumas enrascadas nas outras vezes que isso aconteceu, de encasquetar. Um perigo. Minha imaginação sempre foi fértil. Contei para o meu psiquiatra a respeito dessa fixação. Não achou nada bom. Aumentou a dose do remédio. Me fez prometer que ia tentar olhar menos o celular. Me ocupar com outras coisas. Um post novo. Frio no útero. Bibiana está em Guarulhos. Vai pegar um avião. Arregalo os olhos. De GRU para JMK. Fico na dúvida onde é JMK. Mas deve ser bom. Pesquiso. Está indo para Míconos, na Grécia. Caio num vazio de fim de estoque, minha última viagem foi para Guaratinguetá. E já faz tempo. A tortura da enxurrada de fotos nem começou e já me sinto um barranco solto. Com pontadas no coração. As horas vão passando e meus dedos insistem em entrar na página dela. Fixação é assim, a mania de olhar a desgraça de novo. Não devia ter feito isso. Um lugar mais bonito do que o outro. Bibiana está esplêndida. Bronzeada, magra, cabelos negros cheios de sal. Fora as ostras frescas na montanha de gelo. As fatias grossas de berinjela. O queijo de cabra. Os camarões gigantescos que dão risada. E as duas taças de vinho branco suando no pôr-do-sol. Me dá uma angústia verde e amarga de bílis. Os antidepressivos não estão dando conta. Mal abro o olho na cama e já tem uma nova foto da miga na praia que me deixa especialmente transtornada. Bibiana de maiô vermelho. Esticada na areia como uma lagosta. As coxas de estrela e os cabelos de ouriço-do-mar. Embaixo está escrito tomando solzinho no Mediterrâneo, gratidão universo. Espumo de raiva. Imagino uma pele cheia de bolhas. Não, não se deve desejar isso para uma miga. Talvez algumas manchas, pequenas. A outra foto é dentro do mar. Da água azul cristalina. Do sorriso de pérolas atravessando a onda que explode. A máscara pregada na testa, o esnórquel voando no céu. A repetição dessa imagem no meu cérebro começa a me irritar. As ondas me deixam tonta. A legenda: dando mergulhos no Mediterrâneo, em seguida dois peixinhos coloridos e um polvo. Vem um gosto salgado na minha boca. De chuchu. Faz três dias que só como chuchu. Penso num bife e depois salivo. No meu corpo de baleia e no corpo da sereia de maiô vermelho. A tontura pode ser fraqueza. Meu cérebro solta estalos de sal de frutas. Odeio Bibiana como se odeia um irmãozinho que acabou de nascer. Eu, eu entro no mar, não tomo banho no Atlântico. Por que não se afoga de vez no Mediterrâneo?
Sou outra mulher, mas logo caio em mim e choro em cima do maiô vermelho que acabei de comprar. Precisava ter emagrecido uns dez quilos. Engulo o soluço e continuo arrumando a mochila. Vai ser um dia incrível, repito isso para mim mesma um monte de vezes. Embrulho as taças com jornal, a garrafa de vinho numa toalha de mesa e um prato grande na canga. Ponho um vestidinho florido e vou para o Terminal Jabaquara. A Imigrantes é um sonho. Em cada saída de túnel o sol como holofote. É disso que eu preciso. De luz. Aparecer. Ser seguida. Me banhar de likes. Para que Bibiana me veja, perceba que eu existo. Desde que começou a me seguir nunca curtiu nada. Não ganhei um mísero coraçãozinho. Ficar igual a Bibiana para que a presa se confunda comigo. Para que não saiba se ela é ela ou se sou eu. Me ache bonita vendo a si própria. Meu duplo. @bibianazabarovisky e @kellyreginah: a união perfeita. Depois de passar pelos dezessete túneis preciso achar outra motivação. Entro na página de Bibiana e nenhuma novidade. Não posso ficar muito no celular para não gastar a bateria. O ar pesado da baixada santista me sufoca de tédio. Depois de uma infinidade de minutos em direção a Bertioga, peço para o motorista me deixar numa barraca de ostras no quilômetro 101 como o Google me mostrou. O sol escaldante frita o meu cérebro. O rapaz é atencioso. Me ajuda a escolher as ostras. Uma dúzia das maiores, mais frescas e mais suculentas, segundo ele. E também me vende um saco de gelo. Pergunto onde é a trilha que leva até a praia. Desapareço. Não é fácil carregar tudo isso sozinha. Chego ao paraíso esbaforida. Para minha sorte não tem ninguém. Uma praia deserta é o cenário perfeito. Abro a toalha branca na areia branca. Arrumo com muito cuidado as ostras no prato coberto pelos cubos de gelo. Corto lascas de limão com um canivete. Enquanto gelo as taças, abro a garrafa. Um livro ao lado do prato para dar a ideia de um piqueniquezinho informal. O sol estala mais um pouco. O gelo começa a derreter. Fico afobada. Coloco as duas taças numa posição estratégica. O suadinho do vidro não vai durar muito tempo. E também quase não tenho sinal. Deslizo na areia com o celular na mão como um siri. Dou vários cliques. Relaxo. O gelo escorre. Fumo um cigarro escondida. Escondida de quem? Depois é a vez do contraste do maiô vermelho e dos meus cabelos negros com a areia branca. É chique. Me lambuzo de óleo, fico brilhante. Penso num tomate com azeitona preta e azeite, começa a me dar fome. Depois lembro que esqueci de trazer o chuchu cozido. Deve ser o enjoo de pensar no chuchu que faz a gente emagrecer. Chega. Vamos para o beicinho. E sou Bibiana no sol do Mediterrâneo. Também sou lagosta. Meu dedo dispara. Muitas poses e milhares de cliques. Faço cara de espuma, porque o mergulho é melhor deixar para lá. Mesmo
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SUBMARINO | ESPELHOS que seja no Mediterrâneo, não sei nadar. Bibiana vive dentro da água. Fico confusa com essa história de duplo aquático, difícil saber onde começa uma e acaba a outra, ainda mais dentro da água. Falando nela, preciso ver se Bibiana postou alguma coisa nova do Mediterrâneo. Vejo algo pior. O sinal sumiu de vez. Sou atacada por uma solidão dilacerante, daquelas de fundo de oceano e de mata escura. Jogo as ostras desfalecidas no mar, tomo um gole de vinho quente, guardo tudo bem depressa na mochila e corro afobada pela trilha. Ao chegar na barraca não tem ninguém. Deve ser por causa da hora do almoço. Meu estômago se contrai. O sol me maltrata. Choramingo. Depois de um tempão, o ônibus aparece lá longe. Estico o braço. O barulho da porta abrindo. O ar-condicionado. No meio da serra o sinal aparece. Vou depressa ver Bibiana. Agora está numa piscina verde. Tenho algum amigo com piscina? Como duas coxinhas na rodoviária e logo estou em casa. O alívio do carregador na tomada. O sinal forte do wi-fi. As duzentas e cinquenta e quatro fotos na minha galeria. Como é delicioso me ver no Mediterrâneo. Não posso demorar muito, já é noite na Grécia. Seleciono as melhores imagens e faço um story. Posto também duas fotos, na legenda os peixinhos, o polvo e gratidão universo. Me coço para não digitar Mediterrâneo. Estou tão aflita e tão gelada por dentro, mas tanto mesmo, que nem ligo para a febre alta e para as bolhas que brotam no meu corpo. E muito menos para as manchas escuras, não ardem como as queimaduras e não são pequenas. Lembro da segunda praga. Ainda bem que não inventei de entrar no mar. Meus olhos grudam na tela. Fico esperando Bibiana.
Mulher, profissional, mAe de dois {Camila Mag} Sete horas. Soa o alarme, mas já estou acordada faz tempo. Grande besteira ter acionado o despertador, serviu só para acordar o Marcos, que dormia ao meu lado como se estivesse naquele jogo de mãos e pés no tapete de bolas coloridas – como se chama mesmo a brincadeira? Jogávamos na casa da tia Nena, um nome curto…Thistler, Twitter…droga, não tenho mais memória, afinal se já não a tivesse perdido pelo excesso de informação da Internet, a gravidez ainda veio a piorar tudo e agora não há mais Ginkgo biloba que salve. Marcos tira a perna de cima do meu quadril e o braço direito pendente sobre meu pescoço, quase me deixando sem ar. “Precisava me acordar a essa hora da madrugada?” Como se ele não tivesse ouvido o choro do bebê às duas e às cinco horas da manhã; pai tem ouvido seletivo, ou se faz de morto, fato é que eu tive que levantar e correr para acudir a criança, que no final só estava aborrecida no berço, e eu tive que lá ficar fazendo macaquices e dando colo para ver se a criatura dormia mais um pouco. Nada de sono, aproveitei e preparei a fórmula, esperei esfriar, meia hora de mamada, quando vi já passava das seis e voltei para a cama num otimismo exagerado, confesso, achando que poderia voltar a dormir. Claro que àquela altura a ansiedade com o primeiro dia não me permitiu mais pegar no sono. Desde que o pequeno Antônio nasceu que não sei mais o que é acordar e me arrumar, tomar um café rápido e sair para o trabalho. Agora Antônio já está com cinco anos e Gael com quase um. Vai ser difícil deixar meus pequenos homens em casa com a babá, mas tenho que confiar, afinal mamãe também me deixou com uma empregada e foi ganhar a vida quando eu tinha apenas seis meses, e eu sigo aqui viva, saudável, feliz e com quase quarenta anos. As camisas de botão chegaram da lavanderia ontem. Separei a mais bonita, que está pendurada num cabide na maçaneta do armário junto à pantalona preta, única calça que disfarça meus quadris mais largos do que há cinco anos. Será que os colegas do escritório ainda vão me achar bonitona? Desde que me entendo por gente sou paquerada, coisa que comecei a me dar conta quando o coleguinha do jardim de infância aproveitou um descuido da professora e me tascou um beijo na boca. Ainda bem que consigo manter uma carinha de trinta, benditos sejam os tutoriais de maquiagem no Youtube. Com alguns botões da camisa teimando em abrir na altura dos peitos, maquiada, saltos altos, café, tapioca, leite para as crianças, orientações para a babá, rezo mentalmente uma oração para meu anjo da guarda e saio para o primeiro dia da nova vida: mulher, profissional, mãe de dois.
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O frio na barriga ao chegar no novo escritório não dura: são todos jovens e receptivos. Anna, ruiva cabelos longos, já me espera na recepção do andar com laptop, login e senha, e me propõe um tour ao escritório, que não é tão grande como o do meu último emprego – afinal o metro quadrado nessa região encareceu muito de poucos anos para cá e a empresa, uma fintech que recebeu investimentos de um fundo de venture capital, ainda começa a despontar. Anna fala com entusiasmo sobre o ambiente de trabalho enquanto me leva a conhecer cafés que servem smoothies e salas com mesas de ping-pong. Já eu não consigo deixar de olhar a tatuagem em suas costas: uma fênix gigante que cobre do cóccix ao inicio do pescoço, revelada pela camisa de poliéster quase transparente. Lembro de todos os vezes em que quis fazer uma tatuagem e desisti por medo de ser discriminada numa entrevista de trabalho. O mundo mudou, que bom.
Vamos almoçar num bistrô próximo ao escritório. Pedimos uma taça de vinho cada, e o menu executivo do dia. Ele fala incessantemente da empresa, dos projetos que quer desenvolver com a nova equipe; eu finjo prestar atenção em tudo, balançando levemente a cabeça a cada pontuação. Meus olhos fixos em sua boca, como se tentando uma leitura labial, talvez assim pudesse extrair alguma explicação para aquela transformação. Tivera eu uma parcela de culpa?
Anna conta que na semana passada chegou o novo chefe para a recém-criada área de Compliance, e que estão muito animados com as novas contratações. Perco o ar durante alguns segundos quando ouço seu nome: André Dale – um ex-chefe. Com quem eu trabalhava até mais tarde para ficar com ele a sós no escritório, aguardando o dia em que me chamaria para um drink. Um dia ele chamou, e um drink virou dois, três, que viraram uma noite no motel próximo, que virou um caso de dois anos – até que o dia em que sua mulher leu um dos e-mails picantes que trocávamos buscando tornar nossas tardes menos monótonas, ele mudou de emprego e eu, à época com vinte e cinco anos, chorei como uma menina de quinze.
Tento puxar assunto sobre a sua transformação de André para Andréia, ele disfarça. Puxo fôlego e pergunto, a voz lá embaixo: “Operou?”. Diz que não, explica que começou a gostar de fazer as unhas, depois deixou o cabelo crescer, sentiu uma liberdade estranha ao usar saia pela primeira vez, e quando se deu conta estava curtindo a brincadeira de se vestir como uma mulher: “Sou crossdresser, de gênero não-binário”, anuncia.
Fico sabendo que André quer me ver. O encontro em uma sala ainda com poucos móveis, está mais magro, com cabelos bem grisalhos, porém mantém o mesmo jeito e sorrir de lábios fechados, o que reforça sua covinha na bochecha esquerda. Diz que ficou surpreso ao ver meu nome no organograma de equipe. Acho charmoso seu novo visual de cabelo longo. Mas suas unhas pintadas de vermelho sugerem que os anos trouxeram novidades.
Aguardo o café para mostrar alguma descontração. Sutilmente, cito um de nossos encontros do passado em que fomos ao Vegas, na Augusta, onde eu tentava passar a imagem de menina descolada. Ele ri e confessa que anos depois, já solteiro, esteve lá novamente, mas achou tudo muito decadente. Pergunta se eu havia ido também com o Marcos, mas a verdade é que conto nos dedos os dias em que cheguei em casa após as duas da manhã desde que me casei.
Faço cara de que entendo. Talvez o mundo tenha mudado demais e eu tenha perdido alguma coisa. Resignada, abro o Google assim que retorno ao escritório, leio todos os glossários de gênero que encontro. Procuro a página do Vegas, vejo que fechou em 2012, mais uma vítima da gentrificação. Volto para casa no fim da tarde, coloco as crianças para dormir. Faço um jantar enquanto espero Marcos chegar do futebol. Comemos, vemos mais um episódio de nossa série-favorita-da-última-semana no Netflix, vamos para a cama exaustos – ele dorme na diagonal, com a cabeça no meu peito. Beijo-lhe o topo da testa e, antes de desligar o abajur, suspiro feliz.
Falamos sobre a nossa vida nos últimos tempos, conto-lhe do Marcos, das crianças, da morte do meu pai. Ele fala do divórcio e de toda a confusão mental lhe sucedeu, do sabático que havia tirado na Índia. Era bom estar perto dele novamente. Ao me aproximar da porta de saída, ele chama baixinho:
– Carol…
– O quê?
– Quero te fazer um pedido... A partir de agora, queria que você me chamasse de Andréia... tudo bem? Passo o resto do dia sem acreditar. Penso em todas as noites que passamos juntos, tento achar nas memórias algum indício de uma faceta feminina dele, mas não – sempre tão másculo, se divertindo na conquista. Mais um noite sem dormir bem. Bebê, banho, roupa, café, babá. Sigo pro escritório, já do caminho mando uma mensagem, o encontrando na agenda ainda como André. “Almoço hoje?”; em resposta um breve sim e um emoji que sorri envolto em corações. Devolvo com um emoji de diabinho remetendo a uma piada interna nossa. Recebo uma carinha sorrindo acompanhada de um gif de arco-íris. | 06 |
SUBMARINO | ESPELHOS
Tinha uma vaca no meio do caminho {Jan Bittencourt} Vocês ainda eram um casal quando saíram de Guia Lopes da Laguna. Ainda se chamavam de Nós em Nioaque. Talvez tenha sido em Sidrolândia que o relacionamento morreu atropelado. Não é fácil especificar em qual quilômetro, mas parecia perto de Campo Grande quando vocês ainda eram um casal num carro a 140km/h daquela noite escura, naquela estrada vicinal reta demais, sob o céu mais estrelado que vocês já conheceram na vida. Depois da mensagem, o aeroporto de Campo Grande parecia mais longe do que a Austrália. Indo por Dubai. Oito anos atrás, casais como vocês ainda deixavam os celulares desbloqueados, num lugar do carro de fácil acesso, perto do freio de mão, e o teor das notificações não podia ser escondido. A mensagem brilhou naquela escuridão como um grito, um susto ou uma vaca gorda atravessando a estrada deserta de mão dupla. Na carona, você alcançou o aparelho por reflexo e seus olhos cansados do dia longo em que passou no enterro da sua sogra fotografaram as 5 letras antes da Outra Parte de Vocês, no volante, roubar o celular da sua mão num gesto apavorado. Tarde demais. Sua retina conservava TE AMO carimbado como negativo da imagem brilhante, ao voltar o olhar perdido para a noite escura. Uma descarga de adrenalina acordou seu corpo e você retomou o celular, pronta para abrir a tela e entender que porra de mensagem era aquela, quase madrugada, num carro com três panelas de ferro, um álbum de fotos antigas do seu marido e uma pasta de dívidas que vocês herdaram da sua querida sogra. Uma mensagem com o poder de transformar Nós em: a Ex Louca e o Ex Filho da Puta. Você ouvia algo como “é o Pedro, sem noção, me zoando”, mas seus olhos guardaram Ana Paula como a autora da mensagem. A adrenalina costuma ser rápida e, em um segundo, você já tinha vasculhado os sete anos de seu casamento guardados no cérebro, sem descobrir nenhuma vaca gorda chamada Ana Paula no meio da estrada. Nem no círculo próximo de amigos do casal. Nem no grupo de mães do jardim. Até agorinha pouco. Ao ver o celular na sua mão, o traste do seu marido abandonou o discursinho ameno e tentou reaver o aparelho jogando o carro no acostamento (aka pasto de proporções mato-grossenses, ocasionalmente invadido por ocupações do MST) e fazendo valer a vantagem física ou as horas de academia de segunda a sábado. Para o azar dele, antes de deletar toda a conversa do whatsapp para fingir que você estava apenas tendo um pesadelo macabro, você conseguiu enxergar através da ira
(jamais sentida) uma tela cheia de mensagens trocadas durante o funeral da mãe dele, entendendo agora porque o traidor sumiu para comprar crédito e se atrasou para as últimas palavras do padre. Você saiu do carro meio zonza na escuridão. Você torceu para passar um maldito ônibus, charrete ou mototaxi e pedir carona até o aeroporto. Você daria tudo para não precisar entrar no carro com aquele ser desprezível, que tentava uma desculpa furada atrás da outra. Mas não havia opção. Di-ri-ge-e-não-dá-mais-um-pio, você disse entre os dentes. Mas a adrenalina que a acordou, misturada com a raiva em seu estado bruto, não cabiam num banco de carona. Você ouvia o mugido de uma vaca gorda pontuando os últimos meses de crise conjugal, a brochada da semana passada, as viagens sem sentido e as fotos bizarras que ele começou a tirar do abdômen. Você sabia que não podia matar o único motorista num raio de 200 km, mas bater sim. E você praguejou toda a família estranha dele, cuspiu os anos de sacrifício, lamentou não ter sido a primeira a trair, morreu de dó do filho de vocês e bateu na cara dele durante o restante do caminho. Quando sentiu seu pulso dormente (você descobriu logo que não sabia socar uma cara-depau com o punho), tirou a sapatilha para continuar a surra com ela, a parte da sola na cara. No aeroporto, sentou cada um de um lado, você com um saquinho de gelo tentando controlar o ardor no ante-braço. Vocês tinham vindo de aeroportos diferentes, em datas diferentes, e voltariam em vôos separados, pelo bem dos passageiros e tripulação. Chegaram adiantados para o embarque, num aeroporto minúsculo, não preparado para casais brigados, que não suportam mais ver a cara um do outro. Ele teclava com a vaca, provavelmente se fazendo de vítima, pedindo colo para outra pessoa. E depois essa praga ainda vai querer se defender, apagar a conversa e te chamar de louca. Você também queria teclar com alguém, mas era madrugada e você não se imaginava acordando algum amigo pobre coitado para incomodar com seus cornos. Recebeu uma mensagem curta dele no celular, prolixa e cheia de erros de português. Procurou o amor ali ou em qualquer outro canto e não escontrou nem um pingo. Duvidava que o relacionamento de vocês conseguiria sobreviver a essa trombada. Se olhasse bem, você saberia que o fato de deixar de ser Nós, ainda mais com aquele sujeito, poderia ser a melhor coisa da sua vida. Mesmo que naquele momento parecesse apenas mais uma piada de mau gosto da sua sogra, direto lá do inferno. O estranho disso tudo é que, por mais que os fatos pareçam inventados, quando o filho de vocês tiver 12 anos e ler essa história, a parte duvidosa será a que você e o pai dele já foram casados um dia.
| 07 |
À sombra dos abacaxis Amanheci aéreo.
