A Mineirinha e outras histórias

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A Mineirinha e outras histórias

1ª edição

São Bernardo do Campo Lamparina Luminosa, 2011


A mineirinha e outra histórias São Bernardo do Campo: Lamparina Luminosa, 2011 ISBN 978-85-64107-01-4 Série Narrativa, ficção e contos brasileiros 1. A Mineirinha e outras histórias CCD: B869.3

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As licenças deste livro permitem copiar, distribuir, exibir e executar as obras e fazer trabalhos derivados dela, contanto que sejam para fins não comerciais, que dêem créditos devidos aos autores de cada texto e à editora Lamparina Luminosa, e que as obras derivadas sejam distribuídas somente sob licença idêntica à que governa esta.


A mineirinha e outras histórias

Coordenação editorial: Christian Piana Organização dos textos: Ana Luiza Caetano, Joelma Ruas Sobral e Paula Carrara Educadora da sala do MOVA: Maria Edilma Batista Miranda Coordenação das atividades teatrais: Paula Carrara Projeto gráfico: Andréia Alcantara Ilustrações: Andréia Alcantara e Marcos Oliveira Desenho de capa: Geni Soares Lopes Traduções do italiano: Joelma Ruas Sobral Revisão: Lílian Akemi, Paula Carrara


Prefรกcio Contos contados por quem sabe dรก conta da vida


Frei Betto Esta coletânea de contos é uma preciosidade. Reúne a literatura de quem, na idade adulta, escreve pela primeira vez. Autores e autoras são alunos do curso do MOVA – Movimento de Alfabetização - no ABC paulista. Os relatos têm como fonte e matéria-prima a vida migrante e difícil de seus autores. Quase todos vieram de outros estados para São Paulo em busca de uma vida melhor. Percebe-se claramente a nostalgia dos tempos felizes de infância na roça, o lamento por abandonar a agricultura, o esforço por encontrar um lugar ao sol na cidade grande. São narrativas de quem nunca perde a esperança, apesar das adversidades da vida confinada na pobreza. Os sonhos jamais têm caráter de ambição, de riqueza, de poder. São todos na linha de uma vida digna: a casa própria, o emprego, a saudade da vida rural e dos familiares que lá ficaram. Esta é uma escrita que brota do coração, do chão árduo da vida, de evocações de quem, agora, experimenta como presente a vida atribulada da cidade grande – outrora sonhada como futuro promissor – e descobre que o passado na roça foi, apesar da carência material, de profunda felicidade espiritual. O MOVA está de parabéns por alfabetizar e letralizar adultos, despertando neles a vocação literária e o gosto pela memória história através de suas próprias vidas.

Frei Betto é escritor, autor de “Alfabetto – Autobiografia Escolar” (Ática), entre outros livros.


Introdução


Christian Piana Este livro é composto por quatorze contos de quatorze alunos de uma turma do MOVA (Movimentos de Alfabetização de Jovens e Adultos), projeto ativo na Associação de Promoção Humana e Resgate da Cidadania. Trata-se de uma coleção de lembranças, fragmentos de vida, momentos simples, mas marcantes, que este grupo possui. Momentos estes bem conservados na memória de cada um e que a Editora Lamparina Luminosa ajudou a resgatar, reorganizar e publicar nestas páginas. Todos os alunos, autores dos textos, vêm de outros estados do país por motivos diferentes. Há quem fugiu de extremas condições de vida em busca de trabalho, quem se mudou por amor e quem veio em busca de um sonho. Nenhum deles tem uma formação escolar, mas todos sabem falar da profunda experiência em praticar um ofício comum a todos: ser pessoa. Apesar disso, a tarefa de reapresentar estas experiências de vida em forma de história escrita foi extremamente árdua e transformou, nós operadores da Lamparina Luminosa, em verdadeiros arqueólogos da memória. De fato, os autores não tiveram somente a dificuldade em escrever o próprio texto - dificuldade, aliás, mais que compreensível, visto que estão em processo de alfabetização. A maioria demonstrou uma nítida dificuldade, até mesmo, em relembrar, em falar de si, em um campo íntimo e espiritual como aquele dos sentimentos. Os textos escritos pelos alunos, durante o ano de trabalho juntos, limitavam-se a elencar, de maneira muito resumida, os fatos mais


Introdução


importantes de suas vidas, como a data de uma mudança, o momento da chegada em São Paulo, o dia do casamento e os nomes dos filhos. Estes textos não continham imagens, sons ou sabores; não deixavam transparecer as emoções ligadas aos fatos, às dores ou às alegrias imprescindíveis para uma comunicação mais profunda sobre as próprias experiências. Todos estes elementos foram pacientemente resgatados das histórias deles, usando diversas dinâmicas e métodos que não tínhamos pré-elaborado. Alguns exemplos das estratégias utilizadas foram os jogos teatrais com o grupo, conduzidos por uma atriz convidada; o desenho da linha da vida de cada um, enriquecida por imagens encontradas e, enfim, a realização de vídeo-entrevistas individuais, nas quais foram registradas as lembranças que vinham à tona com perguntas quase investigativas sobre os sentimentos a elas ligadas. Se os textos escritos não possuíam uma dimensão sentimental, os resultados das dinâmicas, por outro lado, eram ricos de emoções, fatos curiosos, risadas e momentos de suspensão que podiam completar os textos. Assim nosso trabalho passou de arqueólogos da memória àquele de arquivistas que, revendo os resultados destas dinâmicas (todas registradas em vídeo), organizaram e teceram, minuciosamente, nos textos originais. O resultado de tudo isso são os contos das próximas páginas. Histórias breves, mas autênticas, escritas numa língua natural e neológica, que respeita a identidade dos seus autores.


Nota dos curadores


Os contos publicados neste livro foram construídos, em sua maioria, por meio da junção de textos que seus autores elaboraram em um caderno e pelas transcrições de seus vídeos-depoimento. Foi impossível utilizar uma metodologia única para cada autor: alguns, com mais facilidade em escrever, desenvolveram no próprio caderno textos ricos, aos quais foram adicionadas algumas frases complementares, extraídas dos vídeos. Outros obtiveram ajuda de seus familiares, deixando assim transparecer nos textos a lógica gramatical dos filhos, namoradas e maridos.Para outros ainda, com maior dificuldade em escrever, usamos, sobretudo, as transcrições dos vídeos depoimentos. Procuramos manter ao máximo a identidade original das histórias, dos seus conteúdos e da maneira como foram expressadas. Não alteramos, propositalmente, as conjugações dos verbos, as repetições e outros elementos que substituídos modificariam a estrutura original das frases. Nas partes transcritas dos vídeos, eliminamos algumas expressões típicas da linguagem falada, como “e aí...”, “né?”, “entendeu?”, e corrigimos gramaticalmente as palavras pronunciadas de maneira modificada , como, por exemplo: “plantava” no lugar de “prantava”, “para” ao invés de “pra”, etc. Nossas intervenções mais marcantes foram: estruturar a pontuação, inserir os acentos nas palavras e organizar os períodos das frases - elementos que podem facilitar a compreensão e o ritmo da leitura.



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O rio só ficou no barro Adão Manoel da Silva

Sou do Piauí. Minha casa era feita de barro, tinha fogão à lenha e tinha uma vida muito difícil. Na casa tinha dez pessoas. Como era o filho mais velho era o mais sofrido, porque tinha que trabalhar para o sustento dos menores. Plantava feijão, milho e algodão. Quando era criança, não tinha tempo de brincar e nem de estudar, só trabalhava. No Piauí era muito seco, para voltar para casa tinha só uma trilha pequena com muito mato seco. As árvores não tinham folhas. Quando o rio secava a gente falava: “o rio só ficou no barro”. Para pegar água tinha que escavar até dois metros no meio do rio e fazia a escadinha de barro mesmo.

