Shadowlands 02 hereafter kate brian

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A Shadowlands Novel

Livro 02

A Seguir

KATE BRIAN


SINOPSE Rory Miller pensou que sua vida havia acabado quando um serial killer voltou suas atenções para ela e a forçou a entrar na proteção a testemunhas. Mas um novo começo na Ilha Juniper Landing era exatamente o que ela e sua família precisava. Pela primeira vez em anos, ela e sua irmã iam à praia, fofocavam sobre meninos e festejavam juntas. Ela também fez amizade com um grupo local — incluindo um menino magnético e misterioso chamado Tristan. Mas o mundo de Rory está prestes a mudar novamente. A pitoresca Juniper Landing não é o que parece. A verdade sobre a névoa que rodopia todas as manhãs, a ponte que leva a lugar nenhum, e aqueles belos moradores locais que parecem vigiar cada movimento de Rory é mais aterrorizante do que estar sendo caçada por Steven Nell. E tudo que Rory queria era a verdade. Mesmo que isso significasse saber que ela nunca mais poderia voltar para casa.


Ela nunca mais poderรก voltar para casa novamente!


1 A VERDADE Traduzido por Vivian Nantes

O

sol da manhã subiu sobre o oceano, trazendo belos tons de rosa, roxo e laranja no céu. Sentei-me na areia com Tristan Parrish, sua mão segurando a minha, e olhei para a sua pulseira de couro desgastado, enquanto eu ouvia o som de sua respiração e o ritmo das ondas que quebravam na praia. Em qualquer outro dia, este teria sido o momento mais romântico da minha vida. Mas isso era hoje. E a minha vida tinha acabado. Concentre-se, Rory. Concentre-se e respire. — Então, naquela noite na estrada... aquilo não foi um pesadelo — eu disse lentamente. — Eu, meu pai e minha irmã... todos nós morremos. Os olhos azuis claros de Tristan se encheram de dor. O calo em seu polegar pressionou a palma da minha mão. — Sim. Eu estava entorpecida enquanto dizia as próximas palavras. — Steven Nell nos matou. — Sim. Seu aperto sobre meus dedos aumentou, e de repente um vazio se abriu dentro do meu peito. Engoli em seco, agarrando-me enquanto uma enxurrada de imagens me invadia uma após a outra, como um filme projetado em uma tela. O Sr. Nell me agredindo, com os olhos lacrimejantes, selvagens com fome. A lâmina da faca enterrada bem fundo no meu estômago. A mancha de sangue atravessando a minha camiseta. Os galhos de árvores rangendo em cima da minha cabeça. Meu último suspiro engasgado enquanto eu lentamente perdia a consciência e tudo ficava frio. Meu coração torceu dolorosamente e eu me inclinei para frente, lutando para respirar. — Eu sinto muito — disse Tristan novamente. — Eu tinha que te mostrar a verdade.


Ele apertou minha mão mais uma vez, e seu lindo rosto esculpido entrou em foco. Se isso tivesse sido qualquer outro dia, eu teria ficado obcecada com o que será que ele estava pensando. Por que ele ainda estava segurando a minha mão. Se isso significava que ele gostava de mim tanto quanto eu gostava dele. Eu estaria me preocupando se as palmas das minhas mãos estavam pegajosas, se eu estava com hálito matinal, ou se meu cabelo estava fazendo aquele frizz insano em torno de minha testa que ele tanto gostava de fazer. Estas são as coisas que uma garota de dezesseis anos de idade deveria estar obcecada. Eu não deveria estar obcecada sobre como eu tinha morrido. Lá em cima, um corvo gorducho crocitou, mergulhando no ar antes de aterrissar no telhado da casa azul e branca em frente à praia em que a minha família vivia — não, não vivia... existia — desde que chegamos em Juniper Landing exatamente uma semana atrás. Nós tínhamos sido obrigados a fugir de nossa casa em Princeton, New Jersey, quando meu professor de matemática, um serial killer que já tinha matado outras quatorze meninas, tinha decidido que eu era a próxima. Nós seguimos as instruções da agente do FBI à risca, passando por uma chuva torrencial para o nosso novo local, nossas novas identidades como a família Thayer a reboque. Pensávamos que tínhamos ido em segurança até a Carolina do Sul, mas não tínhamos feito nada disso. O Sr. Nell tinha nos encontrado em um trecho de estrada solitária e terminou o que ele se propôs a fazer. Ele matou meu pai, então minha irmã, Darcy, depois eu. De repente, eu empurrei-me para cima, espalhando areia por toda parte com a minha pressa. — Onde você está indo? — Tristan se levantou e estendeu a mão para mim, mas não a peguei, tremendo da cabeça aos pés. — Eu tenho que dizer a minha irmã. Eu tenho que dizer ao meu pai — eu disse, minha voz cheia de lágrimas. — Não. Você não pode — disse ele com veemência. — Você não pode fazer isso. Tristan ficou na minha frente e bloqueou meu caminho. Atrás dele, eu podia ver as janelas do quarto do meu pai. O quarto onde ele dormia, alheio ao fato de que a sua vida tinha acabado. Que a sua tentativa de proteger suas filhas, deixando a casa que em que tínhamos crescido, a casa onde minha mãe havia vivido e morrido, tinha falhado. — O quê? O que você quer dizer com eu não posso? — eu gritei. — Eles são a minha família, Tristan.


Eu tentei dar a volta por ele, mas ele agarrou meu braço, seu aperto tão apertado que enviou um choque de alarme através de mim. Tentei me livrar dele, mas de repente uma sensação macia e suave surgiu dentro do meu pulso e lentamente viajou até meu braço e ao meu peito. Ele agarrouse a mim, e meu coração parou de bater contra a minha caixa torácica. Minha respiração voltou ao normal. Senti-me, de repente, estranhamente calma. Eu olhei nos olhos azul-claros de Tristan. Eles estavam... vitoriosos. Um baque de medo bloqueou qualquer sensação de serenidade. Eu puxei meu braço fora de seu alcance, suas unhas arranhando a minha pele. — O que é que foi isso? O que você acabou de fazer comigo? — eu exigi, afastando-me com terror. Seu rosto empalideceu. — Rory... — Não! — eu gritei, traição apertando meu intestino. — Você não pode simplesmente mexer com a minha mente assim! O que você é? O rosto de Tristan se transformou em pedra, e seus olhos desviaram para algo atrás do meu ombro. Eu senti a presença de alguém atrás de mim dois segundos antes de eu colidir com algo sólido e inflexível. Um par de braços fortes se fechou em torno de mim, apertando minhas pernas contra o meu peito e me pegando do chão, tudo isso enquanto Tristan olhava calmamente. Eu gritei o mais alto que pude. A única resposta foi o grito de uma gaivota. — Isso dói mais em mim do que em você — uma voz baixa sussurrou em meu ouvido. Meu peito se contraiu mais e mais, até que eu não conseguia respirar e o mundo ao meu redor ficou cinza. Tristan avançou lentamente, olhando nos meus olhos, a boca numa linha sombria. — Por quê? — Engoli em seco, tentando agarrar-me a consciência. — Por que você está fazendo isso comigo? — Eu vou explicar tudo quando você acordar — disse ele suavemente. — Eu prometo. Em seguida, seu belo rosto se contorceu e embaçou, e tudo ficou preto.


2 DIFERENTE Traduzido por Yasmin Mota

E

u vim parar em um sofá empoeirado em um cômodo que cheirava a mofo misturado com cerveja e sal marinho. Meu peito doía, e minhas unhas curtas cortaram sulcos dolorosos na minha mão. Perto dali, alguém riu. Timidamente, abri um olho e observei ao meu redor. Eu estava em um porão com painéis de madeira e sem janelas. O cômodo era decorado com tapetes felpudos verde e laranja, uma lâmpada escura em cima que parecia um ouriço-do-mar, e vários sofás xadrez desgrenhados. Rondando perto de um bar feito de mármore e decorado com vinis feios e rasgados estava cerca de uma dúzia de adolescentes da minha idade, tomando café em copos de papel e conversando um com o outro como se o meu sequestro fosse um evento social cotidiano. Reconheci vários deles como moradores locais de Juniper Landing, que eu tinha previamente assumido que era uma cidade de férias. Tinha Bea McHenry, uma ruiva atlética, cujo cabelo molhado estava penteado para trás em um rabo de cavalo, como se tivesse acabado de chegar de um mergulho. Kevin Calandro, cuja tatuagem de fogo aparecia sob o braço através de uma camiseta branca suja, me olhava com curiosidade através do topo de seu copo de café de plástico. Próximo a ele, estava Lauren Caldwell, cujo cabelo preto foi colocado para trás por uma faixa xadrez. Duas meninas e um cara que eu nunca tinha visto antes pairavam no canto, olhando para o resto do grupo, como se não quisessem estar lá. A porta do lado distante do cômodo se abriu, e Joaquin Marquez, o garoto que parecia tão decidido a partir o coração da minha irmã, saiu, seguido por Tristan. Uma das meninas no canto, uma emo franzina com um moicano curto e loiro, seguiu-o longamente com os olhos, com uma expressão que eu reconheci imediatamente. Era exatamente do jeito que eu


costumava olhar para Christopher Kane nos corredores de Princeton Hills High, quando ele ainda estava com Darcy. Fisher Morton foi o último a sair da sala dos fundos. Ele fechou e trancou a porta atrás de si rapidamente e, em seguida, juntou-se ao resto do grupo, virando seus maciços ombros para os lados para escapar por entre o grupo apertado e coeso. Meus cílios vibraram involuntariamente. Por que ele trancou a porta? — Gente, ela está acordada — Krista Parrish anunciou, emergindo da multidão em um vestido rosa e branco. Seu cabelo loiro, com o tom exatamente igual ao do seu irmão, foi puxado para cima em um rabo de cavalo alto, seus olhos azuis se alinharam habilmente quando ela franziu a testa com simpatia para mim. Ignorando a dor na minha cabeça, eu me endireitei, absorvendo toda a sala agora. Atrás dela, tinha um conjunto de escadas que conduziam para cima. Uma rota de fuga. Eu me levantei, com meu coração batendo forte. — O que está acontecendo? — eu perguntei, me afastando para longe deles em direção às escadas. — Onde estamos? — Não se preocupe — disse Krista suavemente, estendendo a mão como se estivesse tentando acalmar um cão raivoso. — Ninguém vai te machucar. — Eu sinto muito por acontecer dessa forma — disse Tristan, as bordas de sua boca curvando-se para baixo. Lembrei-me de como ele olhou para mim antes de eu ter desmaiado, e desviei os olhos. — Nós estamos no porão da delegacia de polícia. — Vocês me sequestraram e me levaram para a polícia? — eu soltei. A Menina Moicano riu alto. — Nós não sequestramos você — disse Joaquin, revirando os olhos. — Nós te salvamos. Você e sua família. Krista, Lauren e Fisher olharam para mim tão ardentemente que todos os minúsculos pêlos na parte de trás do meu pescoço se arrepiaram. Eu me senti como se tivesse de repente aterrissado no meio de um culto. — Bem, se eu não estou sequestrada, eu posso... ir embora? — eu disse, dando mais um passo em direção à escada. — Sinto muito. — Fisher balançou a cabeça. Meu coração mergulhou em um precipício. Essa era a voz. A voz da pessoa que me agarrou na praia. Eu dei um passo instintivo para trás e me choquei contra a parede. Meu pulso zumbia rapidamente em minhas veias. — Será que alguém, por favor, pode me dizer o que está acontecendo? — eu exigi.