Ignorando as zínias que imploravam para serem regadas, cortei o pão olhando a chuva na janela. Carros passavam lá embaixo, ainda não tinha amanhecido completamente. Toda essa sonolência displicente confundiu o pão com meu dedo, a manteiga se encheu de sangue, e eu era todo papéis, lenços, toalhas. Não sei se era a luz do alvorecer, mas o sangue parecia preto. Construí um curativo mambembe no polegar e fui tacando primeiros-socorros na bolsa da viagem. Quando o carro chegou eu fumava o terceiro cigarro segurando um guarda-chuva preto. Mesmo que enfim amanhecesse, seria difícil dizer, tamanha era a escuridão que luzia nos contrastes. O motora meteu minha mala no banco de trás e disse que, se eu quisesse, podia fumar no carro. Era um jovem com cara de mouro, bafo de menta e poros floridos. Fiquei com vontade de fumar vinte cigarros de uma vez. As quaresmeiras e os ipês coloriam o caminho até o aeroporto. O piche e o asfalto se arranhavam intermediados por pétalas pálidas. O motora falava sobre o jogo de ontem, sobre o presidente da república, mas a cirurgia que eu fizera semana passada - o gosto de sangue nas bochechas -, só me permitia concordar com os olhos através do retrovisor. Os termômetros marcavam dezessete graus celsius. Eu sabia que Antônio estava me esperando no guichê das passagens. O mesmo Antônio de sempre. Gordo, a barba preta e suada, a camisa branca amarelecida pelo suor, o Rothman’s dependurado na orelha, as sandálias de couro marrons e pretas pela sujeira. O meu editor. Um Allen Ginsberg mato-grossense.
— Uma noveeeeela? — se interessou a nonna.
— Que é, caralho? - resmunguei de olhos fechados.
— Quero te mostrar uma coisa.
— Enfia no seu cu que depois eu vejo.
— É o novo livro do Matheus Marques.
Ao ouvir o nome de Matheus, estiquei a palma da mão no ar, sem ainda abrir os olhos. Antônio meteu o livro na minha mão. Num entremeio das pálpebras, divisei o título: Como Vencer o Sarcasmo Espiritual. De onde ele tinha tirado isso? Devolvi o livro pro meu Ginsberg tropical.
— Diferente o quê?
— Dessa vez ele vai estar lá.
Passei a mão pelo rosto. O que diabos uma figura deprimente como Matheus Marques estaria fazendo no mesmo evento literário que eu? Não dizendo que sou o autor supra sumo, o expoente da minha geração, mas há mais de vinte anos que tentava angariar uns leitores através dos meus delírios noturnos regados de nanquim, da luz do computador, do amargo do conhaque, da fumaça do cigarro, das lembranças dos velhos diários, enfim, tentava ser um escritor de verdade justamente pra me distanciar desse tipo de picaretagem linguística, essas merdas que oferecem uma falsa salvação, um falso conhecimento, um microssistema exatamente idêntico às ferramentas políticas de poder que metem no nosso cu dia após dia, só que travestido de literatura motivacional. É nesse tipo de momento que eu invoco meu mantra: vende-se é o imperativo do verbo vendar. Essa literatura ‘você pode’ é só a faceta dum mercado ideológico. Prefiro abrir os olhos, escrever minhas mentiras, empobrecer. Com graça.
— Como vamos?
— Já vou avisando que a mesa vai ser uma bosta. Fiz cirurgia num dente semana passada e não consigo falar meia dúzia de palavras sem ficar enjoado com o gosto de sangue que me invade a boca. — Não tem problema, cara. Fala o que você quiser. Parece que a molecada por lá pirou no teu novo romance. No avião, Antônio foi tirando exemplares do meu livro da pasta e tacando pra cima do meu colo. Ele insistia em dizer “teu romance”, não importava o quanto eu dissesse que era uma novela. Ficava jogando aquelas porras em cima de mim, tagarelando, e a velha do nosso lado já começava a soltar uns grunhidos de protesto.
No meio da primeira hora da viagem, entre o refresco de laranja e o pão de merda, as coisas se acalmaram. Inclinei a poltrona, estiquei as pernas, fechei os olhos. Daí o filho da puta do Antônio veio me cutucar.
1.
— É uma novela, cazzo!
Bom, no momento que ela leu o título, se virou pra janela, que descortinava a imensidão, como se viajasse à bordo da nau dos loucos. O Cheiro do Incesto. De onde é que eu tirei isso mesmo? E pensar que tinham uns moleques no Rio de Janeiro me tirando de Céline, Henry Miller, Fante, sei lá.
{Ian Uviedo}
— É o romance do século — disse Antônio pra velha.
2. Matheus Marques foi a primeira pessoa a reparar o curativo no meu polegar. Foi num bar na Lapa, depois do primeiro dia do evento, que ele apareceu me esticando aquela mão cheia de dedos. O cabra estava mudado. Camisa salmão, sapatênis, bronzeamento artificial, anéis vermelhos, o cabelo uma crina preta e lustrosa penteada pra trás, correntinha de ouro, acho até que vi um dente prateado. Em suma, um perfeito idiota. Foi uma ruiva – escritora infantil – que se espantou primeiro, nos olhando através do vidro da sua caipifruta. Ficou olhando dum canto, e depois veio encher o saco.
| 08 |
SUBMARINO | SABORES — Nossa — ela sorriu —, como assim vocês se conhecem?
— O mundo é um ovo — soltou Matheus.
— Ou a renda que é mal distribuída.
Os dois não acharam graça na minha observação. Normal. Melhor isso do que explicar a verdade. Que aquele espantalho, trinta anos atrás, tinha um cabelo enorme, usava óculos de armação grossa e um sobretudo inglês de bolsos habitados por livrinhos malditos. Que era, junto comigo, um dos cofundadores do zine Corte Seco, refratário dos mais tristes e toscos poemas da nossa geração. A gente se julgava grandescoisa sobre tudo: cinema, fotografia, expressionismo alemão, pintura abstrata, psicologia moderna. Tudo cabia no nosso zine. Se eu fosse explicar para aquela ruiva todas as bobagens que a gente já tinha feito e imaginado, porém, o sangue começaria a escorrer pelos cantos da boca. Os pontos rompidos. Num golpe que me escapou à sua confecção, me vi sentado numa mesa grande com toda aquela gente. Cerveja, cachaça, ostras, carne, essas coisas iam passando de mão em mão. O que antes tinha gosto de cinzas tinha agora gosto de sangue. E Matheus Marques estava do meu lado. Eu fingia não perceber que seus olhos verdes e enormes queriam falar comigo. Antônio não veio me salvar, estava ocupado falando merda lá na ponta da mesa.
— Você está mudado — disse Matheus.
— Impressão sua. Garanto.
— Não, não. Nem me lembro qual foi a última vez que eu te vi. Mas dá pra perceber que tem algo diferente. Antes eu te olhava e você andava por uma sala como se caminhasse numa outra dimensão, como se pudesse atravessar uma parede. Mas algo em você endureceu.
pagava menos de cinco reais num zine que vendíamos por vinte. E esgotava. E a gente fazia a ronda dos bares da Augusta até a Sta. Cecília, bebendo uísque, fumando Marlboros, discutindo arte e amanhecendo nos mirantes. No emaranhado das recordações se projeta na minha mente uma noite específica. Noite alta, chovia. Estávamos enfurnados no canto dum boteco, Matheus e eu, sei lá, com uns vinte anos, bêbados e chatos. À sombra dos abacaxis dependurados no balcão, ele me beijou. Não foi tão somente uma coisa de bêbado. Foi um beijo premeditado, em que seus dedos se enrolaram no meu cabelo, as línguas se encontraram, o tempo passou. Um beijo de um casal. Um beijo que nunca esqueci.
3. O avião dá mais uma volta sobre a pista de pouso, por causa da chuva. Antônio, a essa hora, já deve estar em casa. É domingo. Além da minha bolsa, tenho uma sacola cheia de livros de novos autores. Livros que não vou ler. As luzes dos prédios se aproximam e logo estou num outro carro, testemunhando a cidade corrediça. Tiro o curativo e vejo que meu polegar já está cicatrizado. Chego em casa e tudo está igual. Intocado. Largo as coisas no chão. Em todo canto há um silêncio vibrando. Já me acostumei ao gosto do meu sangue. Tiro os sapatos e deito no sofá.
— Nem imagino do que você esteja falando. Já deve estar careca de saber que acho essas coisas uma bobagem. Sarcasmo espiritual, tensão astral, consciência elevada. Bobagem.
— Acho que você se desprendeu daquela sua literatura.
— Meu Deus do céu.
— Queria poder conversar com você sobre a alma.
— Olha, Matheus, a única coisa que eu sei sobre a alma é que é um anagrama de mala e de lama.
— Isso é interessante.
— Não. Isso não é interessante. Isso também é uma bobagem. O sangue já se pronunciava na gengiva. Misturei-o com cerveja. Acho que Matheus não fechou a matraca nem por um segundo. Mas fui passear em lembranças. Daquela época. O Corte Seco principiava envolver-se numa trama cult, poetas que não conhecíamos mandavam cartas, nos reconheciam na rua, editoras começavam a se interessar pelo nosso trabalho, a gente conseguia bancar uma tiragem de duzentos exemplares por mês, impressos num papel de noventa e seis gramas de tamanho A4. Coisa fina. As tiragens eram feitas numa gráfica na Zona Sul de São Paulo especializada em bíblias que cobrava muito barato. O lugar não existe mais, mas na época a gente | 09 |
Aí lembro que esqueci de regar as zínias.
Uma cerveja antes do almoCo ,
Chegamos à praça no centrinho da Praia dos Ingleses, entre a avenida e a praia propriamente dita. O sol daquela tarde era total e a brisa que vinha do mar trazia algum reconforto, com seu cheiro de maresia. Sentamos a uma mesa de madeira grossa sob um dos quiosques de palha. Vicente foi prender a bicicleta no costado de um bar ali da praça e voltou com uma garrafa e dois copos, cantando, à guisa de justificativa, o verso “uma cerveja antes do almoço é muito bom pra ficar pensando melhor”. Brindamos e a cerveja desceu gelada, precisa, perfeita, eterna.
{Wagner Machado}
Acomodei o fone entre o ombro e o ouvido direito enquanto folheava o caderninho à procura do telefone do Vicente. O cartão telefônico até que estava bem carregado, mas eu devia ser rápido porque já se formava uma fila de 6 ou 7 pessoas atrás de mim. O ano era 1997 e naquela época as pessoas ainda faziam fila nos telefones públicos, principalmente na praia, no verão. Não havia celular e as pessoas gostavam de ir pro litoral e, uma vez na costa, gostavam de ir pra rua, pra praia, pro fliperama, pra sorveteria, pra pracinha, pro bar. Foi a irmã dele que atendeu e eu acho que não fui lá muito legal porque logo pedi pra passar para o Vicente, tinha pressa. Fazia o que? Uns 5 anos que todo verão ele insistia pra que eu fosse pra Floripa com a família dele e eu dava uma desculpa qualquer porque não tinha dinheiro para ir. Tinha que me contentar com as praias feias e desoladoras do litoral gaúcho, quando não ficava zanzando e suando pela cidade fantasma e escaldante em que Porto Alegre se torna a cada verão. E na volta das férias sempre o Vicente descrevia seu veraneio com o entusiasmo do locutor das propagandas dos filmes da Sessão da Tarde. E eu, sem histórias pra contar, sem experiências que valham a pena um relato, atravessava as férias sem qualquer acontecimento digno de sinopse. E então nesse ano o meu pai me convidara pra ir com ele e a outra família dele pra Santa Catarina. E a gente ficaria na Praia dos Ingleses. Pelo tanto que o Vicente falava, eu sabia que a Praia dos Ingleses era ao lado da Praia do Santinho, onde o pai dele tinha a pousada. Ingleses? Jura! Sério mesmo? Onde exatamente? Que rua? Era o Vicente em choque por eu ter chegado de surpresa. Eu não sabia a rua em que estava, mas o cara atrás de mim me informou: Rua das Dunas. Ah, sei!, o Vicente de novo. Caminha até a esquina e olha pra tua direita. Tu vai ver uma sorveteria que tem ali, é Costa Mar o nome. Dez minutos tô aí, de bici é rapidinho. E dez minutos depois eu vi despontar zunindo no asfalto o sorriso do Vicente, com sua cabeleira drapejando ao vento. Depois do abraço e uma breve conversa, que o meu amigo aproveitou para sentar na mureta da sorveteria e recobrar o fôlego, fomos andando pela avenida à beira mar, o Vicente carregando a bicicleta ao lado. Ele fez as vezes de um guia turístico, mostrando onde ficava o fliperama, os bares mais legais, os locais que a galera costumava ir. De quando em quando encontrava alguém conhecido dele, para uns só acenava cordialmente, para outros parava, trocava algumas palavras, me apresentava com algum comentário divertido sobre mim ou sobre a pessoa.
Ele esperou eu terminar o último gole de cerveja e falou: “Vamos cair?”, já levantando num disparo em direção ao mar. Entrou saltando sobre as primeiras ondas e, quando já havia uma mínima profundidade, deixou-se cair e submergiu na verdura do oceano. Só me restou segui-lo e imitá-lo. Do mar eu via os dois nacos de floresta que limitam a praia e uma ilha mais ao fundo, chamada Mata-fome. Na faixa de areia, o colorido dos guardasóis, a buzina dos vendedores de picolé, a algazarra das crianças, as mulheres tomando sol, os caras em grupo caminhando com pranchas de surfe sob os braços, a vigilância dos salva-vidas, e o movimento dos bares e restaurantes à beira-mar me enchiam de excitação, eu agora estava diante daquilo que antes eu só imaginava, no fio dos relatos e descrições do meu amigo. Estávamos sentados na areia, ainda molhados do mar, com a sensação agradável do sol dissipando as gotas de água sobre o corpo, deixando pequenas manchas de sal. O Vicente avistou alguém ao longe e fez um gesto vasto na intenção tanto de ser visto quanto de demonstrar satisfação pelo encontro. Eram duas gurias que vinham chegando e logo percebi que se fizeram grandes amigas do meu amigo naquele veraneio. Eram paulistas. Saula era loira e grande, Juliana era morena, com longos cabelos encaracolados e enfeitados com um tererê. Ambas começavam todas as frases com um “meu”, misto de vocativo e interjeição. Feitas as apresentações, caminhamos pela areia até as pedras no limite da praia ao norte. As gurias paulistas acenderam um baseado, que passou de mão em mão. Elas eram divertidas e risonhas. Sem demora me senti acolhido. A Juliana gostava do Caetano, dos Mutantes, do Raul Seixas e do Chico Science, principalmente da música “uma cerveja antes do almoço é muito bom pra ficar pensando melhor”. A Saula curtia Nirvana, Sonic Youth, Red Hot e Raimundos, principalmente da música “Nega Jurema vem descendo a ladeira trazendo na sua sacola um saco de maria tonteira”. Aquilo que pra mim e pro Vicente era tri, pra elas era mó. A Saul era são-paulina, a Juliana não ligava pra futebol. A Juliana tinha passado pra Psicologia, a Saula tentou Medicina e não passou, mas nem queria tanto assim seguir a profissão do pai. A Juliana era de Aquário, a Saula de Capricórnio. A pele da Juliana ficava ainda mais dourada com a incidência do sol, a da Saula, ainda mais rosada. A voz da Juliana era uma brisa, a da Saula, um trovão. A risada da Juliana era clara e viva, a da Saula, nervosa e um pouco forçada. O umbigo da Juliana era pequeninho, rodeado por pelinhos de ouro. O umbigo da Saula era fundo e largo. Rimos muito de alguma coisa que já não lembro e, no silêncio que sucedeu, o Vicente afastou o cabelo do rosto da Juliana e lhe deu um beijo. A Saula ficou mexendo em uma mecha da franja e me olhando.
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SUBMARINO | ESPELHOS
Levantei e fui mergulhar.
A gente tá ficando. Direto. Mas não estamos namorando, e eu nem quero, o Vicente me esclareceu depois. As paulistas são muito legais, né, ele disse, animado. Muito legais!, respondi com sinceridade. Nós quatro estreitamos os laços de amizade ao longo do verão. No começo a Saula dava todos os indícios de que estava a fim de mim. Eu curtia muito ela, mas como amigo. Ela entendeu, mas me beijou numa noite em que estávamos todos bêbados. Foi o primeiro dos dois beijos que eu dei naquele verão. O Vicente ficava de vez em quando com outras gurias além da Juliana. Não estava namorando com ela, ele dizia seguido, marcando posição. Um tio do Vicente morreu. Infarto fulminante. Ele teve que ir pra Porto Alegre às pressas, contra a vontade. Ficaria 3 dias e voltaria. Todos ficamos tristes por este hiato inesperado. E o pior: as gurias iriam embora pra São Paulo um dia antes de o Vicente voltar pra Floripa. O Vicente partiria ao meiodia e por isso marcamos de nos encontrar de manhã na praça do centrinho. Sentamos sob o quiosque. Fui até o bar e voltei com uma garrafa e quatro copos, cantando “uma cerveja, antes do almoço é muito bom pra ficar pensando melhor”. O Vicente disse que ainda naquele ano completaria 18 e que tiraria a carteira de motorista e que pegaria o carro do pai e que ele e eu iríamos a São Paulo visitar as gurias. E dar uma banda na Galeria do Rock. E na Rua Augusta. A Saula disse que morava em uma casa grande no Itaim Bibi e que a gente podia ficar lá. E que nos levaria para dar um rolê na Augusta e na Galeria do Rock. E que a gente podia dar um rolê na Augusta e na Galeria do Rock. Estava combinado. Nos animamos com o plano. O Vicente e a Juliana foram dar uma volta na praia, para se despedir. Ficamos eu e a Saula na praça e ela me falou que tinha ficado com um cara, morador dos Ingleses. Achei legal. Esse cara era amigo do Índio, o cara que vendia fumo pra elas. E esse cara que vendia fumo pra elas, o tal de Índio, era apaixonado pela Juliana. E a Saula me perguntou se eu achava que o amigo do cara que vendia fumo pra elas tinha ficado com ela só pra tentar fazer com que a Juliana ficasse com o cara que vendia fumo pra elas? Eu disse que não, nada a ver, bem capaz. Mas no fundo eu achava que podia muito bem ser só por isso mesmo. Quando voltaram, o Vicente estava com cara de choro e a Juliana estava chorando muito. Logo explicaram que a tristeza não era pela despedida. Tinham visto na TV de um bar que o Chico Science tinha morrido num acidente de carro. Porra, o Chico Science, velho!, a Juliana desacreditava. Nos abraçamos todos e eu chorei um pouquinho. Acho que a gente estava misturando a tristeza pelo Chico e pela despedida. No dia seguinte, combinei com as paulistas de pegarmos um ônibus e irmos pro sul da ilha, conhecer alguma praia de lá. Já no caminho, cada um com uma lata de cerveja na mão, cantamos de novo a música do Chico Science sobre beber antes do almoço. A Juliana perguntou em que praia pararíamos e emendei com outro trecho da mesma letra: “No caminho é que se vê a praia melhor pra ficar”. Ela riu. A risada dela era um pouco triste e muito linda.