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Das seis às sete da manhã tinha que buscar água. Se chegava atrasado tinha a fila e demorava muito. Às vezes, as mulheres brigavam pela água, puxavam o cabelo. E nós, que éramos jovens, não podíamos fazer nada. Quando completei vinte e dois anos resolvi buscar uma vida melhor, tirei os documentos e vim para São Paulo. Saí do Piauí em 1988. Sem saber ler e escrever foi mais difícil, pois a cidade grande cobra muito da gente. Com a ajuda de um amigo consegui meu primeiro emprego de ajudante de pedreiro. Trabalhei um ano, resolvi voltar para o nordeste, fiquei onze meses, mas estava muito ruim a situação, voltei de novo para São Paulo. Cheguei aqui. Consegui um emprego e logo construí uma casa. 15


Anailda Anailda Heostílio dos Santos

Nasci em Ibirapitanga, na Bahia, e tenho muitas lembranças da minha infância. O lugar onde nasci era muito bonito. Tinha só duas casas. A minha casa era de barro e madeira, coberta de palha sapê. Quando foi um dia, deu uma chuva e a gente acordou debaixo da água e fomos para a casa da vizinha. Ficamos uns três dias na casa da vizinha, aí meu pai subiu no telhado, tirou as palhas, pôs outras melhor e cobriu direitinho - não teve mais problemas. Minha mãe era uma morena muito bonita. Ela gostava de cantar: “preta, preta, pretinha... eu ia te chamar enquanto corria a barca... abre a porta e a janela e vem ver o sol nascer...”. Ela ficava ouvindo baixinho todas as músicas do Zé Bettio no radinho de banca, pequeno e quadradinho, e fumava tiberio – o cachimbo de hoje.

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A maior lembrança da minha mãe era quando se reunia todos na mesa para todos almoçar no Natal. Eu gostava tanto do Natal porque era uma época em que todo mundo estava junto, a família toda. Ela sempre rezava, antes de fazer as refeições. Minha mãe tinha uma horta e lá ela plantava amendoim, cebola, batata, milho mandioca e tudo que podia para o nosso sustento. Gostava de cuidar da horta, da casa, dos filhos, da família. Gostava de fazer farinha... Tinha muita mandioca. Ela gostava de plantação que dava muito de tudo e outras coisas. A vida era muito sofrida. Plantava para poder sobreviver. Viver do suor do próprio rosto. Comia até banana verde cozida. A horta ficava no fundo da casa. Enquanto a mãe ia trabalhar na casa de farinha, juntava eu, meus dois irmãos e duas irmãs e nós arrancava os pé de amendoim, tirava as vagens, comia tudo e depois replantava para mãe não desconfiar, mas depois a gente apanhava.

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Quando era criança fizemos uma fogueira e pusemos uma vasilha de água no fogo, daí a água virou e queimou todo meu pé. No joelho foi uma brasa que caiu e grudou. Esconde-esconde era a melhor brincadeira. Quando a lua tava bonita e clara, a gente se escondia atrás das bananeiras, atrás do mato. Um dia a bananeira se mexeu e a gente pensou que era o lobisomem. Eu mesma fazia minhas bonequinhas. Fazia boneca de pano, a minha mãe que ensinou. Eu fazia umas pequenininhas para fazer que era filha das outras. A parte mais triste da minha infância foi quando minha mãe morreu. Morreu minha mãe e minha irmã de nove anos, de sarampo. Ela deixou seis filhos e um deles era um bebê de nove meses. Na roça a gente dormia tudo no chão, na esteira. A irmã morreu no meio de todo mundo, ninguém percebeu. Logo depois que a mãe terminou de morrer a gente viu que ela também tinha morrido.

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Ficou todo mundo doente, menos meu pai, e depois que minha mãe morreu ele nunca mais se casou. Criou todo mundo primeiro, só casou agora, com setenta e oito anos e continua morando na roça, na Bahia. Meu primeiro marido, logo em uma primeira vez que me viu, foi em casa e me pediu em casamento para meu pai. O pai não aceitou, queria que eu casasse, mas que eu juntasse o meu dinheiro. Como eu ia juntar dinheiro se meu pai ficava com tudo e não dava um centavo para gente? Eu trabalhava na roça, juntei minhas coisas, esperei dar a noite e peguei minhas coisas e fui para a casa dele. Antes de chegar lá, deixei as coisas embaixo do pé de jenipapo. Bati na porta e falei que

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queria morar com ele. Voltei e peguei minhas coisas debaixo do pé de jenipapo. Tive dois filhos com ele. Depois ele me abandonou e foi morar com outra mulher. Hoje sou casada há quatorze anos, meu esposo tem oitenta e nove anos. A cunhada do meu atual esposo é que me apresentou para ele. Ele estava procurando uma nova mulher, pois já tinha três anos que a mulher dele tinha morrido. Ele queria que eu viesse junto embora com ele, mas eu tive medo. Depois me deram conselho para eu ir. Eu liguei para ele vir me buscar e ele foi.

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Achei São Bernardo muito estranho. Até hoje eu acho. Eu não acostumo aqui não.Tenho vontade de voltar para a Bahia. A única coisa boa aqui é para comprar as coisas. Eu... Eu gosto de fazer crochê, de cuidar da minha casa, de cuidar da minha neta e também de fazer comida baiana.

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Antonio Antonio Alves dos Santos

“Deus deu uma vida para cada pessoa cuidar dela e fazer a coisa certa.” Nasci na Paraíba em um povoado chamado Bezerro Amarrado é um povoadozinho mais pobrezinho. Cresci e vim para São Paulo. Para fazer a vida. Eu morava no povoado de lá, não era bem na cidade, nós ficava mais no sítio. Quando a gente era pequeno a gente ia para cidade, para a festa. A gente achava bom ir comer numa festa. Na noite de ano tem muita festa, tem muito divertimento, baile, forró, estas coisas. Lá se chama Festa Junina, solta muitos fogos e é divertimento bom, todo mundo conhece o outro, todo mundo fala com você. Todo mundo me conhece lá, porque é tudo nascido ali, é muito tempo, de pequeno, então um conhece o outro, um respeita o outro. Aqui ninguém conhece ninguém é difícil, mesmo quando mora vizinho. A rotina lá é diferente, é porque lá não tem muita correria.

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Eu trabalhei na roça muito tempo, comecei muito novo. Comecei mais ou menos com uns oito anos a trabalhar. A gente capinava a terra, plantava e colhia. O que colhia a gente comia. O que plantava, colhia. É só essa a história do norte mesmo. Aí eu vim pra cá e mudou tudo. Tudo aqui foi diferente, até a gente acostumar aqui, porque lá é outro clima diferente. Quando eu cheguei aqui eu adoecia muito porque não acostumava com o clima, andava muito ruim da garganta também, porque lá é quente. Depois de acostumado não adoeci mais não. Estou aqui há uns trinta e poucos anos. Cheguei e fui trabalhar. Eu vim direto morar no Silvina. Está com uns sete anos que eu moro nos predinhos. Eu morava nos barraco aí a prefeitura resolveu organizar e mudou bastante. Aqui antes tinha um rio, eles encanaram o rio, arrumaram muita coisa,

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derrubaram os barracos e tão fazendo os predinhos. Sempre quando faz uma melhoria assim, melhora mais. Que era tudo lama aqui, mato. Aqui não tinha essa pista, fizeram. Era tudo buraco. Essa estrada do Padre Leo aqui era tudo terra, até lá perto da padaria e é tudo pista agora. Cada vez que eles fazem uma coisa diferente fica melhor. O registro num tinha, o meu tirei porque o povo do norte é atrasado. Geralmente os pais da gente não liga muito, não tem estudo, não põe o filho pra estudar. Tem gente que põe, meu pai não ligava muito, era da roça. Lá eu estudei, quando eu morava com um padrinho meu que deu escola pra mim, mas a gente novo não se interessava muito. Agora que a gente veio se interessar mais, sabendo que a coisa é mais difícil sem leitura. Que a gente sem leitura aqui é complicado, tudo depende de leitura: é para trabalho, para gente fazer uma conta, para pegar o ônibus tem de saber ler, tudo depende de leitura. Aí eu resolvi estudar. Arrumei esposa, casei, me amiguei na época. Depois arrumei outro enrosco com ela, fui tendo família e fui vivendo a vida até hoje. Agora eu trabalho de zelador do clube Aramaçan, em Santo André. É clube que vai os cantor, vai forró, Falamansa e essas coisas.