— Nós não poderíamos deixá-la contar a sua família — Tristan respondeu. — Como é? — eu exalei bruscamente. — Você me diz que estamos todos mortos e espera que eu não conte à minha família? — Você não pode. — Tristan repetiu. Havia várias emoções em seus olhos. Ansiedade e súplica. Como se ele estivesse apenas tentando ajudar. Como se ele precisasse que eu entendesse. Mas naquele momento, eu não confiei no seu olhar. Eu não podia. — Tentem me parar. Eu me virei para Fisher e enfiei o pé o mais forte que pude em seu peito do pé. Ele xingou e se dobrou, me dando tempo suficiente para desviar e passar por ele, pegar um dos eixos de madeira que cobriam as escadas e lançar-me em volta e para cima dos dois primeiros degraus. — Rory, não! — Joaquin gritou. Soaram passos atrás de mim. Eu tropecei, mas arrastei-me de volta para cima e continuei. Eu podia ver a luz enquadrando a porta no topo. — Pare! — Lauren chamou. — Rory, eles vão... Atirei-me para frente, tentando alcançar a porta. — Se você contar para a sua família, eles serão condenados à Terra das Sombras! — gritou Krista. — Krista! — alguém sibilou. — O quê? Ela estava indo embora! — Krista respondeu em um lamento. Parei com meus dedos na maçaneta. Meu peito arfava com cada respiração. Terra das Sombras? Quando me virei, Tristan entrou à vista da parte inferior da escada. Fiquei olhando para ele, quase não conseguindo enxergar seu rosto sob a luz fraca. Atrás dele, na parede, havia uma pintura antiga de um pôr do sol, o brilho dourado formando uma auréola ao redor de sua cabeça. — O que é a Terra das Sombras? — eu perguntei. — Você poderia, por favor, voltar aqui para baixo? — ele implorou em voz baixa. — Não até que você me diga — eu insisti. — O que é a Terra das Sombras? — Desça e vamos lhe contar tudo — disse ele, estendendo uma mão — Você está segura aqui. Eu prometo. Eu olhei para a porta atrás de mim, mas a minha curiosidade venceu. Ignorando a mão estendida de Tristan, eu passei por ele na beira das escadas e caminhei até o centro da sala, tentando parecer mais confiante e no


controle do que eu me sentia. Rígida, impassível, astuta. Mas por dentro, tudo tremia. Tristan hesitou, claramente surpreso que eu tinha deixado passar a oportunidade de tocá-lo. Ótimo. Ele mereceu por deixar seu amigo me nocautear. — Ok — eu disse. — Eu estou ouvindo. — Juniper Landing é um “entre” — Joaquin começou, cruzando os braços sobre o peito de sua camiseta vermelha bem-ajustada. — Um limbo. — Um dos muitos — acrescentou Bea. — É um lugar aonde as pessoas vão para resolver qualquer negócio inacabado que eles têm do outro mundo antes de seguirem em frente — disse Tristan. — Eles chegam no mesmo barco que você chegou e ficam até que estejam prontos. Uma vez que eles seguem em frente, há dois destinos possíveis. Há o bom, que nós chamamos de Luz. — E há o mau — Joaquin falou, uma sombra passando pelo seu rosto bonito. — A Terra das Sombras. — Foi por isso que tivemos que te parar na praia — Tristan implorou. — Nós não poderíamos arriscar que seu pai e Darcy fossem enviados para lá. — E vocês não puderam pensar em outra maneira? — eu exigi. As bochechas de Tristan ficaram rosas. — Eu tentei, mas você meio que me obrigou a fazer isso, lembra? O calor. O calor calmante. Percebi agora que o senti duas vezes antes — ontem de manhã, quando eu estava à beira de um colapso nervoso sobre o desaparecimento de Olive, e novamente ontem à noite quando eu comecei a perceber a verdade perturbadora sobre Juniper Landing. Em ambas as vezes, Tristan tinha usado seu toque, seu poder, o que quer que fosse, para me trazer de volta do abismo. — Então, por que me trazer aqui? — perguntei. — Com todos vocês? — Queríamos lhe contar sobre o que fazemos — Krista respondeu. — Nós somos aqueles que conduzem as pessoas aos seus destinos finais. — Nós nos chamamos de Lifers — disse Lauren. Ela ergueu o braço para me mostrar a pulseira de couro, que escorregou para baixo quase até seu cotovelo. Uma rápida olhada ao redor da sala revelou que cada um dos meus capturadores usava uma. Eu tinha notado as pulseiras quando cheguei na ilha, e assumi que representavam algum tipo de clube ou sociedade secreta. Eu não tinha ideia de que significava isso. — Lifers — eu repeti, sentindo uma estranha sensação de déjà vu. Eu tinha ouvido essa palavra em algum lugar antes. — Então vocês decidem para onde as pessoas vão?


Todos riram. Mesmo Tristan. — Ah, não — disse Lauren, colocando o copo de café no bar. — Nós parecemos deuses? — Bem, alguns de nós sim — disse Joaquin, jogando as mãos para cima. Bea estreitou seus olhos cor de âmbar e o empurrou com tanta força que ele quase caiu. — Não é isso o que nós fazemos — Tristan reiterou. — Nós simplesmente agimos como porteiros para o próximo reino. Quando alguém está pronto para seguir em frente, seu Lifer recebe uma moeda. — ele produziu uma moeda de ouro do bolso e a estendeu para mim. Ela brilhava até mesmo no escuro do cômodo. Eu a arranquei de sua mão e virei na palma da minha mão. Era pesada e grossa, branca de um lado e com um sol no outro. — Nós levamos o visitante até a ponte, entregamos a sua moeda e o enviamos em seu caminho — explicou Tristan. — A moeda sabe o caminho que eles devem ir e os leva até lá. A ponte. Claro. Os acontecimentos de ontem à noite filtraram através de meu cérebro. O Sr. Nell gritando e se contorcendo à medida que Fisher e Kevin o jogavam na parte de trás de uma caminhonete. Krista atrás do volante e acelerando para dentro da neblina em direção à ponte no extremo norte da ilha. Seus gritos cessando abruptamente e o estranho silêncio que se seguiu. Ela o guiou para a Terra das Sombras. Bem ali, na minha frente. E eu não tinha ideia. Estudei a moeda. Como poderia este pequeno pedaço de metal saber onde eu estava destinada a passar toda a eternidade? Com um estremecimento súbito, eu a joguei de volta para Tristan. Não que eu tivesse alguma dúvida, é claro. Não era como se eles fossem me enviar para o lugar ruim, certo? Eu, minha irmã, meu pai... estávamos todos destinados para a Luz. Tínhamos que estar. Tristan olhou para mim, os olhos de repente tristes, e eu senti o clima mudar na sala, como se todo mundo tivesse parado de respirar de uma vez só. — Por que vocês estão me olhando assim? — eu perguntei a Tristan. Os outros, de repente, tornaram-se muito interessados na arte oceânica horrível nas paredes. — Tristan, por que você está me dizendo tudo isso? Se eu não posso contar a minha família, então por que... por que você pode me contar?


Tristan respirou fundo. Ele fechou a distância entre nós e pegou minhas duas mãos. Eu instintivamente congelei, esperando aquele calor estranho, mas, desta vez, não senti nada. Nada mais do que as batidas do meu coração. — Lembra como você sentia o tempo todo que havia algo diferente sobre a ilha? — ele perguntou. Minha cabeça ficou leve. — Sim — eu respondi. — E você perguntou por que você se lembrava de Olive e do músico do parque depois que eles foram embora, enquanto Darcy não? — ele disse. Eu pisquei, pensando no meu primeiro amigo da ilha que tinha desaparecido na semana passada, sem deixar vestígios. Onde ele estava querendo chegar com isso? — Sim. — Bem, isso é porque você é diferente — disse Tristan devagar, com firmeza. — Você não é como os outros visitantes de Juniper Landing. Meu peito se contraiu. — Diferente como? Tristan olhou para os meus dedos por um longo momento antes de me olhar nos olhos. Não havia mais ninguém na sala naquele momento. Ninguém mais que importava. — Você é uma Lifer de Juniper Landing. Como eu. — Como todos nós — Joaquin completou. — O quê? — eu arfei. — O que isso quer dizer? — Isso significa que você não vai seguir em frente — ele disse, calmamente. — Você vai ficar aqui. Com a gente. Meus dedos deslizaram para fora do aperto de Tristan, e eu pressionei minhas mãos contra os olhos. Eu tinha acabado de começar a me acostumar com o fato de estar indo para algum lugar etéreo chamado Luz. Que eu nunca mais iria ver minha casa. Nunca me formar no ensino médio, ou ir para a faculdade, ou para a escola de medicina ou fazer qualquer coisa que eu tinha passado metade da minha vida planejando. E agora... agora eu estava presa aqui? Para sempre? — Por quê? — eu exigi, deixando minhas mãos caírem. — O que me faz tão especial? — Você teve uma morte não natural — Joaquin me disse, com a voz suave de repente. — Pelo menos, essa é a primeira exigência que você tem que cumprir para se tornar um Lifer. E no último momento de sua vida, você conseguiu a segunda. A sala nadou diante dos meus olhos, uma mistura de marrons, amarelos e verdes. — A segunda? Qual é a segunda?


— Você tem que provar o seu altruísmo. Ou no outro mundo ou quando você está aqui — Tristan me disse. — Você usou seus últimos segundos de vida para livrar a terra de um assassino sádico. Mesmo você dando seus últimos suspiros, você conseguiu fazer do mundo um lugar melhor. Uma última imagem veio em espiral de volta para mim. A cena em câmera lenta de mim, puxando a faca do meu estômago e a enfiando no homem que matou a minha família e tantos outros, o olhar de choque no rosto de Nell quando a lâmina se arqueou em direção ao seu peito. Uma espécie de cacarejo estrangulado escapou da minha garganta. — Meu ato altruísta foi matar Steven Nell? — eu disse, horrorizada. — Isso não era altruísmo; era vingança. As sobrancelhas de Tristan se uniram. — Talvez em algum nível, mas... — Isso tem que ser uma piada — eu disse, olhando para o resto deles. Esperando — torcendo — para um deles parar de fingir. Começar a rir e gritar “te peguei!” Mas ninguém se moveu. — Vocês estão brincando, certo? Diga-me que vocês estão brincando. — Eu não brincaria com algo assim, Rory — disse Tristan. — Eu não faria isso com você. A sala embaçou em torno de mim. Os copos de café espalhados pelo bar, o molde de gesso de um golfinho saltando suspenso sobre um dos sofás, todos os rostos olhando para mim — curiosos, passivos, preocupados. Eu pressionei uma mão contra a minha testa e me forcei a focar em Tristan. Só em Tristan. Seus lábios perfeitos, sua mandíbula forte, seus olhos bondosos. Agora ele era a única coisa que fazia sentido. Eu respirei fundo. — Então o que você está me dizendo é, é isso — eu disse, o ar chegando na minha garganta, fazendo meus olhos arderem. — Este é o lugar onde eu vou ficar. — Sim — respondeu Tristan, com os olhos brilhando. — Esta é a sua nova casa. Para sempre.


