SUBMARINO #01

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CONTƒM CONTOS DE

Ale Kalko / Angélica de Barros / Eva Lazar / Felipe Martinez / Fernanda Suaiden / Flavio Basseto / Gabriela Guerra / Ian Uviedo / Jan Bittencourt / Jennifer Queen / Katia Casalvara / Luciana Annunziata / Marcos Abruccio / Michi Provensi / Nathalie Lourenço / Pérola Mathias / Rafael Zoehler / Sabrina Lima / Wagner Machado



T

oda semana nos encontramos. Eu só dou o mote. Eles trazem vinho, comida e histórias. Há dois anos, as turmas do Submarino 3 (das terças) e do Submarino 2 (das segundas) se reúne toda semana pra ler, analisar e comentar as histórias que escreveram a partir das propostas que dei na semana anterior. Crio as propostas a partir de leituras de escritores do mundo todo (veja a lista embaixo nossa lista de constelações). Ou seja: toda aula é também um mergulho em mares nunca dantes navegados. No entanto, cada marujo vai partir daquele GPS para singrar uma narrativa totalmente nova. Nosso porto é São Paulo, mas os marujos vêm dos sete mares: Pernambuco, Amazonas, Santa Catarina, Minas Gerais, Bahia. Toda semana a marujada partilha risadas, lágrimas, sustos e reflexões. Nenhum assunto nos é alheio: metemos os bedelhos nos tabus mais hostis, enfrentamos nossos dissabores mais amargos, jogamos na mesa nossas confidências mais secretas. E tudo vira literatura. Aos poucos, cada marujo – uns ainda em primeira viagem, outros mais experientes – foi definindo sua profundidade própria, seu jeito estrito de mergulhar, seu norte na escrita. Assim, você tem em mãos vinte cartas de navegação diferentes. Recline a poltrona, escolha sua trilha sonora, apanhe seu drinque favorito. E tenha uma boa viagem. {RB}

{CONSTELAÇÕES} Alberto Moravia | Alejandro Zambra | Alice Munro | Ali Smith | Antonio Prata | Antônio Viana | Ben Lerner | Cadão Volpato | Campos de Carvalho | Carson McCullers | Chimamanda Adichie | Chuck Pahlaniuk | Clarice Lispector | Cristina Peri Rossi | Daniel Galera | Daniel Kehlmann | Dave Eggers | Dorothy Parker | Etgar Keret | Flannery O’Connor | Franz Kafka | Gabriel García Márquez | George Saunders | Geovani Martins | Gustavo Pacheco | Haruki Murakami | Horacio Quiroga | Italo Calvino | Isaac Bábel | Jamil Snege | Jennifer Egan | John Haskell | Junot Díaz | Jorge Luis Borges | Julio Cortázar | Liudmila Petruchévskaya | Lucía Berlin | Luis Buñuel | Luiz Vilela | Lydia Davis | Lygia Fagundes Telles | Marçal Aquino | Marcilio França Castro | Mariana Henríquez | Michel Laub | Milton Hatoum | Miranda July | Moacyr Scliar | Nate DiMeo | Raymond Carver | Raymond Chandler | Ricardo Piglia | Rodrigo Blanco Calderón | Roberto Bolaño | Ryonosuke Akutagawa | Rubem Braga | Sérgio Sant’Anna |


sabores A sardinha que assou demais Acabou a pilha Ela dorme Telemarketing Carnaval

AngĂŠlica de Barros PĂŠrola Mathias Jennifer Queen Katia Casalvara Jan Bittencourt

Arte Eva Uviedo



A sardinha que assou demais {Angélica de Barros}

A primeira coisa que Dona Keiko fazia quando chegava em casa era tirar toda a roupa e entrar no banho quente para se livrar do cheiro de peixe e das escamas grudadas na unhas. Depois se lambuzava de hidratante. Era tanto, que brilhava mais que guioza cozido no vapor. Colocava seu pijama hello kitty e o chinelinho branco de pelúcia com duas orelhas de coelho e um nariz pontudo cor-de-rosa de onde saíam uns bigodes já estraçalhados pelo tempo. O próximo passo era afundar na poltrona florida para ver televisão. Não sem antes ligar a panela elétrica de arroz. Era o momento em que ela gostava de se sentir débil. Sozinha no apartamento podia fazer o que quisesse. Estava cansada de ser a senhora séria que ficava o dia todo arrancando vísceras no fundo da peixaria. Ainda mais sendo vigiada pelo dono, que se zangava quando ela conversava com as cabeças de peixes abrindo e fechado as bocas cheias de dentes como se fossem bonecos ventrículos. Perdida entre as almofadas podia soltar gargalhas altas, falar sozinha, enfiar o dedo no nariz, fazer puxa-puxa de meleca. Se divertia sozinha. Principalmente com o novo hábito. Tudo começou numa brincadeira. Fazia muito frio em São Paulo. A tarde toda com as bandejas de plástico cobertas por gelo, a garoa ao voltar para casa, os ossos congelados, o chuveiro elétrico meio entupido. Dona Keiko pegou o potinho de arroz empapado bem quente e foi para frente da TV. Não estava com muita fome. Quando limpava peixe de cheiro forte ficava enjoada. Comeu só um pouco. Não se segurou. A vontade de mexer com os dedos na massa branca foi maior. Começou a enrolar bolinhas como brigadeiro. Quentinhas. Primeiro pôs uma num sovaco e depois no outro. Era reconfortante. Tentou dentro das meias, mas dava a sensação de lama subindo entre os dedos. Foi buscar mais arroz na panela. Uma bola bem maior. Não teve dúvida, mas mesmo assim olhou para os lados para ver se não havia ninguém. Colocou dentro da calcinha. Foi como jogar um peixe de volta ao mar. Dona Keiko balançava o rabo de tanto prazer. Fechou os olhinhos até esfriar. A partir desse dia, o consumo de arroz de Dona Keiko aumentou consideravelmente. Estava cada dia mais serelepe. Animada mesmo. Os colegas da peixaria perguntavam o que tinha acontecido, mas ela não podia responder, era segredo. Morria de vontade de falar, a bolinha da felicidade.

A chegada do calor e os efeitos rejuvenescedores dessa iguaria fizeram com que Dona Keiko abandonasse os pijamas e partisse para os babydolls. Comprou o de oncinha, um sonho antigo. E também chinelinhos de pluma. Quando se olhou no espelho, levou um susto. Não era só o babydoll que tinha manchas pretas. Não dava para saber onde acabava o tecido. A pele de Dona Keiko também era de onça. Castigada pelo sol de quando plantava tomates em Jundiaí. Na Liberdade, presa na bancada de limpar peixe, ganhou o tom mais amarelado. Desejava virar gata angorá. Passou a sonhar em ser parecida com a mocinha do comercial, a que vendia salgadinho de bacon com rosto de porcelana. O arroz quente entre as pernas provocava, além do balançar das pernas de lula, um suador de torneirinha de bidê, que ela achava bom, limpava os poros, mas era pouco. Uma casquinha. Dona Keiko resolveu ir em busca da juventude perdida entre as cascas de camarão despedaçadas. A máscara de arroz. Cobriu o rosto com a papa morna que estava a panela. Não se deu por satisfeita. Preparou pequenas tiras brancas usando a esteirinha de bambu. Nos braços, nas pernas, nas coxas, no pescoço, nos pés, nas mãos. Colocou uma lâmina em cada pedaço de pele descoberto. Dona Keiko soltava risadas de golfinho. Estava numa euforia de múmia. Ficou assim por uma meia-hora. Imóvel e empanada. Depois do banho gelado, a pele macia e mais clara. Queria mais, muito mais. No domingo de manhã foi para a poltrona pelada. Era o único dia em que não trabalhava. Tinha todo o tempo do mundo. Só que estava numa ansiedade de faca ginsu picando cebola para começar o tratamento de beleza. Como sempre, era melhor animar o espírito antes. Acendeu as brasas da moqueca. Não deixou nem as gotas de suor que se espalhavam pelo seu corpo como ovas secarem e muito menos esperou o arroz esfriar. Foi com ele meio al dente mesmo. Se fantasiou de sushi deixando só o buraco do nariz e os olhinhos negros puxados de fora. Como todo velho que não sente sede, Dona Keiko não tinha bebido nada naquela manhã, nem na noite anterior. O suor da bolinha da felicidade, o arroz mal cozido puxando água de canudinho. Os grãozinhos inchando e inchando cada vez mais. A desidratação completa da sereia. A sardinha que assou demais. Dona Keiko cozida sem que ninguém ouvisse os chamados do mar. A camada de amido por cima da defunta fez com que os vizinhos demorassem para sentir o cheiro de putrefação. Quando encontraram o corpo, viram que havia uns pedaços comidos, pequenos buracos de bicadas. Alguns disseram que foi um pardal, outros, um tsuru.

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SUBMARINO | SABORES e vê apenas a moldura do cabelo em sua cabeça, pois o rosto está tampado, enfiado no meio das suas pernas.

acabou a pilha

Neste momento, Duda quase não move a cabeça. Seu torso fica numa semi inércia, enquanto sua língua gira como a hélice de um mini ventilador de pilha do xing ling da Santa Ifigênia: eficientemente delicada. Você gosta de ouvir o primeiro disco do Massive Attack enquanto está com Duda, porque ela te faz entender a associação entre trip hop inglês e sexo: “moving up slowly/ inertia keeps/ she’s moving up slowly/ slowly”. Por isso quase sempre você começa e ela termina. E nesta terça-feira não foi diferente. Pelo menos não até sua mãe abrir a porta do seu quarto sem bater com a sutileza de um elefante entrando dentro de uma cristaleira.

{Pérola Mathias}

Sua mãe fala pra caralho. Fica em casa um bom tempo arrumando coisas que você nem sempre sabe o que é, nem para que vão servir, nem como está implementando a renda freelancer dela. Mas ela dá explicação de todos os passos. Se trocou o tapete do banheiro, se o pote de café está pela metade, se a Maria dos fechos de metal prateado já fez a entrega na portaria, se o Severino demorou 11 ou 17 minutos para interfonar depois disso, se a Lélia vai estar disponível para a reunião da tarde, que pode ser no Yerba Mate ou na Casa de Chás. Mas hoje ela vai passar na loja da Erika para ver como está o movimento, se consegue vender mais umas peças ou deixar consignado no mostruário e depois vai encontrar tantas pessoas desconhecidas para você quanto estas. Não sei se ela se diverte, se encontra amigas com quem tem uma real conexão, se tem um namorado, se transa ou se faz coisas das quais sentem falta as pessoas que não estão com a vida engatada como um carro de câmbio automático. Você quase nunca ouve com muita atenção os passos dela, mas deveria. Porque nem sempre ela cumpre o que diz. Sua mãe é out. Você vive esse momento de transição entre a adolescência e a vida adulta: mora em Pinheiros, começou a faculdade de Comunicação há 5 semestres, tem um estágio de 4 horas, ganha uma merreca suficiente para pagar umas catuabas pelos 7 dias da semana, não ser despesa em casa, mas não precisa, ainda, contribuir no aluguel. Você pode fumar maconha na faculdade e laricar sem custos. Você pode levar amigos para sua casa porque supõem que você já é responsável o suficiente para não transar ali, engravidar ou roubar o whisky da dispensa, nem botar fogo na cozinha se precisar fazer um miojo. Às vezes acontece de esquecer a sanduicheira ligada, mas os estalos do modelo George Foreman Grill sempre impediram uma tragédia. Não por fogo na casa e engravidar, por enquanto, você pode garantir. Nesta terça feira atarefada da sua mãe, você leva a Duda pra sua casa. Vocês estão ficando há três meses e isso pra lésbica é namorar. Duda é feminina de uma maneira que você nunca foi. Usa blusa de alcinhas e tem os cabelos na altura do pescoço, repartidos de lado, com a franja lisa e sempre soltinha. A outra parte de seu cabelo é meio cacheado e, com o creme que ela passa, está sempre arrumada. Ela também tem um tique de passar a mão pela testa para botar essa franja pra trás da orelha, inclusive enquanto você não pode ver o rosto dela,

Num lapso de segundo você vê Duda pular para trás do armário com os olhos arregalados e a boca vermelha, cheia de pontinhos porosos sobressaltados da pele fina do lábio em contato com os seus pelos mais grossos. Você também deve estar do mesmo jeito. No reflexo causado pelo estrondo, você puxa um lençol meio molhado que nem sabia que estava ali para se cobrir, enquanto sua mãe fala alguma coisa relacionada a frango orgânico sem antibiótico. Ela explica que você deve ir ao mercado buscar o tal frango que fica no terceiro freezer do corredor do lado direito. Se você errar o freezer, vai trazer o frango errado. E o frango não orgânico dá reação alérgica aos complementos hormonais que ela está tomando. Você deve ir hoje ao mercado, porque o dia de cozinhar para a semana toda é na quarta-feira. “Por favor”, diz ela olhando para cima sem mirar nada em específico e franzindo um pouco o cenho, “traz o tomilho fresco e o açafrão da terra que a dona Marilena mói na hora em frente ao Pão de Açúcar, mais 50g de páprica, 30g de curry e 7 folhas de louro”. E no meio de mais ingredientes frescos e com rotas específicas para serem comprados, a única conta que você consegue fazer naquele momento é a de quantas vezes por segundo cada lábio da sua vagina pulsa, porque você estava quase sentindo um espasmo se irradiar do seu umbigo em direção aos pés e ao topo da cabeça, que abriria sua boca num grito silencioso. Mas antes do seu coração disparar e você entrar em transe com a massagem de choquinhos de eletricidade natural que ficam refletindo na planta do pé, você foi interrompida pelo elefante conhecido como sua mãe. Ela quebra todas as taças de um apartamento de luxo no meio de uma festa cheia e sai rindo e acenando como se nada tivesse acontecido. Duda, de cócoras, com a mão atravessada no peito, as unhas rosas ton sur ton sobre a pele branca, espera e confere três vezes antes de sair da posição e se recuperar do susto. Nem se você colocasse o Heligoland inteiro para tocar agora com ela te chupando, os estalos que você ainda sente confluiriam para o objetivo inicial. Você se levanta, pede desculpas para uma menina que só parece aliviada da situação não ter terminado com ela sendo a franga depenada viva dentro da casa de uma mãe elefanta. Você leva Duda até o banheiro e a ajuda tomar banho. Abre um Phebo novo de cravo da índia e pega uma toalha branca de visita no armarinho. Depois, vai para o estágio de cabelo molhado pensando como diabos encontrar o frango orgânico que deve ter cheiro de vagina lavada com Dermacid. Tyson, seu pincher da língua macia, certamente nem saliva com a carne servida nessa casa.

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Enquanto ela dorme – Ela tá dormindo? – Ana perguntou, de camisetapijama e coque nos cabelos.

{Jennifer Queen}

– Acho que sim.

– Essa aí dorme que nem pedra – disse, rindo.

André saiu do quarto no escuro. Tateou as paredes até achar o interruptor.

Tinha uma taça de vinho na mão. André não disse nada, mas apontou para a taça. Ana riu.

Biblioteca, livros molhados de sal e conchas. Levou às têmporas a maior de todas – das Filipinas, se lembrava bem – e ouviu o fundo do mar.

Andou, ruído branco nos ouvidos, até chegar à outra ala da casa. Queria um copo d’água, talvez um gole do vinho branco que tinham tomado no almoço. O grande relógio do fundo do corredor – analógico – indicava as quatro horas da manhã. À direita, ficava a sala. À esquerda, a cozinha.

Virou à direita.

Sala vazia, porta aberta. Abriu, sentindo o bafo de maresia e vento. Malu estava deitada no sofá da varanda. De bruços, rosto perdido nos cabelos de um castanho meio loiro. Vestia uma saída de praia, o mesmo biquíni da tarde. O corpo parecia vibrar de leve com a respiração. André se aproximou, sentando do outro lado do sofá. Revirou tudo, as redes, o muro que dava para a praia, as cadeiras esquecidas do lado de fora. Ninguém.

Estavam sozinhos.

Eram dez, não, doze. Solteiros, divorciados e casais sem filhos. Os outros tinham escolhido hotéis mais perto da festa – ou casas mais confortáveis, com quartos para as babás. Muitos eram figuras repetidas dos churrascos e das happy hours de André. Ou rostos vagamente familiares do post de um conhecido. – Você é como eu, não pega cor fácil – Malu tinha dito, surpreendendo-o com um toque no braço, sentando na cadeira oposta a ele. Era a nova namorada de Luiz, mas não parecia com ele nem com suas outras namoradas. Elas não se sentavam a mesas vazias, não bebiam Aperol Spritz com vinho, não fugiam no meio da tarde para a praia, sozinhas. Agora estava mais perto dela, mas ainda distante. A mão quase tocava o pedaço de carne e pele sob os cabelos. O frisson percorria o seu corpo, como o álcool havia feito horas antes.