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Acho que a pessoa tem de gostar do que a pessoa é mesmo, ser contente com o que você é. É eu creio assim da minha maneira. É porque se a gente tem capacidade para uma coisa ele é, se não tem, tem que ficar quieto. Eu vou fazer quarenta e nove anos: nasci em sessenta e um. Na minha idade agora eu não tenho muito futuro para ser alguma coisa muito não. O futuro que eu tenho é ser motorista de ônibus, eu tenho carta e tudo. Vou aumentar minha letra, fazer um cursinho pra trabalhar como motorista de ônibus. Conheço São Bernardo, São Paulo, o bairro tudo. De primeiro era perigoso, mas agora está mais sossegado. Eu levanto quatro e meia da manhã e não tem nada, não vejo nada, a cidade sossegada. Estou entrando no ônibus quatro horas e não tem problema. Eu conheço todo mundo. Também não mexo com ninguém, cada um é cada um e pronto. Vou para o meu serviço, de casa para o serviço.

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O meu milagre Elizete Bispo da Silva

Eu sou a Elizete, nasci em Alagoas. Viajei para São Paulo e conheci meu marido. Nós éramos vizinhos de casa e a gente começou a sair para o aniversário do São Bernardo no dia vinte de agosto e eu fazia aniversário no dia vinte e um de agosto. Tive uma filha maravilhosa, ela vai fazer nove anos no mês que vem. O meu milagre foi assim no comecinho deste ano: a gente foi para a praia. No dia dezessete de janeiro, tive começo de derrame. Fiquei cinco dias na U.T.I. e depois fui para o quarto. Depois, fiquei recebendo visitas da minha família. Fiquei um mês certinho internada.

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O meu marido ficou muito preocupado. Eu fiquei com muita fé em Nossa Senhora Aparecida. Na igreja Belém, o meu marido levou uma imagem da Nossa Senhora e uma peça de roupa para benzer e agora eu estou feliz por ter saído sã e salva. Mas, o único problema é que eu estou tomando a Marevam para afinar o sangue. Agora eu estou melhor porque o médico disse que o coágulo que tinha na cabeça sumiu.

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A Mineirinha Gení Soares Lopes

Eu morava em Minas Gerais, vim de Minas agora. Fui nascida e criada lá, em Minas Gerais. Eu possuí dez filhos, criei todos os dez trabalhando na roça, agora tem oito vivo, mas eu possuí dez até ficar grande, possuí dez filhos na roça. A minha menina veio pra cá nova e casou, de vez em quando eu vinha e voltava. Quando foi agora ela tinha que estudar e trouxe eu para cozinhar, que ela não queria pagar mais empregada. Mas eu gosto mais de lá - para o meu gosto eu ia embora amanhã. Lá é melhor porque a gente não precisa estar comprando nada, eu mesmo não comprava nada, só que lá não corre dinheiro, o que você planta, você planta para comer, possuir. O mais difícil é roupa, a roupa que nós estamos vestindo é daqui pra lá, que a gente vendia um feijão, ou arroz, ou milho e comprava uma roupa, e do ano ao outro ia comprar de novo.

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Essa menina minha quando ia passear lá eu matava três capado: eu engordava eles, quando ela ia pra lá eu matava um para fazer gordura e carne. Quando ela chegava eu matava outro para comer carne fresca. O dia dela vim embora eu matava o outro pra ela trazer. Agora estou aqui só comendo coisa comprada. Tem tanta coisa que tem passado comigo. Eu tenho setenta e um anos, desses setenta e um, quando comecei a trabalhar eu estava com sete anos de idade. Parei agora depois que vim pra São Paulo, mas eu trabalho em casa - eu lavo a minha roupa, eu faço minha comida, limpo minha casa, não pago ninguém eu mesmo que faço minhas coisas.

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Lá eu trabalhava muito na roça. Tinha vez que eu colhia setenta, oitenta quilo de milho, de arroz, feijão, galinha. Quando eu vim pra cá, tinha galinha de perú, pato, galinha d’angola, vendi umas quinhentas. O trabalho acaba com a gente, que o sol lá estraga, mas eu adoro, eu gosto. É tão bonito você ver um arrozal, milho, feijoal: quando você está no meio limpando, que está ventando nunca vi coisa mais bonita do mundo! É porque o milho está crescendo e o vento fica passando nele, e a planta fica cinerando; nunca vi coisa mais bonita! Plantava feijão, café, bananeira, jabuticaba, coco, mandioca. A mais difícil de colher é laranja, mangueira, jabuticaba que é dum ano no outro. Lavoura de milho é de seis em seis meses, se planta um milho em outubro, mês de junho está colhendo. Planta feijão em fevereiro, colhe mês de junho. O arroz você planta em setembro, colhe mês de maio. É todo ano que está de colheita. Nós descansava só nos dia santo, no meio de semana estava trabalhando. Dia de santo ficava dentro de casa comendo e bebendo. A gente às vezes ia passear na casa d’algum

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amigo, mas ficava mais dentro de casa. Se fosse um dia santo e tivesse missa a gente ia na missa. Eu sonhava que Deus me desse as coisas para eu comer e beber. Rico eu não queria ficar, mas queria que Deus me desse as coisas pra mim possuir. A gente tinha a maior alegria, a gente não tem assim coisa boa não, mas essas coisas de roça a gente tinha de tudo. Eu tinha demais. Tem um rio grande, a gente vai para o rio a pescar, pega aqueles peixão, eu adorava! Tinha muita natureza; com a natureza a gente fica todo alegre, todo satisfeito, não fica nervoso. Quando você está cuidando da lavoura, você está só alegre, não está pensando em coisa ruim, nem nada. Lá eu pensava em trabalhar, trabalhava ia embora para casa, tomava um banho de tarde, no outro dia de novo ia trabalhar. A gente ia para o mato cantando alegre todo dia! Aqui fica só pensando no que não presta.

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Eu mesma não gosto daqui, uma porque eu não trabalho e outra que a gente fica só vendo violência, quando você não está vendo, você está assistindo na televisão. Depois que eu fui embora inventei de fazer uma consulta no medico e na consulta apresentou um rolo de coisa doente e eu tive que ficar para poder tratar. Nunca tinha ido no médico, vim pela primeira vez num médico agora depois que eu vim tratar aqui. O médico fala com gente que a gente tem aquela doença, daqui a pouco aquela não é ela e a gente fica pensando que tem aquela doença, mas eu não ponho na cabeça que tenho aquela doença. A não ser se eu tiver sentindo doendo aí eu falo: “tá doendo”. O médico é muito bom, mas só se a gente falar o que a gente está sentindo, se não ele não sabe. Se ele soubesse não precisava a gente falar, mas tem de falar para ele poder descobrir o remédio. Da primeira vez que vim ao medico ele falava e eu não entendia essas conversas esquisitas. Então é a minha menina que vai para saber o quê é que ele está falando, porque ele fala diferente e eu não sei falar. Eu falo errado, quando tem leitura fala certo, mas eu falo errado.

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Eu gosto muito de fazer um canto, uma reza; sou católica e gosto muito de ter a reza, da igreja. Tenho vontade de aprender a ler para poder cantar aqueles canto da igreja. Eu gosto muito de aprender as coisas e fazer alguma coisa do mundo, coisa que a gente aprende. Eu tenho vontade de aprender escrever falar feijão, milho, arroz, porco, galinha e os nome das frutas. Eu sei desenhar a galinha só não sei fazer que nem artista que faz do tipo da pena e essas coisas, mas fazer o desenho da galinha eu sei fazer. O que faz a pessoa ficar bonita é saber tratar os outros, e ter inteligência de fazer as coisas. Porque tem gente que às vezes é bonito de aparência, cabelo bom, bonito, mas não tem inteligência com nada, não sabe nada. Eu não sei nada, mas eu passo algumas coisas. Eu não sei tudo quanto há no mundo não, que ninguém aprende tudo quanto há do mundo, que todo dia você está aprendendo e todo dia você está querendo aprender mais, mas eu sei bastante coisa que ajuda a vida da gente! Coisas da roça.