3 PARA SEMPRE Traduzido por Yasmin Mota

E

ntão, agora ela sabe que está aqui — para sempre. É uma expressão tão bonita, para sempre. A promessa, na verdade. Encontrada em tantos cartões de Dia dos Namorados e de aniversários, escrita em milhares de anuários, proferida em orações diárias. Para sempre é a maior promessa que existe. Quem não quer saber que a coisa que eles amam, a única coisa com que eles contam, a coisa em que acreditam nunca vai acabar? Quem não espera a imortalidade, pela chance de viver... para sempre? Bem, eu já provei o para sempre, e aqui está o que eu sei: nunca, nunca termina. Todos os dias nesta ilha é uma eternidade. O sol nasce, os ignorantes invadem, o nevoeiro aparece, os ignorantes vão embora. É a mesma coisa, dia após dia. Os mesmos rostos, os mesmos lugares, os mesmos cheiros, sons e sensações. É como um ciclo interminável do filme mais chato de todos os tempos, e eu sou obrigado a vivê-lo de novo, de novo e de novo. Não há fim. Nunca haverá um fim. Eu sei que tenho que sentir orgulho do meu trabalho, entender e abraçar que fui abençoado com uma vocação maior, um propósito — que me foi dado um presente. E eu tentei acreditar no início. Eu tentei. Eu queria muito acreditar. Mas isso faz muito tempo agora. Muito, muito tempo. E o que eu tenho para mostrar? Nada. O que eu terei para mostrar? Nada. Porque aqui, neste limbo, não há nada a esperar, nada para lutar, nada para seguir em frente, nada para retornar. Ou assim eles pensam. O que ninguém sabe é que eu já estou trabalhando para mudar o meu destino. Eu vou sair daqui. Custe o que custar.


4 A DIREÇÃO Traduzido por Yasmin Mota

O

sol do lado de fora estava penetrante. Eu levantei minha mão contra ele e tropecei para baixo dos primeiros degraus de mármore branco, agarrando ao corrimão bem a tempo de me impedir de cair pela calçada. — Rory, pare! — Tristan gritou atrás de mim. — Apenas me deixe ir, Tristan. Em um trecho gramado do parque, perto da fonte de cisne borbulhante, uma jovem realizava uma série de poses de ioga em uma esteira roxa. Um casal de idosos passeava com cafés fumegantes, sussurrando um para o outro e sorrindo. Um homem de meia-idade correu na nossa direção, segurando uma prancha de surf debaixo do braço e dirigindo-se para a praia. Olhei para ele, até que ele desceu a colina e ficou fora de vista. Mortas. Todas essas pessoas estavam mortas. Dois corvos negros mergulharam, grasnando enquanto roçavam perigosamente perto dos meus ouvidos — tão perto que eu senti a ponta macia de uma asa tocar minha pele. Eles viraram para cima e para o outro lado da rua, onde acabaram descansando sobre as asas do cisne no centro da fonte. Os dois sentaram lá, com os peitos estufados e olhando para mim. — Não até que você ouça o que eu tenho a dizer — disse Tristan. Ele me alcançou e olhou para seus pés. — Escute, eu realmente sinto muito por ter sido Fisher a agarrá-la na praia. Eu só... — Não. Eu entendo. Está tudo bem. — Fiz uma pausa e respirei fundo. — Quero dizer, não está tudo bem, mas eu entendo porque você fez isso. Você estava tentando ajudar a mim... e a minha família. — Meus olhos se encheram de lágrimas mais uma vez quando pensei em meu pai e Darcy, quão alegremente ignorantes eles eram antes. — Deus. Isso é uma merda. — Eu sei. Sinto muito. — Tristan colocou as mãos em seus cabelos, entrelaçando brevemente os dedos atrás da cabeça, flexionando seus bíceps


sob as mangas de sua camiseta preta. — Você deve saber que eles não vão se lembrar de nada que aconteceu ontem à noite — que Nell estava aqui, que Darcy foi sequestrada, que um grupo de busca foi formado. Eu parei. — Por que não? — Nenhum visitante que encontrou Nell enquanto ele estava aqui vai se lembrar dele, assim como todos os outros visitantes que seguiram em frente — explicou Tristan. — Incluindo sua irmã e seu pai. Eu balancei minha cabeça lentamente. — Isso é loucura. Este lugar é uma loucura. — Eu sei que parece dessa forma — disse Tristan, deixando cair os braços ao lado do corpo. — Mas escute, você pode passar por isso. Olhe pelo que você já passou. Você foi perseguida por um assassino em série e sobreviveu. Eu ri amargamente, com uma lágrima transbordando. — Não, na verdade, eu não sobrevivi. — Não, quero dizer, sua alma sobreviveu — explicou ele, agarrando meus braços suavemente. — E é bonita, forte e verdadeira. Olhe para você, Rory. Olha o que você fez na noite passada. Você salvou sua irmã. Você enfrentou seu assassino e ganhou. E agora, graças a você, ele está na Terra das Sombras. Você fez isso. Quando olhei em seus olhos, eu poderia dizer que ele quis dizer o que disse. Que ele achava que eu era bonita, forte e verdadeira. Que ele até me admirava, e o que eu tinha feito. Aos poucos, minha respiração começou a diminuir, e eu senti algo novo dentro de mim. Como se fosse um pouco de orgulho e de esperança. Era pequeno, mas estava lá. Tristan virou-me suavemente para olhar para a sua casa, a enorme mansão colonial azul, pairando no alto da falésia com vista para o oceano ao Sul, e para a cidade ao Norte e ao Leste. — Você está vendo o cata-vento lá em cima? — ele perguntou, erguendo o queixo. Era um enfeite de ouro brilhando no topo da mais alta torre — outro cisne orgulhoso. A seta estava apontando o Sul, parada como uma pedra, mesmo que houvesse uma boa brisa chegando da água. — Você já reparou que nunca aponta para o Leste ou Oeste? — ele perguntou, levantando uma sobrancelha. — Sim — eu disse a ele, com uma sensação de realização. — Ele nunca realmente se move com o vento. — Exatamente. — Seu sorriso me fez corar com uma estranha sensação de realização. — Se a pessoa vai para a Luz, o cata-vento aponta


para o Norte. Se a pessoa vai para a Terra das Sombras, ele aponta para o Sul. É por isso que ele está apontando para o sul agora — acrescentou, observando-me com atenção. — Para Steven Nell. — Por que não estou surpresa? — eu disse calmamente. Tristan sorriu, e eu também. Um pequeno e hesitante sorriso. — Venha comigo — disse ele, inclinando a cabeça. — Há algo que eu quero te mostrar. Olhei por cima do ombro em direção ao oceano, em direção à casa. Uma grande parte de mim queria voltar, estar com minha família, mesmo que eu não pudesse lhes dizer nada. Mas Darcy e meu pai — ambos dorminhocos — provavelmente ainda estavam na cama, e eu tinha um zilhão de perguntas que só Tristan podia responder. Esta era a sua casa, sua realidade, sua existência. Atravessamos o parque e nos dirigimos por uma rua lateral em direção à água. A marina era em forma de uma ferradura grande ladeada por docas de ripas que se abria em um grande estacionamento. Uma dúzia de veleiros — alguns de madeira, alguns de fibra de vidro — foram ancorados na água azul-safira, enquanto algumas lanchas foram amarradas em espaços individuais. Um, notei ironicamente, foi nomeado Eternidade. Fora da baía agitada, eu podia ver a balsa se movendo lentamente em direção ao cais. Eu não tinha posto os olhos no barco desde o dia em que meu pai, minha irmã Darcy e eu tínhamos chegado na ilha, e percebi agora que nunca realmente olhei para ele. As áreas fechadas tinham dezenas de janelas, os quais brilhavam como se essa corrida fosse a viagem inaugural do barco. Tristan foi até um gradil de madeira com vista para a doca e para o estacionamento logo abaixo de nós. Esperamos em silêncio, enquanto a balsa deslizava em seu ancoradouro. Houve alguns gritos dos estivadores enquanto eles amarravam o barco e, em seguida, a passarela foi rebaixada. Em pouco tempo, o primeiro passageiro desceu do barco. Ele era um homem baixo, magro, com queda de cabelo e um nariz largo. Ele parecia confuso, mas não infeliz. Atrás dele, estava uma menina gordinha da minha idade, vestindo um vestido amarelo, seu cabelo escuro cortado tão curto que formava cachos estilosos em torno de suas orelhas. Ela foi seguida por um casal de meia-idade, segurando as mãos, o homem de pele de ébano formando um forte contraste com a mulher de pele cor de rosa e sardenta. — Então, essas pessoas... elas estão... — Eles são os nossos recém-chegados — confirmou Tristan, olhando para mim. — Almas frescas.


Meu aperto no gradil aumentou, lembrando meus primeiros momentos na ilha. Como Tristan tinha me observado tão de perto enquanto meu pai dirigia por ele e seus amigos fora da loja de departamentos. Eu senti a nossa ligação até então — a sensação que de alguma forma nos conhecíamos, que pertencíamos um ao outro. — Eu me tornei muito bom, ao longo do tempo, em prever quem está destinado para a Terra das Sombras e quem está indo para a Luz — disse Tristan, apoiando os antebraços em cima da cerca. — Há quanto tempo você está aqui? — perguntei. Tristan olhou através da passarela, se virando de forma que tudo o que eu podia ver era a parte de trás de sua orelha. — Há muito tempo. Mordi o lábio, sentindo como se eu tivesse ultrapassado acidentalmente os limites. — Olha só — ele disse, com um tom de voz leve. Ele ficou em pé e colocou as mãos nos bolsos de trás de sua bermuda. — Bom. Bom. Muito bom — disse ele, balançando a cabeça com cada passageiro que aparecia na passarela. — Ruim, mas acha que é bom. Bom. Ruim. — Então, de repente, sua expressão escureceu. — Ok... ruim. Muito, muito ruim. Seu olhar estava em um rapaz que parecia ser alguns anos mais velho do que eu, com cabelo escuro desgrenhado, um brinco de prata e jeans rasgados. Ele carregava uma mochila verde cheia e usava uma expressão vazia quando ele olhou em volta para os animados estivadores e para a placa de madeira esculpida recebendo-o em Juniper Landing. Mas ele tinha um rosto de bebê, e seus ombros estavam curvados de uma maneira que me fez sentir mais como se ele fosse uma vítima do que qualquer coisa sinistra. — Ele parece normal para mim — eu disse. — Só... triste. — Você vai pegar o jeito, quanto mais tempo ficar aqui — disse ele, olhando-me de cima a baixo. — Você está destinada a este lugar, Rory Miller. Meu coração deu um salto ao ouvir Tristan dizer meu nome verdadeiro. — Há algo que eu tenho que te perguntar — eu disse, me preparando. — Qualquer coisa — respondeu ele. — E o meu pai e a minha irmã? — Minha voz ficou presa. — Eles morreram de mortes não naturais, também. Uma sombra cruzou o rosto de Tristan, e eu prendi a respiração. Por favor, não os leve de mim. Não agora. Não depois de tudo. Por favor, por favor, por favor.