– Peraí.

No caminho para a cozinha, Ana esbarrou na porta giratória. Aí abriu a pia, fazendo um barulhão. Não tinha taça limpa. Ia demorar. André sentou mais perto. Percorreu com a mão o espaço entre o ar e o corpo de Malu. Sentiu sua nuca. Quando ficava nervosa, ela prendia os cabelos num coque, mostrava a nuca – mais branca do que o resto do corpo, de pêlos mais escuros. Pulsava. Ela dormia.

– Tá querendo ver se está viva?

Ana voltou com as duas taças – a sua mais bem servida. Já não usava camiseta, mas uma blusinha transparente. – Eu disse que ela dorme que nem pedra. Um dia… – ela riu, e só então André percebeu que estava bêbada.

Talvez até mais do que bêbada.

– Um dia a gente transou no quarto com ela dormindo. Você sabe né? A gente saiu um tempo.

– Quem?

– Como assim quem? – ela fez uma careta com a boca – Eu e Luiz. Acho até que foi aí que ele ficou interessado nela. Ana enrolou um cigarro. André bebeu o vinho de um gole só. – Pega mais pra gente? – Ana perguntou, sorrindo. Tinha um sorriso bonito. – Vamos para lá – André apontou para a mesa vazia, quatro cadeiras em volta.

– Fica tranquilo. Ela não vai acordar.

Ana se acomodou no encosto. Começou a fumar.

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SUBMARINO | SABORES

André andou até a cozinha sem fazer barulho. Não queria acordar mais ninguém na casa. Buscou um vinho na geladeira. Achou um, quase tão bom quanto o que havia levado. Lavou mais uma taça e então fez o caminho de volta. Abriu a porta devagar. O cigarro de Ana estava bem próximo ao cabelo de Malu.

Ana serviu mais vinho. Fumou mais um cigarro. Mário deixou a mão sobre o braço de Malu. Ana falava sobre algum verão da adolescência. A mãe de Luiz tinha ficado na cidade, e André e ela tinham transado no quarto dos avós de Luiz.

– Quer comer alguma coisa?

Ele não moveu a mão. Estava confortável ali.

– Queijo.

Era bonita como aos dezessete, parecia ter parado no tempo mesmo. Fumava sem parar, ficava bêbada em todas as festas e não levava o mesmo namorado em dois Natais. Ainda assim, por causa dela tinha conhecido todas as suas namoradas dos últimos anos e tomado muitos porres. Nas noites de tédio, era para ela que ligava.

– Já volto – ela disse.

André bateu a porta. Ana se precipitou, mas o cabelo de Malu permaneceu intocado.

Começou a acariciar o braço de Malu, da ponta dos dedos à nuca, e tentou pensar só nela. Sem Ana.

– Que susto.

– Trouxe mais uma.

Naquela tarde, Malu tinha saído para andar sozinha e André tinha ido atrás. Podia vê-la nos trechos mais longos da praia: a luz laranja no contorno do seu corpo, a silhueta contra o clarão do sol ao sair do mar. Depois, ela havia perguntado: “Por que voltou antes?”. Talvez soubesse de tudo e respirasse assim por treino.

André tinha conhecido Ana a sua vida inteira. Tinham até saído uma época, na adolescência. Luiz sempre acabava saindo com as suas namoradas. Mas Ana não daria certo com um nem outro.

Ana olhou a garrafa, sorrindo. Depois, pegou o sommelier e abriu. André serviu as duas taças, afastando-se um pouco dela, para que ela também se afastasse de Malu.

Ana então se levantou.

– Vamos trocar de lugar – disse – Daqui, posso ver o mar melhor.

Ele buscou no sorriso algum duplo sentido – como quando pedia licença no meio do bar, para ele flertar à vontade com a amiga da vez. Ou então o deixava sozinho com o cara chato que estava dando em cima dela.

Ana, Luiz e Malu no mesmo quarto. Ana, Malu e ele. O vinho, os pêlos do braço, da nuca de Malu, o cheiro de fumo, a maresia.

A ponta do cigarro quase queimando os cabelos.

Ela só virou o corpo. Mário sentou-se, corpo com o corpo de Malu. Agora podia sentir a sua respiração, dava para ver o corpo subindo e descendo.

Ana voltou. Ele estava de pé em frente a Malu, a todo o seu corpo na verdade, a mão abrindo a bermuda de surf.

– O que você acha desse casamento? Vai durar?

A saída de Malu estava suspensa até a cintura, bunda e biquíni de fora.

André riu. Nem lembrava mais do casamento.

– Não sei, não conheço nenhum dos dois direito.

– E eles – disse, apontando para Malu.

André deu de ombros.

– Estão juntos há quanto tempo?

Ana deixou a tábua com os queijos – três ou quatro tipos, de duas geladeiras – e a garrafa de vinho na mesa. Saiu sem olhar para trás.

– Um ano. Mais de um ano. Nos últimos dois reveillons. Você estava fora. | 07 |


melhor que telemarketing {Katia Calsavara}

Você pode não acreditar, mas eu sou mãe de família. Mãezona, do tipo que sofre pelos filhos e tudo. Minha menina mais nova hoje tem 24 anos, e não admito que ela faça a mesma coisa que eu. Tenho mais três homens, tudo adulto, dois casado, até hoje não sei como criei todos sozinha. A Leila me deu muito trabalho quando era pequena, vivia doente, internada com asma, aliás eu também tenho, passo uns perrengue quando muda o tempo. Eu trabalhava como faxineira de hospital na época, ganhava menos de um salário, a gente quase nem tinha o que comer em casa, era tudo contado mesmo. Você me vê aqui agora e pode não acreditar, é um direito seu, mas eu gosto muito do que faço e não troco por nada – esse parque é minha casa. Depois que todo mundo cresceu, a vida melhorou um pouco, mas também tava chata pra cacete, sabe? Eu fazia faxina pra fora, tinha duas casas fixas, a dona Poliana e a dona Carmem, cada dia eu ia numa, tava numa situação já bem melhor. Elas era ótimas patroas e tudo, me davam coisa, mas já tava ficando sem emoção, cê entendeu? As casas eram fácil de limpar, não tinha bicho nem filho, mão na roda, pouca roupa suja. Eu fazia a limpeza assobiando cana. Os meninos tudo já tavam trabalhando, ajudavam um pouco em casa, depois o Kléber e o Klóvis saíram, fiquei eu, a Leila e o Kledir, que saiu depois, foi morar com a namorada. Menina, era um tal de ficar de lá pra cá no ponto de ônibus lotado, uma canseira lascada, que eu larguei de vez. Agora fico por aqui, faço uma coisa diferente, tô mais viva também, tô cheia de amigo no bairro. Começou quando eu vim passear aqui uns dias, fiquei sentada só observando a veiarada trabalhar. E o que tinha de veia, hein? Achei bonito tudo aquilo, elas conversavam entre si, contava uma coisa pra outra, levava um lanchinho na bolsa, comiam junta e tudo. Achei bonito mesmo, cê entendeu? Fiquei comovida. Voltei outras vezes, conversei com a Regina, que na época eu não conhecia, e hoje ela é minha parcera. A gente rende o serviço uma da outra, às vezes, tudo na amizade. Nas primeiras vezes, comecei a chegar junto, conversar com os hómi, daí já foi, pega na mão, pega na perna, pega você sabe onde e vamo ali no arbusto comigo, cê entendeu? Foi natural, eu não tive que fazer força, não. Curti pra cacete.

Claro que no primeiro ano eu ficava ainda meia sentida, tinha medo que meus filho descobrisse. Mas como eu sempre fui muito discreta, não uso nem maquiagem nem nada, nunca precisei me montar, logo fui achando uns cliente fixo, que me achavam muito diferentona, nunca usei anel, colar, salto, essas coisa. Sempre fiz a linha neutra, gosto mais. Daí me organizei, tenho tudo certinho na cabeça, os dias bons que os clientes vinha, o medo foi passando. E eu penso assim, quanto mais discreta, melhor, né? Hoje eu gosto, vou te dizer. Tem seus perrengues, mas eu gosto, melhor que telemarketing. A Marina, aquela ali que fica lá do outro lado, tá vendo? Aquela, de cabelo comprido branco no meio da costas, de rabinho, viu? Então, essa sofre todo dia, chora pra burro; eu não, chorei poucas vezes, já tô acostumada. Quando a tarde é boa eu faço uns quatro, cinco programa. E tem de tudo viu? Tem hómi de 30, de 50, 80, 90, e você tem que ser tipo psicóloga, enfermeira, médica deles. Tem gente de todo tipo, hómi doente, hómi que não consegue se levantar sozinho, hómi que você tem que ajudar a calçá as meia, subi a cueca, tem de tudo, tem de tudo. Não vou te dizer que é um trabalho fácil porque não é. Tem hómi que gosta que a gente faça xixi em cima dele. Eu faço, né? Eu não aceito filha minha na prostituição. É uma vida perigosa, isso é mesmo, você vive sempre no limite. Vixi, mas já fiquei de calcinha na mão; uma vez, o cara fez o que quis, me bateu e saiu correndo. Ah, meu filho, agora eu me defendo, levo essa faca bem afiada na bolsa e já ameacei várias vezes. Não paga pra ver o que eu faço com o pau da pessoa. Mas eu acho que a minha filha desconfia, porque ela já namorou um rapaz que a mãe dele era de programa, mas isso quando ele era bem pequenininho, nem casada ela era. Daí ele foi descobrir depois de adulto e começou a tratar mal a mãe, falava várias, destratava mesmo. A mulher entrou em depressão, foi ficando fraca pra cacete, pegou meningite naquele surto que teve e morreu. Ele se sente culpado pela morte da mãe até hoje. A minha filha fala, eu não, mãe, eu não critico as mulher de programa, eu acho que elas fazem por amor aos filho, porque precisam. Isso me deixa mais aliviada, sabe? Aqui eu faço meu lanche com as menina, converso com um monte de gente, conheço as velharada toda; meu ponto é aqui mesmo, nesse banco que você tá sentada.

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SUBMARINO | SABORES

Esses dias eu atendi um rapaz que ficava me falando, você não combina com isso aqui, você é mulher de família, sai dessa, abandona essa vida. Eu disse, eu não, cê tá loco? Pra quê se aqui eu tenho minhas amiga, a gente dá risada da cara dos cara, ganho um dinheirinho, porque também não é muito, né? Eu faço por trinta, trinta e cinco, depende. Mas aí se a pessoa já quer uma coisa mais completa, dá para tirar aí uns sessenta, setenta, depende do dia. O Seu Valter vai chegar daqui uns quinze minutos, se quiser você pode ficar pra conhecer ele. Tem 82, mas limpinho, limpinho, sabe? Não é desses veio que cheira mal, não, que baba na gente. Essa é a pior parte, quando a pessoa dá pra babar em você. Isso eu não gosto e tem bastante porque a gente não deixa de atender a pessoa só porque ela é velha, não. O Valter é um dos meus preferido. Faz o serviço na gente rápido, não fica de enrolação, não tem aquele bafo nojento, tipo cocô, de veio descuidado. Ele é casado, tem filho, mas gosta de uma mais novinha assim que nem eu, tô com 64 agora, vou fazer 65. Eu me cuido, não fico comendo pão o dia inteiro. Se eu tivesse lá em casa, ah, menina, eu ia me largar no pão em frente à televisão, vendo aqueles programa de receita. E aqueles bate boca de família? Eu não, tô fora, ficar dando audiência pra locura dos outros. Olha lá o velho, chega aqui, Valter. Essa é a Bruna, tô dando entrevista, tá pensando o quê? Sou famosa, meu bem. Fala pra ela, Valter, porque é que você me escolhe sempre? Não sou a mais gata do parque? Há quanto tempo você me conhece? Já uns cinco, seis anos, né? Não tinham nem pintado a fachada do museu ainda. Bom, hoje a gente vai pra qual hotel? Melhor o Pitangueiras ou o Charme?

Se quiser, Bruna, pode vir com a gente.

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sonho de uma tarde de carnaval {Jan Bittencourt}

Ritaleena e Amelie Pulando saíram desgovernadas pela Rua dos Pinheiros, levando atrás delas uma multidão carnavalesca. Um enxame de meninos malhados e sem camisa, vestidos de abelhinha, guardavam os iPhones na sunga quente e bebiam devagar seus squeezes de Catuaba Selvagem. As duas riram deles, sugaram o mel de seus pescoços e os batizaram de Bloco Pica Ni Mim. Rita, mais velha e sábia, precisava parar em um banheiro químico a cada latinha de Skol que tomava. Amelie suava num suvaco só, procurando três ruivos para beijar-sem-saber-o-nome e desfazer a praga que ganhou do ex-marido. Tava bonito de ver (e postar no Instagram) aquele mar de unicórnios, flamingos, índios, collants, meiasarrastão, turbantes, cílios gigantes e barbas coloridas. Já na concentração, encontraram um ruivo nanico, de saia escocesa com bermuda por baixo e disseram que ele estragou a fantasia delas. Ele valorizava demais seus genes e se recusou a beijar Amelie, alegando que tinha namorada. Não é não! Mas Rita usou a sua varinha rock n’ roll de apagar memória e o ruivo esqueceu fácil que era comprometido. Amelie borrou seu batom vermelho e ganhou uma herpes, mas saiu aliviada. Só faltavam dois beijos para tirar a zica. O sol brilhava entre as nuvens e crianças com carinha de anjo soltavam bolhinhas de sabão sob os ombros de dezenas de pais barbudos com seus óculos espelhados. Ao lado deles, de mãos dadas quase sempre, parceiras hipsters-veganas exibiam muita pele bronzeada sob um make colorido de glitter biodegradável. Havia catadores de latinha a rodo que não deixavam acumular o lixo nas calçadas e os restaurantes permaneciam abertos, sem medo da muvuca. Rita perdeu sua tiara de penas coloridas e aceitou uma cartola alta de um gatinho trôpego, que miou algo ininteligível no seu ouvido três vezes. Sempre quis desfilar com cartola, mas não desconfiou de que aquela fora amaldiçoada. A partir desse momento, o céu nublou e mil ratinhos saíram dos bueiros (de banho tomado) para cantar as marchinhas. Parecia estranho mas ainda estava animado. Compraram batata chips oleosa de dez reais pra almoçar e descobriram que a mistura mel, catuaba, cerveja e chips podia ser um veneno pro fígado. Só uma pipoca doce de ontem pra desfazer o mal-estar e deixar a língua rosa. Não por muito tempo. Estavam tocando os instrumentos dos músicos quando perceberam os ratinhos roendo as cordas que agrupavam o pessoal. Daí em diante, um vento do Largo da Batata invadiu tudo.

Fotógrafos caíram do carro de som, o motorista desgovernou e, um por um, cada folião começou a vomitar catuaba com cerveja e sabe-se lá mais o quê nas sarjetas. Os catadores resolveram debandar pra outro bloco grã-fino. Quem ficou na garoa que começava a engrossar (mas ainda refrescava), sentiu que enfeiava, suado e passado. Loiras de mechas californianas gritavam, tentando em vão proteger a chapinha. Os abelhinhas, ao se reconhecerem varizentos e flácidos, choravam. Fiscais do Dória sorriam com seus dentes amarelados multando os mijões e os vizinhos que antes aplaudiam o Carnaval, agora jogavam tomates da janela. Veio então uma chuva grossa de verão que não escoava nos bueiros entupidos e as pessoas se estapeavam para ver quem entrava primeiro na ambulância, a única chance de sair rápido dali. Amelie aproveitou que Rita estava na fila do banheiro da padaria (que cobrava dois reais pelo xixi) e negociou um selinho com uma drag queen de peruca ruiva, de maquiagem borrada e ensopada de chuva, rezando para aquilo contar como um segundo beijo. O dono da padaria colocou todos para fora, fechando as portas quando começaram a quebrar tudo para roubar os cigarros do caixa, num arrastão bêbado. Rita se mijou de medo. Do lado de fora, pessoas eram carregadas em meio à lama de chuva, mijo, lixo e vômito, numa massa de gente suvaquenta e meio zumbi que não andava, nem dava passagem. Alguém ligou um funk alto e o refrão doeu os ouvidos. “Chacoalha minha benga. Puta. Vadia e Prostituta”. A classe escorreu, de vez, bueiro abaixo. Era impossível não ser meio abusada ali no meio ou não sair machucado das brigas que pipocavam em todos os cantos. Houve quem aproveitou a confusão pra realizar o fetiche de transar com platéia. Ritaleena e Amelie Pulando nadaram um pouco no chorume e depois correram o máximo que as bolhas nos pés as permitiram até o Mercearia, largando a cartola numa das escadarias da Vila e procurando um bom livro onde pudessem se esconder. Refeitas e quase secas, viram sua sorte voltar numa mesa onde um conhecido músico ruivo, autor de “Por onde andei”, bebia com os amigos. Hoje está tudo postado nas redes sociais com a hashtag #mefodinopasmado.