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Quando eu salvei uma vida Genivaldo Ferreira de Souza

“Nunca machuque um coração, pois você pode estar dentro dele”. dito selecionado por Genivaldo Nasci na Bahia, nos éramos doze irmãos. Com oito anos comecei trabalhar na plantação de café com meu pai. Plantava milho, feijão, arroz, café; gostava de caçar. Sonhava ser um fazendeiro.Quando voltava para casa era noite e não dava para estudar, nos aproveitava para brincar. Eu gostava muito de andar a cavalo. Com quinze anos construí uma casa de madeira no sitio e fui morar nela. A vida era tranquila, não tinha violência. Gostava muito das festas juninas, minha mãe fazia biscoitos, matava porco para comprar roupa de festa junina. Plantei cana e não deu certo.

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Então resolvi vir para São Paulo morar com a Irmã. Morei com ela um ano e voltei para Bahia. Trabalhei na roça com meu pai e comprei uma vaca e dois cavalos bons. Depois voltei para São Paulo, vendi os cavalos e a vaca para vir embora. Novamente morei com minha irmã, depois aluguei uma casa, comprei um barraco no Jardim Silvina e depois comprei uma casa e conheci novos amigos. Depois de um tempo conheci minha vizinha e começamos a namorar - resolvemos morar juntos e logo ela engravidou. Tenho uma filha que amo demais,é a razão da minha vida.

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Teve uma vez que começou a chover muito. Era um sábado de novembro 2006, eu estava no boteco do meu sogro, começou chover e de repente o rio que passava próximo da minha casa encheu. Ouvia as pessoas pedindo socorro, fui ver o que estava acontecendo, eu e meu irmão. O rio trasbordou, parecia uma onda levando tudo no seu caminho, rapidinho chegou. Começou a invadir as casas dos vizinhos. Vimos uma mulher gritando, quando chegou lá tava tudo alagado, som, geladeira, tudo coisa nova do pessoal, tudo boiando por cima d’água. E umas pessoas, senhora de idade, tudo dentro da água. Teve vizinho que largou as coisas lá em casa, colchão, o resto de comida que sobrou, largou em casa lá. Eles ficaram apavorados então resolvi ajudá-los.

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Entrei em um barraco, me reparei com uma criança desmaiada, logo fui ajudá-la, fiquei muito feliz por ter ajudado ela. Não senti medo, me senti com coragem. Tirei algumas coisas e tomei choque, quase a água me levou. Depois entrei em outro barraco porque tinha três pessoas em cima da caixa de água numa laje, e alguns caras estavam amarrados em uma corda para chegar até o barraco. Era perto da boca do lobo e a água fazia moinho. Eles não conseguiram porque era o lugar mais fundo e a água era mais forte. Então eu e mais dois caras conseguimos ir até eles. Me amarrei em uma corda para a correnteza não me levar, mas tinha gente me ajudando.Pegamos as pessoas e passamos para quem estava no lugar mais baixo. Tinha muita gente chorando porque perderam tudo, eram todos desesperados e ficavam nervosos. Eu vendo aquilo fiquei balançado. No outro dia fui ver aquele local, não tinha mais ponte, a água levou.

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Seu Idalino Idalino Lourenço

“Eu morei em um monte de lugar. Achei tudo igual! Só que a planta tinha mais valor. A planta tinha mais valor até.” Eu gosto muito de passeio, toda a vida eu gostei. É, diversão! Mais divertido é chegar perto dos parentes, aquela alegria, aquela amizade. Minha diversão é essa aí. Tenho os parente lá. Os que não moram aqui moram em Curitiba. Eu gostaria de passear na casa deles. Se tivesse um carrinho eu passeava para todo o canto, eu passeava bem! Buscava no mercado, ia lá pra Minas, ia pro Paraná. É um negócio muito importante! Eu de carro gosto, mas não sabe dirigir. Se a gente soubesse dirigir um carrinho, eu gostaria, mas a gente tem medo. Medo de pegar um carrinho e não conseguir uma carta. Medo de pelejar também. Medo de bater o carro!

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Já to pelejando pra ver se aprendo alguma coisa, mas pela minha idade também não tá compensando mais não. Sou de mil e novecentos e quarenta e um. Dia vinte e um de maio completo setenta anos. Nasci em Minas Gerais, onde morei até a idade de vinte anos. Depois mudei para o Paraná à procura de trabalho. Morei em Ipatinga, depois em Maringá, Foz do Iguaçu, Cascável, Verê, Água Grande. Morei em Londrina. Trabalhava em lavoura e cada contrato contava dois, três, quatro anos conforme a lavoura - depois mudavam de cidade. Morei mais dezessete anos e lá foi ficando difícil, então vim para São Paulo com a família, a mulher e uma filha. Moro aqui em abril de oitenta. Minha casa era barraco de madeira que eu construí. Construí três cômodo em baixo e três cômodo e outro banheiro em riba. E uma área por riba ainda, que seca roupa.

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Conheci a esposa ainda em Ipatinga. Os dois moravam perto, na mesma companhia. Os dois eram de menor, brincavam juntos e começaram em namorinho e acabou dando certo. Casei em abril de 1962, com vinte e um anos, com Amélia Tomás Barbosa. A primeira filha, Perpétua Aparecida, nasceu no Paraná em Cascável. A outra filha, Viviane Lourenço, nasceu em São Paulo, em 1985. Na cidadezinha de Pedra Corrida, que passei a infância, caçava de espingarda, armava arapuca, pegava juriti, nhambú que é um tipo de marreco, essas aves do tamanho de um pombo. Pescava traíra, tomava banho de rio. Nos tempos de moleque morava na usina de cana-de-açúcar, cortava cana. Éramos em oito meninos-homem e uma menina-moça. Adoeceram um menino e a menina quando formados já. Tiveram meningite e morreram no mesmo dia.

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A mãe pegava arroz no brejo para limpar e ganhar o que comer. Meu pai morreu em derrubada de mata, cortando lenha para carvão. Eu queria saber escrever bem rápido. E eu peguei a escola. Vou estudar um pouco. Às vezes eu posso, mais tarde, colocar um comércio, alguma coisa. Vou viajar também. O estudo pra viajar também é bom: você vê o que está escrito na frente do ônibus, se vê uma placa sabe o que tá escrito na placa. E a gente não sabe nada! Não tem jeito nem de viajar. Você não sabe nem o que tá escrito lá na placa, não sabe pra onde é que vai. Fica difícil.

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A minha natureza Joel Monteiro da Silva

Gosto muito de viver no meio do mato. Uma casinha no meio do mato é bom. Quando eu vim pra São Paulo tinha quinze anos. A gente veio de lá porque a vida era muita sofrida. Trabalho muito duro, esse trabalho na enxada, aí não dava mais pra gente ficar. Eu sou do Silvina tem uns trinta anos. Antes eu morava em Vitória - Espírito Santo. Minha casa era de madeira e ficava perto da serra. Tinha muitos cafezais, árvores e frutas. Na casa morava eu, meu pai, minha mãe e oito irmãos, uma família muito grande! Todos tinham suas tarefas. Minha irmã ajudava minha mãe nas tarefas de casa como lavar, passar, cozinhar, levar comida na roça para nós e mais as pessoas que ajudavam na

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plantação. A gente mexia com muitas coisas, alface, cenoura, beterraba, coentro, tomate, palmito, quiabo, chuchu. Plantava café, arroz, batata, feijão, cana, mandioca. A gente amassava o barro no pé, depois a gente fazia umas ripa de palmito, pegava o próprio barro junto com a mão e jogava pra fazer a casa. Ficava a coisa mais linda! Uma espécie de uma casa de marimbondo! Eu adorava, porque juntava bastante gente pra fazer o trabalho. Era uma alegria pra gente! Juntava todo mundo, rapidinho fazia uma casa. Depois colocava o barro e pintava. Lá a gente tem o próprio barro branco, que a gente fazia a tinta. Ficava branquinha a casa, ficava a coisa mais linda! Perto da minha casa tinha um rio, lá nós pescava muito, eu e meus primos; era muito divertido! Pescava de peneira, porque lá o rio é estreito. A gente ia lá, pegava uns pedaço de pau e batia nas touceira de mato, aí o peixe vinha e a gente tava com a peneira esperando. Então a gente gritava: “pode parar que a peneira tá quase cheia já!”