Passamos o dia na praia da Armação entre banhos de mar, cerveja, beck e conversas nas pedras. Não falamos nem no Chico e nem no Vicente. À noite, já de volta nos Ingleses, subimos na casinha de salva-vidas. Estávamos muito chapados e a lua estava cheia. A Saula tirou toda a roupa e entrou no mar. Que louca, repetia Juliana, num ataque de riso. Achei linda a cena da Saula entrando no mar iluminado pela lua. No dia seguinte, encontrei a Juliana na praia. A Saula tinha saído com o cara que ela estava ficando. A Juliana estava com um biquíni de crochê listrado que ela comprou de um hippie na praia da Armação, e tinha uma pulseirinha de couro trançado enfeitada com búzios. Ela estava deitada tomando sol e eu deitei ao lado dela e fechei os olhos, ouvindo o barulho do mar misturado com conversas e risos ao longe. Acho que peguei no sono. Despertei com a Juliana falando baixo para mim. Aí vem vindo o cara aquele que vende fumo pra gente, o Índio. Ele vai querer ficar comigo. Finge que somos namorados. O Índio, é claro, parecia um indígena, desses de filme americano. Tinha o cabelo escorrido até os ombros, tatuagens nos braços fortes, uma pele reluzente e usava uma bermuda estampada com coqueiros. Agachou-se ao lado da Juliana, ela e eu nos sentamos. Ele falou com voz doce e galanteadora com ela, me ignorando. Eu me apresentei com cara de poucos amigos e ele perguntou pra ela: teu irmão? Ela disse que não. Amigo? Mais ou menos, ela respondeu. E ele voltou a me ignorar, convidando-a para tomar um banho de mar lá perto das pedras. Ela negou e, como ele insistia, pegou na minha mão, com os dedos entrelaçados. O Índio parecia não se dar por vencido e alternava galanteios a ela com olhares ameaçadores pra mim. A Juliana encostou a cabeça no meu ombro, e mesmo assim o Índio não desistiu. Então eu, meio sem pensar, dei um beijo na boca da Juliana. Um beijo tri bom, mó demorado. Meu! Eu fiquei com medo do Índio, mas ele falou mais uma coisa ou outra pra sair com alguma dignidade e se foi, levantando areia com os pés. Ficamos um pouco sem jeito. A Juliana riu. Eu também. Ela me agradeceu. Disse que não se arrependia, que foi bom. Depois ela falou que só não me beijava de novo porque seria mó sacanagem. Imagina, tô ficando com o seu melhor amigo. Meu, eu seria uma vaca! E você sabe né, a Saula é mó a fim de ti. Não teve mais beijo, mas terminamos a manhã tomando cerveja e conversando na beira do mar. Foi tri massa. No dia seguinte, as paulistas foram embora. Pegaram o meu endereço e me deram os dela, numa folha destacada de um bloquinho. Ficaram de escrever. De fato, um mês depois eu receberia uma carta da Juliana, com um incenso e uma fita cassete com uma compilação de músicas que ela gravou pra mim, músicas que de uma maneira outra fizeram parte daquele nosso verão. “Presta atenção nas letras”, ela escreveu e pude ver o jeito dela me falando aquilo. O Vicente voltou de Porto Alegre pela manhã e fomos até a praça do centrinho. O céu estava encoberto e a praia estava quase vazia. Sentamos sob o quiosque de palha e ele gritou na direção do bar, pedindo uma cerveja. Quantos copos?, o garçom perguntou. Ele fez um sinal com a mão que parecia o V de vitória, mas era só um dois. Não tive coragem de contar do beijo. Uma chuvinha começou a cair. Fizemos um brinde e ficamos os dois contemplando o mar que, com o efeito das gotas da chuva, parecia uma pintura. Em silêncio, ficamos bebendo a cerveja e pensando em um verão que parecia ter passado há muito tempo. | 11 |
diverti mentos Pedra na xoxota Saudade da Bete ChĂŁo de giz Morte e vida Leopoldina Embargados Arte
Samantha Canovas ChloĂŠ Pinheiro Eva Lazar Dani Rosolen Alex Xavier
Eva Uviedo
Pedra na xoxota
“Abraçar a mudança.” Mais um conceito cafona de adolescente que acha que conhece o mundo. Lara, por outro lado, numa viagem sozinha a Buenos Aires, entrou num estúdio de tatuagem e saiu com uma abstração geométrica azul que envolvia sua coxa esquerda. Ela odiou sua não-escolha e logo resolveu cobri-la com uma faixa preta, que segundo ela, não só doeu horrores para preencher como demorou também, uns três meses. Ano passado ela decidiu unir o corpo inteiro com uma tatuagem só, que ligasse da cabeça aos pés num desenho abstrato em preto, porque queria ser simétrica. Isso envolveu mais umas oito sessões de tortura, como ela passou a chamar, mas estava decidida.
{Samantha Canovas} Apresentando o objeto, me contou que teve orgasmos múltiplos. Era um dildo de quartzo-rosa, segundo ela a “pedrado-amor”, responsável pela cura interior e pela purificação do corpo emocional através do coração. Fiquei meio com nojinho de encostar, fingi que achei legal. A ideia de orgasmos múltiplos nunca parece ruim. Mas quando as pessoas me convidam para tomar um café em casa, raramente penso que vou ser recepcionada por um dildo. Talvez seja só este o estranhamento: pensar naquele objeto na vagina da minha amiga. Ela mostrou outros. Umas pedrinhas também, de tipos diferentes, umas ovais e outras mais compridinhas. Ela disse que era seguro pegar, estavam higienizadas. Senti nas mãos, eram bem duras e geladinhas. Pedras, afinal. Bem polidas.
– E como você ficou sabendo disso?
– Ah, é uma terapia holística de pompoarismo com cristais... Vai aumentando o tamanho da pedra e o tempo de uso. As menores dá pra usar até durante o dia, vai estimulando tudo lá dentro, e quando chega na maior: orgasmos múltiplos. Tem que trabalhar a musculatura da pelve, não adianta só o Kegel, já estamos ficando velhas! No começo é um pouco estranho... mas vai acostumando. Depois o resultado tá aí: orgasmos múltiplos – repetiu, como um mantra. Não me pareceu agradável andar por aí com uma pedra na xoxota o dia inteiro. Imagina no metrô, no ônibus lotado, num almoço de família. Sei lá, algo nisso também não me parece muito prático. A Lara sempre foi de carregar cristal no sutiã, mas essa é nova. Se bem que hoje tem até calcinha vibratória com controle remoto. Talvez eu tenha dificuldade em desapegar; gosto de ser responsável pelos meus próprios orgasmos. A Lara é o tipo de amiga que sempre vai transar mais e melhor que você. Não importa quantos paus vocês tenham compartilhado, com ela sempre é uma experiência única, em que ela doa o total de si em uma comunhão de corpos e espíritos. Comigo as vezes é só meia-boca mesmo. Às vezes você não está lá, às vezes tem muita louça na pia ou roupa que você esqueceu de tirar da máquina. Ou pode ter se acostumado também. Esse sexo-incrível-comunhão-dos-corpos me parece fruto de primeiras vezes. Eu a conheci quando éramos calouras na faculdade, o que deve fazer uns dez anos. Ela tinha cabelo cacheado na altura do ombro, como os os meus, e estava pensando em fazer a primeira tatuagem, como eu. Passei por volta de um ano tentando definir o desenho, alguma coisa que simbolizasse qualquer coisa, me fazendo lembrar o período de descobertas e fascínio que é esse ingresso na vida adulta. Passei tanto tempo decidindo como me tatuar que acabei me envolvendo com o tatuador. Meu veterano do curso de artes, levava dia sim e dia não versões novas dos desenhos que eu olhava e comentava, para fazermos juntos o melhor trabalho possível. Era tatuado da cabeça aos pés e estava já excedendo seu tempo dentro da faculdade, numa briga entre conciliar estudo e trabalho. Acabei optando por um catavento que girasse na minha nuca, uma vez que sentia ter os pés no chão e a cabeça ao vento.
Feito uma cebola, que em vez de apodrecer se transfigura em cebolinha, Lara passou, com a mesma facilidade, a transitar entre sexualidades, drogas e cortes de cabelo. Semana passada mesmo ela portava um cabelo raspado na nuca e uma mecha loira; agora tem só um cacho na frente da orelha com um corte de cuia. A mesma Lara que conheci hétero agora também fluia panssexualmente pelas ruas de São Paulo, apaixonando-se por corpos. Trocava samba por forró e eventualmente chorinho. Eletrônico por house e axé dos anos 90. Sertanejo? Era a única exceção. Princípios, dizia. A metamorfose ela culpava principalmente o horóscopo. Libra com ascendente em Aquário e lua em Peixes, com Vênus em Gêmeos, como ela fazia questão de me fazer saber toda vez que compartilhavamos etanol em copos americanos. Do café na sua casa, decidimos ir a um bar perto tomar cerveja. Nenhuma das duas tinha compromissos nem naquela tarde nem no dia seguinte, um dos benefícios da vida freelancer. Infelizmente, pelo mesmo motivo também não tínhamos dinheiro para nada melhor que uma Skol litrão. Pelo menos agora eles também fazem Skol puro malte, embora eu não saiba muito o quanto dá pra confiar. Lara me pede então uma opinião sobre um novo negócio. – É um lance de economia circular. Nós nos juntamos em grupos de oito meninas e cada uma contribui com 50 reais. Nos unimos em comunhão para poder realizar o sonho umas das outras. A cada semana, uma menina é a favorita da vez, e ganha os 50 reais de todas as outras, totalizando quatrocentos reais. Aí você pega essa grana pra investir no seu sonho...
– Amiga, mas como isso funciona?
– São oito semanas. Por isso é importante que seja um grupo de amigas que realmente se conhece e confia. Pra garantir que o ciclo chegue até o final. Um lance do sagrado feminino. Sororidade, sista!
– Isso tá parecendo esquema de pirâmide...
– Eu conheço umas meninas que fizeram, é legítimo.
– Sei não...
Na volta para casa, ponderei sobre aquela proposta. Lógico que era pirâmide! Me senti culpada por não ser mais incisiva. Mas a Lara tem dessas, as vezes não adianta tentar. A conta não fazia sentido, mas também não me dei ao trabalho de avisá-la. Na semana seguinte já vi o alarde da notícia no facebook: um novo modelo de esquema de pirâmide feito para enganar as meninas hipsters de pinheiros. Transformado em discurso de terapia holística comunitária afetiva e cooperativa, grupos caiam aos montes e demoravam pelo menos quatro semanas para perceber o preju. Muitas sororidades faliram. – Relaxa, amiga – eu consolava, enquanto dividíamos o último litrão. – Pelo menos os dildos vem acompanhados de orgasmos múltiplos.
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SUBMARINO | DIVERTIMENTOS
Saudade da Bete
cabinada. O Abel ria e tomava uma Schincariol, nem aí com a paçoca. A Bete essa hora choramingava, a mão cravada na minha, a saída de praia voando mais alto que a cabeça dela, o barco pulava nas ondas feito um touro mecânico. Uma sombra grande parou em cima da gente e o Abel gritou: – AH NÃO! VAI VIRAR ESSE CARALHO! SEGURA AÍ.
{Chloé Pinheiro} Toda vez que alguém pede um peixe com molho de camarão, meu coração revira de saudades da Bete. Verão de 95, nosso aniversário de 10 anos de casamento, resolvi fazer um agradinho pra patroa. Pedi uns dias de folga no bar pro Val e fomos pra Ubatuba, ficar num apartamento alugado nos classificados do Primeira Mão — é, minha filha, naquela época era assim mesmo, no jornal. Um quartinho em Massaranduba, varanda pra praia, cadeiras de palha e móveis de vidro, conchas de gesso na parede, TV de tubo 21 polegadas. E a Bete se apoiava no vidro da sacada, via o mar, virava pra mim e ria, ria. Nossa Bento, como a gente é chique. Chique? Ela não tinha ideia do que era chique, mas ia descobrir logo. No dia seguinte fomos nós bem cedo pro lugar que o Val me indicou, dirigindo o Monzinha até uma entrada invisível na estrada entre uma praia e a próxima, a placa “aluguel de barcos” na porta. A gente nunca tinha andado de barco na vida. Nunca vou esquecer da Bete de saída de praia com flores roxas, os pezinhos na sandália de strass, a unha cor de vinho, uma bolsa de palha gigante no colo, aquele sorrisão na cara: – Ai meu Deus, ai meu Deus…. Isso é o que eu tô pensando, Bento? Bento, a gente vai andar de barco??? – É o que você merece, meu bem. É o que a gente merece. Passamos o portãozinho, descemos uma estradinha a pé até a casa na beira do mar sem praia, um píer bem do sem vergonha se equilibrando em cima da água. Encontramos lá o Abel, olhos claros, pele escura de branco queimado, regatinha de campanha eleitoral.
– Fala, patrão! Vai querer o especial?
Perguntei o que era e ele:
– É um passeio novo chefia, numa lancha cabinada, dez horas de navegação no total, só tu e a patroa, mar aberto, romance, a janela da cabine é até insufilmada, privacidade total. No fim do dia eu paro na frente do Bonete e faço um jantar romântico pra vocês com um peixinho fresco que vô pescar. Tá na promoção hein, cem reais, que tamo testando a novidade. Topamos. Era bastante dinheiro naquela época, mas o Val tinha me dado um bônus pela correria do Tetra em 94 (aquele homem era um Santo) e eu guardei já pensando em agradar a Bete. A viagem começou oito da manhã. Sol aberto, a lancha branca ia, ia, ia pra longe da praia até que não dava mais pra ver areia, morro, nada. O sorriso da Bete virou uma boca de quem chupou limão azedo, ela mareou, eu também, gente da roça não dá pra mar não. A gente queria ver paisagem mas só tinha água e o céu bem azul, sol estrumbado na cabeça. Foi o Abel fazer uma curva mais forte que o céu começou a ficar cinza e pesado, rocando mais alto que o motor da lancha
Acordei na lancha, ensopado, o teto quebrado, nada do Abel, só as latinhas vazias, e eu Bete, Bete, cadê você Bete? Olhei pra fora e a Bete boiando no mar – tava calmo, o danado – com a cabeça mole. Tudo doía, mas pulei que nem um louco na água, desviei de madeira, garrafa quebrada, porta e consegui colocar a Bete de volta na lancha. Um corte feio na canela, dava pra ver o osso quebrado, o pezinho quase pendurado. Ela desmaiada. Achei um último copo de água mineral no convés e passei de leve na boca dela, que abriu de leve o olho e perguntou o que tinha acontecido. – Tempestade, meu amor, mas logo alguém vem buscar a gente. Tá tudo bem. Só de lembrar fico arrepiado. Já tinha visto filme de americano, sabia o que fazer. Fui até o volante, intacto, mas o motor morto. Rádio? Que rádio o quê, não tinha nada naquela lata velha de merda. Se tinha, foi embora com o teto da lancha. Da cabine, dava pra ver o sol indo se esconder no horizonte, já ia ficar de noite, e eu puta que me pariu. A caixa de primeiros- socorros tinha canivete suíço, Merthiolate, gaze, esparadrapo e uma garrafinha de cachaça com a etiqueta “Estive em Ilhabela e lembrei de você”. Peguei o kit e corri de volta pra Bete, que já estava com o olho todo esbugalhado e não respirava. A última pessoa que eu tinha visto morrer tinha sido a mãezinha na fazenda que ela trabalhava, bem antes de ir para São Paulo, menino ainda. Não lembrava que pele de corpo ficava tão gelada em tão pouco tempo e por isso beijei a Bete, abracei a Bete, gritei pro escuro do mar que essa hora nem vento soprava. Tomei a cachaça, que não ia mais servir pra anestesia, até dormir no colo da Bete, igual quando a gente namorava no Parque da Aclimação. Sonhei com grama e a primeira coisa que vi quando acordei foi a água morna acumulada na lancha, batendo nas feridas da Bete em ondinhas suaves. O sol ardido e uma sede danada. Fechei os olhos dela para o descanso eterno e fui em vão procurar água. E falava pra Bete morta: calma meu amor, hoje mesmo alguém vem. Pensava na nossa casa, no bar que ela falava que a gente ia abrir, enxugava meu rosto na saída de praia dela, a pele cada vez mais dura e seca. O Abel tinha morrido (ou fugido nadando) antes de pescar o peixe prometido, eu era inteiro fome, sede e tristeza. Dormia e acordava sem saber se tinha passado meio dia ou uma semana. Vencido pelo estômago, dei uma lambida na bochecha já acinzentada da Bete. Salgada. Fiz um check-up do resto do corpo, a carne da fenda na canela quase de-sol, mordi ali mesmo. Me lembrou uma coisa que conheci com o Seu Ito, um cliente japonês do bar. Katsuobushi, conserva seca de peixe bonito ralado, uns floquinhos marrom-claro que os japas usam em caldo pra dar sabor na comida. A Bete era bonita também. Desmaiei comendo e acordei abraçado na canela da Bete. Um barulho ardido batendo na minha orelha. Levantei a cabeça, me ergui como pude na beira da lancha e vi um navio de pesca com três caiçaras mal-encarados dentro a uns vinte metros de mim:
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– E aí filho da puta, cadê o Abel?
A cara deles mudou quando me perceberam, eu devia estar horrível, parecendo assombração. Vi que eles viriam até mim, e, num impulso, peguei o canivete e cortei o que faltava para soltar o pezinho da Bete. Tirei a saída de praia dela, enrolei o pé, coloquei na bolsa de palha e balbuciei – socorro. Amparado pelos caiçaras, vi o corpo da Bete sendo levado pelo IML, os homens analisando o toco da canela. Deve ter sido mordida de tubarãozinho, disseram. Eu e o pé da Bete passamos incólumes entre os primeiros socorros, entrevistas pra TV, náufrago do litoral norte. A fama acabou, mas com o dinheiro dela – fizeram um filme, onde somos Beto e Beta, vai sair agorinha – consegui finalmente comprar em 2010 o bar do Val, que já queria se aposentar. Guardei por mais de década o pezinho ressecado e curado no quarto do fundo de casa, que nem uma carne seca pendurada numa casa do norte. Ninguém ia lá mesmo, filho não deu tempo de ter. De vez em quando ia lá conversar com a Bete. Na minha primeira noite no Colosso, tirei o pé da Bete do gancho, dei uma bitoca na pele enrugada e tesa, falei é agora, meu amor, e descemos pro bar. Ralei o pé até virar floquinho fino, cor de pele, e cozinhei a noite toda até encontrar um caldo perfeito, que transformou o peixe com molho de camarão, prato que ninguém gostava, no sucesso do bar. O segredo é usar só um pouquinho, pra durar bastante. O gosto é forte, não pode exagerar. Mesmo economizando, com o tempo tive que procurar outros pés, uma trabalheira danada, te conto na próxima. Toda vez que eu vejo alguém comendo o peixe com molho de camarão meu coração mareia de saudades da Bete.
ChAo de giz {Eva Lazar} – Tia, vê se concorda comigo: se vender o carro, pensa na economia com IPVA, licenciamento, manutenção, combustível... Não vai perder sua independência, vai continuar indo onde quiser, hoje tem Uber, Cabify, 99, táxi comum, é super fácil. Nada de preocupação em dirigir, vai lendo, sem se irritar com o trânsito. Pode sim ficar sem conversar com o motorista, nada de futebol ou política, é só indicar que prefere ficar em silêncio, eles estão acostumados. Tá bom, pensa com carinho... Desliguei, sabia que ela estava ganhando tempo. Aos 90, não concebia a vida sem seu Corsa. Tia Ilona dirigia havia 70 anos, o carro era o símbolo de sua vida ativa. Eu ia ter de apelar para argumentos mais fortes. Os riscos, a atenção diminuída pela idade, como quando o Thomas a viu entrar direto na estrada sem olhar e quase foi pega por um caminhão e o cara brecou xingando - ela não percebeu e nem desconfia que eu sei. Estou atrasado; a agência abriu às 9. Mesmo hoje em dia, com a internet matando a profissão, ainda sou pontual. Vai que um dos raros passageiros preferindo ser atendidos por um ser humano liga e não estou. Perder faturamento está fora de questão. Se continuar assim, vou ter de fechar o escritório e ser mais um a trabalhar em home office, fingindo que opção. Foda: 20 anos de profissão para acabar na obsolescência. – Seu André, ligou uma pessoa, deixou o telefone, queria informações.
– Obrigado, Beatriz. Vamos ver se o dia engata.