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SUBMARINO | SABORES

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jogos Não te disse, menina? Gabriela Guerra Barbie Sereia Sabrina Lima O medo do ano que vem Marcos Abrucio Linha fina Luciana Annunziata Profs Nathalie Lourenço Arte Mari Casalecchi



Nao te disse, menina? {Gabriela Guerra}

A consulta era uma facada, mas o consultório andava meio derrubado. Os azulejos beges e gordos dos anos oitenta. Três fileiras de cadeiras vermelhas e bufentas. Não uma na frente da outra, não. Mas contra uma parede, formando um U. As pacientes tinham que ficar olhando uma para cara da outra, não tinha jeito. Na ponta, colocaram um birô antigo. Tampo riscado, madeira descascando, vidro grosso por cima e vários pedacinhos de papel enfiados por baixo. Parecia ter sido do avô de alguém, depois da filha de alguém e, agora, era de uma das ginecologistas mais famosas do Recife. Não que ela usasse o birô, claro. As duas secretárias usavam. Uma não estava nem aí para nada e a outra, bom, a outra estava ligada em tudo. Cabelo liso, grosso e pintado de amarelo (mas parecia laranja). Seco, seco. Se ela batesse continência, a franja cobriria metade do dorso da mão. Foi ela quem atendeu Sara. Deu uma olhada demorada na ficha e guardou de volta. “Só precisa vir daqui a seis meses, menina”, riu e cutucou a recepcionista-preguiçosa com o cotovelo. E então, como se a ficha tivesse caído, franziu as sobrancelhas e foi perguntando com um tonzinho de reprovação: “Tá com problema, é? Fez besteira, foi? Menina, tão novinha. Tu te cuida.” Todo mundo olhou, né. O jeito como as cadeiras estavam arrumadas, além de constrangedor, fazia o lugar ter um eco dos infernos. Sara explicou que ia para São Paulo, não conhecia os médicos de lá, queria viajar com os exames em ordem, blábláblá. A recepcionista-de-franja relaxou as sobrancelhas e apertou os olhinhos, orgulhosa. Mas isso só durou uns três segundos porque uma mulher sentada no canto esquerdo da sala entrou na conversa. — Mas vai mudar antes de formar? Sei não, visse. — Não dá para saber com certeza, mas os cantos da boca dela pareciam estar espremidos. Vou, Sara disse, mas volto próximo mês pra defender o TCC. Vai dar tudo certo, ela meio que tentou garantir. Essa mulher, Sara conhecia do salão. Fazia a unha no mesmo horário e sempre perguntava o nome do esmalte que Sara ia usar. Era a manicure quem respondia. “Volte mesmo”, a mulher-do-salão falou. “O pessoal vai embora pras bandas de lá e muda. Esquece a família, as obrigações, sobe à cabeça.” Recife é uma cidade bem grande e bem pequena também

porque, no fim das contas, as pessoas que podem pagar caro por uma consulta se conhecem. E, talvez por isso, talvez não, elas falam da vida dos outros com uma propriedade impressionante. Sara não ia se mudar para São Paulo por causa das pessoas que podem pagar caro por uma consulta. Claro que é chato para cacete todas as primas-da-filha-da-amiga-da-suatia saberem que você dividiu uma bolsa em três vezes no cartão porque o namorado-de-uma-delas é o dono da franquia. Mas acostumar, acostuma. Dizem que os Termos de Privacidade do Facebook foram escritos por um recifense acostumado. Enfim. Sara ia embora porque o namorado foi transferido (muita gente perguntou se eles iam casar). Ia embora porque queria ver outras coisas (e as pessoas queriam saber que outras coisas). Ia embora porque os empregos eram melhores (alguns até ofereceram empregos nos escritórios de advocacia dos sobrinhos). Parentes, amigos e vizinhos ouviam os motivos de Sara com um excesso de atenção irritante, mas no fim das contas não pareciam convencidos. Por que ir para São Paulo, para tão longe, menina? Nem ela sabia direito. Bom, voltando. Já tinha quase umas três horas que Sara esperava para ser atendida. Aí uma mulher de uns trinta anos e a mãe dela, de uns cinquenta, apareceram. A mãe vinha na frente carregando os exames da filha-adulta, gesticulando antes mesmo de passar pela porta de vidro do consultório. — Não teve jeito. — A voz atrás da porta chegava abafada e grossa. — Sem batimento. — A voz, a porta agora aberta, chegava alta e grossa. A mãe-da-filha-adulta era fumante. — A bichinha, olha a carinha dela, amuadinha. — A recepcionista-preguiçosa falou como se estivesse tendo um derrame, mas era só por causa da bochecha apoiada na mão, impedindo a boca de se mexer direito. — Foi Deus quem quis assim. — A recepcionista-defranja falou. — Já já ele manda outro anjinho. Bronca agora é a curetagem. Informaram a ela da curetagem, mãe? Informaram a você, docinho? Uma outra mulher (sim, são oito mulheres na história. Qual o problema? É um consultório ginecológico) fingia que não ouvia tudo. Enfiou a mão na bolsa, deixando uma alça encardida do sutiã deslizar para fora do vestido,

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SUBMARINO | JOGOS

e puxou um pacote de chiclete. Começou a falar enquanto rasgava a embalagem, os olhos baixos concentrados na tarefa.

— Perdeu, foi?

— Tem batimento não. Vai ter que fazer um procedimento. — A mãe-da-filha-adulta respondeu. — Oxe, mas não deixe ela tirar, não. O destino mesmo se encarrega.

— Pode dar infecção. Disseram no laboratório.

— Essa gente sabe de nada.

Sem mostrar a cara nem levantar da cadeira, a médica chamou a mulher-da-alça-do-sutiã pelo nome. Era um nome comum, que agora não faz diferença. Sara colocou os fones e voltou aos textos da dissertação, segurando a maçaroca de papel bem alto, assim na frente do rosto, de um jeito que a mulher-do-salão pudesse ver. Toma essa, ridícula. Quando a consulta acabou, a mulher-da-alça-dosutiã não foi embora e pronto. Passou um tempão conversando com a médica. Nem aí para as outras. Ficou lá, escorando a porta com o pé, falando sobre a nova casa na praia (em Toquinho) e os novos vizinhos (Miranda Filho, aquele casado com a mais nova dos Lucena). Finalmente largou a porta e foi embora sorrindo distraída. Voltou. Tinha esquecido de marcar a próxima consulta. Antes de ir de vez, apontou o indicador e o dedo do meio pra mãe-e-filha-adulta, mexendo os dois num balancinho de ti-ti-ti, toda animada com as novidades. Sara tirou os fones. — Larissa teu nome, né? Olhe, falei com a doutora. Que tu não queria tirar esse bebê. Ela vai ver direitinho, mas acha que dá. Acha que dá. Não te disse, menina? Ninguém se mexeu, nem para baixar os olhos. A linha fina e delicada dos limites, quando se rompe, faz um barulho parecido com o de um poste explodindo durante uma tempestade. E então Sara encontrou. Lá no fundo da boca aberta em formato de espanto total, ela encontrou o motivo. Porque ia embora pra São Paulo, para tão longe: precisava de silêncio. | 15 |


Lelo

Barbie Sereia

– Sabe o que ela é, Vânia? É filha da puta. é uma vaca, vagabunda. E que não me venha pedindo dinheiro uma vez que seja, porque não dou. Se não quis fazer exame é porque é puta, porque nem ela sabe pra quem deu. Lembra quando ela veio pedir pra ajudar a tirar? Deve ter ido fazer vaquinha com os macho. Eu queria até ter ido tirar satisfação com o Ivan, olhar no olho, cara a cara, pra ver o que ele ia dizer daquele dia no churrasco. Some e depois diz que tava conversando? Pedir conselho pra amigo? O meu cu, pra cima de mim essa? Agora vem com a cara de pau de falar de natal, dá licença. Vai dizer que falar de natal não é pedir dinheiro?

{Sabrina Lima}

Bubu Bianca A casa do meu pai é no quarteirão de baixo, bem perto. A mãe sempre diz pra ir porque é meu pai, mas não sei bem o que isso é. Porque na escola às vezes a gente faz um cartão de Natal ou de Páscoa e a Mayara entrega pro pai dela, mas o meu não pega. Eu dei o meu pro vô Zé, que a mãe disse que era tipo meu pai, mas ele num ligou muito pro labrador que eu fiz, mesmo eu usando dois marrons, porque quando eu tiver meu cachorro vai ser chocolate e vai chamar Suíço, que a Mayara falou que é o melhor. Mas é que também o vô já tá meio esquecido e ainda bem que ano que vem a Bubu vai ficar em casa comigo, porque o vô às vezes sai na rua sozinho e eu num consigo trazer ele. Eu queria um cachorro de natal ou uma Barbie sereia. A Barbie nem precisa ser da Mattel, mas é que no 1,99 ainda não chegou a de sereia, aí não sei onde tem. A Mayara falou que a mãe dela compra na internet, mas eu não sei se a mãe pode, porque ela disse que Barbie é tudo caro e que tá tudo muito caro e que é por isso que a gente não toma mais sorvete de massa. Eu disse que achava melhor esse que picolé porque tinha um pote grátis que podia aproveitar mas a mãe falou que podia fazer um gelinho de limão depois. Acho que não deu tempo, porque a mãe trabalha muito. Eu não sei do que o meu pai trabalha. Esses dias a Mayara me perguntou se eu tinha pai e eu disse que claro então ela perguntou o nome dele e eu disse Lelo, mas aí ela disse que Lelo não era nome, mas é assim que a tia Vânia chama ele, mas a Mayara disse que eu tava inventando. Aí eu fui escrever no cartão de natal Lelo Lelo Lelo e vi que não era meio nome mesmo, porque era muito fácil de escrever em letra cursiva, mas era o único pra colocar no cartão de natal, aí eu coloquei Lelo mesmo e passei canetinha em cima do lápis, bem forte que era pro E não confundir com o L porque eu sei bem a diferença. O nome do pai da Bubu é Henrique. Eu achava esse nome legal porque tinha que escrever com um R só mesmo que falasse rrrrique, aí eu falava alto tentando não falar rrrrique, só um rique. A Bubu não gostava muito quando eu brincava com o nome do pai dela, mas a tia Vânia me disse que adolescente não gosta de nada mesmo e acho que é verdade porque agora a Bubu quer que chame ela só de Bruna e parece que Bruna não parece a Bubu.

A Bianca chegou de novo da escola com um desses trecos de natal que ninguém vai querer ver. Fez um desenho da boneca que quer ou do cachorro, mas já fui logo falando que não tinha chance nenhuma da mãe arranjar nem um nem outro, porque a gente era pobre e tava cada vez mais pobre mesmo a mãe se matando de trabalhar. Às vezes acho que a Bianca já entende o que tá rolando, ela tá crescendo e do nada tá com aquela cara de ponto de interrogação me olhando. Irrita, porque eu quero só ficar de boa e lá vem ela com qualquer coisa besta de criança. Esses dias fui buscar ela na escola e tava lá, contando tudo do pai dela. Acho foda que ele não ajuda a mãe em nada, porque meu pai ajuda, mesmo morando longe. Mas acho bom também que o pai dela não vem mais aqui porque lembro bem dele, a mãe acha que não, mas eu fico acordada até tarde desde sempre e eu ouvia aquela gritaria. Do meu pai eu num lembro, mas do jeito do pai da Bianca chegar aqui a noite? Eu não falo nada, mas sou a única que tá vendo a real. Irene – tamanho tênis bubu – armários – 2a via cartão cidadão – fgts – tapete – matrícula escola meninas – remédio pai – dentista no posto – bico restaurante – papanicolau – gelatina – cigarro – ligar vânia – árvore – barbie serei

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SUBMARINO | JOGOS Fiz o mesmo com a perna direita: dobrei, segurei, estiquei, girei.

O medo do ano que vem

Silêncio. Esquisito.

{Marcos Abrucio}

Repeti os movimentos e senti a canela e a coxa direitas quentes, formigando. Mas não um formigamento paralisante, pelo contrário. A perna parecia mais firme. Pensei em falar com o doutor, mas ele podia me tirar do time. Pior do que jogar com dor é ficar no banco com dor — e o bicho é pela metade.

Seu Domingos entrou no vestiário e foi de um em um com a garrafa de café. Os mais novos recusaram. Eu não. Nesse momento da carreira — os acréscimos — todo estímulo extra é bem-vindo. Virei dois copinhos.

Já no gramado, o formigamento e o calor estavam ainda mais fortes. Um milhão de ferroadas em brasa, mas que juntas formavam uma sensação agradável. Será que eu deveria ter falado com o doutor? Nem deu tempo de continuar pensando: o jogo começou e a bola veio para mim. Tentei um lançamento e mandei a coitada no estacionamento atrás da arquibancada de madeira. Não tinha essa força na perna havia muito tempo. Talvez nunca.

Lembrei que no ano que vem eu não estaria mais ali. Não respiraria mais aquela mistura de suor, umidade e plástico de chuteira barata. Foram quase vinte anos, cada temporada em uma cidade diferente, tomando banho gelado, sentando no piso gelado, bebendo café gelado. “Porra, seu Domingos, que merda esse café!”, gritei para o homem. Ele nem virou a cabeça. Seguiu oferecendo a garrafa e os copinhos, como sempre. Eu já estava cheio daquilo. Cheio de duas vezes por semana me despedir da Shirley, entrar em um ônibus lotado de moleques com seus fones de ouvido gigantes, chegar em um estádio prestes a desabar, vestir um uniforme com logotipos de mercadinhos e casas lotéricas e levar porrada por 90 minutos. Chega. Eu queria parar. Mentira. Por mim, eu continuava, mas o corpo não aguentava mais. Queria era ter o joelho de vinte anos com a cabeça de 39. Naquela época, eu já tinha descoberto que o futebol é um negócio simples. Duas jogadas antes, já sabia o que iria acontecer. Onde eu tinha que estar, o que eu tinha que fazer. Mas as pernas não chegavam mais. Não corriam, não chutavam. Eu ia parar porque a cabeça estava com vergonha das pernas. Mas e depois? Não sabia fazer mais nada, não tinha me preparado para nada. Meu maior medo na vida era o medo do ano que vem.

Começou o aquecimento. Piques rápidos ao redor de baldes vazios. Depois, um bobinho. Eu sempre pulo o aquecimento. Não vou me cansar antes da hora. Fico em um canto, mexendo devagar as pernas e os pés. Cada articulação tem sua trilha sonora: algumas parecem dobradiças mal lubrificadas; outras são cascas de nozes sendo trituradas. Às vezes, sou só eu gemendo, mesmo. Dobrei a perna esquerda e segurei o pé com a mão. As mesmas dores e estampidos de sempre. Estiquei de novo. Depois, girei o pé no sentido horário. Som de pipocas estourando no micro-ondas.

O resto saiu nos jornais da cidade: fiz três gols, todos de fora da área, todos no ângulo, todos de perna direita. No último, a rede até furou. *** No fim do jogo, as ferroadas passaram, como se as abelhas tivessem voado para longe. Um jornalista de uma rádio local veio correndo e enfiou um microfone gigante na minha boca. Lembrei de quando eu joguei no Morumbi, no Pacaembu, na Vila Belmiro. Minha mãe gravava quando eu aparecia na TV. Em duas décadas, joguei em quinze times diferentes. Quase todos do interior de São Paulo, mas também alguns do Nordeste e do Paraná. O melhor momento foi no Bragantino: oito gols nas dez primeiras rodadas do Campeonato Paulista. Olheiro da Rússia na arquibancada. Enfiei o pé em um buraco perto da linha de fundo, torci o joelho e fiquei onze meses parado. O Bragantino não renovou meu contrato. O jogo seguinte àquele dos três gols no ângulo foi fora de casa, em Limeira. O vestiário cheio de goteiras e poças por toda parte. Nem pensar em andar por aí só de meias, e eu adoro andar de meias. Durante o aquecimento, me mantive à parte de novo. Quando as picadas começaram a esquentar minha perna direita, corri para as escadas e fui o primeiro a chegar no campo. Queria que o jogo começasse logo. Pensei que eu estava com febre, mas era só a falta de costume de me sentir confiante. Escanteio a nosso favor, fiquei na entrada da área, esperando algum rebote. O rebote veio, e peguei na bola de primeira. “Na gaveta!”, gritou o narrador do rádio. O goleiro nem se mexeu. No intervalo, chamei o seu Domingos, que além de fornecedor de café também era o roupeiro do time. Pedi outra chuteira: a minha tinha rasgado ao meio, de ponta a ponta.