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Outra coisa bonita era cuidar da criação, dos animais que a gente tinha também. Porque a gente pegava soltava umas duzentas cabeça de animal e a gente ia atrás tocando. A gente tinha cavalo, gado. Tinha vez que eles ficavam bravo, tipo assim nervoso, e corria atrás da gente. A gente tinha que correr e mergulhar debaixo da cerca de arame e eles ia e rasgava todinho. Era legal demais! A gente tinha a tropa. A tropa significa que a gente tinha mais ou menos uns quarenta animais. A gente pegava aquelas saca de café e colocava ao lado do arreio, aí soltava sempre um na frente que era o mais cabeça que levava todo mundo. Chegava no local, parava todos eles. Era a coisa mais linda! Fazia aquela fileira.

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A gente chegava e ia tirar pra jogar no armazém, pra fazer café pra vender. Porque chegava finais de ano, quando a gente conseguia comprar um sapatinho melhorzinho pra colocar no pé. Quando eu vim colocar um sapato no pé eu tinha treze anos. As calça da gente, tinha época que rasgava muito; a gente brincava com aqueles carrinho, tipo de rolimã, aí minha mãe sempre pegava aqueles remendo, ficava pregando, quando ia ver, não tinha nem lugar mais pra colocar. Igual punk, tinha várias emendas: coloca um remendinho aqui preto, aqui coloca outro vermelho e assim vai, que já tava todo furado! Vai fazer mais de quarenta anos que eu não vejo meus amigos, primos. De vez em quando bate uma saudade, vontade de ir lá. Depois de vinte anos, vinte anos sem ver minha mãe, consegui juntar um pouquinho de dinheiro e a gente foi lá passear. Muita alegria de ver ela! A saudade era demais. Primeiro a mãe ficou meio assim, em choque, porque também eu fui de surpresa, queria chegar de surpresa e não avisar nada pra ela. Quando menos esperou a gente estava chegando na porta! Muita emoção, abraços, abraços e beijo. Abraço de aproximadamente uns dez minutinhos pra matar a saudade! Eu já tinha minhas duas meninas e ela viu pela primeira vez, foi emocionante!

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Saudade da terra que cheirava de fruta Jorgival Ferreira de Souza Nasci na Bahia. Meu pai tinha uma chácara no interior, uma cidade bem grandinha, do tamanho do Silvina mesmo, perto de Poções – Conquista. Eu trabalhava. Trabalhava e estudava, tinha de ajudar meu pai também, que ele já é bem veinho. Gostava de dar comida para as galinhas. Gostava de jogar bola com meus amigos. Gostava de tomar banho de rio. Gostava de andar a cavalo. Gostava de pegar gafanhotos e por na caixa de fósforo. Na escola jogava fumaça no rosto do professor e ele colocava nós de joelho no chão no pé do milho. O professor batia nós de palmitosa. Eu, na hora que via meus amigos vir para São Paulo queria também. Eu ficava no pé da banana tirando medidas para ficar grande, porque eles falavam que podia vir

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quando ficava grande como o pé da banana. Mas todos os dias eu via o pé da banana crescer, era mentira do povo! Mas o tempo foi passando até chegar o tempo de eu vir para São Paulo. Quando cheguei em São Paulo fiquei cinco meses parado, depois fui trabalhar, morava com minha irmã, depois fui pagar aluguel. Depois de um tempo no aluguel fui comprar um barraco. Quando chegava do trabalho eu ia pegar água do bico do serviço até minha casa. Era uma hora e meia de caminhada.

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Eu peguei o meu barraco e vendi para um melhor; quando inventaram de construir um Rodoanel. Teve que derrubar todos os barracos que ficavam perto do Rodoanel, e foi que a prefeitura deu dinheiro para eu comprar uma casa. E ai eu conheci uma moça e fui namorando com ela. Chegou um tempo me casei com ela, tem um ano de casado; o nome dela é Thaina Guimarães.

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Eu gostei de São Paulo, mas sinto saudade da Bahia. Sinto muita saudade dos meus pais, penso em ir embora pra lá também, Lá na Bahia eu levantava do lado deles, dava benção a eles. Aqui tem hora que eu levanto eles estão lá e eu estou aqui, eu não sei o que esta acontecendo com eles lá e eles não sabe o que está acontecendo comigo aqui. Lá é diferente, lá eu andava de cabeça erguida. Aqui eu ando de cabeça erguida também, mas lá a gente anda à vontade. Sentia cheiro de terra quando chovia, a terra tem muitos significados legais.A terra é muito cheirosa de fruta e verdura; me dava vontade de comer um pouquinho dela. Sinto saudade quando eu torrava farinha com meus irmãos. Sinto saudade quando a lua estava bonita e eu cantava para minhas amigas: “ai Rosinha ai não chora, ai Rosinha ai não chora, casa também namora, por detrás daquela serra passa boi, passa boiada, passa moreninha bonita do cabelo cacheado”.

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Eu te amo Laura dos Santos Barbosa

Eu nasci na Bahia na cidade de Entre Rios, mas com dezessete anos eu vim para São Paulo, pois era o meu sonho conhecer essa cidade. O pai da minha filha é pernambucano, eu sou baiana, mas não deu certo. Nós vivemos até dez anos e não deu certo. Depois eu casei com outro, um mineiro, já tem dez anos também que eu estou com ele. Nós convive só nós três: eu, o mineiro e minha filha. Ele sustenta a família, ele me dá as coisas que eu quero, então ele fala que eu não preciso trabalhar, porque minha filha trabalha e me dá dinheiro também, e eu tenho que cuidar dos dois, mas então eu trabalho do mesmo jeito porque é duro cuidar de uma casa sozinha. Eu já trabalhei muito mesmo, trabalho desde quatorze anos! Mas o serviço de casa é muito pesado também! Lavar roupa, limpar casa, fazer comida, tudo na hora certa, até de domingo eu tenho que fazer comida.

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Eu lembro que quando eu comecei a ficar com quatorze, quinze anos eu quis sair da roça pra trabalhar na cidade. Minha mãe falava assim: “a Laura não gosta mesmo de trabalhar na roça”. Não gostava não e não abaixava, meu pai falava: “abaixa Laura pra tirar os matos da beirada dos pés de mandioca” e eu arrastava com a enxada e tudo ficava tudo no mato, eu não gostava não. Eu falava: “ai mãe, pra trabalhar em roça não é comigo não!”. Nunca gostei. Eu chorava, e minha mãe: “não, você é minha filha mais velha, tem que ficar em casa pra cuidar da casa e cuidar dos seus irmãos”. Toda noite eu chorava quando meu pai chegava da roça. Então minha mãe falava: ”deixa Domingos”, o nome da minha mãe é Dominga e do meu pai é Domingos; mas meu pai: “não, eu não quero não, porque vai ficar mal falada”. Mas acabou deixando, eu fiquei trabalhando na cidade, arrumei uma casa de uma patroa.