– Bom dia, dona Sílvia? É o André da Turismo Global, a senhora ligou? Como? Sei, a senhora encontrou ida e volta a Lisboa por US$ 399, quer saber se consigo mais barato? Vou fazer umas consulta e retorno. Filha da puta. Povo folgado. Amanhã ligo e falo que neste preço é impossível, mas por um pouco mais ela terá assistência no check-in, acompanhamento das reservas, possibilidade de alterações ao menor custo, a ladainha de sempre. E não posso mandar à merda; vai que ela me esculhamba no Face ou no Trip Advisor. Tomei um café filtrando entediado a caixa de entrada. Ofertas, planos de saúde mais baratos, gerenciamento de patrimônio, pomada para aumento do pênis, maca peruana, um mail de um nigeriano querendo me dar sua fortuna por um pequeno depósito. Li os boletins das companhias aéreas, as promoções de cruzeiros de navio, entrei no Trivago, Kayak, Decolar, os sites oferecendo passagens quase de graça. Fiz o relatório da semana anterior, meia página. Botei os fones, uma canção que amo (“...Amiúde! Eu vou te jogar num pano de guardar confetes...”). | 16 |
SUBMARINO | DIVERTIMENTOS Vou almoçar, depois penso como lidar com a tia Ilona. Ela já cansou de ralar o carro na garagem várias vezes, sempre acusando algum vizinho. Outro dia ficou sem ver o óleo por meses, quase o motor funde. – Oi tia, comprei aquelas uvas que você gosta, vou deixar aí. E aí, pensou em vender o carro? Você precisa entender que não deveria mais dirigir, as ruas são perigosas, tem motorista louco, assaltos, eu fico preocupado. NÃO ESTOU INTERESSADO NO DINHEIRO, é a sua segurança, poxa. Papo furado esse, como assim prefere morrer se estiver tão velha que nem dirigir pode. Eu sei, renovaram sua carta, mas isso não quer dizer nada, o exame é ridículo. Sem apelar, se o tio estivesse vivo ia concordar comigo. Não desliga, NÃO DESLIGA... – e desligou. A caminho do quilo, bate a saudade da Marta; parece ponto, hoje tá pegando. Nunca entendi o abandono, o tédio alegado; a cena do carro lotado das coisas dela virando a esquina e sumindo dói para cacete... Beatriz me recebeu na volta com a carta do plano de saúde dando os parabéns pelos meus 59 anos e avisando do aumento anual e de faixa. Hoje o dia está difícil. Computador, fones, whatsapp, vamos lá (meus vinte anos de “boy” are over, baby! Freud explica...). O telefone tocou, pausei a música e atendi. – Turismo Global, boa tarde. Sim, é o André. Pois não, dona Branca, posso ajudar? Quer ir para a Alemanha. Quando? Tem preferência de companhia aérea? Ah, já comprou as passagens pela internet. (Porra, mais uma) A senhora quer alugar um carro lá? Uma van e chegar até o Castelo de Malkuth? Serão 8 pessoas? Posso ver, sim; quantos motoristas? O Dengoso e o Mestre também, além da senhora? Então autorização para 3? Sei, os outros 5 não vão dirigir, o Soneca é um perigo ao volante, entendo. Vou ver e retorno.
Putz, só piora. Liguei e não me atendeu. E agora? Ela só tem a mim e eu a ela depois que minha mãe se foi, não dá para romper. Depois penso. O telefone tocou. – Não, dona Branca, ainda sem respostas, leva uns dois dias. Como mais um motorista? O Zangado ficou bravo por não ter sido incluído? Ok, quatro motoristas então. A senhora sabe que vou precisar de todas as habilitações para fechar a reserva, correto? Mais alguma solicitação? Pode deixar, nos falamos amanhã. Hoje estou sem saco para conversar, vou desmarcar o jantar e o jogo e ouvir música. Fico com filmes na TV (“...Há meros devaneios tolos a me torturar, fotografias recortadas...”). Mando uma mensagem para tia Ilona: “Vamos fazer o seguinte, você fica com o carro, só toma o maior cuidado, se tiver problema me liga, a qualquer hora, não se fala mais nisso...” Ufa. Depois do café na padoca, Beatriz me recebe com o recado: – André, enquanto você estava fora a dona Branca ligou de novo, pediu para dizer que o carro precisa de bancos com altura regulável, porque os amigos dela são muito baixinhos. Só olhei e recoloquei os fones, esperando a hora de fechar. Com azia de nervoso, resolvo passar na tia para ver se a gente se acerta. Uns metros antes do prédio, vejo a multidão, os bombeiros, a polícia, o pano preto na calçada. Porque é que escolhi o apartamento no 16º andar, quando tinha um vago no 1º? “No mais estou indo embora! No mais estou indo embora!”
Cada pedido estranho. Vou pesquisar. De Frankfurt a Malkuth e arredores, uma semana. – Beatriz, entre em contato com as locadoras parceiras, pode levantar as informações desta solicitação? Ela me olhou esquisito. Beatriz trabalhava comigo ha 12 anos. Solteirona, como se diz por aí, passada dos 50, morava sozinha desde que a mãe faleceu na casinha da Casa Verde. Seus hobbies, reality shows na TV e o jardinzinho de suculentas na entrada. Tinha sido noiva e levou um pé na bunda, nunca mais quis ou a quiseram. Cheinha, tintura castanha para cobrir os brancos, saias escuras com camisas claras, sapato combinando com bolsa. Um símbolo da decadência da agência.
– Já vi que o tema do dia é carro.
– Beatriz, não estranhe os nomes, lembra do Astrogildo, zelador deste prédio? Pois é. A tia? Ainda nada, pior, ela brigou comigo. Estou num beco sem saída. Se deixo ela com o carro, uma hora acontece um acidente, se pego o carro lá ela nunca mais fala comigo. Você é que tem sorte, é órfã e só tem tios no interior. O som do whatsapp interrompe: minha tia em capslock. PODE VIR PEGAR O CARRO NA GARAGEM, CHAVE NA PORTARIA, DOCUMENTOS NO PORTALUVAS. NÃO VOU MAIS FALAR COM VOCÊ, FAÇA COMO QUISER. E COMA AS UVAS VOCÊ, NÃO VOU PODER MESMO. | 17 |
Morte e vida Leopoldina
— Já que tá assim quietinha, posso dormir juntinho com ela?
{Dani Rosolen}
O menino faz aquela vozinha chororô e a babá – que conheceu o menino na barriga da mãe, na época que os pais ainda eram casados – não resiste. Juliano afunda seu rostinho na cara da hamster, com um carinho fraternal. Dia seguinte, Zizi chega no quarto e a criança já está desperta, penteando Leopolda.
— Dormir? Mas e se ela acorda no meio da noite, sai andando pela casa, cagando no corredor, se esconde por aí e a gente não acha mais esse rato? — Prometo que vou segurar bem seguradinho numa conchinha na mão. Se a Leopolda se mexer, coloco na gaiola. Por favoooor... Zizi!
— Pai, vem cá, vem cá.
— Juliano, papai tá de saída pra viajar. Você vai ficar com a Zizi até domingo. Não inventa história agora. O menino começa a chorar e o pai não resiste e vai até o quarto dele.
— É que acho que a Leopolda não tá bem.
— Por quê?
— Ela só dorme. Olha lá. Sábado não comeu ração, não brincou na rodinha, não esfregou as bochechinhas na gaiola pra eu fazer carinho. — Deixa eu ver. Err... Calma, filho. Ela tá bem sim. É que, é que... É inverno! Você sabia que os hamsters também hibernam?
— Hum?
— Você aprendeu na aula de Ciências... nos meses mais frios do ano os ursos passam um tempo quietinhos, só dormindo... é um período difícil de encontrar alimento e eles precisam economizar energia. — Mas a Leopolda tem alimento. Olha aqui... o potinho dela tá cheio. — Mas ela é um animal. Age por instinto. Não sabe que tem comida.
— Então vou colocar na boquinha dela!
— NÃO, Juliano.
O menino começa a chorar, dessa vez por causa da rispidez do pai. — Filho, papai tá atrasado. E Leopolda, tadinha, tá com sono. Deixa ela dormir e mais tarde a gente fala por telefone. Agora, preciso ir, senão vou perder o avião. A Zizi já tá lá na cozinha e fez sua vitamina. Aproveita essa semana pra brincar com seus amiguinhos aqui do prédio. Depois a gente vai pra Disney! Dá um beijo aqui. Isso! Meu garoto! O pai vai embora e Juliano se acalma com a possibilidade de Leopolda estar apenas em sono profundo. Vai brincar com a turma do prédio e se esquece do bichinho até a hora de ir dormir.
— Zizi, tá vendo a Leopolda, ela continua parada.
— Ué, teu pai não disse que a bicha tá hibernando?
— Não era invernando?
— Algo assim, Juliano.
— Olha que fofa, Zizi. Nunca ficou tão quietinha assim. Deixou pentear seus pelinhos. Tá gostando do carinho. Nem abre o olho. Danadinha!
— Deixa ver.
— JULIANO! Vou levar esse rato.
— Por quê?
— Ela precisa tomar ar, passear. Vou ali na vendinha do seu Clóvis comprar ovo pra uma receita do almoço e levo a bicha junto. — Não! Ela fica, ela fica – diz o menino, abraçando com força o ratinho. — Tá gostando do meu carinho. A gente vai brincar enquanto você vai lá. Depois você leva passear. E compra cenoura. Ela não quer ração, mas cenoura a Leopolda gosta. Zizi tenta pegar a hamster das mãos de Juliano, que começa a espernear. A babá, como todas as pessoas que convivem com o garoto, não sabe lidar com seu choro. Parece que o menino vai literalmente se desmanchar em lágrimas. Logo desiste de tentar pegar Leopolda. Teme que o negócio comece a feder. — Tá bom, Juliano. Fica com a Leopolda aí. Mas não esfrega a bichinha desse jeito no rosto. Não fica assim grudado nela...
— Mas ela tá limpinha, perfumada.
— Você tem rinite, lembra? Não é bom ficar assim tão perto do pelo - inventa Zizi, tentando achar uma justificativa para seus receios. O menino nem liga. Mal a babá dá as costas, beija a rata e coloca Leopolda do lado, enquanto começa a ligar o videogame. — Sim, seu Fabio, já tentei fazer de tudo pra tirar o rato do menino. Não sei mais o que fazer. Aham, sei, sei. Hum. Tá bom. Ah, olha só quem tá aqui. Seu pai quer falar com você. Só um minuto, Seu Fabio, vou passar o telefone pra ele. — Oi papai, saudade, Quantos dias faltam pra você voltar? Eba, amanhã! A Léo tá me fazendo companhia. Eu nem desci pra brincar no play. Léo é a Leopolda. Ela quer meu carinho. A gente dorme junto. Come junto. Ela não come porque tá hibernando. Mas me faz companhia. Depois a gente brinca. Com carrinho, videogame, esconde-esconde. Eu escondo a Leopolda e a Zizi tem que achar.
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SUBMARINO | DIVERTIMENTOS O pai fica nervoso, mas não demonstra. Tenta mudar de assunto, e o menino insiste: — Ontem até dei banho nela. Passei aquele xampu que você usa em mim, o que a espuma entra no olho mas não arde. Tá tão cheirosa. Sequei com seu secador e deixei ela no travesseiro. Numa toalhinha. Vou tirar uma foto pra você ver. Vou pegar seu barbeador. Pra dar uma tosada nela. Os pelos crescem rápido! Nem quero mais um cachorro. Tchau, pai. Vou ver TV com a Léo. Te amo! De noite, enquanto Juliano dorme, Zizi segue os planos de seu Fabio. Pega o rato das mãos do menino, coloca em uma caixinha de sapato e deixa no banheiro para ver como descarta no dia seguinte.
— ZIZI!!!!
— Oi, Juliano, bom dia!
— A Leopolda fugiu! Vamos ter que procurar. Não abre a porta pro elevador que ela pode escapar, descer as escadas, ir pra rua. Seguindo o protocolo do patrão, Zizi finge que está procurando a hamster junto com Juliano. O menino não para de chorar um segundo enquanto vasculha todos os cantinhos possíveis e imagináveis: debaixo das camas, no closet do pai, em sua gaveta de meias, no lavabo, dentro do micro-ondas, no armarinho embaixo da escada, na cristaleira, embaixo da geladeira, no vão entre o congelador e o armário de panelas, na dispensa... Inspecionaram todos os lugares em que o bichinho já havia se escondido das vezes em que viajaram por poucos dias e Leopolda conseguiu escapar da gaiola e reinar na casa foram inspecionados. Mas nada... — Ah, já sei, faltou um lugar em que ela costumava se esconder.
Juliano corre para o banheiro de Zizi.
— Olha Zizi, ela veio se esconder aqui, nessa sua caixa. E tá acordada, os olhinhos abertos. Finalmente!
— Meu São Benedito! A bicha ressuscitou!
— Como assim ressuscitou? Ela tava invernando.
— Num é hibernando, Juliano?
—Vem cá, fujona. Vamos comer uma cenourinha?
Embargados {Alex Xavier} Só nos permitiram referir ao filme mais aguardado do ano como “o filme mais aguardado do ano”. Qualquer título ou subtítulo poderia estragar a experiência do espectador e ninguém queria isso. Da mesma forma, também concordamos em ignorar a filmografia do diretor – ou da diretora –, para não induzir o público a fazer comparações, que criariam uma expectativa sobre este novo título. Imagine passar a sessão inteira aguardando pelo final surpresa, igual ao trabalho anterior do artista – ou da artista. Foi bom saber nada e não chegar à cabine de imprensa com o olhar viciado. Às vezes, a melhor forma de informar o leitor é não se informar. Cinema se aprecia no escuro mesmo. Não vi problema em assinar o embargo quando chegou o convite. Todos assinamos. Um crítico nunca tem a chance de ver um filme sem saber tudo sobre ele. O bombardeio de notícias e especulações começa, muitas vezes, antes das filmagens. Depois que a produção sai em festivais ou estreia no exterior, qualquer blogueiro grava um vídeo cheio de spoilers e arruína a nossa primeira impressão. O documento impunha uma série de restrições para a divulgação. Assistiríamos a algo dirigido por alguém com um elenco incerto. E só poderíamos publicar no dia da estreia, em três semanas. Aquilo colocava os veículos em pé de igualdade. Era para o bem do público. Assinei. Todos assinaram. Como não podíamos descobrir quem estava por trás do lançamento, uma van retirou cada um de nós em casa pela manhã. Não reconheci nenhum dos colegas, pois sacos pretos cobriam suas cabeças. Logo, também fui amordaçado e encapuzado e meus braços foram amarrados para trás. O transporte ainda deu várias voltas desnecessárias para que perdêssemos o senso de direção. Essa última precaução me pareceu exagerada, mas ninguém chiou, então assumi que a medida estava descrita no documento e fiquei quieto. Compreendo que os estúdios precisam tomar cuidado com tantos vazamentos na internet. Todo cuidado é pouco para assegurar a diversão do público. Talvez esse procedimento tivesse a ver com o enredo. Enquanto nauseava, balançando de um lado para o outro no breu durante o trajeto, pensei que, em caso de um filme de sequestro, a ação de marketing merecia aplausos. Mas depois me dei conta de que esse trabalho de imersão não fazia sentido já que a proposta não era deixar as pessoas preparadas para o que elas veriam. E seria impossível manter essa estrutura depois do lançamento e dar aos espectadores um tratamento semelhante, o que seria, no mínimo, injusto com eles. Ao sair da van, quando vomitei o café da manhã no capuz, tinha certeza de que a história falaria sobre qualquer coisa, menos de sequestro.
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Vimos a luz de novo já dentro de um galpão. Não havia cartazes e banners ou nada que remetesse ao filme. Fomos recebidos por uma assessora de imprensa muito simpática, que distribuiu baldes de pipoca e copos de refrigerante e lembrou que deveríamos deixar os celulares, bolsas e mochilas com as atendentes antes de passar pela vistoria na entrada do espaço de projeção. Após os seguranças usarem o sensor de metais pelo nosso corpo, poderíamos nos despir e deixar nossas roupas na chapelaria. Foi quando ouvi os primeiros protestos. Um rapaz comentou que seria difícil tirar a roupa segurando a pipoca e uma senhora pediu para diminuírem o ar condicionado. E eu concluí que, com tanta nudez, não seria um filme infantil. Na sala de exibição, a assessora, sempre um doce, agradeceu nossa presença e também a compreensão de todos em seguir as condições do estúdio. Também disse estar feliz por ver tantos críticos empenhados em proporcionar um entretenimento de qualidade para seus leitores. Em seguida, advertiu que os doze seguranças ficariam vigiando nossos movimentos durante a sessão, ao lado de cães farejadores. Sorrindo, ela jurou que não tinha motivos para suspeitar de ninguém ali. Porém, outros jornalistas já foram banidos do seu mailing por desobediência às normas do estúdio e ela não colocaria mais o bem-estar do público em risco por causa de algumas maçãs podres. As luzes se apagaram. Sem o ar condicionado, minha bunda nua começou a transpirar no couro sintético do assento. Então, compreendi a função dos cães. Um pastor alemão se incomodou com minha agitação na poltrona e deu uma rosnada na minha direção. O segurança o conteve pela coleira com uma mão e, com a outra, apontou uma lanterna para o meu colo. Envergonhado, meu pau não o impressionou e ele puxou seu animal para outro canto. Alguns críticos me julgaram com o olhar, como se eu planejasse causar na sessão do filme mais aguardado do ano. Mas eu estava ciente do nosso privilégio por assistir a tal obra antes que o resto do mundo, mesmo sem saber ainda o que esperar. Não ia ferrar com a exibição por causa de um movimento suspeito.
minutos. Supus que fosse assim mesmo. Ninguém deu um suspiro. Muito menos eu. O diálogo inicial entrou já na segunda cena, entre uma figura de azul à esquerda e o borrão amarelo à direita. O filme não era mudo, só não tinha efeitos sonoros inseridos. O problema é que os personagens falavam em uma língua incompreensível. A segunda pessoa a ser retirada foi uma mulher das filas da frente. Ela se levantou para reclamar da falta de legendas e chamou a assessora. Um rottweiler abocanhou seu tornozelo e ainda a rebocou por uns dois metros, antes de seguranças a carregarem para fora. Ela chorava muito. Se, naquele momento, desse para entender o que os atores diziam, ninguém teria ouvido nada. O senhor ao meu lado comentou baixinho, sem tirar os olhos da tela, que, provavelmente, era mais uma desses sites. Não parecia, pela idade, mas também não gosto de julgar. Em meia hora, mais cinco críticos foram retirados. Todos demonstraram total falta de profissionalismo, já que insistiam em emitir suas opiniões sobre a obra no meio da exibição, ou seja, bem antes do fim do embargo assinado, lembro bem, por todos. Com tamanha algazarra, estava difícil acompanhar a história. Eu me preocupava sobre o que escreveria para os meus leitores. Era o filme mais aguardado do ano e não poderia ser esquecido em uma mera resenha. Com certeza, sairia como destaque nos jornais e revistas ali representados. De repente, a sala se acendeu de novo e a assessora potiche reapareceu. Ela pediu desculpas e explicou que, por erro de uma empresa terceirizada, a cópia para dublagem em húngaro veio parar aqui. E, como não havia como corrigir isso, ela nos daria duas opções: ficarmos presos naquela sala até o dia do lançamento ou continuar a sessão, com os tímpanos perfurados, para impedir que criticássemos o som. Por causa do ajuste de foco ruim, as córneas também seriam extraídas e devolvidas depois, em um copo de refrigerante com gelo, junto das roupas e dos celulares. Foi quando me manifestei.
Enfim, a luz do projetor cortou a sala. Nada de vinheta do estúdio ou créditos. Direto para a cena inicial, uma imagem escura de alguém caminhando em uma praia, à noite. Estava desfocado e não havia som. Acho que não fui o único a ficar na dúvida se era uma falha técnica ou uma opção estética do cineasta – ou da cineasta –, pois levou uns três minutos até uma voz masculina ser ouvida, ao fundo, gritando “foco”, Duas vezes seguidas. Uma mulher fez coro e motivou um burburinho. O senhor ao meu lado me perguntou se era um filme mudo. A projeção parou antes que eu desse de ombros. Ainda na escuridão, percebi que os seguranças arrastavam um homem para fora. Pelos berros de dor com as mordidas do pastor alemão, reconheci a voz do sujeito que primeiro pediu foco. Bateu aquele alívio por não ter sido eu a passar esse carão. O senhor ao meu lado cochichou no meu ouvido que o expulso devia trabalhar em online, o que justificaria a retirada da sala. No embargo estava destacado em negrito que só impressos poderiam participar. O cara se infiltrou na malandragem, estava avisado das consequências. Mais uma vez, surgiu o feixe de luz. Fizeram a gentileza de colocar desde o início. Mesma cena desfocada de alguém – talvez um urso – andando em silêncio à noite em uma praia. Quem sabe, um parque. Lá longe. Por cinco | 20 |
– Ainda tem pipoca para quantos dias?
SUBMARINO | DIVERTIMENTOS
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odisseias Giramundo Luiza resolveu acordar Nandices Cortadores de cabeças Meu lugar é na janelinha
Valéria Midena Aruane Garzedin Cristina Villarosa Martim Sampaio Michi Provensi
Arte
Zé Maia
Dos amigos, alguns foram generosos, outros cruéis: “Se divertindo, hein?” “Metade da tua idade, se liga, cara, é ridículo.”
Giramundo
Pouco importava. Queria aquele sol, uma inundação na minha casa, na minha cama, nos meus dias. Vestígios de consciência eu afastava sem pudor – autoengano, manipulação emocional, frases de efeito, atitudes cavalheiras, cores densas para um passado sem nuances, pesquisas na internet sobre gírias da moda... todo repertório dos mais de trinta e anos no exercício da sedução usados para forjar o homem dos sonhos de Sofia.