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O sei-lá-o-quê que enrijecia a minha perna um pouco antes de entrar no gramado ia embora após o apito final. Em casa e nos treinos, nada. Só dores, guinchos e estalos. Na outra rodada, o formigamento e o calor voltavam, sem falta. Os gols, também — cadê o olheiro da Rússia agora? O professor Samuel, nosso técnico, não era nenhum gênio. Todo mundo dava uma risadinha depois de chamá-lo de “professor”. Já estava velhinho e parecia dormir durante os jogos, principalmente à noite. Mas antes de um treino, ele bateu no meu ombro e disse que eu iria jogar mais adiantado. Que eu não precisaria mais voltar para marcar: era só para ficar lá na frente. Depois, ele foi para o banco, sentou e não falou mais nada. Na partida seguinte, fui sorteado para o antidoping. Na outra e na outra, também. A bola parava, minha perna esfriava e eu já ia em direção ao fiscal. Sabia que seria “sorteado” toda vez. Fiquei amigo dos caras dos frasquinhos. Batíamos um papo e tomávamos uma cerveja até me dar vontade de mijar. Entregava o pote e ia embora. Nunca deu nada em nenhum exame.

A Débora eu conheci na saída de um jogo no nosso campo. Três a dois para nós, fiz o gol da vitória aos 42 do segundo tempo, de fora da área, claro. Como sempre, fui o último a sair, depois das entrevistas, da cerveja e do mijo. No estacionamento, só estava o meu Corsa. Abri a porta e pensei que era a hora de falar com o presidente do clube. Ele tinha que me dar um aumento, um carro novo, ou então eu me mandava para outro time. É isso: no próximo ano eu vou para outro time, quem sabe um time grande? “Anderson, a patada do Oeste!”, disse a mulher atrás de mim, reproduzindo a manchete de um jornal local. Mais alta do que eu, loira tingida, vestia camisa do time, uma calça jeans bem justa e saltos plataforma. Me empurrou para dentro do carro e fechou a porta. Logo estávamos no banco de trás, e não entendi até agora como ela conseguiu tirar tão rápido aquela calça tão justa.

Estávamos no vestiário, antes da partida que decidiria o acesso para a primeira divisão. O empate era nosso. “Tem um empresário querendo falar com você depois do jogo”, disse o professor Samuel, sem nenhuma alteração na voz. Os outros estavam se aquecendo, e eu bebia o meu café frio, de meias. Mais uma vez, o calor brotou de dentro da minha chuteira direita, subiu pelo tornozelo e envolveu a perna como uma meia-calça. Micro-picadas frenéticas ativavam minha circulação com ainda mais força do que nas rodadas passadas. O jogo foi duro. No intervalo, perdíamos de um a zero, mas eu estava calmo. Dava para ver minha perna pulsando. É sério. Parecia um coração gigante batendo. Dois adversários me marcavam de perto, e a bola quase não chegava em mim. Só fui conseguir chutar em direção ao gol aos 40 do segundo tempo, e foi o que bastou: um a um, placar que nos faria jogar na série A no próximo ano. O juiz apitou, os jogadores do time e alguns torcedores correram para me abraçar. Eu fiquei parado, olhando para baixo: em vez da perna parar de formigar, ela começou a ficar roxa. Fervia. As picadas haviam se transformado em facadas contínuas. Chamei o doutor e saí de campo na maca. Seu Domingos apertava minha mão. O que aconteceu depois também saiu nos jornais e até no Fantástico: tiveram que amputar minha perna direita para salvar minha vida. Os médicos não sabem explicar o que aconteceu. Minha carreira acabou junto com aquele campeonato. Como era previsto, enfim. Enquanto a Shirley passa outro café, olho para a TV desligada, ainda sem saber como vai ser no ano que vem.

Depois dos treinos e dos jogos, encontrava a moça no estacionamento e íamos a um motel perto da rodovia. A Shirley sacou tudo e deu um jeito de acabar com aquilo. Um dia, depois de uma goleada, cheguei no carro e lá estava ela, em vez da Débora. Entramos no carro e fomos para casa. Não falamos nada a respeito nem ali, nem depois. Não vi mais a loira.

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SUBMARINO | JOGOS a metros de distância. Beijou minha mão, o filho da puta, e me levou pr’aquele mocó onde o cachorro é rei e comeu até uma parte do colchão. E ai de mim se eu ousasse falar mal do bicho! Péricles, veja se isso é nome de cachorro. Giga sim. Cachorro.

linha fina

Mas hoje eu não vou fraquejar, já bati uma siririca pra pensar melhor. Dá uma certa clareza. Apoiei o celular no batente da janela. Ele acende e apaga sozinho: quase meia noite. Eu ainda gosto dele? Ou não? Mordo a maçã e sinto o combate dentro do meu corpo. Ácido, básico, ácido, básico, ácido.

{Luciana Annunziata}

Marcamos onze e meia, mas o Giga nunca chega no horário e hoje não é diferente. Eu fico pronta antes, sento na poltrona perto da janela e assisto a luz do poste e o luminoso da padaria colorirem a garoa. Uma azia sobe devagar pelo estômago e espalha acidez pelo corpo todo. O celular queima na minha mão. Eu sei o que fazer. Tirei o bebê faz três meses. “Não cabe uma criança na nossa vida, gata, você sabe disso”. Abriu minha mão e colocou a grana lá, junto com o papel onde estava escrito o telefone. “Eu vou com você, prometo”. Ele não foi. Eu tirei o bebê. A sala de espera era azul e tinha cheiro de formol (talvez fosse um menino). A mulher era gorda, o cabelo alisado e seboso, mas tudo parecia limpo. Na hora, foi até rápido. Depois vieram as cólicas e o sangramento. A mulher falou que podia acontecer. Ele mandou mensagem dizendo que não tinha dado e pedindo desculpas, quis saber se eu tinha feito mesmo. “Fiz sim”. Desde então, tenho essa azia. Vou até a cozinha e busco uma maçã. Com certeza vai melhorar a acidez e calçar o porre que, se tudo der certo, eu vou tomar sozinha. Sento na mesma poltrona. A chuva agora é grossa, rápida e bate na janela com força. Olho de novo pro telefone, tenho cada vez mais certeza. Minha mãe chega encharcada em casa e pergunta se eu vou sair. Ela sabe, está me vendo toda montada, mas gostar de perguntar. Elogia a maçã e diz algo sobre a importância das frutas. Ela nunca soube do bebê e também não pergunta muito da minha vida. Chuva na janela, chuva nos carros, chuva. Eu sei da história do Giga com a Manu faz dois meses. Ele mesmo me apresentou pra ela, como se nada. Logo depois os telefonemas e as mensagens começaram a rarear. Ele simplesmente sumia. No começo, fiquei esperando ele chamar a filha da puta pra trepar com a gente, mas nem isso. “A égua é pudica!” – o Dudu disse, rindo pelos cotovelos e fingindo não ter prazer em me foder. O Dudu tinha esse um sadismo explícito quando ficava louco. Erguia a sobrancelha esquerda, só uma, e lá vinha bomba! Ele me apresentou o Giga numa festa da faculdade. Se eu sabia quem ele era? Todo mundo sabia! Ele chegava sempre tardão e reluzia de tão preto, entregando o bagulho de mão em mão e ganhando abraços. O cheiro dele me excitava

O Giga fica me observando quando entro no carro e não diz nada. Abro um pouco as pernas pra quebrar a tensão da conversa pelo telefone (ou pra fugir do assunto), mas ele só aceita o beijo e dá a partida. O som é alto e não precisamos conversar. Às vezes, ele canta. Para na porta e diz: vai entrando. A gente não vem aqui faz tempo porque “onde se ganha o pão não se come carne”, mas foi um dos primeiros lugares onde ele me trouxe. Fico mais vidrada do que o normal, sei lá, pode ter alguma coisa a ver com o PH. As luzes coloridas da pista de me engolem, a expectativa dá um barato extra. Danço até sentir o cabelo da nuca molhado e as pequenas gotas de suor descendo pelo meio dos seios. Danço! Danço com quem vier pela frente, danço até ele me pegar, chupar as gotas da minha nuca e me levar pro canto do lounge, do outro lado da pista. A mão dele pesa tanto na minha que caminho um pouco torta. Ele aperta meus ombros com força, me fazendo entrar pela porta giratória. Vou ficar com marca. Já sei. Tudo igual aqui dentro. Fumaça, sofás, aquele móbile bizarro com umas barbies penduradas e o casal de sempre quase trepando (devem ser contratados da casa, não é possível). O ar parece mais seco e o sofá aveludado, mais nojento. Não quero sentar ali e vamos para o outro lado da sala. Encostamos no balcão e peço uma linha fina, só pra completar. Quero segurar a onda, quero lembrar de tudo em detalhes e fazer tudo como combinado. Ele oferece uma linha também pra a DJ que vem entrando. Tem franja igual à mulher da clínica. Ele já comeu essa também, certeza, mas não abro a boca, o som é alto demais e estamos no auge do faz-de-conta. Ele, eu, ela, todo mundo brilhando e dançando; tudo numa boa. Respiro a fumaça e a azia volta. Sinto um gosto acre na boca e tudo gira, primeiro porque as luzes giram mesmo, depois porque estou revirada. Penso se o enjoo da gravidez seria parecido enquanto ele grita algo no ouvido da mina. Ela ri, puxa a orelha dele, olha pra mim e vai embora, sumindo pela porta giratória. Ele me encosta na parede e começam os trabalhos: aperta minha bunda por cima, depois por baixo da saia, puxa e solta minha calcinha, mete a mão quente e larga por dentro dela, mas não quer me dar prazer. Tira a mão, sobe pela blusa. Fujo da boca dele para respirar um pouco. Ele me pressiona uma, duas, três vezes contra a parede pra eu sentir seu pau bem duro. Começa a tremer daquele jeito dele, e puxa meus mamilos até machucar, e puxa mais forte, e aperta, e eu não grito. Não falo nada dessa vez. Só encaro os feixes de luz roxa e as barbies peladas balançando perto do teto. Lembro da chuva colorida lá fora e penso no que vai acontecer. Abro bem a boca, ergo os braços acima da cabeça e finjo uma dança. E no final, vem sim um certo prazer, mas talvez não dê nem tempo de gozar. Daqui a pouco os meganhas entram e tá tudo resolvido.

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Hum.

Profs

O que eu queria te dizer é que eu levo o vlog muito a sério. É uma profissão. Tem que pesquisar, filmar, editar. Dá pra ganhar dinheiro, profs. Se levar a sério.

É sim. Estou ganhando muito dinheiro sabia? O problema é que não sobra muito tempo pra outras coisas.

{Nathalie Lourenço}

Como estudar.

Como estudar.

Dona Leah começou a limpar um osso com a ponta da faca.

Posso sentar aqui, Fessora?

Já estava na cadeira antes de ouvir a resposta. Do pescoço para cima, Geórgia parecia alguém saído de uma revista. Blush, iluminador, sombras em tons de pele, tudo aplicado nas áreas certas, davam ao seu rosto a impressão de um pôster retocado no photoshop, com a única diferença de que ela se movia. Além disso, ninguém que aparecesse em revista viria a uma lanchonete sebosa como aquela, onde os balcões se colam à pele do braço se você se apoia neles. Era só ao baixar os olhos que dava para perceber que ela era mais uma aluna. Vestia o uniforme vermelho e branco, um par de tênis novos, tudo em tamanhos largos que disfarçavam a pequena borda de gordura que escapava pelo elástico da calça. Era quinta-feira, dia de rabada. Geórgia sabia que ela estaria ali. Dona Leah, professora de física. A professora tinha a cara, corpo e cabelo de quem comia rabada às quintasfeiras. A senhora, de rosto chupado e raízes brancas no cabelo, não pareceu muito interessada mas assentiu com a cabeça, sem tirar os olhos de uma cartilagem mais teimosa. Geórgia passou os olhos pelos balcões, depois pelas mesas de fórmica, cada uma com seu saleiro cheio de arroz, sua lata de “azeite” com dois furos no topo e o porta-guardanapo de metal que continha um papel tão fino e impermeável que só servia para espalhar mais a sujeira. A barra estava limpa. Nenhum outro professor. Dois ou três alunos bebendo refris em uma mesa do lado de fora. Você já viu meu Vlog, profs? E vendo a cara de confusão da velha: É um canal no youtube. Maquiagem, cabelo. Isso tudo. Fez um gesto circular em torno do rosto. Dona Leah limpou um pouco do molho castanho que caiu no suéter. Não costumava lembrar bem de todos os alunos, mas aquela vivia com a cara empastelada. Impossível não notar. Além de tudo ia mal, e quando havia exercícios na lousa, evitava sempre o contato visual.

Não diga.

Não sou muito de Youtube.

Tudo bem. Mas olha. Mais de 20 mil seguidores. Outro dia ganhei uma caixa da Avon. Está vendo? Pega um batom. Vamo, pega. É da linha nova.

Só que o tonto do meu pai não entende. Não entende que youtuber não precisa de diploma. Ele quer que eu tenha média sete. Não tem condição de estudar tanto e filmar, editar, responder comentário. Daí...daí eu pensei que a gente podia dar um jeito. Eu tou bem nas outras matérias. Menos na sua. Eu posso te passar uns exercícios a mais. Valendo nota. Vai dar certo, menina. A risadinha da menina não encontra saída pela boca, e acaba virando uma fungada pelo nariz. Não tenho tempo pra isso, profs. Não é mais fácil você me vender o gabarito da prova? Quanto você quer? Mil? Dois mil? Com um bastão de polenta frita, Dona Leah foi limpando a grande lagoa de molho que restava no prato. As unhas eram bem feitas. Escuta, menina. Isso que você tá propondo é muito sério. Já pensou no que acontece se alguém descobrir?

Três mil? Mais do que isso é forçar a barra, profs.

Eu gostava de dinheiro também quando era nova. Agora não gosto tanto assim.

Todo mundo gosta de dinheiro.

Eu gostava muito. Quando eu tinha sua idade. Eu gostava de livros. Livro era muito caro. Doce também. E meu pai era durão, como o seu. Mais, até. Bem mais. Não queria saber de bobagem. Daí fiz como você. Dei um jeito de me virar. Pra ter o meu dinheirinho. O prato agora estava repleto de guardanapos rasgados, amassados em bolinhas, torcidos. Geórgia pegou também um guardanapo, que começou a dobrar em tiras cada vez menores. Mas não tinha youtube. E eu também não levo jeito pra maquiagem. Agora pra matemática… eu era muito boa, você pode imaginar. Comecei a cobrar por trabalhinhos. Fazia as lições de casa. Trabalhos de grupo. Passava cola nas provas.

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SUBMARINO | JOGOS Hahahah, o que foi? Acha que eu nunca fui jovem?

Deu certo?