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A minha patroa que me ensinou a fazer tudo dentro de uma casa. Minha mãe não me ensinava, minha mãe só deixava eu em casa pra varrer e cuidar das crianças, mas no fim quem cuidava mais era ela, e eu só olhava. O que eu aprendi de doméstica foi com a minha patroa.Eu trabalhava, pegava o meu dinheiro e dava todinho pra minha mãe. Ela ia pra cidade só buscar o meu dinheiro, eu não ficava com nada, porque a minha patroa já me dava dormida e roupa. Quando vim para cá, para São Paulo eu era de menor ainda - vim morar com a minha tia. Eu me lembro que quando saí de casa a minha mãe chorou, não queria que eu viesse, não ia deixar eu vir, não ia me dar dinheiro. Já faz vinte anos que eu estou aqui. Eu lembro como hoje - a minha avó bem velhinha pegou e meu deu dinheiro para mim vir, para mim conhecer São Paulo, matar minha vontade. Era só pra conhecer e ir embora, mas nisso que eu vim, acabei ficando aqui. Acabei gostando mesmo de São Paulo. Comecei a trabalhar e a conviver com pessoas diferentes. Eu também participei de um grupo chamado “Xexéu do Norte”, era muito boa aquela época, o grupo era instrumental e até gravamos um disco com

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outros grupos. Depois o grupo saiu em turnê para o nordeste e eu não fui por causa de um namorado e perdi essa oportunidade. Acabei não voltando mais pra Bahia, já tem vinte anos. Nenhuma vez consegui voltar! Minha mãe anda falando direto pra mim voltar, as vezes ela pensa que eu morri. Às vezes eu fico pensando muito nela. Às vezes eu sonho com ela direto, sonho com a minha mãe. O pessoal fala assim: “eee Laura, você nem lembra mais onde sua mãe mora”. Lembro sim! Está aqui na minha mente, eu sei direitinho a rua e tudo. Lembro a casa da minha mãe, eu sei o jeito e tudo. Sei o jeito de quando eu saí, eu deixei minha mãe dormindo, eu falei: “mãe, eu tô indo viu? Acorda que eu tô indo!” era sete horas da manhã, minha mãe falou assim: ”tá bom filha, vai com Deus. Já que você quer ir, né? Vai com Deus. Eu mesmo não queria que você fosse, mas já que você quer ir...”.

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Aconteceu uma coisa, quando eu era pequenininha, que até hoje eu não esqueço. Meus tios passaram quinze anos mais ou menos aqui em São Paulo.Então, um dia, quando foi umas três horas da manhã, eles chegou. Nós estava tudo dormindo na casa de minha avó. Naquele tempo lá era aquelas radiolinha, tinha aquelas vitrola, que tinha disco. Eu lembro que eles colocaram bem encostado na nossa porta com a musica alta e a gente acordou. Lembro que cantou a música de Roberto Carlos: “Eu te amo, eu te amo”. A música diz assim: “Tanto tempo longe de você, quero ao menos te falar...A distância não vai impedir, meu amor de te falar.Cartas já não adiantam mais, quero ouvir a sua voz...Vou telefonar dizendo que estou quase morrendo de saudade de você”.

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Foi uma alegria da gente! Até hoje eu lembro: nós saímos tudo pra fora, e abraçando esses tios da gente, nossa senhora! E até hoje eu não tiro essa música do Roberto Carlos da minha cabeça. Eu cantava as música dele todinha, lá na Bahia, quando eu era pequena. Todas as músicas dele que meu tio levou eu cantava. Chego a chorar com aquelas músicas. Quando eu vejo o Roberto Carlos cantar, eu lembro demais.

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Luiz Luiz Deoclecio Pereira

Meu nome é Luiz Deoclecio Pereira, nasci no município de Várzea Alegre, era um lugar muito pobre. Trabalhava na roça para sustentar. Era seis irmãos, todos trabalhavam na roça. Era um lugar que nem a África. A casa de meu pai era feita de barro no meio do mato. Não tinha vizinhos, nem amigos. Se você vai se deitar numa rede você não agüenta, você começa a pingar água no fundo da rede, molha todinho, de tão calor que é. Como era muito seco não tinha nem o que comer, nosso alimento era farinha de milho cozida com feijão e as vezes não tinha nem água porque era muito suja, com urina de animal. A merenda da gente era farinha seca, rapadura, era isso que nós comia e ficava satisfeito. Almoçava uma hora da tarde polenta pura, não tinha nada de mistura, só a rapadura. Uma vez não tinha nada, nada para comer. Eu chegava lá numa quitanda o cara não vendia um quilo de arroz, falava que não vendia fiado. Se não tinha dinheiro para comprar o pessoal lá não vendia. Eu precisava trabalhar uma semana para comprar um quilo de arroz. Tinha dia que chorava de fome, e minha mãe: “meu filho tenha paciência que um dia nós vence a vida”.

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Água para você tomar banho não tem. A roupa era feita com saco de farinha e andava descalço. Eu não tinha condições de comprar uma roupa, então com quatorze anos de idade eu andava pelado. Aí minha mãe pegava saco de farinha de trigo, tintava e fazia aqueles shorts para gente vestir sem camisa. Vivia pelado porque não era necessário, o pessoal lá não tinha roupa. A gente era acostumado, era que nem índio. Nós só usamos aquelas bermudas porque um cara lá correu na roça de algodão e aí pegou a faca para me capar. Por isso que a mãe conseguiu essas bermudas, porque eu não podia sair de casa com medo desse cara. Ele falava que ia me capar porque eu tava pelado. Era um cara velho e ele fazia isso aí porque ele achava que não era certo um cara de quatorze anos pelado.

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Em cinco de agosto 1979, com dezoito anos eu vim para São Paulo sem nada, sem nenhum documento. Naquela época nós viemos de caminhão, pau-de-arara que chama, sofrendo na carroceria. Passamos três dias com três noites. A mãe ponhava o colchão no chão, na carroceria do caminhão e aí nós dormia. Estava eu, meus quatro irmãos, minha mãe. Vinha lotado de gente, mais ou menos umas vinte pessoas.

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A vida foi muito difícil, sem trabalho e sem dinheiro. Depois com o tempo consegui um emprego de faxineiro ganhando aquele salarinho pequenininho e fui construindo a vida. Então meu pai foi e arrumou um barraquinho. Morava em um barraco onde tinha apenas uma cama. Com o tempo ganhei um fogão e assim fui levando a vida. Naquela época eu comecei a melhorar de vida, arrumei um empreguinho melhor e fui criando a vida. Juntando um dinheirinho comprei um barraquinho pra mim e me casei em cinco de setembro de 1987. Construí a família, construí quatro filhos.

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Um dia a mulher falou “vamos para o Ceará, para Fortaleza que lá nós consegue uma vida melhor” e eu fui no embalo.Cheguei lá, nem emprego nem nada. Comendo na custa da minha sogra. Aí eu liguei para meu pai e ele mandou vinte reais. A passagem de volta para São Paulo era dezoito. Eu comprei a passagem e sobrou dois reais, deixei para a mulher. E vim só com a passagem. Chegando na Bahia o pessoal perguntou “você não toma nem um café?” Eu falei: “eu não tomo porque é o seguinte: eu vim só com o dinheiro da passagem”. Quando abri a bolsa e mostrei para o cara eu até chorei. Então o cara fez uma fala na frente do ônibus e arrecadou quinze reais - aquela época quinze reais era dinheiro. Eu cheguei aqui com esses quinze reais, não gastei nada e também não faltou mais nada para mim.

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Eu cheguei. Deus foi tão grande que eu cheguei. Minha mãe quando me viu, chorou porque eu só estava o couro e o osso. Eu chorava, chorava toda noite porque o cara que gosta dos filhos sente falta. Quando fez seis meses eu mandei um dinheiro pra ela vir com eles. Eu fui passear lá uma vez. Minha mãe queria que eu viajasse para Várzea Alegre, mas ela morreu antes que eu fosse. Na noite antes de viajar ela me cobriu os pés. Eu sabia que era ela porque ela quando era viva, sempre cobria os pés da gente. Quando fui passear eu chorei porque eu vi onde eu nasci, a casa que meu pai morava ainda hoje ela está, ainda tem o pilãozinho que minha mãe pilava a comida pra gente comer. Então recordando aquele sofrimento que eu tinha eu chorei, eu não agüentei, vim embora.