{Valéria Midena}
Sempre gostei do jeito como ela andava. Havia algo de impreciso, um desencontro entre o ritmo dos passos e a cadência dos quadris que atingia ainda o movimento dos cabelos, compridos até quase a cintura. Passei anos tentando decifrar aquela não-sincronia. Quando caminhávamos juntos e Sofia me perguntava por quê eu estava sempre um passo atrás, alegava um espírito protetor que nunca tive – aí ela se enternecia e eu continuava minha investigação estéril. Os cabelos. Esses eram outro espanto. Quando os vi pela primeira vez, parecia estar vendo um campo de trigo como vemos nos filmes, milhões de fios dourados se mexendo com o vento. Lembrei daquela música, o girassol da cor do cabelo. Olhava para ela e pensava no girassol, e na luz do sol, no mar, no vento, pensava em lua, estrela, e ficava imaginando meu pensamento todo tingido de amarelo, da cor do cabelo. A canção nunca mais saiu da minha cabeça.
O tal Rut (que porra de nome é esse?) devo ter conhecido em algum momento, em meio aos muitos que entravam e saíam de minha casa com suas bolsas a tiracolo, latas de cerveja e cigarros dos mais variados tipos. Eu gostava daquele fluxo ao meu redor, a curiosidade sobre mim e minha relação com Sofia, as expressões de fascínio e admiração quando eu discorria sobre algum assunto ou quando fumava um com eles. Nem sempre decodificava as falas ou entendia as risadas, mas tinha a certeza de habitar o epicentro do universo. Um pedaço de papel (branco) com quinze palavras (pretas) encerrou os dez meses mais dourados da minha vida: “Rut está voltando para Amsterdam, vou com ele. Obrigada por tudo, amor, foi muito divertido!” Nem sei quantos anos se passaram. Só sei que ainda hoje meu pensamento – um tanto cinza, um tanto azul – às vezes se tinge de amarelo com a lembrança daquela luz.
Nem Sofia.
Fomos morar juntos três meses depois do primeiro encontro. Nesse tempo, já tinha descoberto que ela detestava refrigerante e amava café sem açúcar; que as unhas dos pés estavam sempre pintadas de vermelho, e o mindinho da mão direita era um pouco torto por causa de uma queda de bicicleta aos dezoito; que os olhos azuis tinham três graus de miopia, que a risada era fácil e o sono, difícil. Sabia também que os peitos redondos e pequenos eram resultado de uma cirurgia corretiva, pois o peso dos originais faziam com que, já aos treze anos, Sofia vivesse com os ombros cortados pelas alças do sutiã. Ela tinha entrado na faculdade de arquitetura aos dezessete, na de história aos dezenove e na de biologia aos vinte e um. Naquele momento, cursava letras, mas estava em dúvida se deveria trocar por filosofia. Inteligente, rápida, um pouco distraída e quase sempre bem-humorada. Cerveja? Pilsen. Pastel? Palmito. Suco? Verde. Tinha uma mesada poderosa, uma coleção de Chuck Taylor, uma Perfecto original (herdada da mãe e que nunca saía do corpo). Era apaixonada por Angus & Julia Stone e nunca tinha ouvido falar em Lô Borges.
– Nunca?
– Nunca... deveria?
– Clube da Esquina, Milton Nascimento?...
– Ah, Milton eu conheço, minha mãe ouvia sempre. Esse clube toca o quê, MPB? | 24 |
SUBMARINO | ODISSEIAS
Luzia acordou diferente {Aruane Garzedin}
Mais tarde, sentado à mesa da cozinha e mais aliviado dos momentos mais difíceis da chegada, Álvaro observava Luzia em seus movimentos junto à pia. A curvatura daquelas costas lhe pareceu mais proeminente e as pernas mais finas. O cabelo ralo, de uma cor difusa, deixava à mostra trechos do rosado couro cabeludo. As unhas dos pés pintadas de rosa não combinavam com a figura austera daquela mulher, nem com o piso antigo e fosco de cor indefinida do chão da cozinha. Coando café, Luzia mencionava o calor que fazia, os vizinhos que haviam morrido, o cachorro que tinha sido adotado pelos moradores do prédio e outras coisas mais. As palavras se perdiam ante o vestido dela, de flores laranja em um fundo bege que contrastava com o azul celeste do armário antigo de fórmica sob a pia. Era só o que ele via. Hum, o cheiro do café! Que estranho poder exercia sobre ele o cheiro do café! Em qualquer lugar do mundo, esse perfume era a senha para um lugar mítico, em que haveria um eterno e suave encontro familiar. Talvez tenha sido esta imagem de sua memória afetiva a responsável por ter percorrido o que lhe parece uma enorme distância no tempo e no espaço para estar ali agora, como se nunca tivesse saído, mas com a mesma sensação de que não era aquele o seu lugar. Você está bem? — pergunta ela.
— Sim, mãe, um pouco cansado da viagem.
— Mãe, não ando me sentindo bem, acho que vou morrer... Ela se aproximou e levou a mão à boca do filho, calando-o:
Álvaro desceu do ambiente refrigerado do ônibus e foi logo envolvido pelo calor daquela pequena cidade que ele bem conhecia, mas pouco se lembrava, desde que tinha estado ali, há duas décadas. Procurou um táxi em frente à rodoviária, e só havia um motorista adormecido dentro do carro parado. Resolveu ir andando até a casa da sua mãe.
Após o café, Álvaro saiu para andar um pouco, precisava tomar um pouco de ar fresco, ver o mar. Uma hora depois, entrou em casa muito pálido e ofegante. Sentou-se na poltrona marcada pelo peso da mãe em frente à televisão. Fechou os olhos. Enquanto isso, era observado de soslaio pela mulher idosa com ar preocupado que fingia arrumar a sala, com as mãos um pouco trêmulas.
E ela continuou a falar, agora à sua frente, com a mesma voz forte que ele conhecia, enquanto comia uns biscoitos molhando a pontinha de cada um no café. Álvaro fingia interesse. Aquele cômodo de cores desbotadas parecia ter vida apenas pela presença dela; o armário dos pratos com as portas de vidro, a fruteira sobre o balcão, as cortinas de renda no basculante sobre a pia e os vasos com flores plásticas emoldurados pela claridade lá de fora. Na porta de madeira pintada de branco, uma caixa cheia de boletos de pagamento. Que espécie de fonte alimentava o perene e estranho gosto da mãe pela vida, e que parecia inalterável pela rotina, perguntouse ele.
— Nunca mais diga isso! Você sempre foi um pouco exagerado e sensível! Ao contrário do seu irmão, pensa muito e tem a imaginação fértil. Seu pai sempre disse que você era um artista. Álvaro recuou e olhou para ela surpreso. Ela mentia. Uma das frases marcantes da sua infância fora pronunciada pelo pai, depois de jogar fora o João, um boneco de pano que o menino fizera, que havia se tornado o seu fiel companheiro e até dormia ao seu lado. Naquela noite, ele ouviu a mãe dizer:
— Ele é um menino criativo...
Ao que o pai respondera:
— Um fraco da cabeça, isso sim!
Sem querer, ele pôs a mão no nariz torto para a esquerda, uma inclinação que para ele havia custado algumas conquistas amorosas e parte de sua autoestima. Lembrava-se exatamente da surra que levou de um colega e do olhar cheio de desprezo que recebeu do pai ao chegar em casa. O telefone celular de Álvaro toca. Ele olha para o visor, olha para a mãe e não atende. Um pouco constrangida, ela comenta: — A gente não escolhe a quem amar, meu filho. Eu me apaixonei pelo o seu pai, ele era um homem bom, mas um tirano. Não há como julgar, mesmo quando a gente não quer aceitar. Mais tarde, deitado na cama, Álvaro pensa nas palavras da mãe. Sempre estranhou a ausência de perguntas dela sobre mulheres, casamento e filhos. Toda mulher quer netos...Não tem o emprego fixo e a estabilidade que o pai tanto prezava. A poesia foi o que sempre lhe interessou. Com as mulheres, nunca teve um relacionamento satisfatório; na verdade, as temia. Agora, necessitava de coragem para romper uma relação com a pessoa que é o amor de sua vida, mas que não lhe merece mais. Sente-se um fraco. Talvez esteja mesmo muito doente, não apenas estressado. Luzia roncava no quarto ao lado. Antes, havia tomado uma dose de comprimidos para driblar o sentimento de mãe abandonada e outros indesejáveis que costumavam ressurgir em fila, sempre que ia para cama. Lembrou da última vez que esteve na casa do filho, no centro antigo de Recife. Recordase perfeitamente de dois postais dentro de um livro sobre a escrivaninha. Um deles falava sobre Morro de São Paulo, um lugar paradisíaco na Bahia, relembrando o momento onde
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Álvaro e outro homem haviam se conhecido. O outro, o desenho de um rosto atormentado, no verso trazia firmado o compromisso de uma viagem de lua de mel à Itália juntos. Desde então ela não mais se queixou da distância dele e apenas as conversas banais ao telefone uma vez por mês os unia. Luzia se ocupava das coisas próximas. Ah, hum! Só os mimados acham que podem ter tudo na vida; a gente tem o que pode ter! ela dizia. O sono chegou, mas a aparência envelhecida do filho não lhe saiu da cabeça.
Nandices
{Cristina Villarosa}
Luzia acordou diferente.
Álvaro já estava desperto e olhou curioso para o rosto animado da mãe entrando em seu quarto sem pedir licença. Ela lhe devolveu um sorriso estranho e foi mancando, decidida, até à janela, mas não conseguiu abri-la sozinha; estava emperrada. Então, ela pediu com os olhos mais quentes e a voz poderosa de sempre:
— Venha, meu filho, ajude, vamos arejar a casa.
Conheci o Fernando aos poucos. Uma vez naquela rampa que ia dar na faculdade de Administração. Felix deu um toque na buzina do fusca e acenou a um altão que descia de uma caminhonete. “Um amigo”, disse, todo contente com o breve encontro.
“Nunca o vi por aqui.”
“Está fazendo um curso de Administração Rural. Só três semanas.” “Ah, nem sabia que tinha esse curso. Ele é fazendeiro?”, indaguei, lembrando da caminhonete. “Não, mas ele quer ser corretor de imóveis rurais e acha que esse curso poderá ajuda-lo a conhecer melhor esse pessoal”. Uma outra vez cruzei com ele em uma festa, no corredor da entrada da casa da Tina. Ele saía, em companhia de outro rapaz e eu chegava. Mas foi no Rio de Janeiro que o conheci um pouco melhor. Fui lá para encontrar o Felix e a Mala para subirmos até Miguel Pereira. Estavam hospedados na casa do Mauro e da Isa. Na sala, quando cheguei, uma figura lânguida deitada no sofá. Fui apresentada. Não guardei o nome. Mas para mim era um sujeito folgado, ocupando todo o sofá, ali todo escarrapachado e nós restringidos aos poucos assentos restantes. Antes de partirmos em nossa viagem, almoçamos todos em uma lanchonete próxima – A Francesinha, conhecida no bairro. Nos sentamos no salão do fundo, sem pressa. Cerveja para todos, menos para o tal espaçoso, que pediu um Gin Tônica. Não é que tinham isso lá? Fiquei com minha água, pois não bebo. Frango à Passarinho para Mala, Omelete com salada para mim – sou vegetariana - e, para os demais, Bife Apimentado. O maior sucesso. Todos quiseram saber, de onde saíra tamanho quitute como o bife servido. “Meu tio me ensinou” disse o proprietário. “Era francês como minha mãe. Trompetista da orquestra, não sei se lembram, do Alvarenga, tocavam na Rádio e em bailes”. Ao sairmos, notei que sobrou para Mala pagar o bifão francês e o gin tônica. Certo dia, anos depois, fui parar em uma casa onde acontecia um Família Vende Tudo. Acabei comprando uma quadro do pintor Fang, no tempo em que eu ainda comprava | 26 |
SUBMARINO | ODISSEIAS coisas, e que enfeita minha casa até hoje. Era o Fernando – o tal folgado – que estava de mudança.
viagem. “Obrigada por ter trazido o seu prato” disse, quando eu já voava dali.
Ia para a casa que herdara do pai falecido, lá na Baronesa de Itu. Essa conheci bem. Era antiga, grande, estilo algo como art déco, comprida como as de antigamente e contava com uma pequena garagem à frente, daquelas com porta de enrolar. Ali deviam estar todos os móveis e objetos das últimas quatro gerações da família. Você tropeçava em móveis, todos escuros, pesados, empoeirados, tecidos para lá de gastos.
“Por que você não faz um Família Vende Tudo aqui também?”, perguntei, quando já se tornara meu amigo.
Resignada, tirei meu velho, porém impecável, Ford Del Rey da garagem e partimos, Fernando conduzindo.
“Aqui não, tudo isso é relíquia de família. Sou o guardião de uma tradição.”
Apreciando o verde da paisagem, me dei conta que estávamos em plena Rodovia Anhangüera.
“Não deveríamos estar na Dutra?”
“Mas pelo menos troque uns tecidos. Por que não manda consertar aquela cadeira?”, questionei, apontando para uma poltrona de madeira estofada sem um dos braços, este colocado no chão, logo atrás, provavelmente há décadas.
“Vamos pegar o Roger.”
“Está bom assim. Sempre convivi com ela dessa maneira. Por que mudá-la?”
“Ué? Cadê o Roger?”
“Ele mora em Uberaba”.
Ah bom, pensei.
Depois foi minha vez de mudar. Casa moderna, pequenina. Ao guardar os pratos no armário da cozinha mencionei ao Fernando, que me auxiliava testando as bebidas sendo retiradas das caixas de mudança:
“Quatro pratos de cada é o suficiente...”
“Como assim? O que vai fazer com todos os outros?” surpreendeu-se Fernando.
“Doar. Tenho o suficiente.”
“E quando for dar um jantar?”
vida.”
“Jantar? Em restaurante. Quero simplificar minha
“Você simplifica demais. Recebe tanta gente em casa, gosta de receber ...” pizza.”
“Foi-se o tempo. Agora é em restaurante ou pedir
“Pizza? Com quatro pratos? Pelo menos seis então.”
Voto vencido, mantive meia dúzia de pratos. O resto levei para o bazar da Igreja N. Sra. de Fátima e deixei tudo lá, junto com caixas de copos e talheres, para doação. Agora sim, vivo na minha. Na véspera de um certo Natal, Fernando me ligou. Ia para Pernambuco de carro e me convidava.
“Não dá, tenho almoço da família.”
“A gente sai de manhã cedo. Dormimos em Governador Valadares e seguimos.” Não perco um convite por nada e adoro pegar uma estrada. No manhã seguinte, passei na Rotisseria e apanhei a travessa encomenda - Raviolis ao Creme de Cogumelos. Mais do que depressa, deixei-a na casa da prima onde seria o almoço de Natal. Ela entendeu perfeitamente. Nada como uma
Fernando logo chegou em minha casa.
“Meu carro está pifando”, explicou, “e os pneus não estão nada bons. Preciso trocá-los quando chegarmos no Recife.” “Quando chegarmos? E se pifar no caminho?”
Calmamente, fiz minha meditação habitual. Ao abrir os olhos:
Foi aí que comecei realmente a conhecer o Fernando. São Paulo-Recife, via Uberaba. E com direito a chá de cadeira – digo, de banco de carro. Roger estava tomando banho... tomando café da manhã... se despedindo da família... assim vinham as informações dos mensageiros. Uma segunda parada em Betim, para apanhar Gustavo. Outro chá de cadeira, desta vez de sala, enquanto seu Rafael, o pai, servia o Marte – não poderia nos deixar partir sem que provássemos seu melhor uísque. Para mim, a degustação seria uma Coca-Cola, sem gelo mesmo. Assim, a conta-gotas, chegamos ao Recife após alguns dias. Em Olinda, para ser mais precisa. Eu, Fernando e seus dois amiguinhos, com pouco mais de 18 anos cada. Fernando, como eu, já batia os 30. Foram duas semanas em Olinda. Saíamos diariamente, por volta das onze horas, em busca de praia. Isso sem antes participarmos do ritual do café da manhã típico. Fernando começava com um cafezinho preto, seguido de cuscuz quentinho. Uma breve pausa para o cigarro, seguida de pedaços de macaxeira regados com uma bela xícara de chocolate quente. Um ovo cozido, acompanhado de um pãozinho com fartos pedaços de presunto. Eu me moía de inveja – esse Nando se regala em seu banquete diário e não engorda nunca! – enquanto me contentava com fatias de abacaxi e uma água de coco. No quintal, alguns coqueiros carregados. Fernando contratou o faz-tudo local, rapazote de uns 15, esguio e aloirado, para a apanhar os cocos e dar um limpada na área. O nome? Come-Rato.
“Como é?”
“É que, quando pequeno, pegaram ele comendo um rato e o apelido pegou.” E não é que Come-Rato, talvez devido à necessidade, fez o serviço super bem feito? Frequentemente aparecia por lá
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para fazer um coisa ou outra, com direito não só ao pagamento, mas também a uma refeição, – o nosso farto café da manhã – em consideração a seu apelido. Nos passeios diários às praias nosso guia era Pedro Balla. Nativo, conhecia todas as quebradas da região. Diferente dos demais da “turma”, Pedro demostrava educação esmerada. “De onde surgiu essa peça?”, indaguei, destacando como ele destoava do restante.
“É de família tradicional daqui.”
“Mas com esse sobrenome italiano?”
Gargalhada geral.
Fui visitá-lo no hospital.
“Isso é o que a gente nunca acha que acontece com a gente”, comentou sobre a doença. Eu, cá comigo, pensei que é era só abrir o jornal para saber no que dá coquetéis diários de fumo, álcool e tudo o mais. Mas cada um escolhe o seu caminho. Sua recuperação foi rápida, para a alegria de todos que sentiam sua falta e de suas nandices. Logo estava na ativa de novo. Em sofás, cafés, bares... Passou a fazer exercícios diários. Um telefonema de Mala, no meio de uma manhã, me surpreendeu:
Era Bala com um “l” só mesmo. Irmão do Jorge Bala e do Cássio Bala, tadinhos. O pai tinha assassinado uma pessoa – estava na prisão – e o apelido pegou... Foi assim que conheci boa parte do Nordeste brasileiro. Em São Paulo, via Fernando frequentemente. Cinemas, jantares e também viagens para tudo quanto é lado. Os jantares sempre regados a vinho, é claro. Não era exigente.
“É o Fernando. Estava indo ao ao Pilates quando...”
“Morreu”, completei.
“Foi o coração.”
Foi como se ouvisse:
“Aquela coisa que a gente acha que nunca acontece com a gente.”
“Os chilenos são ótimos.”
Ainda bem, pois a conta sobrava para alguém, eu inclusive. Ah, e havia também as facadas. Tinha o hábito de pedir dinheiro emprestado. Como corretor de imóveis, a renda era invariavelmente variável. Tinha que viajar – era corretor rural – e não tinha tempo, não tinha carro ou não tinha saco. Nunca conheci alguém com tantos carros largados na estrada. Ou melhor, nos postos da Polícia Rodoviária. Dirigia muito bem, sempre em alta velocidade – mas não respeitava as leis. E não pagava multas. Nunca. Era parado pelos policiais e lá ficavam seus automóveis, para jamais serem recuperados. E ele e os amigos acabavam a viagem de ônibus. Por sorte não passei por isso. Vendia imóveis com documentação incompleta, para não dizer irregular. E também comprava assim. Era tudo rolo – o que dava arrepios a mim e a seus amigos. Desse modo, seus negócios eram escassos. No entanto, quando vendia algo – coisa rara, é verdade – quanta comemoração! E nada de vinho. Era só champanhe! E, assim, passamos a chamar suas sandices de Nandices. E o apelido pegou... Seguro-saúde ele não pagava. Se preocupava um pouco com isso, mas não muito. Em uma ocasião, um primo o colocou como funcionário de sua empresa, para que ele contasse com esse benefício. E foi aí que se descobriu que tinha câncer, coitado. Operou, mas não mudou em nadinha os seus hábitos. Começava o dia com seu café da manhã reforçado e acabava com doses de um bom whisky, fumadas e cheiradas diversas, arrematadas por um Lorax ao dormir. Sempre admirei a capacidade desse medicamento em dar cabo de tudo o que tinha vindo antes. | 28 |
SUBMARINO | ODISSEIAS
Cortadores de cabeCas ,
em meio ao alvoroço. As batidas dos tambores servem de fundo para que pela sua boca os mortos se revelem aos vivos.