Por um tempo deu, sim. Eu era bobinha. Achava que ninguém estava olhando. Que os adultos eram meio idiotas. Você me entende. Entende não, é? Hum-hum. Pois bem. Muito esperta. Mas eles não eram tão idiotas assim. Ainda mais o professor de matemática. O Pontes. Eu gostava dele e achava que ele gostava de mim. Me chamava sempre pra responder às perguntas difíceis. Só que de repente, eu não era mais a melhor aluna da sala. De repente, metade da sala acertava as mesmas questões na prova e errava nos mesmos pontos. Entregava lição de casa com os mesmos resultados. Ficou na cara. Quando penso nisso hoje, me dá até vergonha. Daí, um dia, o Pontes ia dar a última aula. E, antes de liberar a sala, ele disse Leah, você fica. Você consegue imaginar o que aconteceu? O guardanapo nas mãos de Geórgia estava agora bem fino, e ela o enrolava e desenrolava no dedo indicador. A professora afastou a mão direita de Geórgia e com três dedos tirou dela o caracol de papel. O rosto imóvel da aluna parecia mais do que nunca um recorte de revista. Nada. Nadinha. Ele me deu um pito, deve ter falado até a língua inchar. Ameaçou contar pro meu pai se aquilo acontecesse de novo. Justo eu, uma aluna tão boa. Hahahaha. Já estava anoitecendo quando ele terminou a lição de moral. Eu estudava à tarde. Eu morava longe. Estava um caco depois da bronca. Acho que estava tremendo por ter sido pega, porque ele me ofereceu uma carona. Meu pai também notou que eu estava tremendo. Notou também o carro com um homem mais velho na porta de casa. E o que eu disse pra ele que aconteceu, foi tudo aquilo que você pensou que ia acontecer quando eu disse que ele ficou sozinho comigo na sala. Meu pai era um cara durão. Muito mais que o seu. No dia seguinte, no meio da aula, quase arrebentou a porta e, depois, a cara do Pontes. Ali, na frente de todo mundo. Voou cuspe e sangue em toda a primeira fila. Papai arrastou o sujeito para a sala do diretor e, quando acharam a minha pasta no carro dele, não tiveram nenhuma dúvida. Demitiram o homem, sem dó nem piedade. Agora - toma um gole do gelo que derreteu dentro do copo - você sabe porque estou te contando isso, menina? Não. Porque eu não sou o Pontes. E você, definitivamente, não é eu. O batom oferecido pela aluna continuava sobre a mesa. Com um movimento desastrado, Leah se levanta com a bolsa no ombro, e uma das alças escorrega pelo braço. O gabarito sai 5 mil. E você vai tirar só 8,5, senão ninguém acredita. E olha, vê se não esquece de pagar a rabada antes de sair. | 21 |


memorias O recado Jean Carlos Ferreira Craudia Ale Kalko NĂŁo pode ser ela Wagner Machado Guia breve das chuvas em SĂŁo Paulo Ian Uvierdo Olhando pela janela suja Eva Lazar Arte Eduardo Kerges



o Recado

agora e dizer umas verdades e mandar ele chispar. Balançou a cabeça “Não vou procurar sarna pra me coçar, tá doido? Silicone, botou até silicone. Onde fica esse Sweet’s mesmo? Não pode ser pra esses lados. Era melhor saber para não passar nem perto”. Retrocedeu até o muro. Ficava numa rua conhecida. “Lindas garotas esperam por você”, a frase grudou na mente pelo resto da manhã e, na hora do almoço, estava no endereço, em frente ao sobrado azul de portão carcomido, espremido entre dois prédios caindo aos pedaços. Trêmulo, enfiou o botão do interfone temendo que um alto-falante ecoasse pela rua avisando que ele estava li, o interfone chiou, ninguém disse nada, o trinco fez claque, empurrou, entrou. Uma sala pintada de branco, duas poltronas, uma escada dava para o primeiro andar. Ao lado da entrada, uma recepção protegida por uma vidro fumê com uma pequena abertura.

{Jean Carlos Ferreira}

Panfletos espalhavam-se ao redor do garoto, pisados por pés apressados no final do expediente, misturando-s à água que escorria de dentro dos botecos semicerrados, unindo-se a anúncios de restaurante a quilo, promoção cabelo mais unha, compra de ouro, de dívida, guimbas e papéis de bala. Odair pegou o panfleto num gesto automático. Normalmente joga no lixo sem olhar, mas o papel couché liso e o choque de cores despertou um segundo de sua curiosidade. “Sweet’s Venha desfrutar de uma moderna casa de massagem”, no canto em letra cursiva “Lindas garotas esperam por você”. Logos no rodapé informavam que aceitavam todos os cartões, incluindo Sodexo. Três mulheres seminuas em poses provocantes. A primeira garota fazia shiii com o indicador, a segunda empinava a bunda, a terceira, inclinando-se para frente, cobria o bico dos peitos enormes com as mãos. O olhar rápido foi suficiente para que percebesse algo de estranho na terceira, talvez o vinco da bochecha, o jeito que apertava os olhos, ou seriam os ombros largos? Num impulso, embolou o papel e jogou na sarjeta, para ser carregado por uma água imunda. Era o Roberto, a constatação foi como uma agulha no estômago. Enquanto cruzava a rua em direção à estação, foi tomado por uma inquietação repentina. Parecia que todos na rua chegaram à mesma conclusão de que era Roberto no panfleto. Foi tomado pela vergonha, começou a andar rápido, cabeça baixo, evitando olhar pros lados, até ser engolido junto com mais pessoas pela boca da estação Bresser-Mooca. Ao ser regurgitado no dia seguinte, na saída do metrô, deu de cara com um muro recoberto de ponta a ponta por cartazes do Sweet’s e lá estava o Roberto segurando com vontade os peitos como duas bexigas d’água. Quase arrancou furioso. Se Roberto aparecesse ali naquela hora, nem sabe do que seria capaz, iria extrair aqueles peitos à força, ou coisa pior, dava uma surra bem dada pra ele se mandar.

“O que vai ser, camarada?”, uma voz masculina vazou pelo buraco “O que foi?” inclinou-se quase encostando o ouvido no buraco

“Vai querer o que?”

“Quero ver o Roberto”

“Que? Como assim?”

“Vim atrás do Roberto, ele trabalha aqui, não trabalha?” O homem, percebendo se tratar de um cliente novo, disse “O senhor não quer dar uma olhada aqui no cardápio” e empurrou pela abertura um menu plastificado e espiral. Folheou o cardápio de poucas páginas, tava lá a foto do Roberto no final, 250, carinhosa, faz o que o cliente pede. Enfiou de volta com a foto pra cima. “Ah… a Natacha, ela não tá aqui agora não” explicou o atendente puxando o menu para dentro. “Tem certeza que ela não tá, a Natacha?” “Só a partir das dezessete, e já vou falando que aqui só tem ela que… quero dizer, o senhor sabe... que é travesti. Será que o senhor não quer experimentar outra não? Tem uma mulherada boa aí. A Andressa, essa aqui ó” Empurrou o cardápio de volta para fora “o pessoal faz até fila aí na rua, ela tá livre agora” “Não, só pode ser ele mesmo. Sabe me dizer onde eu encontro ele agora?”

“Caramba, se os clientes, se o seu Zé (já pensou o seu Zé?), sabem de uma coisa dessa, meu Deus, vai ser assunto na igreja dele”.

“Veja bem, meu senhor, aqui no nosso estabelecimento a ética é tudo”, disse meio impaciente “É proibido dar informação sobre as nossas profissionais. O senhor não acha melhor voltar quando ela tiver aqui, deixo reservado pro senhor”.

“Parece ele, mas não é não, só pode ser engano, não é possível, ele tá morto. Pronto. Morto. Se tiver vivo, que esteja vivo, mas lá na pqp, no raio que o parta. Mas se aparecesse aqui agora, tomava uma surra. Quer saber, podia ir lá nesse lugar

Odair curvou-se e botou a cara na abertura do vidro “É que ele é meu irmão”. Como outro não disse nada repetiu “Tô aqui atrás dele porque ele é meu irmão” e emendou, quase numa prece

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SUBMARINO | MEMÓRIAS “O senhor não me faça voltar aqui de novo, pelo amor de Deus… onde eu encontro o Roberto, esse aí da foto? Preciso falar com ele”. Acuado como se com uma arma na cabeça, o homem por trás do vidro respondeu “Ela falou que ia na UBS Sé, tinha consulta hoje, às treze”. Odair precipitou-se em direção à saída. Se no final fosse só um traveco parecido com o Roberto, que quisesse tirar proveito da situação, como ele ia sair dessa? O problema é que tinha uma dívida com a mãe e não podia deixar a oportunidade passar como queria. Não adiantava fugir. Pegou o metrô e foi dar no posto de saúde na Frederico Alvarenga. Foi até a sala de espera, olhou em volta, TV ligada no telejornal, funcionários aborrecidos, um guardinha tentava conduzir para fora um morador de rua, um casal falava em castelhano, uma criança chorava como se estivesse com espinhos na roupa, uma tosse encatarrada. Nenhum rosto esperado. “É tu, Odair” uma vez nasalada chamou, tava encostada na parede, próxima do banheiro. “Sou eu, teu irmão, o pessoal do Sweet’s avisou que tu foi lá atrás de mim. Que mundo pequeno, homem? Não é que tu foi me achar aqui em São Paulo”. Vestia uma calça jeans desbotada, uma blusa de alças finas, sutiã sustentava formas exageradamente redondas, uma tatuagem de uma roseira no braço, o cabelo totalmente diferente do panfleto, desbotado. Sem maquiagem, crateras na pele e manchas avermelhadas nas comissuras da boca, Roberto parecia com ele, ou com o pai, o avô. Envelheceu tanto que não era o mais novo, agora tinham nascido no mesmo dia. “Sabe por que eu vim aqui?” a voz de quem quase não falou o dia inteiro. “Porque nossa mãe pediu. Se eu não te encontrasse ela não deixaria em paz nunca. Não queria te achar não, só que toda noite é a mesma ladainha: Odair, vai atrás do teu irmão, vai atrás do teu irmão e diz que eu tô olhando por ele e que é pra ele se cuidar”. Uma mulher anunciou do corredor: “Roberto Dias de Oliveira”.

Natacha suspirou aliviada.

“Até que enfim… tô aqui tem duas horas, pode um negócio desse?”, e como quem conta um segredo disse: “Ela vem me visitar de noite também, Odair, e me manda te dar o mesmo recado. O espírito da coitada não sossega, mandei rezar missa, acendo vela todo domingo”.

CRAUDIA {Ale Kalko}

Craudia, moradora de rua, foi atropelada enquanto dormia sob a marquise do Empório Doces Carioca no Largo do Arouche. Crash. Morreu. Um sorriso caolho. Saia azul, camiseta verde, um par de havaianas do mesmo pé, o esquerdo. A mão cheia de anéis de plástico que vêm de brinde no suspiro. As unhas com o esmalte descascando. Os olhos abertos vigiando uma sacola de feiras vazia pendendo pra direita pela ausência da rodinha. Uma morta sem sobrenome que não sabia sua idade, mas era a do meio de sete irmãs. Todas fofoqueiras. Chegou em São Paulo há mais tempo que os dedos podiam contar. Veio caminhando de Morato, cidade que a autora nunca viu no mapa, mas segundo a própria Craudia, era vixe, longe. O encontro da autora com Craudia Cruzou Craudia na descida da Consolação. A sacola de feira sem uma das rodas arranhava a calçada. Não sei ler as letras mas sei chegar nas coisas. Vou dormir lá no Arouche. Deixei o homem belbo mijado lá pra trás. Me atrasa a vida e ainda tenho que aguentar o fedido. Quero gente que puxe meu passar pra trás, não. Vou descansar um pouco aqui e já sigo, dona. O bombeiro do Corpo de Bombeiros da Consolação A gente sempre guardava um pouco do almoço pra ela. A Craudia sempre tinha fome e riso. O vigia do estacionamento da Consolação A Craudia vinha aqui toda semana, pedia pra deixar as coisas dela e tomar banho. Eu deixava e ela me fazia uns favor. Favor sem dentes é muito bom, viu. O bêbado mijado Ela me deixou pra trás e levou minha cachaça. Milleny, travesti em situação de rua A Craudia tinha um cabelo bom. Dormia às vezes aqui com a gente na saída do Metrô. Eu pintava a unha dela quando tinha esmalte. Às vezes ela me dava um anel. Posso ficar com esses?

“Robert Dias de Oliveira” anunciou mais uma vez a mulher já impaciente.

Os chinelos A Craudia encontrou a gente em dias diferentes e nunca percebeu que somos do mesmo pé.

“Fica com Deus, Odair. E tu trabalha com o quê?”, e saiu atrás da médica.

A sacola de feira vazia com a rodinha quebrada Eu até hoje não sei porque ela me arranhava pela rua. Nunca guardou nada em mim. Nem latinha.

“Vendedor”, respondeu, mas não sabe se ouviu. Natacha já havia sumido corredor adentro.

A irmã mais nova Morreu, foi?

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nao pode ser ela

“Achei que tu viraria padre, algo assim”, eu disse enquanto tomávamos os primeiros pints ainda no balcão, no aguardo de uma mesa. “Era todo certinho”. Ele riu e consegui interromper seus relatos sobre como triunfou na dificílima disputa por uma vaga na Faculdade de Medicina. Falamos dos jogos de botão, de canastra e das trilhas que fazíamos todos os anos durante as férias de inverno no sítio de sua família. Recordávamos e contávamos histórias como a um ouvinte que não tivesse participado delas.

{Wagner Machado}

“Gass! Era esse o sobrenome dela!”, disse Mateus enquanto vestia as luvas de lã na saída do bar, sorridente por ter-se lembrado. Baforei as mãos em concha e procurei o isqueiro no bolso da jaqueta jeans. Teria apenas a chance de dar umas poucas tragadas e jogar fora o cigarro quase inteiro – e só me restavam mais dois na carteira. Fumar no carro do meu amigo estava fora de cogitação, com os vidros fechados por causa do ar quente. E ele não esperaria debaixo do sereno, não só pelo frio de julho, também pela implicância adquirida desde o momento em que soube do meu tabagismo, horas antes. “E tu fuma desde quando?”, perguntou ao flagrar minha última pitada já no toco de um cigarro enquanto o esperava em frente ao meu prédio, surpreso com meu novo hábito, apesar de eu já ser fumante há mais de dez anos. É que nesses reencontros se descobre nos outros muitas mudanças e hábitos aparentemente estranhos à essência de quem os adquiriu. Matheus me localizou pelo Facebook, propôs um reencontro e depois de 15 anos me encontrou fumante, logo submetido sem trégua a suas broncas de jovem cardiologista. Mesmo década e meia sem quase nenhuma notícia um do outro, eu sabia que a trajetória de Mateus compreendia o orgulho de seus pais, férias gastas em euros e american express, sucesso profissional e pessoal materializados no Chrysler preto que eu não soube reconhecer sob a pouca luz da minha rua, no casaco peacoat grafite encimado por um cachecol, no marfim do sorriso emparelhado (a última vez que o vi, usava aparelho ortodôntico) e na valise preta de couro que com medida displicência me recomendou jogar no banco de trás. E ele, se não sabia, poderia supor a deriva em que flanavam meus passos durante esses anos todos.

Foi ele quem mencionou primeiro o nome da Ana. “Ela veio pra Porto Alegre estudar, curso técnico. Ficou um tempo lá em casa, quando eu ainda morava com meus pais”, ele disse, dando um sorriso que não pude entender. Ana era a filha do Ernesto (“baita goleiro, lembra?”), o caseiro do sítio da família do Matheus. Tinha a pele muito clara, os cabelos loiros de fios bem finos e olhos azuis que a tornavam espécime exemplar da imigração alemã no Rio Grande do Sul, confirmada pelo sotaque do qual ríamos sem que ela se incomodasse. Ana era o motivo secreto pelo qual eu ainda ia nas férias para o sítio do Matheus quando montar a cavalo já não me mobilizava tanto. “Uma noite ficamos só nós dois em casa, e eu convidei ela pra tomar um vinho do meu pai”, o Matheus falou. “Foi a primeira vez que eu bebi na vida”, ele disse em tom confessional. “Depois a gente foi pro meu quarto, daí eu nem preciso te dizer o que aconteceu”. Ele queria que eu demonstrasse curiosidade e o instigasse a me contar os pormenores, eu sei. Não consegui. Tentei diversas vezes mudar de assunto, mas daquele momento até nossa saída do bar, por volta das três da madrugada, a Ana foi o tema quase único da nossa conversa. Senti raiva. Era diferente essa história de sinhozinho violando a criada que ele me contava com aquela vez em que fui com Ana até o galinheiro e Matheus preferiu ficar jogando videogame em frente à lareira. Eu gostava mesmo dessas coisas do campo, o Matheus não ligava. Ana e eu falamos de coisas que ele não entenderia, nos beijamos, desvirginamos um ao outro entre os tambos, no relento de uma tarde fria e ensolarada.

O carro cheirava a novo. Matheus, a banho e loção pós-barba.

Voltamos quando já anoitecia. Tanto o pai da Ana quanto a mãe do Matheus, cada um com uma lanterna na mão, gritavam nossos nomes nos arredores da casa. O pai a levou aos gritos, prometendo “tirar o couro” da guria. Eu tive que suportar a humilhação de levar bronca de uma mãe que não era minha. À noite, senti que deveria contar tudo para o Matheus, até hoje não sei se pela cumplicidade que a amizade adolescente supunha ou se eu queria publicidade para o meu feito. Reluto em aceitar essa última hipótese. Meu amigo ficou em silêncio. Pegara no sono ou fingia.