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Eu e Jobertino Maria Aparecida Molinari

Sou de Lorena, no interior. Me mudei para São Bernardo porque vim morar com meu esposo. Me mudei por amor. Ele é caminhoneiro e viaja o Brasil todo. Me encontrei com ele no posto de gasolina, eu estava parada e ele foi tomar café, eram 6 horas da manhã. Eu estava no carro da minha comadre que estava quebrado, ela vinha para São Paulo porque morava aqui e eu vinha com ela para passear, e nisso o carro dela quebrou e eu fiquei. Ele perguntou para o meu amigo o quê que eu estava fazendo lá. Meu amigo falou: “o carro dela tá quebrado”. Então ele falou para o meu amigo: “eu vou carregar a carreta, quando eu voltar se ela estiver, eu engato na carreta e levo ela embora até a casa dela”. Ele fala que aquele dia eu estava muito bonita, ele fala até hoje: “nossa, que gordinha bonitinha!”. Quando eu vi que ele desceu eu fiquei séria, eu fechei a cara, porque diz que caminhoneiro faz muita coisa com a

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gente. A hora foi passando, ele carregou a carreta e quando ele voltou eu já não estava mais.Depois eu fui até a empresa que ele estava, agradeci muito e fui embora. Deixei o telefone, o endereço, se ele quisesse tomar um refrigerante na padaria que eu trabalhava, ele podia ir. Um belo dia ele apareceu e a gente ficou conversando, conversa vai conversa vem, aí eu fui viajar com ele de caminhão. Depois de dois meses a minha filha sumiu de casa. E ele me ajudou a chamar o resgate. Foi quando me cativou mais porque ele não tinha nada a ver, mas mesmo assim me ajudou. A gente foi viajar juntos, era época de Natal. Fomos para Manduri, uma cidade muito linda que eu não esqueço essa cidade até hoje. Tinha muita natureza, muitas árvores de eucalipto. Eu vi um cachorrinho e queria levar embora.

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Namoramos assim 3 anos. Depois a gente se separou porque ele ficava mais em São Paulo do que lá, a gente se via muito pouco. Ele falou que um dia ia levar eu embora pra morar com ele. Mas o tempo foi passando e a distancia nos separava. Um dia eu cheguei nele e falei que era para ele seguir o caminho dele que eu ia seguir o meu. Porque não dava, eu queria uma pessoa que ficasse perto de mim e não longe, e ele ficava distante. Eu sofri porque eu no mesmo tanto que falei que não queria mais, eu queria. Ele foi embora e eu não tinha mais contato. Eu fiquei noiva, mas não adiantou nada. Não era aquilo que eu queria, o que eu queria era ele. Depois de três anos ele voltou, lembro que era dia sete de setembro.Fui no desfile e uma amiga falou que estava me procurando só que eu já não morava mais no bairro onde ele tinha me deixado, eu já morava em outro bairro. O desfile era no sábado e eu me encontrei com ele no domingo porque a minha amiga deu para ele o meu telefone.

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E naquele dia eu tinha falado para minha comadre que o homem que eu ia me casar, que eu ia embora seria ele, mas nem imaginava que ele ia aparecer. Quando foi umas seis horas da manhã o telefone tocou. A minha amiga falou que era ele, eu não acreditei, só acreditei quando eu fui encontrar com ele, num posto, em um restaurante. Esse encontro foi muito emocionante, eu chorei muito, só que daí, desse dia em diante eu já não quis mais deixar ele. Depois de um tempo ele pediu para ir morar juntos em São Paulo e me trouxe de vez para cá. Já faz sete anos e parece que cheguei ontem.

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A minha história amarga e doce Maria das Graças “minha história é amarga e doce. Primeiro veio o amargo e terminou doce“ Um certo dia, minha tia Maria da Conceição chegou com uma maravilhosa notícia: a de que eu e meus irmãos iríamos para São Paulo. Ao chegarmos aqui fomos morar no Batistini e começamos a trabalhar em uma olaria. Lá o serviço era muito pesado porque tinha que fazer a bola do barro e depois jogar dentro da forma, cortar, jogar em cima de duas tabuinhas e levar lá no chão. Eu lançava tijolo, eram dois mil, dois mil e quinhentos tijolos que eu fazia por dia e foi com esse serviço que a gente manteve o nosso alimento.

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Foi na olaria que perdi minha mãe, ela teve uma grave doença e meu pai, com a intenção de salvá-la, gastou seus últimos centavos. Ficamos só eu e meu pai. A gente era muito simples, não tinha um fogão a gás, então meu pai fez um fogão à lenha. Com aquele fogão à lenha eu cozinhava feijão, fazia tudo para o meu pai naquele fogãozinho. Era uma casinha muito simples. Ficava sozinha, só tinha um “radico” de pilha, um radinho que eu ligava naquelas músicas do Roberto Carlos, aquelas antigas. Enquanto meu pai estava no bar, eu ficava cantando sozinha dentro daquele barraquinho. Às vezes eu saia um pouquinho para fora, era muito turvo, muito escuro. Em volta tinha bastante pé de mamona e tinha janelinha, mas não entrava sol não. Eu dormia ali, o cachorrinho na banda de fora e eu dentro

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do barraquinho. Ficava no meio do mato e tinha até bicho, aquele porco-do-mato. Quantas vezes não correu atrás de mim, eu com a jarrinha de suco para levar para o meu pai beber na olaria, quantas vezes eu largava a jarra lá derramada com suco e saia correndo, porque aquele bicho machuca a gente. Era daquela maneira que nós vivíamos. Tinha semana que nem dava pra fazer uma despesinha, a gente comia aquilo que tinha lá: fazia farofa de fubá, fazia angu. Meu pai trabalhava de manhã e de noite saia para beber. Eu ficava ali naquele mato sozinha, meditando. Eu queria ser uma pessoa grande e adulta para ajudar meu pai. Diante do desespero, meu pai achou a maldita cachaça e bebia tanto que as pessoas do bar precisavam levá-lo no colo até em casa. Em uma certa manhã, eu disse a ele: “pai por favor não bebe tanto assim se não vai acabar morrendo”. E ele respondeu: “minha filha isso é para ver se eu esqueço sua mãe que tanto amava e estimava”. Ele achava que não tinha mais solução na vida. Quantas vezes eu chegava e pegava meu pai

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jogado no chão, apoiava na cama, e pedia a Deus para me dar força pra eu conseguir deitá-lo na cama. Eu dava banho no meu pai, não tenho vergonha de falar porque eu queria que ele se tornasse uma pessoa limpa. Eu lavava e enxugava os pezinhos dele, jogava três, quatro cobertas por cima dele, porque ele não estava sabendo o que tava fazendo. Enquanto ele estava dormindo eu ia no fogão com dois pedacinhos de pau, e acendia aquele fogão enorme soprando com a boca pra fazer o fogo. Esquentava um pouquinho daquele arroz com feijão pra ele se alimentar. Ele não podia ficar fraco, senão não ia agüentar trabalhar na olaria. Depois de um tempo meu pai arrumou uma namorada chamada Antonia. Eu pensei que não ia me dar bem com esta madrasta, mas ele falou que era muito boazinha e que eu ia adorar ela. Eu pensei “ai meu Deus!, agora essa

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mulher vai vir para dentro de casa, eu acho que ela vai me bater e não vai me querer bem, porque não sou filha dela”. Logo que meu pai se casou eu fiquei meditando: “não demora, não vejo a hora de chegar a minha idade também pra eu arrumar um namorado e casar”. Com os meus onze anos comecei a namorar, e esse namoro durou quatro anos e com quinze anos me casei com Jair Jacinto dos Santos. Ele morava em Santo André e a gente morava em Diadema. Um dia ele chegou e foi na casa da irmã dele, Julieta. Minha irmã me chamou pra ver ele, para ver o jeito que ele era. Cheguei lá, peguei na mão dele, eu estava com onze anos e ele com vinte e dois. Quando ele pegou na minha mão, que eu olhei no rosto dele, ele piscou para os meus olhos, piscou pra mim. Eu não sabia o que era namorar aí eu achei que estava com um cisco no olho. Minha mãe dizia que se um rapaz colocasse a mão na gente, não era moça mais. Se pegasse na mão tinha que casar mesmo. Então a gente tinha aquele cuidado. Meu namorado não entendia ele falava: “se não é para relar, de que jeito a gente vai namorar?” Um dia ele pegou no meu ombro e meu irmão falou para mãe.