— É verdade — disse ele. — O júri ainda está decidindo sobre eles. Eles podem ficar ou eles podem... — Não — eu disse, meu intestino de repente torcendo de dor. Eu tinha pensado que estava pronta para ouvir isso, mas não estava. — Não fale. — Mas há uma chance de eles ficarem — ele me assegurou. — Nós apenas temos que esperar. — Ok — eu disse com um aceno de cabeça, tentando segurar as lágrimas. — Ok. — Rory, não são só más notícias. Estar aqui, ser uma Lifer... é uma coisa boa — disse Tristan, colocando a mão nas minhas costas. — Você começa a guiar as almas para seus destinos finais. Você estará desempenhando um papel enorme em suas jornadas de vida para a vida após a morte. É uma coisa incrível. Você terá um propósito agora. Uma missão. Eu dei uma respiração afiada e olhei para fora sobre a água. — Eu tinha uma missão — eu disse de repente, tentando não sentir pena de mim mesma — da esperançosa planejadora que eu tinha sido. A garota que não tinha ideia de que nunca iria atingir todas as metas que sempre sonhou alcançar. Eu ia para a escola de Medicina. Eu ia curar o câncer. Eu ia ter certeza que ninguém mais sofreria da maneira como minha família sofreu quando perdi minha mãe. — E agora tudo isso... está acabado. Na beira da marina, notei uma figura se mover na sombra de um olmo. Ela estremeceu quando a vi, então surgiu de sua posição, meio escondida atrás do tronco da árvore, e afastou-se rapidamente com a cabeça baixa. Era a menina de moicano. Agora eu tinha certeza que ela tinha uma queda por Tristan. Ela olhou para cima uma vez, com os olhos pretos brilhando, antes de virar as costas para mim e ir para a baía. — Você não entende — disse Tristan, ignorando a garota. — Isso é o que a faz ainda mais perfeita como uma Lifer. Você quer ajudar as pessoas. Você tem o instinto. Você queria que sua vida tivesse significado. Agora pode ter. Um sorriso se contorceu em meus lábios. — Você quer dizer que minha vida após a morte terá significado. Ele riu. — Exatamente. Olhei além de Tristan em direção à cidade, estudando as telhas de madeira desgastadas dos edifícios da praça; as birutas tremulando com a brisa; os corredores, os ciclistas e os passeantes matinais; os lojistas varrendo suas calçadas, escorando suas portas abertas, cumprimentando os primeiros clientes do dia.


Se eu tivesse que viver em algum lugar para sempre, esse certamente não era o pior lugar para ficar. Mesmo assim, senti a força assustadora do desconhecido na boca do estômago. O peso acentuado da verdade ameaçando me esmagar se eu o permitisse, se eu o deixasse triunfar. Já tinha acontecido comigo antes, depois que minha mãe morreu. Ele tinha me sugado para o período mais negro da minha vida, um período que recusei a revisitar. Mesmo agora. — Eu não posso te dizer o quão difícil tem sido para mim, esconder tudo isso de você — disse Tristan baixinho, sua voz grossa. — Você significa muito para mim, você sabe disso, certo? Eu não posso esperar para compartilhar tudo isso com você. Meu coração se encheu. Esta era a vida de Tristan. Seu mundo. E ele queria que eu fosse uma parte dele. Ele queria compartilhá-lo comigo. — Então me diga sobre essa coisa de guia — eu disse, alinhando meus ombros. — Quando posso começar? Tristan sorriu. — Hoje à noite. Encontre-me no Thirsty Swan às nove. — Ok, então. — Eu sorri de volta. — Está marcado.


5 MINHA PRIMEIRA Traduzido por Vivian Nantes

—E

u ainda não posso acreditar que você me chamou para sair — disse Darcy, com a mão ao peito enquanto descíamos a colina em direção ao cais naquela noite. Meu amigo Aaron passeava ao lado dela, seu cabelo escuro espetado de gel na parte da frente. Ele usava uma camisa de rúgbi listrada de azul e branco que fazia seu bronzeado chamar ainda mais atenção. — Quero dizer, isso é inédito. — Você já mencionou isso — eu disse ironicamente. Mais à frente, a água calma da baía brilhava a luz de uma lua baixa. Uma buzina soou, e eu ouvi o som fraco de um motor de barco abrindo caminho na escuridão. — É que você é minha irmã antissocial. Isso tem sido uma das constantes da minha vida desde que você atingiu a puberdade — disse Darcy, empurrando os dedos em sua cabeleira escura e soltando-os sobre os ombros. — Sinto muito se o meu cérebro está precisando de alguns minutos para aceitar o conceito. — Tente algumas horas — eu murmurei baixinho, cruzando os braços. Ela tinha praticamente caído quando eu fui até a praia e sugeri que nós procurássemos Aaron e fossemos ao Swan Thirsty depois do jantar. Não que eu pudesse culpá-la. Ela estava certa. Eu sempre odiei festas. Era praticamente o meu lema. Mas Tristan me disse para encontrá-lo hoje à noite no bar onde ele trabalhava para que ele pudesse começar a me introduzir em toda essa coisa de Lifer, e enquanto eu sabia que teria que fazer isso sozinha, o pensamento de deixar a minha irmã para trás me parou. Depois de tudo que Tristan tinha me dito, eu não queria deixá-la fora da minha vista. Eu teria até trazido o meu pai junto, se ele não estivesse tão ocupado trabalhando no seu mais recente projeto de seu longo e ignorado romance — e se fosse socialmente aceitável convidar seu pai para um bar. Havia uma possibilidade real que eu pudesse não ter muito mais tempo para


passar com eles ou com Aaron — meu único verdadeiro amigo nesta ilha. Que logo eles poderiam seguir em frente... para sempre. Nossos pés tinham acabado de alcançar o calçadão frágil, e eu estendi a mão para pegar o poste mais próximo, o vento batendo forte em mim. — O que há de errado? — perguntou Aaron. Era por isso que eu não podia me permitir planejar, meditar, e até mesmo ponderar muito. Porque se eu o fizer, pode não haver volta. Eu tinha que acreditar que todos se tornariam Lifers de alguma forma. A vida de Aaron tinha terminado de maneira estranha, também, afinal de contas. Algo que eu tinha percebido após analisar bastante. Ele me contou tudo sobre isso na primeira noite em que nos conhecemos, embora nenhum de nós tivesse percebido isso na época. Houve um incêndio na casa de seu tio, em Boston. Um incêndio que ele supostamente escapou ileso. Mas agora que eu sabia onde realmente estávamos, como todos nós havíamos chegado aqui, eu suspeitava que não fosse exatamente verdade. — Nada — eu disse com um sorriso tenso, tentando não pensar se ele tinha sofrido, se ele estava com medo, se o resto da família de seu tio tinha sobrevivido. — Eu estou bem. Aaron colocou seu braço ao meu redor. — Eu não sei sobre essa reputação tímida de vocês — brincou ele, segurando-me perto ao seu lado enquanto alcançávamos a minha irmã. — Eu só conheço Rory por uma semana, e eu a vi não em uma, mas em duas festas — ele disse a Darcy. Quando me virei para lhe dar um sorriso agradecido, notei um homem alto e forte passeando junto a um dos caminhos na praça da cidade. Ele usava um uniforme padrão azul, sapatos pretos polidos, e o que parecia suspeitosamente com uma arma em um coldre na cintura. Eu o reconheci imediatamente. Era o Policial Dorn, o homem que riu de mim na delegacia quando eu tinha relatado que Olive estava desaparecida na semana passada. Ele parou por um segundo para falar com um homem que estava lendo o Daily Register, o jornal de Juniper Landing, sob um poste. Quando os dois apertaram as mãos eu podia jurar que vi um flash de branco. — Rory? — Aaron chamou. Eu voltei para a conversa. — Desculpe, o quê? Aaron me cutucou com bom humor. — Eu disse, a Darcy não é boa demais para o Joaquin? — Oh, sim, é claro — eu disse, olhando para o parque. Tanto o homem com o jornal quanto Dorn haviam desaparecido. — Deus, eu espero que ele não esteja trabalhando — disse Darcy enquanto nos aproximávamos da escultura em tamanho natural de um cisne


de madeira do lado de fora do bar. Os sons de risos bêbados, copos tilintando e a música de rock alta faziam as janelas que se alinhavam em três das quatro paredes tremer. — Por que não? — perguntou Aaron. — Você está totalmente linda e você vai flertar com outros caras. Espero que ele esteja trabalhando para que ele possa comer o seu próprio coração. Darcy sorriu. — Eu sabia que eu gostaria de você. — Ela alisou a frente de sua blusa brilhante e rapidamente passou a língua sobre os dentes para limpar qualquer resíduo de gloss. — Tudo bem — ela disse com um aceno de cabeça. — Vamos lá. Então, ela ergueu o queixo e passou pela porta, mantida aberta por uma rocha cinza cheia de marcas aos nossos pés. Eu esperava que Aaron a seguisse primeiro, mas ele parou para pegar seu celular, segurando-o para o céu. Meu estômago virou. Ele não ia encontrar sinal tão cedo. Ou nunca. — Ainda está tentando ligar para o seu pai? — eu perguntei, empurrando as mãos debaixo dos meus braços. — Só esperando pegar uns quinze segundos de sinal quando um satélite passar sobre esta maldita pedra. — Ele suspirou e guardou o celular, em seguida, atirou o braço em volta dos meus ombros. — Vamos? Engoli em seco, minha culpa quente dentro do meu peito. — Vamos — eu disse com um sorriso apertado. O Swan Thirsty brilhava com o brilho de uma festa sem parar e estava lotado de parede a parede. Tentei obter um vislumbre do balcão para ver se Tristan estava trabalhando, mas havia uma multidão no bar. A menina duende da balsa daquela manhã estava sentada no final do bar, tomando um refrigerante e olhando para Joaquin, que estava preparando bebidas como um profissional, aquele sorriso do Gato de “Alice no País das Maravilhas” encantando a todos na sala. Darcy passou direto por ele sem sequer um olhar e sentou no banquinho vazio entre Fisher e um cara novo, com cabelos loiros encaracolados, uma gola virada para cima em sua camisa polo, e um par de sandálias com baleias bordadas nas tiras. Os dois estavam trabalhando juntos em uma pirâmide de copos de doses, e a língua de Fisher se pendurou de sua boca quando ele se concentrou em colocar a próxima peça. Aaron estava bem atrás de Darcy e de imediato começou a conversar com ela. — Rory — Joaquin gritou, atirando cerveja em uma caneca e pulverizando espuma sobre sua mão. — Como vão as coisas? A menina duende se virou para olhar para mim, e seu rosto caiu. Eu esperava que ela não pensasse que eu era algum tipo de competição para o


coração de Joaquin. No que depender de mim, ela poderia tê-lo. Se ela queria o problema. — Pode pegar uma Coca-Cola para mim? — Você nunca se cansa de estar sóbria? — ele me perguntou, inclinando a cabeça enquanto ele pegava um copo. — É o meu único estado de ser, então... não. Tristan está aqui? — eu perguntei, brincando nervosamente com o zíper da minha jaqueta. Apenas a expectativa de vê-lo estava me deixando inquieta. — Não — respondeu Joaquin. Esperei por mais alguma coisa, mas ele não disse nada. — Mas ele me disse para encontrá-lo aqui. Joaquin deu uma risada curta e jogou um copo para cima até capturálo casualmente. — Desculpe, mas eu não sou o guardião de Tristan. Revirei os olhos. — Olha, se Tristan disse que ele vai estar aqui, ele vai estar aqui. Ele é o nosso residente escoteiro — Joaquin me assegurou. — Esta é Jennifer, a propósito — ele acrescentou, apontando para a menina duende. — Ela acabou de chegar aqui hoje. Jennifer, Rory; Rory, Jennifer. — Oi! — O sorriso de Jennifer estava de alguma forma ansioso e cauteloso ao mesmo tempo. Ela tinha uma pequena marca de nascença bonita acima do lábio, e enquanto ela prendia o canudo entre os dedos, notei que seu esmalte estava lascado. — Como você e Joaquim se conheceram? — Oh, nós somos velhos amigos — disse Joaquin, deslizando o copo com soda do outro lado do balcão em direção a mim. Na outra extremidade do bar, Darcy riu. Ela colocou a mão no braço de Fisher e ele sorriu para ela, claramente apreciando a atenção dela. Para minha surpresa, o sorriso de Joaquin morreu. Ele arrancou outra caneca de debaixo do bar, encheu-a e bateu com ela no balcão. — Sua irmã está seguindo em frente, eu vejo — disse ele. — Qual é o problema? — eu perguntei quando uma rodada de risadas se ouviu de uma mesa próxima. — Com ciúmes? Ele inclinou as duas mãos no balcão. — Nem um pouco. — Mas eu podia dizer pela contração no canto do olho direito que ele estava mentindo. — Por que eu teria ciúmes? — Eu não sei. Por que você não me conta? Nós nos enfrentamos, cada um esperando o outro piscar. — Hum, eu vou verificar a jukebox — disse Jennifer, escorregando do seu banquinho.