“Quanto tempo”, meu amigo exclamou sem desfazer o sorriso. “Aonde vamos beber?”, perguntou após alguma conversa sem importância, tentando me deixar à vontade. Escolhi um bar do tipo pub na Cidade Baixa, considerando que estava na intersecção entre um lugar suportável para mim e salubre para ele. Acertei, acho. Eu sabia que ele faria questão de pagar a conta e eu sem sucesso tentaria impedir.

“Um dia ela recebeu uma ligação”, o Matheus seguiu relatando. “O Ernesto tinha tomado veneno de rato. Morreu na hora”. Disse que a Ana voltou para o interior, abandou a escola e nunca mais voltou. “Parece que voltou a morar em Porto Alegre, mas nunca mais vi. Ouvi falar que estava na vida, sabe? Fazendo programa”, ele disse. Sugeri que procurássemos ela no Facebook, mas nenhum de nós

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SUBMARINO | MEMÓRIAS dois lembrávamos o sobrenome do Ernesto e da Ana. “Era um sobrenome alemão”, eu disse, sem ajudar em nada. Ficamos ambos em silêncio um tempo, tomei um último gole já indesejado de cerveja e o Matheus, com o copo pela metade e sem espuma, foi ao banheiro. “Tá pago. Vamos nessa”, falou ao retornar, tentando reaquecer a conversa. Saindo do bar ele conseguiu lembrar o sobrenome da guria. “Ana Gass”, eu disse, acendendo o cigarro. E não se falou mais sobre. Como para fazer uma surpresa, Matheus dirigiu por ruas que não levavam à minha casa e disse: “Já sabe onde estamos indo né”. Eu não sabia, e nem desconfiava que o meu amigo pudico e familiar pudesse desembocar na avenida Farrapos. “Só pra dar uma olhada e tirar um sarro”, ele falou, e entrou em marcha reduzida, baixando o vidro na rua do baixo meretrício porto-alegrense. “Quem sabe a gente acha ela”, olhou nos meus olhos. Diante de cada mulher que se exibia na calçada, o Matheus parava e fazia propostas. “Mostra os peitinhos”, dizia para uma. “Aqui no carro tá quentinho, tem ar condicionado. Entra aí”, falava para outra. “50 pila pra nós dois?”, regateava. “Barba, cabelo e bigode?” Para as trans, falava barbaridades. Eu tentava e não conseguia embarcar na diversão do meu amigo. Quase na esquina da avenida São Pedro, zanzava pela calçada uma moça alta e loira, com botas, meias arrastão e minissaia pretas e um casaco de peles vermelho entreaberto, revelando não ter nenhuma peça de roupa sobre o agasalho. Passamos em frente a ela, minha visão era mais privilegiada porque a calçada era do meu lado. Fazia muitos anos e, se fosse ela mesmo, tinha mudado bastante. Parecia ter os lábios mais finos, as orelhas mais projetadas para fora, os olhos mais profundos, as mãos mais ossudas. Era mais alta, mas podia ser por causa das botas. Nem Matheus nem eu dissemos uma palavra, mas creio que ele reparou meu pescoço virando à medida que passávamos por ela. O carro entrou na primeira esquina e eu deixei a cabeça cair no encosto. Será que era ela? Não pode ser! “Chega né. Vamos embora?”, o Matheus decretou fingindo estar fazendo uma pergunta. Acelerou o carro, ambos permanecemos em silêncio até chegar à minha rua. Despedimo-nos com a promessa de não perder contato. “E vê se larga essa porcaria”, ele bronqueou. Vi os faróis do Chrysler sumirem e acendi meu penúltimo cigarro enquanto quase amanhecia. Terminei de fumar, amassei a bagana com o pé, corri até a avenida e procurei um táxi. “Farrapos com São Pedro”, falei ao motorista, que me deu uma piscada. Não correspondi. Chegando ao local, a loira não estava mais lá. Desci do automóvel mesmo assim, só porque não sabia o que dizer ao taxista. Imaginei o Matheus pedindo um espumante só para impressionar, mostrando a brancura dos dentes em uma suíte de motel. Acendi meu último cigarro. Logo mais já teria alguma padaria aberta para eu comprar outra carteira. | 27 05 |


guia breve das chuvas em sao Paulo {Ian Uviedo}

São Paulo pede por chuva, pensei ao sair do apartamento da minha irmã. Lá dentro, minutos antes, ela estava sentada no sofá e eu observava a tempestade através da janela. Eu via guarda-chuvas brotarem lá embaixo como pequenos gerânios, e a cruz da capela de Santa Cecília, que estava totalmente envolta nas nuvens. Me enchi de ternura e tristeza, eram cinco e meia da tarde de domingo, eu estava sóbrio e desocupado. Decidi que deveria me juntar à massa. Daí que eu pensei que toda a estrutura da cidade, todas as vielas, as bocas de lobo, todos os bares, tudo clamava pela chuva. Não existe nada mais natural que abrir um guarda-chuva em São Paulo. Debaixo do sol São Paulo funciona, mas sem graça e meio opressora. Chuva é caos e intimidade. Cheguei ao metrô e soube que aquilo não era para mim, passar vinte e cinco minutos debaixo da terra enquanto aqui fora acontece esse espetáculo de luzes cinzas, melhor se agarrar ao guarda-chuva de bolinhas brancas e seguir a pé.

Chegando próximo ao metrô paulista me veio então essa ideia: escrever um guia prático de chuvas em São Paulo. Crônicas sobre como cada bairro reage à chuva. Crônicas sobre guarda-chuvas. A ideia se dilui quando lembro que meu gato sumiu há dois dias. Toda aquela ternura se converteu em preocupação; não é nem um pouco divertido ser um pobre gatinho na chuva. Fechei o guarda-chuva de bolinhas brancas e entrei no Belas Artes. Minha pele estava quente. Subi as escadas, pedi um café e me sentei num dos bancos altos ao lado da janela. Anoitecera e eu nem tinha percebido. Se estivesse com meu caderno, cogitei, poderia escrever alguma coisa agora. De repente me senti cansado. Era melhor não pensar em nada. Era melhor tomar o café, sozinho no cinema, olhando para a rua num domingo chuvoso.

Eu estava seguindo até a Paulista, o ponto mais alto da cidade. Não teria problema de alagamento em qualquer parte do caminho. Na Santa Cecília no máximo havia largas poças d’água para eu mergulhar as botas, córregos detritívoros nas sarjetas, e escorregões estúpidos em chãos de azulejo. Pensei em como deveria estar a região do Palmeiras, lá alaga por qualquer garoa; e também nos carros em estacionamentos subterrâneos na Vila Madalena que uma hora dessas deveriam estar flutuando e se colidindo alegremente. Segui o Minhocão e entrei à esquerda na General Jardim, fiquei com vontade de passar em frente à aliança francesa, meio por nada. Na Lanchonete da Cidade dois velhos fumavam em silêncio, olhando para a rua. Queria eu ser um velho que fumasse em silêncio num domingo chuvoso. Mas continuei andando. Certamente a energia já caiu lá em casa, pensei, é normal em bairros arborizados. Antigamente começava a chover e nós pensávamos nas roupas no varal; agora, em arquivos no Word que esquecemos de salvar. Será que, assim como os animais, os guardachuvas das pessoas também refletem a personalidade delas? Provavelmente não. Os mausoléus no cemitério da consolação luziam no crepúsculo, bonitos. | 28 |


SUBMARINO | MEMÓRIAS barraca, onde um jato de água gelada era jogado por um minuto. Sem toalhas, e a gente se secava com os trapos que serviam de roupas.

olhando pela janela suja

Era terrível, e nem todos conseguiam esse banho semanal. Havia algumas torneiras no banheiro dos prisioneiros e no inverno a última torneira da direita não congelava, por ficar mais perto da parede onde ficava o fogão da cozinha do outro lado, e escorria um fio de água. Algumas mulheres sacrificavam 1 hora das 4 que nos davam para dormir e corriam para esta torneira, se lavando com o fio de água até a caixa esvaziar. Eu ia logo para pegar a fila no começo e garantir um pouco de água, principalmente quando estava menstruada. Uma vez tive de derrubar uma mulher, ela escondia sua febre para não ser morta, e cheguei a tempo na fila. Me olhava com os olhos azuis enquanto caía, e eu continuei como atleta na linha de chegada.

{Eva Lazar}

Minha querida mamãe:

O vazio da sua distância me faz te escrever esta carta. Há muito tempo não nos vemos. Talvez por hoje ser o Dia das Mães, tive o impulso de contar algumas coisas passadas na guerra; somente agora tomo a coragem de te relatar. Espero que entenda a magnitude da minha tristeza. Como o tempo passou, acredito que os fatos cheguem a você mais suaves, como recordações e não confissões. São fatos isolados, me vêm à cabeça desordenadamente e prefiro ir descrevendo sem preocupação de cronologia; mais como desabafo mesmo. Alguns dias depois de chegar lá, foi escolhida a equipe para cozinhar para os soldados, oficiais e prisioneiros. Me candidatei, junto com duas amigas, a Martha e a Edith. Dissemos que tínhamos experiência de trabalho na cozinha de um restaurante antes da deportação. Éramos jovens, eu com 22 anos, e para nossa sorte, resolveram acreditar. No dia seguinte começamos. Essa função acabou sendo o fator determinante para sobreviver. Cozinhando no barracão, conseguia de vez em quando roubar uma fatia a mais do pão horrível, feito com ingredientes estragados na maioria das vezes. Também às vezes uma colherada a mais de sopa, na hora de lavar as panelas. Era difícil o momento de servir os outros prisioneiros a pouca quantidade determinada, ver os olhos deles e ouvir as palavras implorando por um pouco mais. Tinha bastante gente conhecida, antigos vizinhos e colegas de escola. Eu respeitava rigorosamente a quantidade prescrita, pois os soldados nos vigiavam e se me pegassem servindo a mais eu perderia aquele trabalho. Então eu fazia o que tinha de ser feito, era absolutamente precisa. Trabalhava olhando para fora pela janela suja do refeitório. A visão me ajudava. Para os guardas tinha também batata e de vez em quando alguma carne e as quantidades eram liberadas. Eles repetiam. Uma madrugada o desespero da fome nos fez correr o risco de sermos enviadas para a câmara de gás: alguns alimentos tinham sido entregues de tarde, 3 de nós invadimos a cozinha e conseguimos abrir uma geladeira e roubar 1 quilo de manteiga. Comemos o bloco grudento com as mãos, escondidas no banheiro, sabendo como a falta da rara presença de uma fina camada de manteiga no pão seco tornaria a vida dos colegas ainda pior. A gente até ria, alegres por ingerir aquela gordura rançosa. Outra dificuldade grande era a higiene. Como o trabalho no campo era na mina de carvão, os lugares eram cobertos de uma poeira negra e pegajosa. Os problemas de pele eram comuns e não havia nenhum tipo de creme ou medicamento. O banho era uma vez por semana, com um monte de prisioneiros nus numa

Um dia minha colega Martha, uma loirinha ruiva, achou um pedaço de sabão, que tinha caído no chão atrás da pia do banheiro dos oficiais, onde fazia a faxina. O fio de água da torneira na madrugada foi um banho de rainhas para nós 2. Tirei a camada mais grossa de recordações impregnadas na pele, ficou lisa, quase macia. Eu recusei uma fatia de pão que uma prisioneira, morrendo de fome, quis trocar pelo meu sabão. Ela tinha a pele negra de cinzas e com uma grande ferida de carregar carvão nos braços. Falei para ela comer o pão, tinha de se alimentar. A gente tinha de ajudar. O pior eram os piolhos. Na cozinha a gente usava um tipo de turbante, escondia bem. Eu roubava umas gotas de óleo de cozinhar na saída para, de vez em quando, esfregar o couro cabeludo e diminuir a coceira. Mamãe, acho que eu conseguia inventar umas coisas boas para me ajudar a viver lá. Você teria até orgulho de mim. Eu odiava os soldados. Eles eram humanos, enquanto eu nem sabia mais o que era. Quando ouvimos rumores sobre tropas americanas chegando perto, as poucas entregas de alimentos pararam de vir e a ração diária diminuiu mais a cada dia até acabar. Os guardas também estavam morrendo de fome. No ato mais desesperado de todo aquele período eu e Edith pedimos para eles nos matarem para acabar com a tortura. Os guardas enfim nos disseram que se não chegasse alguma comida no dia seguinte atirariam em nós. Foi o momento onde nos vi um pouco mais semelhantes. Mamãe, não quero te entristecer, digo de novo, é só para saber um pouco do que passei. A minha saudade de você é tão grande. Não te vejo desde o dia da chegada, desembarcando do trem onde viajamos por 3 dias, em pé, compactados uns contra os outros, com fome e sede. A gente pisava nas migalhas dos pães que levamos e tinham caído no chão sob nossos pés. Logo depois do desembarque nos mandaram tirar as roupas. Todos nus, eles fizeram uma fila de homens e outra de mulheres, e em seguida estas foram separadas em jovens e mais velhos, formando 4 grandes filas. A dos mais velhos foi direcionada para o que descobrimos depois serem as câmaras de gás, lembra? Nunca vou esquecer a cena de você e papai, os únicos a se darem um beijo antes de cada um correr para sua fila. Essa imagem, a última de vocês, foi a que me deu força para aguentar o tempo em Birkenau. difícil.

Vou parando por aqui, querida mamãe, está ficando

Com amor, sua filha Judit.

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monstros Elefante preto com presas e chifres Wagner Machado AlgodĂŁo doce Fernanda Suaiden Like a prayer Flavio Basseto Macau Felipe Martinez Donossauro Michi Provense Arte ZĂŠ Maia


monstros (


elefante preto com presas e chifres

A terra da rua suja os pés do menino por dentro do chinelo. Misturada com o suor da caminhada, forma um tipo de barro fedido embaixo dos dedos. Com o calor, o menino enxuga a testa de beluga com as costas da mão. O mercado não tá muito longe. Nem o elefante. “A mãe tá em casa, Lucas?” Pergunta Odair, o carteiro, apoiando a mão na cabeça do elefante.

“Tá sim, Odair.”

“Tá sozinha?”

“Tá.” “Tenho umas contas pra entregar lá.” Odair faz carinho na cabeça do elefante.

“Acho que ela não vai gostar muito.”

“Ela não tem muita escolha.” Odair dá um tapinha na cabeça do elefante, na parte onde os chifres não pegam, e vai embora sem olhar para o menino.

{Wagner Machado}

O garoto abre a porta de casa e o elefante preto com presas e chifres já está lá, esperando no pátio. Debaixo da única árvore da rua, o bicho observa, com as duas bolotas vermelhas que são os olhos, a testa protuberante e as feições fora de lugar do garoto. Uma combinação que confere ao menino um apecto de feto fora da barriga. Grandes coosa.

“Lucas, onde você vai?” Pergunta a mãe da porta de casa.

“No mercado, mãe. Quero comprar bala pra Frederica.”

“Não demoraNão demora.” ela finaliza ríspida. Finaliza a mãe com um tom ríspido. Elefantes não são pretos. Têm rinocerontes pretos, mas elefantes não. A grande maioria é cinza, que é quase um preto desbotado. O de Lucas era diferente. Era preto preto. Escuro como carvão dentro do saco. Escuro como dormir bem. Elefantes também não têm chifres. Mesmo com presas maiores do que se imagina num animal desses, os chifres com certeza não deveriam estar ali. Uma galhada que mais parece a árvore genealógica de todos os humanos da terra salta do crânio e dá voltas no ar, com as pontas afiadas ameaçando todos os lados. Bicho medonho. É só olhar pra lá que ele não incomoda. Ignorando o paquiderme, Lucas caminha com as moedas no bolso. Frederica adora caramelo de doce de leite. Daqueles molinhos. Que coloca na boca e derrete. Pelas moedas, dá pra comprar uns cinco. Um pra mãe, um pra Lucas, o resto pra Frederica que gosta muito. Se não fosse Frederica, Lucas não iria até o mercado. Gosta da senhora Luce, ela tem cheiro de móvel velho de madeira. E o elefante não chega perto dela. Mas a rua é sempre muito hostil com o menino. A cada passo, Lucas sente os olhos atrás dos vidros das janelas apedrejando seu elefante. Ninguém nunca olha para o menino, o bicho puxa toda a atenção para si. Até na escola quando a professora faz a chamada e grita “Lucas?”, é o elefante que recebe o olhar de confirmação. No clube, é o elefante que entra na piscina. Sempre ele em todo lugar. Lucas é um mero enfeite na própria vida. Vai embora, some, desaparece bicho. Lucas só quer ficar sozinho de vez em quando. Só quer que Frederica chegue logo.