Uma tarde, voltando do trabalho, encontro a vila reunida sob as bananeiras ao som de atabaques. Os homens formam um círculo, cantam, dançam e alguns parecem desfalecer. As mulheres se contorcem, dão ruidosas gargalhadas. Alguns estão com o corpo ereto com muitas vibrações, às vezes se ajoelham batendo no peito; outros se curvam de maneira suave. De repente a balbúrdia é engolida pelo silêncio. Bobby Toledo, baforando um payok, adentra a roda. Ao seu lado, o xamã, Sammy Buot, ingere aguardente em grandes doses, cuspindo jatos da poção sobre os presentes. Um garoto é tomado em transe diante de Buot e leva uma escarrada, retornando à razão
Caminho cansado por uma trilha, e a terra dos Kalinga vai desaparecendo aos poucos.
Guerreiros com pinturas corporais portam facão de bolo na cintura ao lado esquerdo. Na cultura local, indica hostilidade, pois facilita o saque cruzado da arma para um golpe certeiro. Às costas, uma adaga, facas karambits e as temíveis balisongs. Bastões de ratan espalhados ao chão.
Ao lado, Coy e sua mãe desatam a chorar. Fazem sinal para que me afaste, e me escondo no meu quarto. {Martim Sampaio} Um pressentimento ronda minha cabeça. Afinal, viajar pelo mundo tinha aguçado meus sentidos. Por diversas vezes Não me recordo como chego às Filipinas. evitei o pior seguindo a intuição. No México, apesar da tensão Com algum dinheiro e tempo, me deixo levar. Moro num permanente, sobrevivi. Andei nas periferias, bebi cerveja cortiço em Caloocan. A comunidade situa-se ao norte da em bares de criminosos, fui às festas narco. E a vida seguiu. cidade de Manila, num distrito pobre cortado por canais Mas ali, o perigo espreita. Eu tinha cruzado a linha. de águas poluídas. Os barracos são de papelão e lata. Não há ligações elétricas, coleta de lixo, o esgoto é jogado a céu Sempre soube que não poderia me envolver com as mulheres – e logo com a filha do chefe. De momento em momento, surgem aberto. O local exala chorume. desentendimentos. Com a perna e a mão direita a frente, uns Certa noite, numa roda de jogos, o conhecido desafiam aos outros. Rabiscam o ar com facas afiadas. Insultos, trapaceiro Jonh Barika discute com o dono dos barracos, Nick ameaças, ferimentos no rosto ou nos braços. Maranga. Súbito, saca uma arma e atira no senhorio. O sangue Apavorado, lembro da infância católica, do Padre do tinge o chão e dá início a um tumulto. Alguém joga o corpo Bom Conselho e seus sermões; rezo e faço promessas para sair no estuário e a vida volta ao normal. dali com vida. Não deveria ter me envolvido com a garota... Lá fora irrompe um combate armado. Gritos acompanham Hora de partir. a luta de lâminas. Uma estranha coreografia que em poucos minutos larga um corpo ensanguentado ao chão. Sou incapaz A curiosidade me leva ao sul do país na terra dos de me defender com as mãos. Meu fim está próximo. Kalinga – outrora, “cortadores de cabeça”. Indicam uma vila onde sou recebido com cerimônia por Bobby Toledo, chefe Na escuridão do meu quarto, surge Coy. Trocamos do antigo clã guerreiro. Os moradores dividem o trabalho, olhares excitados, seguramos as mãos, tocamos os corpos. comida e moradia. A mim cabe o pior quarto, o pior serviço. Não ouvimos as gritarias de fora. Momentos lascivos Cuido das sobras e tenho ordens expressas de não me entrecortados por gemidos. Os combates mortais já não aproximar das mulheres e crianças. Viajei decidido a ser um importam. Adormecemos abraçados. desconhecido. Encontrei meu destino. Acordo só. Anoitece e observo as estrelas, as conversas na fogueira. Começam intensas, se apagam enquanto a vila Na porta, a mãe, num inglês tosco, me ordena: sossega. Um dia, já bastante tarde, quase adormecido percebo um vulto na penumbra do meu cubículo. Se aproxima por – Time to go. trás, abafa minha boca com as mãos. Uma lâmina fria corre o pescoço. São as unhas da filha do chefe, Coy Toledo. As pernas E estende a mão: se enroscam encaixando num ritmo compassado. Minha boca encontra a dela, as mãos se perdem na escuridão, as roupas – Five hundred dolars for bambam… no bambam ficam esquecidas num canto qualquer. Antes do dia nascer sai for free! sorrateira. – Bambam? Que é isso? Noite após noite, os encontros se repetem e a ansiedade substitui o medo. Durante o dia, sequer nos – Noting. Toda noite party, 500 dólar for bambam vemos. Aguardamos o escurecer mantendo a quietude. com menina Coy. Must pay 500. Há algo entre nós que não se sabe. Um amor desinteressado, talvez. Não conversamos, apenas formamos figuras Pago no ato. Fico liso. Arrumo minhas coisas e saio sem me despedir. geométricas com os nossos corpos até o amanhecer.
Ao longe, um estrangeiro. Aproxima-se e me pergunta pela vila dos cortadores de cabeça. Indico a ele o caminho. Ele comenta que veio estudar a cultura dos Kalinga; em troca, vai se oferecer para algum trabalho humilde. Desejo boa sorte. A trilha em direção à próxima vila é longa. Pequenas aves voam entre as árvores e me fazem companhia. Ainda sinto em meu corpo o cheiro da menina Coy.
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Meu lugar é na janelinha
do mundo, distante de minha Maravilha natal, essa coisa de semente transgênica. Hoje, o pão de milho em Maravilha é de trigo – mas transgênico. Uma vez fui numa japonesa médium na bairro do Sacomã que limpava teias de outras vidas. É meio chato esse lance de outras vidas, porque sou sempre eu abandonando alguém, e toda hora um encosto quer me arrumar o par perfeito. Porém, depois de fazer os “hoponopono” todos da sessão, a japonesa veio bem séria dizer que tinha recebido uma mensagem de minha mãe do além.
{Michi Provensi} Julho nem é o mês de festa, então que sorte a nossa sentar na escada da Praça das Armas aos pés da Virgem Asunta. Sei que ela estava ali, na soleira da matriz, rodeada de músicos das 24 danças, que seriam apresentadas num pout-pourri da festa da santa reformada, a visitar Cusco pela primeira vez. Era a minha segunda vez no Peru. Doze anos depois de uma viagem de um grupo de modelos que até hoje não sei por que chamavam de “jebas tour”. “Qsuntis!” Foi o anúncio solene, em quéchua, do locutor indígena da cidade de Calca, embaixo do sol do meiodia. – Vamos compartilhar!
compartilhar
esta
dança,
vamos
Toda interação em quéchua vem com “compartilhar” antes. Era o que minhas amigas e eu fomos buscar no Peru: aprender a tecnologia do agradecer e compartilhar. Algo tão simples e distante hoje, longe dos likes e copy-paste da sociedade digital. Virgem Asunta de Calca, comparsa folklórica, ia chegando outra dança, esta de mulheres fardadas de bege, coração bordado no peito com fotos, provavelmente de seus filhos e netos, e uma máscara de tela maquiada, com o mesmo rosto terracota de sobrancelha azul. Até um certo tempo, não sei bem quando, as mulheres não podiam participar das danças folclóricas no Peru; se sim, só vestidas de homem; se por acaso tivesse uma mulher dançando, este seria um homem vestido de mulher. Minhas amigas saíram para dançar uma noite em Cusco no Mama Africa. Não fiquei no baile, porque estava com calça de lã embaixo da calça jeans apertada – e é uma benção poder dançar de saia. No domingo, seguimos para Pisac, que sempre confundia com Pisco. Não a bebida, mas o vale chileno Pisco El Elqui, onde, um mês antes, havia me aventurado entre astrônomos anônimos e hippies na tentativa de achar o melhor lugar para ver o eclipse solar total durante meu aniversário. Tenho muita sorte. Toda vez que colo na viagem de alguém dá certo: meu lugar sempre é na janelinha. Se sorte é nascer com a bunda virada para a lua, a minha nasceu virada para um eclipse lunar numa quinta-feira. Sidarta nasceu num eclipse solar. Não é nada humilde me comparar a Buda, mas tenho atração por estes fenômenos que num instante nos levam da iluminação ao subsolo, ou vice-versa. Era minha primeira vez em Pisac e só pensava em milho e fazer compras. O milho é sagrado no Peru; tem até uma santinha que carrega duas espigas de milho como duas bazucas nas costas. A santa do milho no Brasil é a Monsanto. Ouvi pela primeira vez a palavra “transgênico” numa excursão da escola a um congresso na Argentina. Me pareceu o fim
Foi estrita.
Era para eu comer agrião e milho todo dia. Nunca explicou por que minha mãe, que nunca deu palpite na minha alimentação em vida, estaria me mandando comer usando as cores do Brasil. Será que eu precisava honrar minha terra? No mercado de Pisac, uma senhora me vendeu milho, daqueles de dentes bem grandes, com sal e molho de coentro – verde e amarelo de novo. Lembrei de minha mãe Pierina, feminino de Pedro, como San Pedro, o cacto sagrado. É mais do que humilde comparar minha mãe a um cacto, mas minha mãe também é sagrada. Na mesma noite, de volta a Cusco, fomos jantar com os guias da viagem num restaurante em San Blas, o Pachapapa. Angel, o tradutor de quéchua, estava triste. Tinha acabado de voltar da missa de sétimo dia de sua mãe. Naquela hora, percebi como tinha voado pra longe do meu luto. Uma semana antes estava em Maravilha no enterro do meu nonno, pai da Pierina. Aprendi muito da vida do nonno no velório. Sua mãe, uma índia, morreu aos 29 anos no parto do décimo primeiro filho – o nonno era o décimo. O que me faz pensar no fato de ter 34 anos e sequer um filho como um ato de resistência, em homenagem à minha bisa Angelina. A mãe da minha outra bisa, Albina, morreu aos 120 anos, e aos 100 adotou uma filha. Há um leque de possibilidades sempre aberto na minha árvore. Kike, nosso outro guia, é um grande músico, professor na Universidade de Lima, colecionador e pesquisador de música andina. Também é um grande abuelo. Durante a viagem na boleia do caminhão rumo à montanha Ausangate, ensinou para o filho de um dos locais, o pequeno Lionel Christiopher, uma música composta para sua neta, que dizia assim: “Mi abuelito se olvidó, se olvidó las colores. Rosa, amarelo, azul, elefante, para él muy importante”. Meu nonno nunca me fez canção, e também nunca o ouvi cantar. Era surdo, mas no último dia de vida voltou a ouvir tudo – sem precisar de aparelho. No penúltimo dia da viagem, fomos a Urubamba visitar Tito La Rosa. Grande flautista andino, curador de som, fez uma cerimônia linda de oráculo del sonido. Tito acabou de ter o terceiro filho. A segunda filha menina tem a mesma idade de sua neta, filha do Omar, também construtor de flautas. Tito colocou quatro altares distintos no sentido das quatro direções cardeais, pediu para que minhas amigas e eu circulássemos os altares até parar de frente ao que mais chamasse atenção de cada. Como era a mais nova, resolvi parar no que sobrasse. O pano mais simples, desbotado com dois pompons desengonçados nas pontas. Lembrei de um filme que assisti quando criança, em que o mocinho tem que descobrir, entre um monte de taças de vários tamanhos e materiais diferentes, qual seria o Santo Graal. O cara com ele vai lá e escolhe a taça mais chique, grande e de ouro. Não lembro direito, mas acho que ele morre meio derretido num ácido depois da escolha.
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SUBMARINO | ODISSEIAS Daí o mocinho pega a taça mais pobrinha, de madeira, em que Jesus teria bebido vinho na Última Ceia. Realmente não é nada humilde me comparar a Jesus, mas é que gosto de ver como as coisas simples fazendo sentido pra mim. – Vamos a partir do centro, porque no centro está este símbolo – disse Tito. – Em nuestra tradición nos chamamos de los Ojos de Dios. Te tocou um símbolo de criança, os olhos de Deus. Um dos símbolos que a minha filha mais gosta. – Papa, quiero mirar a los Ojos de Dios, quiero que coloques agüita. Era um símbolo em forma de 8 como duas pocinhas de água, um espelho; para Tito, os olhos do universo. Ao lado, como complementar, estava o simbolo do Apu, a montanha de milho. – Te tocou la pedra del abuelo – a pedra da montanha. Mira como da suas costas se desprendem duas mãos. Tiene um avô que te estas protegendo, sim, teu avô. Porque los abuelos nunca se van, son los unicos que no morrem, los avuelos. Levantou se apoiando na flauta del abuelo, e bateu-a nos quatro cantos do altar, como um cajado. Meus olhos ficaram como os de Deus: duas poças de água.
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fantas magorias Orgânico Três nomes próprios Cavalo preto Deus seja louvado A mordida
Mariana Slerca Roberto M. Socorro Brontops Baruq Rafael Zoehler Jennifer Queen
Arte Eduardo Kerges
Orgânico
não estão nem aí para o que perdem ao terceirizar essa etapa do relacionamento que se pode ter com uma fruta, vou para onde elas estavam. “Para quando?”, perguntei, como perguntamos às grávidas que tem hora marcada para cortar a barriga.
{Mariana Slarc} As lichias estão irresistíveis. Aquela casca rugosa como uma pele de dragão arrasta minha mente lá pra dentro da sua polpa, carnuda, suculenta, escorrendo doçura líquida. Sinto, além de muita saliva, arrepios. Aquela bolinha mágica fumegante mexe comigo e eu não consigo lutar contra. Não dá. Toda vez que elas chegam e ficam ali, se expondo, me testam. Dessa vez provaram fraca a minha carne. Quando entramos em dezembro e o Giovani traz as caixas enviadas da fazenda de Campinas e começa a arrumálas eu chego a me esconder para não verem como eu coro. Às vezes, quando não tem jeito, finjo logo que é calor. Minha sorte é que normalmente é verão e como sou uma dessas ruivas camaleoas a mudança abrupta de cor é mais naturalizada, vou do creme para o fogo em um instante. Hoje não resisti, peguei uma delas e levei comigo. Conferi meu bolso por debaixo do avental verde para verificar se estava limpo e na primeira deixa coloquei a lichia ali, no meu colo. Que besteira. Ela ficou roçando na minha perna, fazendo uma cosquinha louca. Parecia de propósito. “Não esquece de mim, Olívia”, ela diria, se pudesse. E nessa agonia, todos que vão chegando por aqui e pedem minha ajuda para escolher uma fruta estão sem saber me arrumando sérios problemas. É que é a última hora do meu expediente, só quero voltar para casa e satisfazer esse clima tenso entre nós.
Ela não deixa a minha mente em paz.
Consigo sentir, juro por Deus, sua carne translúcida latejando, minha língua sendo banhada pelo seu suco doce levemente ácido, brincando com sua carne e abrindo o caminho até seu caroço. Por que não vou lá dentro no depósito e acabo logo com isso? Porque minha intimidade não tem nada a ver com ninguém, se alguém me visse ia ser um pesadelo para uma tímida como eu. Uma vez a Carla me pegou comendo um gomo de tangerina – foi tão difícil eu voltar a falar com ela. Não quero que isso aconteça de novo. Só como em público quando todo mundo divide, daí é algo mais casual; menos compromisso, eu relaxo.
“Boa tarde, com que posso ajudar?”
Sorrio torcendo para que o senhor que entrou na Quitanda saiba escolher suas próprias frutas. Ninguém entende o quão difícil é ver, sentir, apalpar, escutar, sentir seu cheiro sem se apegar. E uma vez que se estabelece essa relação confesso que imaginar outro a comendo me faz um pouco mal. Pior ainda é imaginar seu caminho muitas vezes doloroso até seu destino como doce, sendo cortada e assada em alta temperatura. Fico aflita com essa falta de cuidado com seus tecidos. “Quero uma melancia”, ele disse pra mim, como se querer bastasse. Minha vontade é explicar a ele que escolher faz parte do processo, mas como sou paga pra isso e as pessoas
“É para agora mesmo”, disse, vindo em nossa direção. Claramente ele não está nem aí para a melancia. Não parece nem que é para ele. Só um produto, um simples e amorfo produto. Como se fosse um saco de Doritos. Nessas horas eu escolho o mais friamente possível para não ficar com ela na cabeça depois, sangrando, esfaqueada. As melancias têm se tornado muito complicadas porque me lembram a barriga da minha irmã. Ela carrega um fruto humano já quase maduro, e no momento se parece demais com elas, redonda e cheia de estrias. Tenho vontade de levar todas para casa para que minha irmã não se sinta tão incompreendida como tem se queixado. Mas, então, disse para ele que bastava ele bater como quem quer entrar e escolher uma que estivesse oca. Não vazia, como ele a via, e sim oca, com um som bonito. Daquele que nos toca como um bebê chutando lá de dentro, exagerei pensando na barriga da minha irmã. E me afastei. Depois foram goiabas, maracujás, carambolas, bananas. Me senti culpada ao ajudar a mulher que estava com um garotinho atrás de mangas. Corei lembrando do prazer da primeira vez em que chupei um caroço e acabei ficando toda melada, tinha a idade dele. Cada pessoa que entra é um alívio porque me distrai levemente da quase minha Lichia que continua ali, me esperando. Mas ao mesmo tempo uma pressa louca urge da altura do meu bolso e faz subir uma barreira em relação às outras frutas que me impede de exercer minha função na venda. Só tenho olhos para minha Lichia. Minha língua formiga, dormente. Meu corpo todo a serve. Até que alguém passa pela porta. “Oi.” Não quer minha ajuda, não quer nada de mim. Está cumprimentando todas as frutas, uma por uma, passando a mão cheia de unhas compridas e bem feitas, aquela unha que arranha bem gostoso. Eu sei que ela espera sentir algo. Sei reconhecer quem entra aberto por aqui. Ela contempla. E eu a contemplo. Pequena, tinha olhos puxados meio amendoados, a pele lisa e uma cor de boca rosa quase vermelha, como as mechas vibrantes em seu cabelo preto bem repicado. Ela passa por mim e me pergunta se tem nectarina. Demoro para responder, tinha esquecido enquanto mudava de cor. “Ah, elas chegam amanhã. O produtor não mandou o suficiente e elas acabaram hoje cedo”, lembrei, já vermelha. Ela anda um pouco mais e para nas lichias. Fica lá, em pé, as encarando. Parece saber que as nectarinas deveriam estar por ali. Quando tem lichia, tem nectarina também. É evidente para quem liga. É o mês delas. Reparei no seu vestido do mesmo tom das frutas. De repente ela vira e me olha. Parece que ela sabe que falta uma lichia. A Lichia que eu quero tanto provar. Assumo, pela maneira que seus olhos me devoram, quem era a nectarina que ela procurava. Fui levando bem devagarinho a mão por cima do meu bolso, só para checar minha sanidade.
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Ufa. Minha Lichia continuava ali.
SUBMARINO | FANTASMAGORIAS
Três nomes próprios
incomodavam. Para me atormentar, começaram a me passar mais trabalhos, aos quais não conseguia dar qualquer empenho. Em casa, as coisas estavam piores. A gravidez da minha mulher avançou, ela exigia cuidados que não podia dar e fazia perguntas que não tinha como responder. Como, em dias de chuva, eu chegava encharcado, se morava e trabalhava perto dos pontos do bonde? Por que desaparecia nos sábados e domingos à tarde? Que tanto trabalho era esse que me deixava tão ausente? Por que eu não demonstrava preocupação com o bebê? Desconfiava que tinha outra mulher.