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Levei uma pisa que tenho até hoje. De primeiro, no meu tempo era assim, o namoro era muito delicado e muito educado. Hoje em dia é muito diferente. Mas eu não queria namorar com ele, era muito pequena e muito nova. Já minha mãe falou assim: que antes de morrer só ficaria sossegada e teria paz se eu casasse com ele. Era a maior alegria da vida dela. Ele pediu a minha mão para minha mãe, disse que gostava muito de mim. Minha mãe aceitou e eu aceitei. Meu pai estava bêbado. Então depois de todos aceitarem até ele providenciar o casamento levou quatro anos. Meu namorado foi mais do que um filho pra minha mãe. Chegava a pegar minha mãe no colo. Minha mãe achava que do jeito que ele fazia pra ela, ele ia fazer pra mim quando eu casasse. E foi mesmo. Já pensou você casar com uma pessoa que você não gosta? Só pelo amor do que ele fazia para minha mãe eu acabei gostando dele e esse gostar já tem quarenta e quatro anos. Nós dois somos a mesma coisa que dois irmãos.

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Valdice Valdice Mendonça Santana

“Sonhar mais um sonho, porque quem pára de sonhar morre” A casa onde eu nasci era de taipa, tinha dois quartos para onze filhos mais meu pai e minha mãe morar. A sala era bem grande, onde tinha bastante rede para dormir. Quando eu morava com meus pais, morava no interior de Sergipe, nessa cidade chamada Moita Bonita. Ela já existe no mapa. Eu nasci lá mas quando eu tinha sete anos meu pai foi contratado para trabalhar na Bahia e assim fomos morar na fazenda Agriza que fica na cidade de Ituberá. Moramos numa casinha de sapé durante sete meses até desocuparem a casa de dentro da fazenda. Eu tive uma infância bem humilde, mas muito feliz. Minha mãe pegava água na fonte com o pote de barro que levava na cabeça - a fonte é uma pequena poça que acumula água da chuva durante o inverno e é usada para o consumo no verão. É uma

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água que não tem muitas qualidades, cor de barro ou cor de leite. No início ela é boa, mas no fim, o que sobra é terrível e tem que dividir com o gado. Para tomar banho eu não sei se a gente se limpava ou se sujava mais. Enquanto mamãe fazia o café da manhã, meu pai cuidava da horta. Ele e meu irmão plantavam feijão e produziam a palma, planta que serve como ração para o gado enquanto o inverno não chega para o capim voltar a nascer. No nordeste, todos têm seus meios de ter algum alimento. Meu pai, mesmo quando estava mais pobre, sempre teve seu gado de onde tirava leite, fazia queijo.Mas o grande problema mesmo foi e ainda é a água. Os açudes são uma espécie de salva-vidas do gado. Com a chegada das primeiras chuvas o nordestino se prepara para a plantação do milho. Eu lembro que minha mãe cantava “boi, boi, boi, boi da cara preta...” balançando eu e meus irmãos na rede.

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Até os cinco ou seis anos, eu brincava sem compromissos, depois descascava mandioca, quebrava milho, colhia amendoim, feijão. Das brincadeiras de criança, esconde-esconde era uma das preferidas em noite de lua. A lua cheia no nordeste ilumina o céu como se fosse dia. No início, as crianças não trabalhavam, mas depois percebemos que o pai não ia dar conta do serviço e resolvemos ajudar. No trabalho, a gente se divertia e começamos a gostar de colher cacau, partir, tirar o caroço. Pela primeira vez, eu vi um cacho de bananas madurinho. A gente não participava do processo de fermentação e secagem do cacau.Tudo era novidade. A gente nunca teve festa de aniversário, então a gente combinou que quando cada um de nós saíssemos de casa, o primeiro aniversário a gente se reunia todo mundo e comemorava. Mas aí a gente não comemorou o aniversário da gente, a gente comemorou o aniversário

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de casamento do meu pai e da minha mãe. Eu lembro que a coisa mais bonita que vi até hoje foi minha mãe e meu pai chorando de felicidade por causa da festa que nós fizemos pra eles. Quando eu voltei da Bahia, tinha vinte e um anos, me casei e foi onde eu fui viver na capital lá em Aracaju, num bairro chamado São Conrado. Saí de Aracajú em 1998, vim para São Paulo porque meu marido era muito violento, me maltratava muito, chegava até a me machucar fisicamente e eu fui cansando daquela vida de cuidar da casa, dos filhos, do marido e não ter nenhum reconhecimento. Eu passei alguns meses só pensando, pensando, pensando, até que cheguei à conclusão de que seria melhor ir embora, mas ir embora para longe, porque ficar perto, próximo dele, ele ia sempre atrás de mim. Era época junina no nordeste, onde tem muitos fogos, muitas coisas, muita bebedeira, trio elétrico. O meu marido gostava muito dessas coisas e eu não gostava. Ele saia e eu não saia. Então, ele chegava sempre muito violento e um dia foi me agredir e acabou machucando o meu filho do meio. Aquilo foi me revoltando, digamos que foi a gota d’água para uma decisão, não sei se a mais certa, mas no momento era a solução.


Conversando com minha mãe, meu pai e alguns irmãos eu acabei chegando à conclusão que o melhor seria ir embora. Há doze anos moro na favelinha aqui no Oleoduto, com meus filhos Júnior, Roberto e Tiago. Eu comecei de doméstica, passei uns três anos de doméstica, depois fui trabalhar num condomínio, na portaria, depois eu fui para uma firma aqui no Rudge Ramos. E até que eu consegui comprar meu barraquinho que hoje é dois cômodos, mas é meu. Nesses doze anos eu não quis casar mais. Algumas pessoas comentam que chegam em São Paulo e vêm com o intuito de que ganha dinheiro fácil. Não ganha. A gente tem que correr atrás, quando a gente quer.

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Acho que quer que as coisas caiam do céu. Que eu saiba do céu só cai chuva. Eu cheguei aqui, fui à procura de trabalho, cheguei na casa da minha patroa Adriana, eu falei para ela “Adriana, Dona Adriana, eu preciso trabalhar, acabei de chegar do nordeste com meus dois filhos”. E eu não fui atrás de pensão, eu fui procurar trabalho e sobreviver, andar com as minhas pernas.

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Era o que eu queria e foi o que eu consegui. Quando eu quero alguma coisa eu corro atrás, eu não espero acontecer. Eu gosto de lutar pelas coisas, eu gosto de ter trabalho para conseguir, porque o que vem fácil vai fácil também. A melhor fase da minha vida é hoje com meus filhos criados. O meu caçula hoje tem quatorze anos. Então, é bem diferente, embora um pouco assustador porque o ambiente onde eu moro é bem barra pesada. Eu fiz questão de sempre realizar alguns sonhos básicos dos meus filhos. Eu ouço algumas crianças falarem que “a mãe nunca me abraça, nunca me beija...” Se você vê eu e meus filhos você fala que é uma família muito feliz e a gente é! Eu faço questão do amor deles e retribuo do mesmo jeito. Se tem problema eu converso, não sou de agredir, se precisar por de castigo eu ponho, mas tudo no limite.

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Eu vou seguir em frente com meus estudos, até porque eu tenho o apoio dos três agora. No início ficaram assim... Mas eu vou. Ainda que seja por pouco tempo. Eu ainda quero ser auxiliar de enfermagem. Eu tenho esse sonho. Fazer visita a asilos. A gente tem sempre que fazer alguma coisa para manhã, porque hoje já acabou. Daqui a pouco é hora de você tomar um banho, jantar, dormir... No dia seguinte, você tem que sonhar, senão você não tem o que fazer. Eu vou continuar sonhando e realizando os que eu puder, pode ter certeza.

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Índice dos contos 14 O rio só ficou no barro Adão Manoel da Silva 16 Anailda Anailda Heostílio dos Santos 22 Antonio Antonio Alves dos Santos 26 O meu milagre Elizete Bispo da Silva 28 A Mineirinha Gení Soares Lopes 34 Quando eu salvei uma vida Genivaldo Ferreira de Souza 38 Seu Idalino

Idalino Lourenço


42 A minha natureza Joel Monteiro da Silva 46 Saudade da terra que cheirava de fruta Jorgival Ferreira de Souza 50 Eu te amo Laura dos Santos Barbosa 56 Luiz Luiz Deoclecio Pereira 62 Eu e Jobertino Maria Aparecida Molinari 66 A minha histรณria amarga e doce Maria das Graรงas 72 Valdice Valdice Mendonรงa Santana



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