Sentei-me e apoiei os cotovelos no balcão, minha cabeça em minhas mãos. — Então. Você teve uns dias interessantes — disse Joaquin, sua voz tranquila e estranhamente gentil. — Você está bem? — Eu pareço bem? Ele riu. — Parece que você vai ficar bem. É preciso um pouco de tempo para se adaptar, mas há um lado positivo em estar preso aqui para sempre. — Você quer dizer o sentimento de satisfação que você recebe ao guiar almas para seus destinos finais? — eu disse. O sorriso de Joaquin congelou. — Deus! Você soa como uma discípula de Tristan Parrish. Não, mulher! — Ele encheu outra caneca com cerveja e deslizou para baixo do balcão. — Eu ia dizer que você pode começar a sair comigo. Eu ri. — Você é um idiota. — Eu já fui chamado de coisas piores — disse Joaquin levemente. — Mas, honestamente, há vantagens concretas em ser um Lifer. Além do que Tristan, o sério, lhe disse. Eu levantei uma sobrancelha. — Como o que? Joaquin inclinou-se para o balcão para chegar mais perto do meu ouvido e baixou a voz. — Nós não podemos ficar doentes, não podemos morrer — disse ele, com os olhos brilhando. — E nós também nos mantemos jovens e lindos para sempre. — Ele se endireitou e abriu os braços enquanto eu revirava os olhos. — Em Juniper Landing, não há nada a temer. — Sim. Exceto o conceito de eternidade — eu murmurei. Ele acenou com a mão indiferentemente para mim. — É. Você se acostuma com isso. Balançando a cabeça, olhei por cima do meu ombro para Jennifer. — Então, eu realmente não estou certa como tudo isso funciona — eu sussurrei. — Você sabe como ela morreu? — Tumor cerebral — disse Joaquin com naturalidade. Meu estômago se apertou. — Meu Deus. Ele abriu uma garrafa de cerveja e tomou um gole. — Sim, foi muito rápido, no entanto. Apenas um mês entre os diagnósticos e puf. — Ele fez um som de desinflar com os lábios, como o ar saindo de um balão. — Uau. Muito respeitoso da sua parte — eu disse sarcasticamente. — O quê? Ela não sabe que está morta — disse ele em voz baixa. — Tudo o que ela se lembra é que ela foi diagnosticada. Pelo que ela sabe, ela está de férias, e ela vai embora daqui em um dia, pelo menos. Ela passou metade de sua vida como voluntaria de crianças carentes e a outra metade


sendo educada. É uma pena que ela não vai estar aqui mais tempo para que ela possa ter a chance de semear uma aveia ou duas. — Os olhos dele caíram sobre ela como se ele estivesse considerando a possibilidade de ajudá-la com essa situação em particular. Eu atirei-lhe um olhar fulminante e virei as costas para ele. — Ei! Eu só estou fazendo o meu trabalho. — Tanto faz — eu disse. — Então, como você... Mas quando eu olhei por cima do ombro, Joaquin já tinha ido embora. Ele moveu-se para o outro lado do balcão para atender a multidão clamando, deixando-me com as minhas perguntas sem resposta. Por exemplo, como exatamente ele sabia todas essas coisas sobre Jennifer. Se ele iria guiá-la. Como essas novas almas eram designadas para os Lifers em primeiro lugar. Elas eram designadas? Ou eu deveria apenas começar a conversar com alguém e ver se ele estava pronto para seguir em frente? Eu respirei fundo e suspirei, desejando que Tristan aparecesse logo. — Eu sei, é uma merda aqui, não é? Assustada, eu olhei e me vi olhando nos olhos castanho-escuros de um dos recém-chegados, o cara nos jeans rasgados que parecia tão perdido quando ele desceu do barco hoje. Ele tinha uma cicatriz minúscula através de sua sobrancelha e não parecia saber o que fazer com as mãos; ele tocou a parte de trás do seu pescoço, cruzou os braços, em seguida, enfiou os polegares nos bolsos da frente da calça jeans. — Totalmente — eu disse. — Você mora aqui? — ele perguntou, de pé ao meu lado e olhando para baixo no cardápio de bebidas. Hesitei por uma fração de segundo. — Sim, uh... sim. Meu nome é Rory. Rory Thayer. — Brian Wohl — disse ele, levantando uma mão. — Acabei de chegar da Carolina do Norte. — Prazer em conhecê-lo. — Você também. — Ele olhou para Joaquin, que reapareceu na frente de nós. — Pode pegar uma cerveja para mim? Da que for barata. — Pode deixar. — Joaquin rapidamente encheu uma caneca para ele. Eu me perguntava se ele tinha a mesma intuição sobre Brian que Tristan teve esta manhã, mas ele só continuou enchendo copos, pegando gelo do congelador, e conversando com os clientes. Brian tomou um gole de cerveja, enquanto o ambiente em torno de nós cantarolava, ria e brindava.


— Então, Rory. Esse é um belo nome — disse Brian finalmente, inclinando um cotovelo no bar. Eu me senti estranha, sentada enquanto ele estava de pé, mas não havia mais lugares para sentar. — Eu vou dizer ao meu pai que você pensa assim — eu brinquei. Ele ergueu as sobrancelhas para mim sem entender. — Ele que escolheu. — Oh. — Brian tomou um gole de cerveja, em seguida, chupou os dentes. — Eu não sei quem escolheu o meu nome. Eu nunca pensei sobre isso. — Um ou ambos os pais, eu acho — eu disse. — A coisa é que eu realmente não consigo imaginá-los fazendo isso — respondeu Brian. Ele correu um dedo ao redor da borda de sua caneca no bar, com os olhos baixos. — Eu não consigo imaginá-los se importando tempo suficiente para pensar sobre isso. — Oh. — Agora era eu que não sabia o que fazer com as mãos. Eu as coloquei sob minhas coxas e limpei minha garganta. — Isso soa terrível. — Desculpe — ele disse, seu pescoço ficando manchado. — Isso vai acabar com a conversa, certo? — Ele soltou uma espécie de risada afiada enquanto a cor vermelha se propagava em suas bochechas. — Não, não. Está tudo bem. Eu tive a sensação de que eu estava me sentindo um peixe fora d’água e olhei para o bar em direção à minha irmã, como se ela pudesse de alguma forma telepática me dizer o que fazer. Mas eu não podia nem vê-la de onde eu estava sentada, a multidão ao seu redor era tão espessa. Brian suspirou e balançou a cabeça, como se estivesse irritado com ele mesmo. Pelo menos nós estávamos neste barco que ia afundar juntos. — Então... uh... o que o trouxe aqui? — eu perguntei, então imediatamente me arrependi. Ele não tinha ideia do que o levara até ali. Ele nem sequer sabia o que aqui era. — Eu tinha que ficar longe da minha família — disse ele, olhando para longe. — Como assim? — perguntei. Seus olhos brilharam. — Você sempre faz tantas perguntas? Meu rosto queimou. — Desculpe. Eu só... esqueça. — E Darcy se perguntava por que eu odiava festas. — Nem todo mundo tem pais que gostam deles — disse Brian laconicamente. — Eu sei — eu respondi, com minha voz grossa. — Durante muito tempo eu achava que meu pai não gostava de mim. Tudo o que ele tem feito nos últimos quatro anos é encher meu saco e do da minha irmã, então...


— Eu aposto que ele nunca te expulsou de sua própria casa. Ele bebeu o resto de sua cerveja e deixou cair a caneca pesada no bar como um sinal de pontuação. Meu coração se partiu por ele. — Isso é... Brian, eu sinto muito. Brian inclinou-se e esfregou as mãos. Seus dedos estavam sujos, as fendas em seus nódulos escuros com sujeira. — É. Nada é bom o suficiente para eles. Eu me formei, consegui um emprego em uma oficina... mas ainda não era o suficiente, então... — Ele balançou a cabeça e deu de ombros. — De qualquer forma, está tudo bem, porque agora... eu sou livre. Ele abriu os braços e sorriu. Havia uma lacuna entre seus dentes da frente, que lhe dava a aparência encantadora de um menino. — Eu acho que há sempre um lado bom — eu disse, forçando um sorriso. Ele não tinha ideia do quão “livre” ele estava. Ele apertou os lábios, considerando isso. — Há sempre um lado bom — disse ele. — Eu gosto disso. Um sorriso aliviado passou pela minha face. Finalmente, eu disse algo certo. Um bando de caras estridentes no canto irrompeu em uma rodada cacofônica de vaias e gritos. Brian estremeceu. — Isto não é realmente a minha praia. Você quer sair daqui um pouco? Ir caminhar pela água? — ele perguntou, acariciando o centro das minhas costas com a mão. Assim que ele me tocou, eu senti uma faísca, como eletricidade estática, mais acentuada, mais quente. Minhas costas estavam formigando mesmo depois que ele deixou cair sua mão — como se a minha pele estivesse vibrando — e uma vibração de antecipação surgiu dentro do meu peito. Talvez fosse isso. Talvez eu estivesse prestes a guiar a minha primeira alma. Olhei em torno, procurando Tristan de novo, mas ele ainda estava longe de ser encontrado. Então eu tive um pensamento, uma ideia, uma suspeita. Talvez fosse assim que eles treinavam os novos Lifers. Talvez por isso Tristan não tinha aparecido. Eu estava sendo jogada no fundo de uma piscina no meu primeiro dia para que eles pudessem ver como eu reagiria, como eu iria lidar com isso. Havia uma sensação familiar dentro do meu peito. A sensação de aceitar um desafio. A antecipação de deixar Tristan orgulhoso. — Claro — eu disse, escorregando do meu banquinho. — Isto não é realmente a minha praia, também. Brian sorriu e pegou sua mochila, que tinha estado encostado na parede. Ele colocou a alça por cima do ombro enquanto ele se afastava para


me deixar sair primeiro. Quando eu cruzei na frente dele, eu tive que morder de volta um sorriso. Era isso. Minha primeira guia. Minha nova vida estava prestes a comeรงar.