{Roberto M. Socorro} Sempre amei os cemitérios. Eles têm a paz dos dias de chuva. Uma ou duas vezes por semana, saía da repartição cedo, pegava o bonde Tabuleiro da Baiana-Humaitá e saltava perto do São João Batista. Caminhava até o acesso principal e passeava pelas aleias, observava as campas, admirava os jazigos. Cumprimentava seus moradores como se fosse a minha cidade pequena, que visitava de tempos em tempos. Gostava daquelas pessoas, mais do que as de fora dos muros. As estimava muito mais do que os colegas de repartição, que só conversavam sobre futebol no café, mais do que o subchefe do setor que vivia gritando meu nome para me chamar do outro lado do andar, mais do que a minha mulher grávida que reclamava por eu trabalhar até tarde tantas vezes e nunca ser promovido. Ao passar por aqueles portões, ficava mais leve. Quando havia algum velório nas capelas da frente, entrava pelo portão lateral. O choro das pessoas me incomodava, fosse falso ou verdadeiro. Descobri, num desses passeios, um mausoléu bonito, em mármore branco, que não tinha a forma de uma capela como a maioria dos outros; mais parecia uma casa, como acredito que devam ser. Com muro baixo, tinha um pequeno portão, seguido de uma passagem ladeada por jardins que chegava na porta de ferro e vidro. Acima, a foto de uma jovem em uma moldura oval. Daquelas fotos que os fotógrafos ingleses eram mestres em tirar; a perfeição dos detalhes que só a imobilidade absoluta proporciona. Nem um movimento de respiração, nem um pelo eriçado. Ela pôde ficar horas imóvel para que fosse captado cada detalhe de sua beleza. Aprecio os retratos post mortem. Veio morar aqui em 12 de novembro de 1898, com 21 anos. Porém, mais que sua expressão graciosa, o que me chamou atenção foi seu nome: Eugênia Maria Catarina, três nomes próprios. As minhas visitas ao cemitério, que eram espaçadas, passaram a ser diárias. Ficava um bom tempo defronte à casa dela. Desde que a conheci, conto-lhe os meus dias iguais, falo das pilhas de papeis a averiguar na repartição, do mau-humor do subchefe, dos desejos por comidas estranhas da minha mulher. Ela nunca fala nada sobre sua vida, é muito reservada, mas ótima ouvinte. Uma vez, o zelador veio bisbilhotar. Me perguntou por que ficava sempre sentado ali. Disse-lhe que era amigo da família e ele estranhou a resposta pela minha idade. Tentei ser simpático, por às vezes depender dele para abrir o portão nos dias em que fico até muito tarde. Aproveitei e contratei-o para que sempre deixasse os jardins bem cuidados. No trabalho, usava meu tempo vasculhando os arquivos para encontrar o que podia sobre minha amiga. Meus colegas não entendiam o porquê de eu remexer naquelas pastas empoeiradas. Havia uma impaciência geral com minhas constantes saídas para outras repartições e eu dava a desculpa de que ajudava um amigo a conseguir informações para um inventário. Não acreditavam nem desacreditavam, só se
Mesmo com tudo isso atrapalhando, descobri que Eugênia Maria Catarina era filha única de um despachante aduaneiro, homem muito rico, durante bastante tempo estabelecido na Praça Mauá. Ela passou seus últimos meses em um sanatório em Campos do Jordão para se tratar de tuberculose. Após morrer, seus pais a trouxeram de volta para colocá-la aqui, próxima deles. Hoje, moram ao lado dela; a mãe chegou em 1905 e o pai em 1906. Trato-os com muito respeito. Sabem que somos amigos. O ápice das dificuldades aconteceu quando inventei uma viagem para consultar os registros do sanatório e investigar mais sobre ela. Na volta, descobri que minha mulher passou mal e quase teve um aborto. Ficou durante o tempo da minha ausência no hospital. Na repartição, mexeram os pauzinhos e conseguiram me afastar com uma transferência compulsória para Itaperuna, no norte do estado. Minha mulher chorou e me culpou. Meus colegas riram de mim. Não tive outro lugar para ir a não ser ao cemitério encontrá-la. Foi uma longa conversa. Falei que encontrei suas anotações médicas, que percebi sua saúde frágil, soube dos diagnósticos precoces, dos males súbitos, das tosses, das sucessivas visitas aos médicos, do diagnóstico terrível. Um sofrimento intenso me abateu, parecia que tinha recebido a notícia naquele instante. Contei-lhe que li as cartas de seus pais enquanto esteve internada, que entendia a saudade que expressavam, de como se sentiam sem ela. Era a mesma saudade que já começava a me afligir. Queria ter lido suas respostas, poderiam também me confortar. Confessei que não sabia se ia aguentar, que minha vontade era de colocar veneno no café da repartição e me livrar de todos. Mas entendi que ela não concordava com isso. Se eu detestava aquela gente, por que iria colocá-los juntos com a pessoa por quem tinha tanto apreço? Estava coberta de razão e, além de fazê-la sofrer, eu continuaria a vê-los. No dia da despedida, prometi que, se tivesse uma chance, iria visitá-la de novo. Foi o único momento em que chorei. O zelador passou e me estranhou mais que o normal. Disse-lhe que iria me ausentar por um tempo e paguei alguns meses adiantados por seus serviços. Continuei minha conversa com ela, contei que ela me ajudava a suportar todo aquele peso, desabafei que me sentia como seu irmão, mas deixei claro que não queria ofender seus pais. Me desculpei com eles. Falei que não queria partir de jeito nenhum, que adiei o quanto pude, que só esperaram até o bebê nascer para que eu providenciasse a viagem. Não havia mais como protelar a mudança e tinha resolvido a última pendência antes de ir vê-la. Havia passado no cartório para registrar minha filha: Eugênia Maria Catarina.
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Cavalo preto
Uma hora ou duas, no máximo, não arrancaria pedaço de ninguém. Um funcionário da administração confirmou que poderiam fechar a sala, era só avisar e o segurança faria isto. Luís já tinha ouvido falar em pessoas que foram assaltadas durante a noite do velório, então estaria tudo bem se fosse embora.
{Brontops Baruq} Luís ficou sabendo logo antes de entrar na classe para passar a prova. Respirou fundo, até a barriga estufar sob a camisa. Depois expirou de uma vez, quase com raiva. Ninguém notou, todos concentrados no exame. A sala silenciosa, lápis e borrachas e rangidos das carteiras. Separou um Trident e o mascou vagarosamente, tentando esticar ao máximo o sabor. Percebeu a cola de alguns alunos, mas preferiu ignorá-los, deixou como parte de uma comemoração discreta. Depois, enviou mensagem no grupo dos irmãos, explicou que estava dando um exame, seria impossível sair agora. Os irmãos Ugo e Gil reclamariam em outra circunstância, mas preferiram não rebater. Foram ao centro da cidade, cuidar da papelada da prefeitura, caixão, atestado, esse penduricalho de burocracias que os mortos exigem de nós. De modo que quando Luís chegasse, já estaria tudo pronto: o velho seria velado em um cemitério distante, daqueles em que os ossos brotam do chão na primeira chuva; apropriado a um sepultamento com um cortejo mínimo. Enquanto dirigia rumo ao local, ligou o rádio numa emissora de notícias. Em geral, preferia música, mas conversas eram melhores para abafar pensamentos. Atualidades: notícias políticas de sempre, os comentaristas destilando indignação, clamores por ética, justiça, vingança, essas réguas de medir humanidade. Dizem que o brasileiro só se interessava por futebol e agora, sem jogo/jogador que preste, decidiram torcer pela política. Luís passara da idade de crer e torcer por algo. Estudara muito e olhe onde viera parar; era só mais um. Pensar demais não resolve, política demais atrapalha, existem coisas que só a porrada faz andar. Mas ele era só um professorzinho metido a intelectual, não um sujeito de ação.
Não era seu pai.
Fazia anos que os irmãos se falavam apenas por whatsapp. No encontro surgiu alguma emoção prontamente abafada; afinal, eram homens. Perguntaram sobre Luana, Luís resumiu dizendo que estavam dando um tempo, mas não era nada definitivo. Gil explicou que não ficaria para o velório. Amanhã, teria que levar a filha para o colégio (Estava no último ano) e tinha que acordar cedo. Ugo apenas pediu para lhe mandarem sua parte, caso houvesse algo mais para pagar. Ele não pretendia participar do enterro, exceto se fosse para certificar que o velho não ia mesmo voltar. Os irmãos riram, não precisava explicar mais nada: todos se lembravam do que o pai havia feito com Leonor, a ex-esposa de Ugo, naquele natal antigo. Havia até fotos. E então Luís pensou em sua desculpa para escapar. Poderia dizer que o cemitério ficava numa quebrada, bairro perigoso, controlado pelo PCC, CV, a Máfia russa, e mais o cartel de Sinaloa. Tudo isso era verdade e ninguém o responsabilizaria. Porém... Antes de falar qualquer coisa, contorceu os lábios e cuspiu o azedume da boca. Ficaria pela mãe. Esse filho da puta fez ela sofrer, mas... em algum momento, ela viu algo nele. Ficarei por ela.
Porém, foi ficando. Circulou ao redor do ataúde, com desdém atento pelo corpo sob o véu. Pensou em pedir para fechar logo, para não ter que ver aquele sono tranquilo e profundo. Não seria bom se um pouco do inferno ou do paraíso se refletisse na cara dos defuntos? Saberíamos se seguiram o caminho certo; se o praticado na vida rendeu alguma consequência divina. Haveria então um prazer secreto: saber que o velho estaria fritando, acossado pelo capeta. Outras salas eram concorridas, mas o velório de seu pai continuava um fracasso de audiência. Por exemplo, havia um burburinho intenso na última sala que foi diminuindo com o passar da noite. Uma família grande, boa parte das pessoas ali era jovem. Alguém de lá veio pedir uma cadeira, “É para minha vó sentar”, justificou o guri. Luís imaginou que o defunto de lá era um rapaz e, a partir daí, foi costurando obviedades de um bairro pobre para concluir que foi um acidente ou caso de polícia. Descobriu depois, era doença. Acabou entreouvindo de umas pessoas que se afastaram para fumar um cigarro. Não que estivesse realmente interessado, era mais algo para passar o tempo. O professor ficou fabulando sobre aquela gente, de longe, como uma criança a estudar rotas de formigas. Um vira-lata se aproximou. Luís se levantou para encostar a porta de vidro, o cachorro do lado de fora observou o interior por algum tempo, antes de sumir no escuro do cemitério. O filho voltou e se acomodou numa das cadeiras perfiladas junto a parede. Abriu a pasta de couro surrado onde trouxe as provas da manhã. Podia ficar ciscando no celular alguma conversa, talvez Luana tivesse descoberto, talvez ela estivesse tentando falar-lhe. Mas não estava a fim de esclarecer seu estado de espírito. Era seu pai, afinal de contas, quantas pessoas iriam entender? Preferiu adiantar a correção das provas, como forma de passar o tempo. Um dos primeiros exames era de Teodoro, o garoto se achava um Tolstói, essa molecada lê demais, depois fica achando que entende algo da vida. O professor não devia reclamar, o problema hoje em dia era o oposto, um monte de gente que não sabe se o verbo é ouvir ou haver, mas ele estava de mau humor, o mundo só fica pior e pior, então foda-se, pau no cu do planeta terra. Luís deve ter dormido porque acordou quando algo caiu de suas mãos. Xingou e foi buscar a caneta e enquanto se esticava para buscá-la, viu do lado de fora da porta de vidro as patas de um cavalo. Um tecido grosso e negro caía sobre o seu corpo, formando uma espécie de cortina. Na cabeça havia algo como uma balaclava de motoboy. Estava ornamentado com bardas metálicas e tecidos escuros, e raspava o piso com o casco, como se quisesse adiantar uma cova. Parecia ter fugido de algum torneio medieval, mas não sabia haver coisa parecida nos extremos da Zona Sul. Talvez fossem fãs de Game of Thrones, mas era quarta feira, meio da noite. Seria algum carroceiro excêntrico? Apesar dessa fantasia esconder boa parte do equino, por baixo desses panos percebiase um ser minguado, famélico. Como que para reforçar nesse sentido, o cavalo largou torrões de bosta pelo corredor e, em seguida, trotou para fora de sua visão. Luís se levantou e foi verificar no corredor, conferir se não seria uma alucinação. O burburinho havia acabado, só no velório daquele garoto parecia ainda haver alguém. Estavam
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SUBMARINO | FANTASMAGORIAS concentrados em suas conversas, ninguém agia diferente, como se o bicho tivesse passado por ali. Quando voltou a seu pai, havia um sujeito fantasiado de cavaleiro negro orando perante o velho. Usava um elmo de metal opaco, uma capa puída e esgarçada quase como um cobertor de mendigo. Exalava um cheiro rústico de fumaça e fogueira como se tivesse atravessado uma floresta incendiada. Em suas mãos, entremeado nos dedos, bolinhas de um terço perolado, um parecido com o de sua mãe. A tiracolo, havia uma bolsa surrada de couro, que depois entendeu que era um cantil. Seu cinto pendia para o lado da espada embainhada, arrastando-se no chão. O homem aparentava ser quase tão idoso como seu pai, mas estava em pior estado, considerandose tudo: cicatrizes, queimaduras de sol, uma barba branca descuidada, um olho cego. Luís tentou interrogar o homem, mas ele o calou com um gesto, estava no fim da prece. Quando terminou, foi sucinto: conheci seu pai e sua mãe de outros tempos, outras terras. Vim prestar-lhe as últimas homenagens. O professor quis fazer graça, não sabia que o velho gostava de carnaval. O cavaleiro mirou-lhe pelo olho único: ele tinha nome, era Godofredo de Bulhões, matador de gigantes e de índios, empalador de ciclopes e de sarracenos, inquisidor de bruxas e defensor de donzelas, santo assassino de falsos profetas, salvou a cruz, herói da humanidade. Luís fez uma careta de descrença e distanciou-se daquele outro velho. Encostada numa das cadeiras, havia uma espada envolta em muitos e muitos panos, que pelos desenhos e heráldicas eram bandeiras e flâmulas de terras incógnitas. O cavaleiro ignorou o filho e a desenrolou inteiramente para depositar entre as mãos cruzadas do falecido. Explicou que a espada pertencia a seu pai e que ele havia pedido que cuidasse dela. Em seguida, entregou-lhe três moedas de prata. Por três vezes, teu pai me salvou. Por três vezes, virei auxiliar-te, morda uma das moedas e atenderei teu chamado. Em seguida, despediu-se com uma mesura quase oriental e saiu pela porta de vidro. Luís recolheu as provas que estavam caídas sob as cadeiras no chão. Reencontrou sua bic vermelha. Tentava assimilar as palavras daquele louco, pois só um louco seria amigo de seu pai a ponto de ir se despedir. Não queria dever favor nenhum ao monstro que havia sido seu pai, por isso considerou fortemente deixar as moedas dentro do caixão, junto com espada e qualquer outra coisa que possa ter acontecido com ele. Isso provavelmente seria o mais lógico e civilizado: enterrar o passado e seus erros. Estudou as moedas em sua mão. Eram irregulares e em partes delas havia ranhuras e cortes. De um lado, as moedas tinham inscrições estranhas que lembravam pontos de candomblé. Disso ele pouco entendia, não era sua especialidade. Do outro da moeda, as formas estavam desgastadas, difíceis de reconhecer: poderia uma lua ou uma foice, um machado ou um martelo. A última delas, em melhor estado, apresentava um coração ciclope, o símbolo de copas com um olho aberto, como se corações pudessem inspirar sabedoria. Lembrou das notícias da rádio e das palavras do velho cavaleiro medieval, sobre um santo assassino de falsos profetas. Quem recusaria a chance de desatar certos nós por uma espada? O professor decidiu que, no final das contas, isso poderia ter uso para os dias de hoje. Chamou um funcionário do cemitério para remover as bostas do cavalo e trancar as portas do velório. Desligou o celular, não queria conversar agora com Luana. Precisava ir para casa, dormir, sonhar, sair do papel, pirar e botar fogo no mundo. Para bem ou para mal, nem ele mesmo saberia dizer.
Deus seja louvado {Rafael Zoehler} Quatro da manhã e o peixe não parava de importunar a dedicada Dalva no metrô. Sentada em uma das cadeiras de plástico, polida pelos corpos dos passageiros cansados ao longo dos anos, a obesa olhava para o bicho deitado no chão. Era uma sardinha. Não, uma truta. Difícil. Tinha mais cara de salmão. Ah, era um peixe. Um peixe tão peixe quanto atum, bacalhau, badejo, bagre ou baleia. Para Dalva, o peixe dizia “pega”, enquanto Jesus, em algum lugar do universo, sentado à direita do Pai, dizia “não”. O cabelo em coque e a saia abaixo do joelho, muito abaixo, a impediam de se mover. Não são os que ouvem a Lei que são justos aos olhos de Deus, mas aqueles que obedecem à Lei. E Dalva obedecia. Como obedecia. Não iria jogar fora sua pulseirinha área VIP no paraíso por causa de um roubinho besta. Mas era roubo mesmo? Claro que sim. Claro que não. O rapaz, a poucos metros de Dalva, futricava o celular em pé como todo jovem de hoje em dia. Mexia no cabelo desgrenhado com a mão e, de vez em quando, tentava desgrudar a cueca da virilha puxando a calça embalada à vácuo. Um roqueirinho da Augusta. Futuro inquilino do lago de fogo e enxofre. Se passasse mais tempo no culto ouvindo a palavra e menos tempo com travestis, drogados e jogadores de RPG, teria um lugar no céu. Dalva viu o peixe cair do bolso dele quando o rapaz tirou o celular do jeans. O danado dançou um balé pelo ar, nadando no vácuo, até pousar com leveza na frente dela. Era azul com manchas brancas, tinha um queixo prolongado e boca de quem achou o suco de limão azedo demais. Dalva não queria olhar. Afasta de mim esse mal, Senhor. Mas o peixe provocava, e provocava bem.
– Vai, Dalvinha, me leva pra nadar na tua carteira.
O peixe da nota cem reais sorria para a gorda.
– Não posso.
– Pode sim.
– Você não é meu.
– Eu tô jogado aqui, não sou de ninguém.
– Você é daquele moço ali.
– Ele não cuida de mim. Não me merece.
Em todos seus anos de serviço, Dalva nunca havia roubado. A tentação surgiu diversas vezes, e ela resistiu em todas. Dona Regina espalhava moedas de um real em cantos escondidos da casa apenas para conferir se elas estariam lá no fim do dia. E sempre estavam. Soledad deixava as joias jogadas sobre o criado mudo. Ouro, brilhantes, prata, isvarovisquis ou seja lá como se escreve. Cláudia, a mais madame de todas, com casa de novela e motorista particular de chapeuzinho, contava o número de talheres de prata sempre que chegava o
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dia de Dalva limpar a casa. A diarista nunca tocou em nada que não fossem os panos, as vassouras e os produtos de limpeza. A confiança das patroas era mais importante, assim como a de Deus. No máximo, no máximo, em raríssimas vezes, havia usado perfumes, cremes e shampoos caros durante a limpeza dos banheiros. Não era roubar, longe disso. Roubar é quando você pega algo e leva embora. Aquilo era usar. Bem diferente.
– Eu posso ajudar, faço faculdade de enfermagem.
– Não precisa.
– Olha lá hein.
– Tá tudo bem. Eu tô bem.
– Sabe qual o meu nome, Dalva?
– Não quero saber.
O rapaz reconheceu a pequena cruz no pescoço de Dalva. Uma cruz sem Jesus pregado, o padrão preferido dos evangélicos.
– Meu nome é conta de luz paga, Dalva.
– Paga com dinheiro roubado!
– É churrasco no domingo, Dalva.
– Deus vai pesar a mão sobre você.
O rapaz se virou, voltando para o lugar onde estava, e mergulhou na tela do celular mais uma vez. Dalva continuou esticada no banco, o peixe ainda sob o pé direito. Um cristão. Como ele poderia ser cristão? Não eram roupas de crente, nem cabelo de crente, nem horário de crente estar na rua. Dalva estava, mas a trabalho. Trabalho pode. Ele devia ser adventista. Dalva odiava os adventistas. Também odiava os pentecostais, batistas, evangelho quadrangular, católicos, espíritas, Deus é amor, renascer e comunistas. Apesar de tudo, ainda era roubo.
– Churrasco com picanha e maminha, Dalva. Churrasco de verdade, não aquele monte de linguiça assada que você sempre faz.
– Sai de mim, Satanás.
– Dalva, eu não sou o capeta. Sou uma oportunidade.
Metros e metros abaixo da terra, Dalva sentiu vento no rosto. Ainda não era o trem, apenas uma lufada qualquer percorrendo o túnel, mas foi o suficiente para fazer o peixe nadar no ar mais uma vez. A nota flutuou ondulante e caiu a mais ou menos um metro da senhora. Mesmo obesa e de tetas grandes e flácidas, resultado dos vários filhos e excessos – perdão, Senhor –, calculou que uma esticada de joelho seria o suficiente para fisgar o peixe com seu pé. Porém enquanto o rapaz estivesse por perto, o peixe não estaria perdido. Se não estava perdido, era roubo. Se era roubo, lago de fogo e enxofre para Dalva. – Dalva, querida, daqui a pouco o trem chega com muito vento. Eu vou voar por aí, pessoas vão sair do vagão, será a nossa despedida. Alguém menos digno vai me pegar e me usar pra sodomia. Sabe quanto custa um cu, Dalva? Um singelo cuzinho? Sem responder, Dalva esticou o joelho. Entre o roqueirinho da Augusta, um sodomita qualquer e ela, Dalva era a melhor opção. A mais próxima do céu. O peixe, porém, estava mais longe do que o esperado. A diarista precisou escorregar a grande massa da sua bunda no banco para conseguir alcançar o pedaço de papel com a garoupa estampada. Quando seu pé chegou até lá, pisou na nota.