Lucas sabe que a vontade do elefante é matar Odair. Jogar ele no chão com a tromba e pisotear o homem, o uniforme e a bolsa de carteiro até tudo virar patê. Ou segurar o pé do Odair com a tromba e jogar para o alto, mas tão alto, que ao cair não sobre nada. Ou ainda pegar as centenas de pontas dos chifres e correr na direção do Odair com a cabeça abaixada, deixando ele todo furado e vazando. Mas o bicho não faz nada. Ele só olha com raiva e inércia. Os olhos não são vermelhos por acaso. Lucas odeia o elefante, muito. O bicho, por outro lado, parece gostar do garoto. Lucas também odeia Odair. O bicho acalma. Lucas segue. Mais duas quadras pra frente e uma virada pra esquerda. Tem muita coisa no mercado da dona Luce além das balas de Frederica. Lucas queria poder comprar muito mais. Sabe que a mãe gosta de bolo de laranja, mas o bolo custa reais e ele só tem centavos. A mãe merece um bolo de vez em quando. Cuida bem dele, de Frederica, faz janta pro pai quando ele vem. Essas moedas Lucas achou na rua, na frente de casa. Quem deixou cair saiu correndo quando viu o elefante. O garoto não reclamou.

“Ei, ei, olha quem vem lá!” Grita um menino.

Lucas fita o chão. Tarde demais.

“Lá vem ele.” Canta um garoto.

“Com o grande animal.” Continua outro.

“Que menino estranho.” Um terceiro emenda.

“Cara de débil mental.” O último termina.

As crianças da vizinhança circulam o elefante e cantam ao redor dele. Algumas jogam pedras, que batem na pele encraquilhada e dura do bichi e caem no chão. Grudam folhas e jornais noschifres.Lucasficaforadaroda.Decabeçaabaixadasegueemfrente. Quase lá.

“Que olhos são esses?”

“Como que ele vê?”

“Tão longe um do outro.”

“Parece um ETêêêê.”

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SUBMARINO | MONSTROS O elefante bufa. Mata, mata eles tudo. Pisa, morde, fura, bate, chuta, empura, esmaga, mastiga, espreme, arremessa. Vai, bicho. Lucas cerra os punhos enquanto anda sem.levabtar a cabeça. O circo ao redor do elefante continua. A zombaria em forma de música dói.

“Perto da aberração?”

“Pobre Frederica.”

“Que droga de irmão.”

“Vão pra casa, bando de moleque! Chispa daqui!” Dona Luce grita da porta do mercado.

Ao sair do alcance da visão da Dona Luce, as crianças voltam. O elefante quer matar as que o rodeiam.

Os garotos se dispersam, correndo e rindo sem ordem para todos os lados.

“Frederica coitada.”

“Vivia assustada.”

“Tá tudo bem, Lucas?” Done Luce pergunta.

“Tá.” Ele mente.

O elefante pisa forte no chão. O que Frederica tem a ver com isso?

“Não mente pra mim.” Ela levanta o rosto do menino pelo queixo.

“Tá, tá. Só tô um pouco chateado.”

“Não fica. Vem cá.”

Lucas levanta os olhos e acompanha dona Luce Cheiro de Madeira. O elefante preto com presas e chifres não está mais lá. Ele nunca entra no mercado da Dona Luce. Os dois nunca estão no mesmo lugar ao mesmo tempo. À noite, com a cara enfiada no colchão, Lucas sempre pensa em morar no mercado. Deve ter um espacinho, e ele é tão mirrado. Tão torto. Um lugar do lado das sacas de arroz tava bom. Até mesmo junto das latas de óleo. Nem fazia questão de ficar perto dos biscoitos, eles quebram se deitar em cima. Sem o ódio do elefante, qualquer canto tava bom.

“O que vai ser hoje, meu menino?”

“Foi embora correndo.”

“Desse bobo horrendo.”

Lucas não segura o bicho. São quatro contra um. A desvantagem numérica é clara, mas o elefante é feroz. Bicho brabo. Cruel. Bate onde machuca. Apanha. Bate. Apanha mais do que bate. Não para. A terra do chão vira barro, que vira sujeira nas roupas. Tudo vai virar castigo depois. O elefante é mais forte. As crianças estão em maior número. A briga é boa. Todos se cansam de bater, de apanhar. Lucas volta pra casa com o seu elefante. Empatou. “Lucas, o que aconteceu?” Pergunta Frederica para o irmão sujo de terra e briga. “Frederica!” Lucas abraça a irmã sem responder a pergunta.

“Caramelos.”

“Deixa eu ver se eu adivinho... Pra Frederica?”

“É, pra Frederica. Hoje ela chega cedo.”

“E quantos vão ser?”

“Quero cinco caramelos.”

A irmã abraça o menino de volta. Com o canto dos olhos, Lucas procura o elefante. Nada. Não o vê. Isso torna o abraço de Frederica ainda melhor. Torna ela toda ainda é melhor. A irmã é como dona Luce. As duas veem o menino antes do bicho. Ele não queria ter um elefante. Nem ter que carregar ele por aí. Ignorar não funciona, ele é grande demais para passar despercebido.

“Tem dinheiro?”

“Trouxe pra você.” Lucas diz oferecendo os caramelos para a irmã.

“Só essas moedas.”

“Ah, danado, você sabe que eu adoro esses aí.”

“Tá bom. Vou dar mais uma de brinde.”

“Sei sim.” Lucas sorri.

“Não precisa, Dona Luce.”

“Vou comer tudo.” Frederica brinca.

“É presente, pode ficar.”

“Deixa um pra mãe.”

Lucas sorri. Dona Luce fala com ele. Só com ele. Nada de falar com ele e olhar para um bicho preto. A atenção dela é dele. Dona Luce vê Lucas além do que ele é.

“Tchau, Dona Luce.”

“Cuidado, menino.”

Lucas sai do mercado e o elefante preto com presas e chifres já está lá esperando. Quieto, calmo, assustador. Ele é o que tem de mau. Agora com os caramelos de doce de leite no bolso, Lucas faz o caminho de volta. Frederica deve ter chegado já. É só voltar. Logo ali.

“Quem é que dorme?”

“Vem, entra.”

“Pra mãe? Por que pra mãe, Lucas?” Frederica pergunta sem entender.

“Porque… Porque sim.”

Frederica olha para o irmão.

“Quem deixou esse bicho horroroso entrar?” A mãe pergunta de fora da conversa enquanto traga um cigarro.

Lucas vê a mãe encostada na porta da sala.

Lucas vê o elefante preto com presas e chifres ao lado dela.

O bicho ainda fica por mais tempo.

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algodao doce

{Fernanda Suaiden}

“Não muitos, mas todos meus amigos são amigos de Piti também.”

“Você gosta de algodão doce?”

O outro homem calado ficava em frente a um papel branco, batendo vagarosamente a caneta, esperando.

“Gosto de algodão doce rosa, igual ao Piti.”

“E vocês tem muitos amigos”.

“E teve algum amigo que vocês dois fizeram, recentemente?” Acariciava de leve o coelhinho rosa. Passava seus pequenos dedos sobre a textura da pelúcia, sentindo cada nódulo da costura. “Eu não… não lembro”. O braço macio e delicado apertava mais o corpo indefeso do coelho contra o peito. Sentia seu peso afundando de leve a poltrona de couro preto confortável, era como um abraço frio que aos poucos ia se esquentando. Seu pequeno corpo retesado ocupava o espaço de meia pessoa naquela cadeira enorme, e diante dela dois grandes homens lhe falavam com a voz suave, como se entoassem uma cantiga de ninar. “Está confortável?”. Suave demais para homens tão grandes e assustadores. Ela se encolhia um pouco mais. “Eu não… não sei o que aconteceu”. A mão fria encostou nos seus ombros e ela piscou com o corpo todo, num repuxão, como se tivessem lhe tirado a coragem com os dedos. “Não fique com medo, você pode confiar em nós, quer um pirulito? ”. O gosto acre na boca fez com que recusasse o doce. “Qual o nome do seu coelhinho?”. Do seu coelhinho gostava. Gostava de como as orelhinhas fofas pendiam no seu rosto sem boca. Gostava da maneira que elas estavam ali para serem acariciadas e a escutava. Seu coelhinho era quem ela podia abraçar sem ter medo.

“O nome… o nome é Piti”.

“E do que você gosta de brincar com o Piti?”.

Um dos homens grandes ajoelhou na frente da garotinha, o seu bigode castanho dava uma sensação de insegurança, mas ela gostava de falar sobre seu amigo. E o bigode parecia interessado em saber das muitas aventuras que ela e Piti viviam, do companheirismo dos dois.

de si.

A garotinha mudou o tom, como se afogasse dentro

“Uhum.”

“E quem é esse amigo?”

“Piti não gosta de falar desse assunto, ele prefere falar sobre nuvens.” “Piti me contou que esse novo amigo magoou vocês.” A garotinha se sentiu um pouco traída pelas coisas que seu coelhinho falava por aí. Mas tinha medo se ele tivesse contado mais coisas.

“Era um amigo não bom.”

“Como ele era?”

“Dalila! Dalila!” Uma mulhr gritava desesperada. Corredores, calçadas, lojas, seguranças. “Dalilaaaaaa!” Mas nenhum grito e nenhuma procura adiantaria. Dalila agora seguia dentro de um Opala 88 vermelho. “Papai Noel me emprestou esse carro pra eu poder conhecer a garotinha que vai ganhar o presente especial esse ano.” Dalila ficou muito feliz. Estranhou que ajudantes de Papai Noel andassam em carros fedidos, mas achou que fazia parte do disfarce, e percebia certa semelhança com duendes na feição daquele desconhecido.

“Viu, Piti? Vamos ganhar o presente especial!”

“A gente às vezes procura desenhos no céu”.

“Mas é segredo, viu? Papai Noel pediu que não contasse pra ninguém. Seja uma boa garotinha e vai ganhar seu presente.”

“E o que vocês vêem?”

“Prometo que não conto.”

“Piti vê cenouras, eu vejo algodão doce.”.

“Nem pra mamãe.”

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SUBMARINO | MONSTROS

“Nem pra mamãe.”

Dalila ficou triste de não poder contar pra ninguém, mas mais triste ainda em saber que não poderia contar para sua mãe. Mas concordou, pois queria muito ganhar o presente especial. “Promessa prometida.” E beijou os pequenos dedinhos formando um X na boca. “Seu coelhinho também tem que guardar segredo. É Piti que ele chama?” “Uhum. Ele é rosa como algodão doce”, respondeu a garotinha, meio envergonhada, feliz pelo ajudante do Papai Noel ter perguntado de seu coelhinho. “Olha só, meu doce favorito. Adoro algodão doce cor de rosa. E o Papai Noel também.” A garotinha achou esquisito ele gostar do mesmo sabor que ela, mas não deu muita atenção. Ficou feliz em saber que o Papai Noel também gostava do algodão doce. “Lá em casa eu guardo um montão de algodão doce, eles enchem a sala inteira, quer que eu te leve lá?” Dalila não se continha de tanta alegria. Além de passear no carro do assistente do Papai Noel, ainda ia conhecer uma sala cheia de algodão doce. Nem pestanejou: aceitou o convite.

“Olha, Piti! Vai ser como voar no céu!”

“Mas, pra chegar lá, primeiro você tem que respirar nesse lenço de Natal, tudo bem? É uma mágica secreta!” A mãe de Dalila tinha avisado sobre desconhecidos. Mas este aqui não era desconhecido. Era um ajudante do Papai Noel. E tudo o que ela queria era entrar no quarto de algodão doce.

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like a prayer

Para sua surpresa, era tio Rubinho de volta. - Tio! Veio buscar a bíblia? – Henrique abriu a porta aliviado, tentando limpar o batom seco da boca. - Não, não... Só vim tomar um café. – ele respondeu com um sorriso amarelo, já invadindo a sala, enquanto Madonna ainda cantava ao fundo.

{Flavio Basseto}

Henrique estranhou.

Na cozinha, ofereceu o café frio da manhã e assistiu ao tio fazendo careta com a bebida choca na boca.

Pela terceira vez consecutiva na semana, tio Rubinho apareceu na casa de dona Zezé de supetão, com sua calça jeans batida, camiseta polo amarela e cabelo molhado penteado para trás.

- Olha eu aqui de novo – ele fez piada.

Henrique se incomodou mais uma vez com a invasão. Naquela altura do campeonato, já desconfiava que sua mãe tinha um caso com o concunhado. - Tão carola. Tão da igreja. Tão certinha... Não é possível que ela tenha coragem de trair o papai assim. – ele fazia chacota da situação enquanto via o tio oferecer carona a sua mãe até o salão paroquial, para sua aula de catecismo (toda santa terça). Dona Zezé aceitou. Assim, na cara dura. Sem vergonha nenhuma. Perfumada e de saltinho anabela, se despediu do filho às pressas e deixou a porta da sala entreaberta, gritando lá de fora “não vá por música alta e nem dançar daquele jeitinho, tá?”. Henrique, ligeiro como lebre, apenas gritou “Tá bom... Tá bom” e sondou pela fresta o carro partir.

- Tá gelado. – ele reclamou depois do gole.

- Eu te avisei.

- Eu sei – o tio baixou a cabeça – Ah! Vem aqui... Dá pra ver a minha casa da sua janela? – ele chamou o sobrinho pra perto, apontando em direção ao nada. Henrique se aproximou, afastou os vidros nos dois lados e se debruçou no parapeito, procurando pela casa entre tantos telhados. Tio Rubens logo se enroscou por detrás dele, cravando seus dedos em seu quadril.

Mordeu sua nuca.

Abriu o zíper.

Foi então que Henrique perdeu o senso de realidade, suas pernas bambearam e engoliu seco o único restinho de saliva na boca. - Vai pro quarto, tira a roupa e espera teu tio com esse cu pra cima. “Eu devo ir pro quarto mesmo?” Henrique pensou consigo, travado por alguns instantes, até que pudesse criar coragem, se empirulitar da cozinha e ir direto para o quarto morder a fronha.

Imediatamente se deu conta da bíblia esquecida sobre o sofá.

Rubens apareceu logo em seguida, com as calças já arreadas e um punhado de margarina Qualy derretendo em uma das mãos.

Entrou em pânico.

- Se mamãe esqueceu a bíblia, então ela mentiu mesmo pra mim! – lamentou-se em voz alta, já imaginando o casal em um motel tomando banho de champanhe. Só de raiva, resolveu pôr Madonna para tocar. Passou batom. Botou calcinha. No meio da sala, foi dançar feito a bicha que a mãe dele tanto odiava.

Não teve pedido.

Passou logo o óleo entre as pernas do garoto, respirou fundo como se fosse mergulhar num açude e meteu no sobrinho, antes que pudesse dar um grito implodido e desmaiar em suas costas ao som de Like a Prayer. - Vá pra sala. Quero conversar com você... Só vou ao banheiro antes me limpar.

Mas, antes que pudesse terminar a primeira coreografia, a campainha tocou.

Henrique obedeceu. Meio mole, se sentou no sofá com os ombros arqueados.

O coro da música seguia cantando no aparelho:

Um vulto se formou por detrás da porta de vidro.

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SUBMARINO | MONSTROS “...just like a prayer, I’ll take you there! It’s like a dream to me!”

O tio voltou segundos depois, ainda agitado.

Sentou-se na frente do garoto e fuzilou seus os olhos desmilinguidos, dizendo: - Então... A culpa é sua. – respirou fundo – Você ficou todo esse tempo se oferecendo pra mim... E gay não pode fazer isso. Olha só esse shorts... Essa cara de bicha. Ouvindo Madonna todo boiolinha... – respirou fundo de novo – Quando fizer 18 anos, vai ter que vazar dessa cidade e ser quem você é longe daqui... Comi seu cu, mas isso não é legal, cara. Vai ser assim em outro lugar. Você é meu sobrinho favorito... Inteligente. Você sabe o que eu to querendo dizer… - Sei. – o garoto respondeu lacônico, feito uma estátua, incomodado com a calcinha enfiada no meio da bunda. Tio Rubens foi embora logo depois, com Madonna cantando insistentemente no shuffle e o sobrinho rezando fervoroso no sofá. Assim que fez 14 anos, Henrique contou tudo para os pais sobre o tio. O Natal acabou desde então e a família nunca mais quis se reunir. Aos 19, Henrique saiu de casa e foi ser bicha lá pro Sul, pra bem longe, exatamente como o tio havia previsto. Em 2010 se mudou para São Paulo, ganhou uma grana boa e finalmente pode completar sua coleção de álbuns da Madonna. Hoje Henrique escreve contos cafonas e ainda dá o cu. Mas agora dá porque ele quer. Tio Rubinho teve que se mudar para Araras, meio fugido, logo depois de descobrirem que ele realmente gostava de crianças.