6 SALVA Traduzido por Lua Moreira

A

baía de águas calmas lambia a areia preguiçosamente, diluindo-se e espirrando de volta a um ritmo constante. Brian chutou conchas quebradas, seus fragmentos pálidos brilhando contra a areia, e suspirou. Nuvens cinzentas cruzaram a lua brilhante, e cada brisa parecia mais fria do que a última. Virei a gola da minha jaqueta fina, abaixando o queixo mais ainda. Alguém assobiava no escuro uma lenta e triste melodia e eu tremi. Meus olhos dispararam para as ondas negras; eu estava meio que esperando o Sr. Nell sair da baía e me arrastar para dentro dela. Mas, em vez disso, vi algo brilhando ao luar, uma mancha preta longa com uma faixa prata. Eu dei um passo hesitante para frente e meu estômago revirou. Era um enxame de peixes. Dezenas de peixes pretos e pratas, todos levados acima na costa, com os olhos embaçados. Mortos. O assobio ficou mais alto. Eu congelei. — O que há de errado? — perguntou Brian. — Você ouviu isso? — eu sussurrei, meu coração batendo forte quando me virei. — Você... Uma figura sombria apareceu na beira da praia, e eu segurei o braço de Brian. Um momento depois, o assobiador passou sob uma das luzes exteriores do Crab Shack, iluminando o rosto de um dos Lifers — o cara que eu nunca tinha conhecido que estava no canto do porão esta manhã com a Garota Moicano e outra mulher sem nome. Alívio inundou meu corpo. Ele parou momentaneamente quando nos viu, e seu assobio cessou. Ele vestia uma camiseta preta com o capuz sobre seu cabelo avermelhado, e sua pele pálida parecia brilhar na escuridão. Seus olhos, escuros e insondáveis, prenderam os meus por várias respirações longas. Finalmente, ele continuou andando, suas pesadas botas pretas triturando as ripas de areia do calçadão.


Brian e eu observamos até que o cara saísse de vista. Então Brian olhou para minha mão, ainda segurando seu braço. Envergonhada, eu liberei ele e enfiei as mãos nos bolsos. — Desculpe — eu disse. — Não se preocupe — Brian me disse, caminhando alguns passos até a praia, colocando distância entre nós e os peixes. — Na verdade, eu queria dizer que eu sinto muito. — Pelo quê? — eu perguntei, andando ao lado dele. — Por derramar tudo sobre meus pais em cima de você. — Ele cavou um sulco na areia com a ponta do seu tênis. Meu coração bateu com simpatia. — Oh, está tudo bem — eu disse, então hesitei. — Estou feliz por você... ter se aproximado de mim. — Eu estou feliz por ter me aproximado, também — disse ele com um sorriso. E então seus dedos me pegaram pela cintura. As palavras O que você está fazendo? ainda estavam se formando em minha mente quando ele se inclinou e me beijou. Seus lábios estavam secos e ácidos. Eu puxei meu rosto tão rapidamente e educadamente quanto possível. — Oh, Brian, eu sinto muito — eu disse, dando um leve passo para trás. — Eu não tive a intenção de fazer com que você achasse que eu... — Que eu achasse o que? — ele perguntou sombriamente. — Que você me queria? Suas mãos agarraram minha cintura mais apertado agora, e ele me puxou contra ele, pressionando o meu osso pélvico contra o dele. Então sua boca desceu sobre a minha outra vez, seu nariz apertando tanto uma parte do meu nariz que eu mal conseguia respirar. Pânico percorreu meu corpo. Isso não estava acontecendo. Aquilo não podia estar acontecendo. Eu levantei minhas mãos e apertei-as contra o peito dele, mas seu aperto era como um torno. Eu não podia forçar nem mesmo um centímetro de espaço entre nós. Com um grito, eu consegui virar a cabeça longe da dele, mas, em seguida, ele arrastou meu tornozelo com seu pé e me derrubou na areia. Minha bochecha bateu em alguma coisa dura, uma pedra ou uma grande concha, e centenas de pequenos pontos de luz explodiram em toda a minha visão. — Não se faça de inocente, Rory — Brian cuspiu, subindo em cima de mim. Ele prendeu minha coxa com o joelho e meu ombro com uma mão. Com a outra ele abriu o zíper da minha jaqueta, deixando-a aberta com três


empurrões rápidos. — Você sabia o que estava fazendo quando você veio aqui comigo. Nós dois sabíamos o que estávamos fazendo. — Sai de cima de mim! — eu gritei, chutando minhas pernas. Brian riu friamente. Ele baixou a cabeça para mais perto, e eu vi a nitidez em seus olhos escuros. A determinação. — Isso não vai acontecer — disse ele friamente. — Então, você pode muito bem apenas relaxar e se divertir. Ele apertou seus lábios contra os meus mais uma vez, e de repente todo o meu corpo estava em chamas. Meu cérebro explodiu com imagens. Faces. Garotas. Uma loira de olhos azuis assustados, sangue escorrendo de seu nariz e nos lábios enquanto ela tentava se contorcer para se livrar. Uma menina asiática com cabelo escuro e molhado, com um arranhão na testa, choramingando enquanto se enrolava em uma bola. Outra menina arranhando, gritando e implorando que ele parasse. Uma quarta que tinha ficado catatônica, olhando para o espaço, enquanto ele fazia o que queria. Cada memória me atacou com tantos detalhes gritantes que meu estômago enrolou, balançou e queimou enquanto eu recuava com horror, mas eu também senti uma satisfação estranha, um formigamento de prazer. Abri os olhos e olhei para Brian, e só assim, eu soube. Essas sensações positivas tinham vindo dele. Ele tinha feito isso antes e aproveitado cada minuto disso. Eu tentei derrubá-lo de cima de mim com o meu joelho, mas era como se ele tivesse quatro pernas e dez braços. Eu senti meu jeans abrir, e fiz a única coisa que eu poderia pensar em fazer. Eu gritei ao máximo a plenos pulmões. Brian riu. Ele estava segurando o cós da minha calça jeans quando, de repente, algo bateu nele com tanta força que ele foi arremessado para trás na areia. Um pé descalço voou pelo meu rosto e eu me sentei em minhas mãos, me arrastando para trás sobre as conchas quebradas, como um caranguejo assustado. Na escuridão, eu vi as costas de Tristan acima, seu cabelo loiro em um breve flash na noite. Ele ergueu o punho alto por cima do ombro e girou. O estalo foi nauseante. Definitivo. Eu puxei uma respiração interrompida, hesitando até o zíper dos meus jeans, mas minhas mãos estavam tremendo tanto que não conseguia pegálo. De alguma forma, eu me levantei e me forcei a tomar ar em meus pulmões. As sandálias de Tristan estavam a poucos metros de distância, uma na areia, uma nos degraus, onde ele chutou para fora, provavelmente para ganhar mais velocidade.


— Você está bem? — perguntou Tristan, se aproximando de mim lentamente. Eu cobri o V da minha roupa intima exposta com uma mão, segurando meu ombro oposto com a outra. Brian estava contorcido e ainda atrás de Tristan, sangue escorrendo de seu nariz. — Eu... eu... — Era a única sílaba que eu conseguia falar sem explodir em lágrimas. Tristan olhou para baixo, e a onda de calor no meu rosto foi tão intensa que eu quase desmaiei. Ele tirou a jaqueta e a amarrou trás na minha cintura, de modo que a maior parte dela estava cobrindo minha frente. — Rory — disse ele, com as mãos sobre os meus ombros. — Você está bem? Diga algo. Qualquer coisa. Eu não podia acreditar o quanto eu tinha ferrado com isso. Eu não podia acreditar que ele tinha tido que me salvar. Toda essa conversa sobre ser parte de seu mundo, uma dos Lifers, ter esta missão, e eu já tinha falhado. — Eu sinto muito, Tristan — eu disse. — Eu não posso acreditar que eu... — Você não tem nada que se desculpar — ele disse ferozmente, uma mão se movendo como concha em meu rosto. Seu polegar traçou um arco, foi para trás na minha bochecha, e minha pele zumbiu. — Isto é minha culpa. Desculpe, eu não estava aqui. — Mas você estava — eu disse, olhando em seus olhos azuis claros. — Você me salvou. E então comecei a chorar, enterrando meu rosto em seu peito. Tristan me segurou com força, com os braços fechados em torno de mim enquanto o meu corpo tremia com cada soluço. Eu ainda estava chorando quando os primeiros dedos de nevoeiro rolaram em nossa direção com um assobio baixo, enrolando sobre as luzes, sobre as boias, consumindo os barcos em seus estaleiros e, finalmente, o próprio litoral. Segundos mais tarde, a neblina nos engoliu por completo, deixando eu e Tristan sozinhos em seu fresco e puro aperto.


7 UMA DE NÓS Traduzido por Vivian Nantes

—Q

uem diabos vocês pensam que são? — Brian fervia de raiva, chutando com suas pernas enquanto Joaquin e Kevin o puxavam para fora da caminhonete. Seus pés estavam sendo arrastados pela areia ao lado da estrada, deixando duas rasas trilhas irregulares atrás dele. — Eu não fiz nada. Ela queria isso. Ele ergueu o queixo em minha direção, e eu me coloquei atrás de Tristan. Tínhamos seguido Joaquin no Jeep de Bea, um brilhante e enferrujado veículo amarelo, que não era muito mais do que um kart com a parte superior e as portas removidas. Tristan e eu tínhamos nos encolhido na parte de trás, e eu puxei seu suéter para me proteger contra o vento que entorpecia meu rosto, enquanto Krista estava na frente, segurando seu cabelo no lugar com as duas mãos enquanto nós saltávamos sobre cada solavanco e buraco. Eu mal conseguia olhar para Brian. Eu não podia acreditar no quão errada eu estava sobre ele, como eu estava completamente enganada. Eu me senti como uma idiota ali de pé com os outros. Como a nova garota estúpida. Eu não tinha olhado Tristan nos olhos desde que ele me salvou. — Cara, simplesmente tome isso e dê o fora daqui — disse Joaquin, libertando-o e colocando uma moeda de ouro em sua mão. Brian olhou para ela. — O que é isso? — ele perguntou, sua fala arrastada, ou da bebida ou do soco que ele levara. — Apenas vá — Kevin resmungou, empurrando-o para a ponte com tanta força que ele quase tropeçou. — Ir para onde? — perguntou Brian, abrindo os braços, mesmo quando ele recuou em direção à ponte. Era como se houvesse um ímã dentro do turbilhão de nevoeiro, puxando-o para a boca aberta do lugar. — Vocês não podem me forçar a fazer nada. Eu posso ficar aqui o tempo que eu quiser.


Ele tinha chegado ao precipício, a divisão entre a estrada de terra e a entrada pavimentada, e ele fez uma pausa, olhando-me com desdém. Meu ritmo cardíaco acelerou, esperando que uma mão se estendesse para agarrálo e puxá-lo para o abismo. Mas nada aconteceu. Ele simplesmente ficou lá, enquanto o resto de nós ficou olhando. — Certo. Já chega. — Joaquin se ajoelhou com ambos os joelhos e pegou Brian ao redor das pernas, levantando-o por cima do ombro como um bombeiro. — Que diabos, cara? — Brian brigou, batendo nas costas de Joaquin. Sem responder, Joaquin caminhou em direção à ponte e desapareceu na neblina, a névoa ondulante ao redor deles. De repente, ouvimos um estrondo e um patético som de oof. Olhei furtivamente para os outros. — O que ele acabou de... Mas, então, Joaquin saiu da grossa parede de névoa, batendo as mãos com um sorriso arrogante no rosto. Atrás dele, o nevoeiro de repente se transformou em um vórtice cinza que estava girando, e houve um som de sucção estranho. Uma explosão de vento frio quase me tirou do chão, arrepiando o meu coração, congelando-o. Então tudo ficou quieto. — Sério? — Tristão perguntou a Joaquin, gesticulando em direção à ponte. — O quê? — disse ele, erguendo as palmas das mãos. — Eu estava cansado de ouvi-lo. — Eu também — disse Bea, desembrulhando um pedaço de chiclete e colocando-o em sua boca. Kevin cuspiu no chão perto das pegadas de Brian. Krista escondeu um sorriso por trás de sua mão. Ela levantou os ombros para a minha surpresa, com um olhar um pouco julgador. — O quê? Pelo menos eles são bons para alívio cômico. — É sempre assim? — eu perguntei em voz baixa. — Não — disse Tristan, colocando a mão nas minhas costas. — Quando eles estão indo para a Luz, é realmente muito... pacífico. — E às vezes, quando eles estão indo para a Terra das Sombras, também — acrescentou Krista, puxando o elástico do seu longo rabo de cavalo loiro, alisando os fios que tinham sido livres durante o nosso trajeto. — Uma vez que eles não têm ideia de onde eles estão indo. — E normalmente, cada um de nós pode lidar com essas coisas sozinhos — disse Bea, voltando-se para onde os carros estavam estacionados, os faróis como feixes gêmeos nas canas varridas pelo vento. — Estes dois últimos apenas não queriam ir tranquilamente, então...