– Senhora, tudo bem?
– Ahm? Oi? Ah, tudo, tudo. Claro.
Respondeu sem jeito ainda esticada no banco do metrô.
– Vi você se esticando, achei que tava passando mal.
– Ah isso. Foi só uma câimbra, já passou.
– Passou mesmo? Tá com dor?
– Não, menino, não.
– Certeza?
– Certeza.
– Fica na paz do Senhor, irmã.
– Consegue me ouvir, Dalva?
– Fica quieto, servo de Baal.
– Servo de Baal, Dalva? Assim você me ofende.
– Você semeia a discórdia.
– Discórdia? Não, não, Dalva. Semeio churrasco.
– Quieto.
– Churrasco com picanha.
– Afasta de mim esse mal, Senhor.
– Picanha pingando gordura, Dalva. Daquela que você morde e escorre banha e sangue pelo canto da boca até a lambujança quente pingar na camisa, bem em cima do bico da sua teta. Os olhos de Dalva, que permanecia esticada com a perna pra frente, se reviraram para dentro do crânio. Não pelo prazer sexual de sentir algo quente e molhado na teta, isso era pecado. Crescei e multiplicai-vos e só. Era a picanha. Dalva gostava de picanha. Tão caro hoje em dia, e tão gostoso. Mas era um irmão batizado que ela estava roubando. Pecado em dobro. Dalva à pururuca no lago de fogo do inferno. Mas ele era de outra igreja, uma mais apegada à libertinagem. Mas vivia em Cristo. Mas convivia com travestis. Mas ofereceu ajuda ao próximo. Mas não se vestia de forma digna para frequentar a casa do Pai. Mas Jesus perdoou até um bandido na cruz. Mas pode. Mas não pode. Era tudo um plano do Senhor. Peixe era um bicho bíblico, e aquele não foi parar ali por acaso. A própria cédula dizia “Deus seja louvado”.
– Isso é um sorriso, Dalva?
– Quieto.
– Claro, claro.
Por mais estranho que parecesse, na pequena borda de papel que fugia por debaixo do sapato, Dalva viu a boca do peixe sorrir. | 40 |
SUBMARINO | FANTASMAGORIAS A luz do trem se aproximou pelo túnel. O rapaz virou a cabeça para a mesma direção e colocou o celular no bolso. Algo faltava. A mão foi até o bolso de trás, apalpou o bolso da frente, conferiu o bolso da camisa xadrez. Girou em círculos sem sair do lugar, procurando algo no chão. Dalva se endireitou, puxando o pé e o peixe para perto de si. O rapaz veio.
– A senhora viu uma nota de cem no chão?
– Oi?
Disfarçou.
– É, uma nota de cem reais.
– Cem reais, moço?
– É, cem reais. Deve ter caído do meu bolso.
{Jennifer Queen}
O trem saiu do túnel, fazendo o vento soprar forte em toda a estação. O rapaz andou até a diarista. Roubar ou não roubar? Deus tá vendo, Dalva.
– A senhora não viu, não?
O rapaz levou a mão até a cabeça.
Dalva segurou o silêncio. Deus tá vendo tudo.
– Não viu mesmo?
O trem passou por eles com os freios gritando. Janelas e mais janelas passando como borrões. Depois mais devagar, mais devagar, mais devagar. Parou. As portas se abriram com um aviso sonoro. O rapaz continuava estático na frente da diarista. Roubar ou não? Céu ou inferno? Presente ou teste? Picanha ou maminha? Deus tá vendo, Dalva. O que Ele diria agora? – Vi alguma coisa no chão mais pra lá de onde você tava.
Apontou Dalva.
– Deus te abençoe!
O rapaz correu atrás da pista.
A mordida
Dalva pegou a nota debaixo do sapato e entrou no vagão. Deus não diria nada, fez o homem à sua imagem e semelhança.
Era alto, tão alto que, três ou quatro mesas à minha frente, podia vê-lo encurvado sobre a taça de vinho. Jogava o cabelo para trás com a mão, e olhava para mim — só podia ser para mim. Ficamos desse jeito, um olhando o outro, aí ele riu. Com os dentes. Tortos na arcada superior, formavam uma mordida bem característica, quase uma assinatura. Lembrei que a gente tinha se conhecido uns dez anos antes, ali perto, talvez do outro lado do rio. Na época, ele não usava barba, os cabelos eram curtos. Não parecia ter envelhecido, mas virado outro homem. Um homem com os dentes de outro. Me chamou com a mão, impaciente, mexeu no cabelo, lambeu a boca, a língua enorme para matar a sede. Passei pelas mesas com desajeito e parei em frente a ele. Nem se levantou. Me olhou de cima a baixo e sorriu, satisfeito. Me inclinei, beijando o ar em volta do seu rosto. Ele fechou as unhas no meu queixo e me beijou, com a barba e os dentes. Sentei devagar, mão no colo, o bico do seio arranhando na blusa. Gustav acenou para o garçom, repetindo o nome do vinho na mesa, rótulo bio bem grande. Lambi a boca, seca de repente e, com vergonha de repetir o seu gesto, baixei a cabeça. Vi os sapatos — pretos, de couro, uma fivela brilhante no meio. Ele começou. Algo banal.
— Como você está? Quanto tempo.
Disse que estava de férias, igual da última vez. Ele lembrava? Claro, respondeu — eu desviei dos dentes para os sapatos, para substituir uma imagem com a outra. O garçom trouxe a nova garrafa e uma taça — daquelas sujas na borda. Ia servir mas, interrompendo-o com um gesto, Gustav encheu a minha taça, empurrando para mim. Eu poderia ter chamado o garçom, pedido uma taça limpa. Mas agora estava cheia e ele empurrava para mim. Serviu outra, só até a metade — talvez já tivesse bebido demais. Bebemos em competição, sem tirar os olhos um do outro. Fazia calor. Em meia hora, foi-se toda a garrafa. O café — daqueles barulhentos, ainda mais no verão — estava cheio e, ao lado, um grupo de senhores jogava pôquer entre goles de absinto. Ainda assim, dava para ouvir o barulho que ele fazia ao engolir. Se pudesse fechar os olhos, se fechar os olhos não significasse perder — poderia trazê-lo de volta, como era antes, há dez anos. — Como você mudou — eu disse. Mão nos cabelos, respondeu:
— Todo mundo pode mudar de opinião.
Ri. Um riso nervoso. A citação era minha. Ou melhor, como todas as citações, tinha ouvido antes em outro lugar, e repetido para ele, que agora a tornava sua. Talvez todas as conversas sejam declinações de um diálogo original e a linguagem não passe de um texto de segunda mão. Antes, eu | 41 |
o achava idiota, mais até do que os outros homens bonitos. Tem problema de cognição, dizia, me achando superior. Às vezes desconfiava que, debaixo da roupa, nem fosse homem. De todos, era o único que nunca tinha manifestado qualquer desejo por mim — como se não tivesse desejo. — Foi você quem me disse isso primeiro — ele disse, sério, percebendo minha desatenção.
— Eu sei — respondi.
Chamou o garçom de novo. Abriu os primeiros botões da camisa. Suava no pescoço, nos ombros, no peito. Um tom rosado, quase vermelho, cobria a pele. É o calor, pensei. Talvez não. Uma mulher. Ou homem. Alguém que tivesse tentado devorá-lo — não seria o primeiro. Ou a primeira. Mesmo eu, tantos anos antes, tinha tentado — sem conseguir. O garçom trouxe a comida e o vinho, Gustav encheu as duas taças. Deslizei o dedo no copo. Voltamos a beber. Com a mão, pegou uma costela do prato. Os dentes, por sua disposição, guardavam traços de carne e sengue. Ele sorria para mim, exibindo-os. Com um aceno de cabeça e língua, me convidou a comer. Eu não gostava mais de carne. Antes, era ele quem rejeitava tudo que pudesse sugerir o corpo: não bebia vinho tinto, não comia carne, nem saía de casa no verão. Me cumprimentava, rosto no ar, eu, de repente imaterial. Era ele quem não tinha corpo, nem suava nas longas tardes sob o sol.
Assumia distância como se não suportasse o nojo.
Só uma vez foi diferente. Me esperava no corredor — era um corredor longo e escuro. Noite. Cabeça baixa, lia a contracapa de um livro — gostava de artes, como algumas pessoas gostam de foie gras. Era alto como a estante — não, como um livro. O único homem do mundo alto como um livro. Me aproximei e o abracei de frente, sentindo a surpresa no seu estômago. Ele não me empurrou, não assim. Esperou, um instante infinito — eu sentia seu coração apertado contra o meu peito, seu pau, grande, duro na calça. Contra o meu vestido. Era homem, enfim. Segurou meus braços e me afastou, os pelos em choque contra os meus. Depois, não nos vimos mais. Nem no dia nem nos meses seguintes. E, aos poucos, fui esquecendo-o. Se alguém perguntava, respondia que ele não gostava de mulheres e por isso tampouco gostava de mim. Comi meia costela e deixei no prato. Ele me olhou, lambendo a boca mais uma vez e eu não sabia se tinha fome de mim ou da costela que tinha deixado no prato. Vamos, ele disse. Concordei com a cabeça. Bebemos o último gole do vinho, pagamos a conta. Ele se levantou, foi andando à minha frente. Andamos um pouco assim. Depois me deu o braço — o choque era o mesmo de antes, mas ele não parecia senti-lo, como se tivesse se tornado imune à carne. Assobiava uma música e, ao passar em frente às galerias, falava de artistas, anedotas que no minuto seguinte eu já não lembrava mais. Chegamos a uma porta. De fora, não dava para dizer muita coisa. Podia ser um apartamento enorme, de dois ou mais andares, ou um studio como tantos outros no bairro, um dos mais caros da cidade. Ele abriu a porta e me convidou a entrar — subimos uma escada curta, depois um elevador — restaurado. Perguntei o andar. Todos, ele respondeu. Eu ri. Enfim o último, terraço. Depois de abrir a porta, parou na soleira um instante, passando as mãos na minha cabeça, como se quisesse alisar os meus cabelos. Eu sorri e esperei. Ele parou com dois dedos de cada lado da minha única, e eu pude
contar os meus próprios batimentos. Entramos. Ainda não era noite, esperava ser invadida pela luz de verão, mas as janelas estavam fechadas. Predominavam cores escuras, vinho, preto, marrom, verde musgo. Meus olhos do dia levaram um tempo a se acostumar ao breu. Depois, a primeira coisa que notei foram os quadros, as esculturas. Sem tempo ou idade. Lembravam vagamente algo que eu tinha visto antes em outro lugar. Uma casa, um museu. Talvez, todas as obras se pareçam e juntas contem uma única história. As esculturas emulavam o corpo feminino jovem — nenhum homem, para minha surpresa — nenhum velho. Eu sempre tinha achado que ele gostasse de homens, e gostar de homens era o motivo de me rejeitar. A pequena mulher sobre as cartas, cabelos curtos e corpo verde, me lembrava minha própria mortalidade. O corpo ia até as coxas — era pesado e compacto na mão, feito de uma pedra com defeitos.
— Você gosta? Pode ficar.
O rosto estava contorcido, como se esculpida no instante do parto ou da morte. Logo, eu também não terei mais esse corpo. Logo, serei meu instante imortalizado. Eu o segui até um quarto grande e minimalista. Uma cama — imagino que dormiríamos cinco ali – e uma mesa de cabeceira ao lado. Um livro, uma vela, longa e fraca. Ele andou até a janela — a única que estava aberta — e foi fechando-a até deixar uma só fresta. Eram, ainda, duas fontes de luz. A vela e a rua. Estava nu e assim, de longe, de costas, era pouco mais do que um estranho. Virou-se para mim, de perfil. Os dentes pareciam mais tortos, e eu conseguia sentir a sua saliva. O corpo era jovem como o de suas esculturas. Não tinha envelhecido um dia desde a última vez, apenas mudado de aparência, como devia fazer a cada dez anos, ou cem. Acenou com a cabeça e trouxe, da mesa de cabeceira, uma taça de vinho tinto. Lambeu a boca e eu, obediente, tirei o vestido pela cabeça. Olhando para ele, tive a sensação de já ter visto aquilo em algum lugar. Uma casa, um museu, um cinema em preto e branco contra a tela das férias de verão. Senti a minha nuca pulsar uma última vez contra os seus dentes e, antes de fechar os olhos, guardei na memória o seu corpo.
SUBMARINO / #02 Edição Ronaldo Bressane Projeto gráfico Eduardo Kerges Ilustrações Eva Uviedo, Eduardo Kerges, Mari Casalecchi [capa] e Zé Maia Realização La Tosca
Novembro de 2019 Tiragem de 300 unidades Textos compostos com as fontes Liquido Fluid [Alessandro Commoti] e Adobe Garamond Pro [Claude Garamond e Robert Granjon / Adobe]
A marujada Alex Xavier, paulistano, 44, jornalista há duas décadas, refugiouse na ficção. Lançou o livro de contos O Teatro da Rotina (Patuá), participou das coletâneas Não Pretendia Criar Discórdia (Giostri), Eros Ex Machina (Alink) e Era de Aquária (Oito e Meio) e produziu uma série de zines com o coletivo Discórdia. Angélica de Barros nasceu em SP no carnaval de 1967, junto com a música “Máscara negra”. Trabalhou com artes gráficas e hoje escreve histórias de terror. Só que os contos traíram a autora e ficaram engraçadinhos, o que a deixa muito irritada. Esqueceu de ter filhos. Não tem para quem deixar seu legado. Publicou a novela Sete Dias de Confinamento (Amazon). Aruane Garzedin, 59, baiana de Salvador, é arquiteta por formação, artista visual por paixão antiga, com trabalhos em pintura, instalação e arte urbana. E descobriu recentemente que ama escrever. Brontops Baruq, 46, paulista, é boi no horóscopo chinês e contista. Participou de várias antologias de contos e publicações pela internet. Seu único livro é Grito do Sol sobre a Cabeça (Terracota). Camila Mag, 37, é mestra em economia e já dedicou tantas horas a equações em letras gregas quanto a prosas no alfabeto romano. Contrariando o senso comum de que todo carioca é extrovertido, prefere observar. Acumula carimbos no passaporte de lugares onde viveu realidades diversas, e algumas vezes cancelou sua passagem de volta – até se dar conta de que a ficção é a opção mais barata de fuga. Chloé Pinheiro é jornalista, tem 29 anos e nasceu com o cordão umbilical enrolado no pescoço, num hospital sem luz em Santos. Queria ser uma escritora soturna e rebelde, mas é considerada um golden retriever humano. É coautora da biografia independente Eu nunca me esqueci (Amazon), sobre o gráfico José David Dib, preso e torturado na ditadura militar. Cristina Villarosa nasceu e vive em São Paulo. Idade: muuuita, melhor deixar pra lá. Foi administradora de empresas. Iniciou-se nas letras em maio de 2019, em um laboratório de escrita criativa, e pegou gosto por escrever textos leves, despretensiosos.
Mariana Slerca, 21, nasceu em Ingolstadt, mesma cidade que a criatura de Frankenstein. A mistura genética de um carioca italiano com uma alagoana arretada deu seus primeiros passos por lá e logo foi levada para São Paulo, onde hoje cursa Ciências Sociais. Os caracóis do seu cabelo não são bagunçados à toa, mas ela tem se desembaraçado pelas palavras. Martim de Almeida Sampaio, 60, paulistano, já viveu em vários lugares do mundo, alguns hoje extintos. É advogado com forte atuação na área de direitos humanos e direito internacional. Diretoradjunto da OAB/SP, é um dos diretores da Câmara Brasileira do Livro (CBL). Michi Provensi, 34, top model catarinense de Maravilha, é autora do livro Preciso Rodar o Mundo, Aventuras Surreais de Uma Modelo Real (Da Boa Prosa). Frequentadora assídua de oficinas de escrita mas tem preguiça de escrever, cuida de um gato de direita, dois de esquerda e uma cadela street border lata de centro. Devota de São Longuinho, já foi mais corinthiana. Como o porto do Submarino fica em sua casa, é ela quem quebra uma champagne no nosso casco em toda partida. Rafael Zoehler, 34, é engenheiro, publicitário, gaúcho, amazonense e tem 1300 horas de jogo em Playerunknown’s Battlegrounds. Sua melhor colocação foi 21o da América do Sul em Squad FPP e 40º em Duo TPP. Tentaria ser jogador de tênis profissional se tivesse 8 anos de idade hoje. Gosta de escrever coisas engraçadas sobre animais, sexo e abandono. Roberto Miranda Socorro tem 54 anos, nasceu no Rio de Janeiro, se naturalizou baiano e vive em São Paulo. Trabalha com tecnologia da informação, ou seja, azeitando a engrenagem das ficções. Apaixonado por livros, gatos, pelo Bahia e pelo Vasco. Leitor ávido e escritor ocasional. Um chato. Samantha Canovas, 29, brasiliense, é artista visual, bordadeira, educadora e escritora. Mestra em poéticas visuais pela USP e bacharela em Artes plásticas pela UnB, vive e trabalha em São Paulo.
Dani Rosolen, 31, nasceu em SP. Jornalista, integra os coletivos literários Discórdia e Kriptokaipora. Lançou o livro de poemas sobre transtornos alimentares Incabível (Patuá) e participou das coletâneas Não Pretendia Criar Discórdia (Giostri), Eros Ex Machina (Alink) e Era de Aquária (Oito e Meio).
Valéria Midena, 53, arquiteta, atuou por mais de vinte e cinco anos nas áreas de design gráfico e branding. Apaixonada por literatura, fez diversos cursos de escrita criativa. É autora e editora do site SobreTodasAsCoisas e colunista no portal SãoPauloSão. Terá seus primeiros contos publicados no livro As - Coletânea de Escritoras, a ser lançado pela Calamares no finzinho de 2019.
Eva Lazar, 60, é economista, publicitária e passeia pela escrita. Publicou contos em 336 horas e Bestiário, livros do Coletivo Literário de Noemi Jaffe. Importada da Hungria no primeiro ano de vida, a viajante contumaz deriva pelos mundos interior e exterior – e acredita que é dona do próprio nariz.
Wagner Machado nasceu em Porto Alegre em 1980 e vive em São Paulo desde 2013. Ainda torce pro Inter e toma chimarrão, mas já aprendeu a deixar livre o lado esquerdo da escada rolante. Toda noite dorme abraçado com a literatura, mas toda manhã é despertado pelo jornalismo. Uma cor: vermelha.
Ian Uviedo, 21, paulistano, é escritor, autor de Éter – Novela de Narcolepsia (Editora de Los Bugres). Desde a infância participa da La Tosca, pela qual publicou os zines Recusas, Mal Contato (2019), Os Gatos, Mapa de la Inseguridad (2018). Integra a trupe Trovadores do Miocárdio e a banda Os Mortos.
O capitão
Jan Bittencourt, paulista safra 76, é meio publicitária, meio escritora, meio mãe Waldorf e meio empreendedora serial. De humanas, acha que 4 metades dá 1. Co-autora de Contos Mínimos (Guarda-Chuva) e do romance Versão Beta (Terracota), publica prosas no www.caiuacaneta.blogspot.com.br. Jennifer Queen, 37, é baiana, escritora, tradutora, jornalista, apaixonada por cinema e livros. Escreve em todas as línguas que conhece e acredita que a literatura é, antes de tudo, estrangeira. Cinco anos depois de voltar da França, resolveu que a melhor bebida do mundo é vinho, e bebe rosé quase todo dia.
Ronaldo Bressane,49, paulistano, é professor de escrita criativa desde 2007. Ele mesmo participou durante sete anos das oficinas de Gílson Rampazzo e Áurea Rampazzo. Escritor, jornalista, editor e tradutor, é autor dos romances Escalpo (Reformatório) e Mnemomáquina (Demônio Negro), dos romances gráficos V.I.S.H.N.U. (Companhia das Letras) e Sandiliche (Cosac Naify), do volume de contos Céu de Lúcifer (Azougue), do livro de poesia Metafísica Prática (Oito e Meio), e organizou Essa História Está Diferente (Cia das Letras), antologia de ficções baseadas em canções de Chico Buarque. Seus cursos passaram pela rede Sesc/Sesi, Centro Cultural B_arco, Casa das Rosas, Casa do Saber, Escrevedeira, Espaço Cult, Instituto Tomie Ohtake, Instituto Vera Cruz, Istituto Europeo di Design, MAM/SP, Tapera Taperá e Universidade do Livro.