O Natal acabou desde então e ele deu graças a Deus.

Em 2010 se mudou para São Paulo para se tratar de uma doença degenerativa que tomava conta dos nervos. Teve um caso com um senhor de 70 anos no hospital. Hoje Tio Rubinho está na cadeira de rodas e ele não dá o cu.

Mas só porque usa fraldas. | 37 |


Macau {Felipe Martinez}

Cansada de subir degraus, vejo surgir a fachada das Ruínas de São Paulo: um grande biombo em jesuítico português. Abaixo, a flor de lótus do Hotel Grand Lisboase abre no calor da cidade e me lembra que estou na China. Nas ruas e nas lojas, grandes ideogramas se esticam em placas de acrílico imitando o movimento de um pincel. Logo abaixo, pequenos nomes em português são legendas: Farmácia, Mercearia, Paço Municipal. Macau tornava concreta minha maldição de nunca conseguir estar longe. Quando supero o último degrau, entre vendedores de quinquilharias e turistas, uma menina chinesa encosta seu sorvete no meu braço. Gelado e viscoso. Foi sem querer e ela nem percebe. Continua a sorver a meleca de creme que vaza pelo canto dos lábios. Seu cabelo é preto, escorrido, como se o ébano aparecesse em um estado físico entre o sólido e o líquido. Os olhinhos são fendas rasgadas por estilete na pele pálida, nas quais um globo tímido, molhado, gira assustado procurando por algo. Eu digo “oi”. Ela não entende, mas mostra dois dentes brancos em um sorriso incerto. Eu digo “ni hao”. Também não entende – e volta a olhar para os lados. Seria simples pegar sua mão e tomá-la como filha. Poderíamos andar sobre as pedras portuguesas que, turisticamente alinhadas, me fazem pensar nas ondas de Copacabana, sem a areia que entra nos espaços entre as pedras, mas com um calor de fazer o Rio parecer ser fresco. Explicaria a ela que as fachadas das casas me lembravam algumas de cidades de Minas, onde eu tinha vivido a maior parte da minha vida. Depois, ainda de mãos dadas, passearíamos pelos becos onde velhos suados vendem amendoim cru e poderíamos assistir às chinesas que dançam em roupas coloridas, elas próprias ideogramas. Os macauenses me olhariam com estranhamento, sem entender porque uma mulher de quase cinquenta anos, pele parda e rugas à mostra, estava tão aferrada a uma menina chinesa de vestido azul com estrelas brancas. Mas eu não ligaria, ela seria minha filha e isso deveria bastar. Talvez implicassem ao deixar o país, mas quem precisaria ir embora? E à noite, com medo que ela se perdesse na multidão, e que outros a desejassem como filha, eu apertaria sua mão ainda mais forte, vencendo o suor que insistiria em deslizá-la de mim. Então, cansada de andar e já com saudade de estar só, olharia para ela pensando “quantas coisas deixei de fazer

por sua causa”, e sentiria a meleca de sorvete na sua mão, que de algum modo responderia meu questionamento. Mas um velho chinês de pele cansada me oferece uma camiseta, I LOVE MACAU. Eu minto que só tenho dólares de Hong Kong, que ainda não troquei por patacas. Ele faz que não se importa. Tento evitar. Ele insiste. Uma vez estabelecido o contato visual, é impossível não negociar. Começa o processo: ele pega a calculadora e digita 400. Mais ou menos uns 200 reais por uma camiseta! Deve achar que sou rica, que trago dólares ou euros. Começo a falar os nomes em português, bem alto, reagindo com espanto a cada preço anunciado. Quem sabe ele perde a coragem e me deixa paz. Minha estratégia fracassa. Ele sabe algumas palavras em português e responde: “cento cicuenta”, “cento binte”. Não quero perder a menina de vista. Meus dedos quase encostam nos dela – tão perto. O velho me puxa de volta, feito uma âncora. Seus dentes de nicotina anunciam outra oferta: 100. Ainda é muito para aquela camisetinha, mas algo dentro de mim não quer deixar passar, e me vem um medo irracional de voltar ao Brasil e me arrepender de não aproveitar aquela chance. O arrependimento por aquilo que não fiz parece sempre me acompanhar nas viagens, jogando na minha cara o quanto é impossível estar em paz com experiências que não tive. A menina se afasta aos poucos, e eu estico meus dedos. Ela encontra um chinês alto que a toma pela mão: a cada passo se torna menos minha filha e eu me torno menos sua mãe. As placas parecem se inverter, com os títulos em chinês escritos timidamente abaixo de grandes nomes em português. As fachadas coloniais portuguesas me dão a vertigem de estar em casa.

A menina se perde na multidão e vem a última oferta:

“Cicuenta! cicuenta!”

Vencida, aceito a proposta. Não sem pensar em quantas ofertas finais ainda poderiam haver.

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SUBMARINO | MONSTROS - Pois bem. Esta semana mesmo teve um casal de gays japoneses que compraram um ovulo de uma espanhola com cara de belga. Este inseminado no útero de uma barriga de aluguel americana. As americanas não sei se o senhor sabe, cobram mais caro. A maioria quer pagar o colegial com a grana, sai em torno de 300 mil dólares com direito acompanhamento do ultrassom por Skype, vista para o parto e teste do pezinho no braço de quem encomendou a criança. Tem um pessoal profissional para registrar todos este momentos para vocês.

donossauro {Michi Provensi}

- Mas isso não esta no anuncio que vimos.

- Já aviso que quero baba 24 horas. Disse a esposa de Carlos abrindo o zíper da saia a caminho do banheiro.

- Claro, entendo. Sobre o anuncio da Republica Checa, são os tramites políticos locais que ajudam. Já coloquei muitos clientes em contato com os médicos de lá, sem falar que Praga é uma beleza.

Uma prima do ex sócio de Carlos gastara mais de 30 mil reais no tratamento de fertilidade, e no final a primeira opção vingou, a adoção.

- A opção da barriga de aluguel é porque não posso garantir que o embrião vai colar no útero da sua esposa. Tem gente que investe, investe... e vê os euros virar xixi.

A filha de Mario e Elise era uma fofurinha. Mas os não traços genéticos do casal gerava alguns distúrbios na sociedade que sempre apontava um sujeito no caminho perguntando: que lindinha, é filha de quem? Teresa levava o assunto toda vez para a terapia de casal e para dois esta não seria a opção.

Cada um sabe bem o que lhe convida a paternidade. Para Carlos ter um bebe na véspera dos seus 50 anos lhe daria um estimulo físico, marcaria mais um x na planilha de metas e lhe tiraria o peso da herança genética. Mas era justamente a herança genética que o afligia. Por mais que lhe era cobrado um herdeiro, o histórico de câncer de próstata e diabetes na família o assustava.

Se ele pudesse parir, já estaria amamentando.

Marcaram um call com um agente de fertilidade do anuncio do grupo secreto do face: make your baby yours, as 20:00 horário de Brasília. O anuncio era um chorinho de esperança para os dois: Pacote concepção: viagem ida e volta a Praga, volte com o bebê dos sonhos. Quando Carlos conheceu a esposa ela era tão linda com suas capas de revistas e peitinhos empinados que nunca se perguntava do filho que não vinha todas as vezes que não gozava fora. Teresa se lamentava por ter feito tanta dieta maluca nos tempos de modelo. Dizia ao marido que o significativo baixo peso nos anos de distúrbios hormonais lhe resultaram num corpo infértil. Mas os almoços de domingo foram pressionando os dois todas as vezes que a mãe de Carlos servia o prato de macarronada indagando: quando vem minha netinha top model? O vendedor de óvulos arrancara os quatro dentes do siso e estava impossibilitado de falar. A pressa de ser pai era de Carlos, que mesmo contrariando Teresa insistindo em ouvir a voz honesta do agente, aceitara receber as informações do tramite por mensagem. - É o seguinte, senhor Carlos, posso te enviar o catalogo como lhe disse. Meu trabalho é ajudar vocês a encontrar o caminho da realização deste sonho, mas preciso saber primeiro quanto pretendem gastar.

- Quais as opções?

- O senhor tem bastante tempo pra pensar é uma decisão pra toda vida, sem pressa. - Mas sugiro pensar rápido porque o dólar esta subindo e na próxima semana imagino que teremos ajustes no pacote. Como o senhor deve imaginar. - E se eu não quiser usar meu esperma? Tenho algumas doenças genéticas na família, se puder prevenir nosso filho disso seria uma benção. - Claro, claro, sempre bom pesar todos os aspectos genéticos. Eu mesmo sou doador de esperma, já contribui para o nascimento de onze bebes nos últimos meses. - Poderia nos enviar uma foto para conhecer seu físico? Além de saúde eu gostaria muito que o bebe tivesse olhos verdes e uma boa estatura. Algo mais parecido com a minha esposa. Também tenho preferencia por menina de cabelos liso. - Certo, certo. Infelizmente não tenho ninguém de olho claro na minha arvore, da parte do meu esperma isso não seria possível. - To anexando aqui em PDF o nosso catalogo. Temos uma variedade de doadores jovens modelos espanhóis e brasileiros inclusive. Olho verde a gente consegue facinho, menina também não é problema.

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Teresa nunca sonhou em ser mãe. A lembrança da sua lhe obrigando a enfrentar filas de casting desde os 4 anos de idade, chorando nas longas diárias de publicidade natalinas calados por, - não chora menina, você ainda vai me agradecer, estou pensando no seu futuro – lhe secava o corpo. Desde a primeira infância sustentou a mãe, uma jovem que mais parecia sua irmã mas não tinha os traços da filha, que era todinha longilínea como pai. A mamata da mãe terminou quando as duas moravam juntas em NY e a mãe de Teresa engravidou do namorado da filha. Teresa mudou-se para o apartamento da agência e nunca mais soube da mãe. Teresa só tinha lembranças modelando, e sempre era recordada que seu corpo era seu futuro. Depois da quebra com a mãe se juntou as russas para encontrar alguém que visse seu corpo como família. Entre alguns jantares organizados por promoters conheceu Carlos, um banqueiro de trejeitos femininos e bom de grana. - Estou vendo aqui o PDF e tem umas siglas que não entendo ao lado do doador. De cara gostei muito do JPX44, um rosto muito atraente, parece até siciliano. O que seria NI? - Claro veja bem. NI é a abreviação em inglês para inseminação natural, sexo mesmo. E PI seria uma inseminação parcial... quando o doador se masturba e insere o membro apenas para a ejaculação. - Isso são opções mais baratas, sem garantias cientificas, na sorte mesmo. Mas como sua esposa apresenta um quadro de infertilidade isso não seria viável. - O mercado esta crescendo muito, são mais de 4 milhões de bebes de proveta no mundo. Tem muito pilantra por ai. Donourssauros de esperma duvidoso. Pode confiar que comigo só sperm cadets, nenhum doador acima dos 35 anos. - Vou conversar com a minha esposa, acho melhor voltarmos as informações necessárias para o pacote da República Checa. Sentada na privada, Teresa enrolava com o xixi a muito tempo feito. Tocava com alegria seu braço direito onde estava seu chip contraceptivo. Não se importava de cuidar do filho do seu marido gerado por uma combinação monstruosa da cabeça dele. Só não queria proliferar o gene malévolo mãe.

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SUBMARINO / N0 1 Edição Ronaldo Bressane Projeto gráfico Eduardo Kerges Ilustrações Eva Uviedo, Eduardo Kerges, Mari Casalecchi e Zé Maia Realização La Tosca

Setembro de 2017 Tiragem de 300 unidades Textos compostos com as fontes Liquido Fluid [Alessandro Commoti] e Adobe Garamond Pro [ Claude Garamond e Robert Granjon / Adobe]

Os marujos Angélica de Barros nasceu em SP no carnaval de 1967, junto com a música “Máscara negra”. Trabalhou com artes gráficas por vários anos. Hoje em dia escreve histórias de terror. Só que os contos traíram a autora e ficaram meio que engraçadinhos, o que a deixa muito irritada. Caminha até ficar com bolhas nos pés. Esqueceu de ter filhos. Não tem para quem deixar seu legado. Flavio Bassetti é ator, bailarino, produtor e ex-aspirante a garoto de programa. Paranaense de nascença e paulistano de coração, gasta seu tempo em supermercados, metrôs e manicures caçando por histórias do cotidiano que ninguém se interessa. Gay metido a astrônomo, disseminador de memes, gasta todo o dinheiro com viagens estranhas e tem um gosto musical lyndo (um beijo pra Björk). É viciado em estamina, dopamina, creatina e poppers. Gabriela Guerra nasceu no Recife em 1988 e hoje mora em Singapura. Tem doze fios de cabelos brancos: um para cada ano trabalhando em propaganda e dois sobressalentes. Já fez aulas de esgrima, frevo e HTML5. Gosta de temporais, Marie Kondo e toalhas de banho quaradas. É capaz de comer 27 caranguejos em uma tarde. Jan Bittencourt, paulista, é publicitária metida a escritora: é uma das autoras da coletânea Contos Mínimos (GuardaChuva) e do romance Versão Beta (Terracota) publicado também na Alemanha pela Clandestino Publikationen. É apaixonada por tudo que é orgânico, virou uma mãe meio Waldorf e escreve quando dá no caiuacaneta.blogspot.com.br. Katia Calsavara, paulistana, jornalista, atriz e produtora cultural, é uma das fundadoras da Abominável Cia. Mãe da Oli, vive conflitos diários com a maternidade e prepara peça sobre o tema para 2019. É bailarina e atua também como crítica de dança. Luciana Annunziata é economista não praticante, escritora por amor e por necessidade, trabalha com criatividade de inovação desde que se conhece por gente; tem Master em Criatividade Aplicada pela Universidade de Santiago de Compostela, mas não fez o caminho ainda, e pós em Escrita Criativa pelo Instituto Vera Cruz. Mãe de dois moleques e um vira-latas, anda em busca de uma vida mais sustentável, é super alérgica a amendoim, ostras, aspirina e arrogância.

Marcos Abrucio, paulistano, tem 39 anos, é redator publicitário, mas já foi jornalista e de vez em quando é escritor. Publicou os infantis Bola no Pé e Odisseia Olímpica. Adora esportes (e mais ainda o Corinthians) e as histórias que o esporte ajuda a criar. Pai da Olívia, coisa mais linda. Michi Provensi, catarinense de Maravilha, é autora do livro Preciso Rodar o Mundo, Aventuras Surreais de Uma Modelo Real (Da Boa Prosa). Frequentadora assídua de oficinas de escrita mas tem preguiça de escrever, cuida de um gato de direita, dois de esquerda e uma cadela street border lata de centro. Devota de São Longuinho, já foi mais corinthiana. Nathalie Lourenço é redatora publicitária e autora do livro Morri por Educação (Oito e Meio). Gosta de letrinhas em livros, quadrinhos e em sopas. Nasceu em 1984, ano que tem uma carreira paralela como livro distópico, num dia próximo o suficiente do Natal para seu nome fazer sentido. Tem 5 graus de miopia mas tira os óculos pra dormir. Seus pesadelos estão sempre fora de foco. Pérola Mathias, goiana, é socióloga formada na Bahia, doutoranda pela UFRJ e mora em São Paulo. Tem 29 anos, escreve sobre música, fotografa música, gosta de assistir a shows de música torta e só conta piada sem graça. Rafael Zoehler é engenheiro, publicitário, gaúcho, amazonense e tem 1300 horas de jogo em Playerunknown’s Battlegrounds. Sua melhor colocação foi 21o da América do Sul em Squad FPP e 40o em Duo TPP. Tentaria ser jogador de tênis profissional se tivesse 8 anos de idade hoje. Gosta de escrever coisas engraçadas sobre animais, sex e abandono. O capitão Ronaldo Bressane vive em São Paulo, onde nasceu há 48 anos. Escritor, jornalista e professor de escrita criativa, seus cursos passaram por várias unidades do Sesc, Casa do Saber, Casa das Rosas, Instituto Vera Cruz, B_arco, Universidade do Livro, Escrevedeira, Tapera Taperá etc etc. Entre os livros que publicou estão o romance Escalpo (Reformatório), o volume de poesia Metafísica Prática (Oito e Meio), o romance gráfico V.I.S.H.N.U. (Companhia das Letras), o infanto-juvenil Sandiliche (Cosac Naify), o volume de contos Céu de Lúcifer (Azougue) e a antologia de ficções breves Essa História Está Diferente (Cia das Letras).



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