— Quando isso acontece, nós trazemos ajuda — explicou Kevin sombriamente. — Então, o que vamos fazer agora? — eu perguntei ao grupo. Tristan olhou para as minhas mãos, e eu percebi pela primeira vez que eu estava segurando seu suéter ao meu lado, meus braços em volta do meu estômago como duas cordas elásticas esticadas. — Bem, você assistiu oficialmente a sua primeira orientação — disse Tristan, parecendo de algum modo orgulhoso e nervoso ao mesmo tempo. — Então Steven Nell não conta? — perguntei. Ele balançou a cabeça. — Você não sabia que você era uma de nós. — Considere o envio daquele idiota para a Terra das Sombras sua iniciação — disse Bea, dando um passo atrás de mim. De alguma forma, essa ação foi reconfortante, como se por estar atrás de mim, ela estivesse dizendo que ela estaria sempre a minha volta. Krista caminhou ao redor de seu irmão, o cabelo dela agora arrumado, seu vestido florido perfeitamente ajustado na sua cintura, a saia esvoaçando ligeiramente atrás dela. Ela pegou minha mão e segurou-a, colocando meus dedos em seus próprios. O mesmo calor irradiava dela, como o do seu irmão, exceto que era doce e menos intenso nos dela. Quase hesitante. Eu senti um pulso de antecipação. — E agora que você é oficialmente uma de nós — disse Krista com um sorriso animado, — há algo que você precisa ver.


8 A ENSEADA Traduzido por L. G.

A

encosta rochosa era íngreme e irregular, cada passo era um ato de fé enquanto andávamos em linha reta — Joaquin, depois Tristan, depois eu, com Krista, Bea, e Kevin arrastando-se logo atrás. Os sons das ondas do mar rolando até a costa e os lampejos de ondas espumantes distantes na superfície sinalizaram que o oceano estava em algum lugar à frente. — Para onde vamos? — eu sussurrei, andando na ponta dos pés em cima de uma rocha lisa. — Confie, pequena protegida, confie — disse Joaquin, seu sorriso brilhando na escuridão enquanto olhava por cima do ombro. — Não se preocupe. Estamos quase lá — Tristan me disse. De repente meu pé esquerdo escorregou e eu levitei, meus braços se debateram enquanto meu coração saltava em minha boca. Antes que eu pudesse gritar, Tristan agarrou os meus braços e me suspendeu de volta. Dezenas de pedras caíram em uma queda acentuada quando nos agarramos um ao outro. Sua respiração estava quente em meu rosto, e até mesmo na escuridão eu podia ver a intensidade dos seus olhos azuis enquanto ele me verificava. — Está tudo bem. Você está bem — ele me assegurou. Segurei ainda mais apertado em seus braços enquanto os outros nos alcançavam. — Se você diz que sim. Ele sorriu, seus olhos viajando lentamente ao longo do meu rosto. — Eu digo. Esta é uma das vantagens de estar morto. Você não pode morrer outra vez. — Incrível, não? — disse Kevin com um sorriso cheio de dentes. — Continue andando, Pegajoso — disse Bea, acotovelando-o e revirando os olhos.


— Ela acabou de chamá-lo de Pegajoso? — eu perguntei a Tristan enquanto Krista também passava por nós. — Bea tem apelidos para todo mundo — Tristan me informou. — Você vai ter um eventualmente, mas esteja avisada — a maioria deles não é tão agradável. — Qual é o seu? — Garoto de Ouro — ele respondeu um pouco timidamente. Eu sorri. — Ah. — Vocês dois virão ou não? — Joaquin reclamou. Tristan deslizou a mão pelo meu braço e pegou minha mão, envolvendo seus dedos com os meus. — Não se preocupe. Eu te protejo. Meu coração bombardeou minhas costelas a cada batida. — Ok. À frente, Joaquin acendeu uma lanterna. O feixe de luz ricocheteou sobre as rochas cinzentas irregulares, até que, de repente, ele sumiu. Os outros, percebi com um susto, já tinham desaparecido. Eu ouvi um baque e um som de jato e Tristan apertou minha mão novamente. — Você tem que saltar aqui. Ele saltou, esticando seu braço em linha reta para manter seus dedos entrelaçados nos meus. Eu hesitei. Tudo o que eu podia ver era o seu rosto sorrindo a alguns metros abaixo. — Eu não vou deixar você cair. Alguém riu na escuridão e mais algumas lanternas se acenderam. Quando eu olhei, vi Krista, Kevin e Bea parados ali, esperando. Eu engoli o meu medo e pulei. Quase instantaneamente, as solas do meu tênis bateram na areia macia e úmida. — Rory! — Lauren correu para fora da escuridão, deslizou entre Bea e Kevin, e jogou os braços em volta de mim. — Você fez a sua primeira condução! Parabéns! — Eu podia sentir o cheiro de álcool no hálito dela e senti sua luta para manter o equilíbrio. Bati em suas costas sem jeito até que ela me liberou. Ela cambaleou para o lado em direção a Bea e riu. — Como foi? — ela perguntou, olhando em volta para os outros. — Ele estava... relutante em nos deixar — disse Joaquin, apertando meus ombros por trás. Os outros riram. — Mas Joaquin cuidou disso — disse Tristan. — Eu aposto que sim — disse Lauren com conhecimento de causa. Em seguida, ela soluçou e cobriu a boca com uma mão. — Então, Rory... bem-vinda à enseada — disse Joaquin, sorrindo quando ele inclinou a lanterna em direção ao seu rosto. O efeito foi estranho,


iluminando sua boca e nariz, mas deixando os olhos à meia-luz. — Dá uma olhada. Ele ergueu o feixe de luz, e os outros fizeram o mesmo. A parede de pedra alta que tínhamos acabado de descer formava um perfeito C em torno de uma ampla faixa de areia branca. Ondas enrolavam na costa, mas de uma forma mais tímida e mansa do que na praia aberta. Pontilhando a areia ao longo da rocha íngreme haviam várias barracas de camping coloridas, todas escuras, exceto uma. Alguém estava se movendo em torno da penúltima tenda, que estava iluminada por dentro por uma lanterna. — Ei, Fisher! — Joaquin gritou. — Traga o seu traseiro aqui para fora. O arco da porta de zíper da tenda abriu e Fisher colocou a cabeça para fora. Eu meio que esperava ver Darcy bem atrás dele, já que eu a tinha visto pela última flertando com ele, mas quando ele apareceu com sua estrutura grande na pequena porta, ele estava sozinho. Algumas toalhas de praia estavam debaixo do seu braço, e ele usava um chapéu branco em um ângulo despojado. — Oi, pessoal. — Fisher bateu as mãos com Joaquin, então deslizou o braço livre ao redor dos pequenos ombros de Lauren. — Como você está se sentindo, peso-pena? — ele perguntou a ela. Ela riu, então soluçou, depois riu um pouco mais. — Ok, qual é o seu problema? — Joaquin perguntou a Lauren. — Seu novo encarregado gosta de beber — disse Fisher, sorrindo. — Muito — disse Lauren, arregalando os olhos enquanto ela balançava. — Tipo, muito muito. Todos riram. — Alguém vai dormir até tarde amanhã — Bea repreendeu. — O que é um encarregado? — eu perguntei. — É assim que chamamos as pessoas que supostamente devemos conduzir — explicou Bea. — Brian deveria ser meu — Tristan me disse. — Oh. — Minhas bochechas aqueceram, e eu olhei para o meu tênis, pressionando meus dedos mais para dentro da areia. — Está tudo bem — disse Tristan, deslizando a mão sobre meus ombros. — Não se preocupe. Vou lhe ensinar tudo o que você precisa saber. — Mesmo? — eu disse, uma vibração de esperança dentro do meu peito. — Eu prometo — ele respondeu. — Por que você não passa lá em casa amanhã de amanhã? Eu vou levá-la em um tour pela cidade. Um tour Lifer. Eu sorri. — Estou dentro.


Seu sorriso se alargou, e meu coração respondeu com um baque mais forte do que o normal. Com o peso da sua mão no meu ombro eu me sentia confortável e significativa. Lá estávamos nós, na frente de todos os seus amigos, e ele não tinha nenhum problema em manter o braço em volta de mim para que todos pudessem ver. — Então, onde estão Nadia e os caras? — perguntou Joaquim. Como que em resposta à sua pergunta houve um grito alto seguido de um salpico, e três pessoas saíram da água. Uma delas era a Garota Moicano, a segunda era o assobiador do calçadão, e a terceira era a sua namorada do porão daquela manhã. Eles caminharam sobre a areia molhada e Fisher jogou a cada um deles uma toalha. — Rory, eu não acho que você tenha sido apresentada a Nadia oficialmente — disse Tristan, apontando para a Garota Moicano. Seu biquíni branco estava praticamente transparente e seu piercing no nariz brilhava no feixe de luz da lanterna de Joaquin. Ela me olhou como se eu fosse uma bomba atômica sentada no centro de sua praia. — Oi — eu disse. Ela não respondeu. Ela simplesmente esfregou os cabelos com a toalha e depois a amarrou ao redor da sua cintura, cobrindo a parte inferior de seu traje minúsculo. — E esta é Cori — disse Tristan, introduzindo a outra garota, que tinha o cabelo escuro encaracolado, pele verde-oliva e usava um maiô modesto. Ela tinha mais curvas do que sua amiga e uma expressão muito mais acolhedora. — Olá! — ela disse, ganhando uma carranca de Nadia. — E este perdedor é o Pete — disse Fisher, jogando o braço sobre os ombros do cara alto e desengonçado, que estava sacudindo a cabeça para cima e para baixo tentando tirar a água de sua orelha. Ele acenou para mim e então voltou sua atenção para Joaquin. — Nós vamos fazer isso ou não? — Por quê? Tem algum lugar que você precisa ir? — perguntou Joaquim. Pete deu de ombros. — Vamos lá. — Tristan me puxou para frente, caminhando ao longo da parede da rocha quando todos os outros começaram a andar. Eu não vi a abertura da caverna até que estávamos bem em cima dela. Era um triângulo irregular cortado na pedra, muito amplo na parte inferior, mas afinando


drasticamente até chegar ao topo, como um Hershey’s Kiss1 pendendo para um lado. — Você está pronta? — perguntou Tristan. — Nós vamos entrar lá? — eu exigi. — Se você ousar — disse Pete friamente no meu ouvido. Tristan lançou-lhe um olhar, e juntos, ele, Krista, e eu pisamos dentro da caverna. O ar estava cerca de vinte graus mais frio, e a abertura estreitou tão rapidamente que nos obrigou a formar uma única fila por alguns metros antes de alargar-se em uma câmara enorme e redonda. No segundo que entramos, meu queixo caiu. As paredes que me cercavam explodiram em cores. Elas haviam sido grafitadas tão completamente que era muito difícil qualquer pedaço de rocha negra ficar visível por baixo das letras complicadas e dos trabalhos de design. Eu dei um passo em direção à parede mais próxima e passei a mão sobre o primeiro nome que eu vi. Ele havia sido pintado de spray em vermelho e amarelo, as letras quadradas e em negrito. RYAN DUNN (CORRIGAN) 1995. JACINDA RAND (LORNING) 2004. MISTY CALLAIT (RABAT) 1982. KRISTA KINCAID (PARRISH) 2012. Olhei para Krista, e ela balançou a cabeça, levantando um ombro quase como um pedido de desculpas. — Essa sou eu. Virei em um círculo rápido, os nomes e números me agredindo — 2010, 2001, 1965, 1984, 1921, 1876. — Mil oitocentos e setenta e seis? — eu engasguei, boquiaberta com a letra cursiva apertada. Minhas palavras ricochetearam no teto alto e ecoaram de volta para mim, enchendo a câmara com o seu tom estridente. — Cada Lifer que veio para Juniper Landing tem o seu nome escrito nessas paredes — explicou Tristan, vindo em minha direção. — O ano marca a data em que aceitou seu chamado e recebeu os seus plenos poderes. Para você, hoje é esse dia. Olhei ao redor da sala para todos os rostos, cada um deles me observando de perto. — Você está pronta para se tornar uma verdadeira Lifer? — Krista perguntou. 1

Hershey’s Kiss: Chocolate mais ou menos no formato de um triângulo.


Engoli em seco. — Eu sei que é esmagador — disse Tristan suavemente. — E eu sei que você está preocupada com sua família, mas olhe ao redor. Nós também somos sua família agora, Rory. Este é o seu novo lar. Meu coração bateu dolorosamente. Kevin esfregou o nariz com as costas do dedo indicador. Bea olhou-me sem hesitação. Krista sorriu, como se eu fosse sua nova irmãzinha. Pete bateu o pé, olhando por cima de seu ombro. Joaquin me deu um pequeno sorriso, Lauren oscilando e soluçando ao seu lado. Fisher sorriu para mim, como se estivéssemos compartilhando uma piada particular. Nadia e Cori ficaram de braços dados, uma aliança entre as duas, enquanto Nadia fazia abertamente uma careta. Eu tentei acreditar no que Tristan estava dizendo — que essas pessoas poderiam ser a minha família — mas o meu coração estava fechado em si mesmo. Eu não tinha compartilhado Natais, aniversários e Ações de Graças com eles. Eles nunca tinham me visto ganhar uma feira de ciências ou uma corrida. Eles não tinham estado lá quando eu contraí catapora aos seis anos, quando eu quebrei meu braço no balanço de pneu da minha avó ou quando eles baixaram o caixão da minha mãe. Eu sabia quem era a minha verdadeira família. Mas você ainda tem eles, eu me lembrei. Você ainda tem seu pai e Darcy. Pelo menos por enquanto, e espero que para sempre. — Se isso significar alguma coisa — Tristan disse finalmente, — eu acho que você está pronta. — Todos nós achamos — acrescentou Joaquin em voz alta. Olhei para Nadia, que olhou além de mim para Tristan, fumegando. Era óbvio que ela não me queria aqui. Poderíamos ser uma “família”, mas estava muito claro que nós nunca íamos ser amigas. Mas eu não ia deixar ela e seus sentimentos evidentes por Tristan me impedirem de aceitar a minha nova missão — ou de estar com Tristan. — Eu estou pronta — eu disse, meu olhar fixo em Nadia. — Estou mais do que pronta. Seus olhos se estreitaram em mim por um breve segundo antes de desviá-los. — É isso aí! — Krista aplaudiu. Ela pegou uma espécie de corda e a estendeu para mim. Era uma pulseira de couro trançado. Estendi meu braço esquerdo e deixei que ela a amarrasse no meu pulso. O couro era duro, e o seu aroma pungente e picante emanava do meu braço. Quando o movi, ele deslizou a meio caminho para o meu cotovelo, e depois voltou para baixo novamente. Não era nada parecida com a de Tristan, que estava tão


desgastada que a cor tinha virado um castanho claro, e era tão justa que nunca passava de seu pulso. Joaquin soltou um grito, e todos começaram a aplaudir. O som encheu a caverna, e o grupo veio em minha direção, me abraçando como se eu fosse a irmã mais nova desaparecida que nunca souberam que tinham. Krista jogou os braços em volta de mim com tanta força que eu pensei que ela nunca soltaria, e Fisher colocou a mão enorme sobre a minha cabeça para despentear meu cabelo. Quando me virei para os braços de Bea, eu vi Nadia pairando perto da borda da caverna, e um arrepio passou por mim. Ela me lançou um olhar afiado e irritado, antes de virar as costas para o resto de nós e desaparecer na noite.


9 PARTIR PARA SEMPRE Traduzido por Lua Moreira

E

la está sentindo isso agora. Como é ser aceita. Como é ser parte de um grupo. Aposto que ela não tinha um monte de amigos no outro mundo. Ela era muito séria para isso. Muito focada. Mas aqui, as coisas podem ser diferentes. Não haverá formatura, não haverá Ivy League para concorrer, nem carreira estelar lá fora esperando para ser alcançada. Aqui, ela pode relaxar. Ela pode se divertir. Ela pode assumir riscos, ser selvagem e talvez até se apaixonar. Ela está começando a sentir isso. Eu senti, também, uma vez. Mas eu estive aqui tempo suficiente para saber que esse conto de fadas não dura. A euforia termina. É por isso que eu escrevi um novo “feliz para sempre”, sair desta ilha de faz de conta. O mundo está mudando, e minha nova aventura está prestes a começar...


10 JUNTOS Traduzido por Lua Moreira

A

cordei cedo na manhã seguinte, o sol brilhando através da janela atrás da minha cama, e eu pisquei em confusão. Eu nem sequer me lembro de ter cochilado. Eu estava tão excitada após a festa na enseada com a minha nova “família” que eu senti como se eu nunca fosse cair no sono. Mas quando estiquei meus braços sobre minha cabeça, eu estava estranhamente energizada, e quando a minha nova pulseira de couro duro deslizou em direção ao meu cotovelo, eu sabia exatamente o porquê. Tristan tinha me convidado para passar o dia com ele, aprendendo tudo o que eu precisava saber para ser uma Lifer. Um dia inteiro sozinha com Tristan. Joguei as cobertas de lado e puxei as primeiras roupas que eu vi — uma camiseta da cadeira e jeans do chão, em seguida, desci as escadas, sorrindo para o som agora familiar do meu pai digitando em seu teclado dentro do quarto dele. Eu tinha acabado de sair pela porta da frente quando ouvi o rangido do chão atrás de mim. — Aonde você vai? — perguntou Darcy. Eu hesitei por um segundo antes de me virar para encará-la. Ela já estava banhada e vestida, estranhamente cedo para ela. Eu vi a curiosidade esperançosa escrita por todo o seu rosto e sabia que ela queria sair de casa, mas eu também sabia que ela não podia vir comigo. Não nessa missão em particular. — Hum... para uma corrida? — eu disse, a culpa escorrendo para fora dos meus poros. Ela estreitou os olhos. — De jeans? Olhei para baixo. Droga. Uma das poucas vezes em minha vida que eu não estava ostentando um short de corrida e ela teve de se ligar nisso. — Uma caminhada, eu quis dizer.


— Eu vou com você — disse ela, agarrando seus óculos de sol da mesa da frente ao lado da fotografia emoldurada da nossa família — eu, minha irmã, minha mãe, meu pai, a única que ainda havia com nós quatro. Mordi o lábio inferior. — Na verdade, eu vou sair com Tristan — eu finalmente admiti, meu rosto pulsando com calor. Os olhos de Darcy se alargaram; em seguida, ela me deu um sorriso. — Entendo. Divirta-se — disse ela de forma significativa. — Uh, obrigada! — eu disse, sem jeito. — Podemos sair mais tarde! Lá fora, o calor me envolveu e eu respirei fundo o ar docemente perfumado enquanto acelerava o passo em direção à cidade. No meu caminho para o parque, vi o Oficial Dorn e seu chefe, Chefe Grantz, de pé juntos, olhando para a calçada pavimentada. Um pequeno pássaro branco jazia morto aos seus pés, meia dúzia de moscas gordas zumbindo em torno dele. Eu enruguei meu nariz, e de repente, um dos policiais olhou para mim, um brilho de acusação em seus olhos. Mas por quê? Um pássaro morto? Só então, Nadia atravessou a rua em uma bicicleta suja e derrapou até parar ao lado deles. Eles compartilharam algumas palavras, e seus olhos me fitaram, também. Eu tremi no sol quente, em seguida, rapidamente virei as costas para eles e comecei a andar de novo. Quando comecei a subir a colina para as falésias, cada grama de autocontrole dentro de mim foi necessária para não olhar para trás. Depois do que pareceu uma eternidade, eu bati na porta da frente de Tristan. Krista atendeu, vestindo seu uniforme de algodão fino da loja de departamentos azul e branco. — Oi, Rory! Eu sorri, a atitude sempre otimista de Krista esmagava instantaneamente o que restava da minha inquietação. — Oi! — eu disse. — Indo para o trabalho? — Sim. Eu estava saindo — disse ela, passando por mim para a varanda. — Olha, eu queria te perguntar... eu vou dar uma grande festa na sexta-feira à noite, e eu queria saber se você gostaria de estar no comitê de planejamento. Eu pisquei. — No comitê de planejamento? Ela sorriu e corou, alisando a franja da testa com a ponta do dedo. — Sim. É o meu aniversário de um ano na ilha — explicou ela, inclinando a cabeça e mordendo o lábio inferior. — É meio que importante, por isso, as outras meninas estão me ajudando a planejar. Eu brincava com a ponta da minha trança. Planejamento de festas definitivamente não era a minha praia. Mas ela parecia tão esperançosa. — Claro — eu disse. — Quando você precisa de mim?


Krista gritou e agarrou-me em um abraço. — Isso é ótimo! Nos reuniremos aqui na quarta-feira de manhã, às dez em ponto. — Ok. Eu vou estar aqui. — Legal. Se você está à procura de Tristan, ele está no quarto dele. Basta ir lá em cima. É a segunda porta à esquerda — ela disse enquanto corria pelas escadas da varanda. — Obrigada — eu falei para ela. Ela levantou a mão e acenou ao virar a esquina, fora de vista. Eu respirei fundo e entrei, fechando a porta atrás de mim. O hall de entrada era enorme e silencioso, iluminado fracamente no sol da manhã. O chão era de uma madeira escura, polida, e painéis de madeira combinados chegavam até a metade das paredes. A decoração era impecável, mas impessoal: a felpa de um tapete turco vermelho profundo foi todo varrido em uma direção, como se tivesse sido recentemente aspirado. Uma orquídea perfeita em um vaso dourado estava pousado sobre uma mesa reluzente da sala. As paredes eram aconchegantes, brancas cremosas, nuas de quaisquer fotografias ou retratos, além de uma pintura de paisagem da Câmara Municipal de Juniper Landing. Uma alta escadaria com corrimão estava à minha direita, mas antes que eu pudesse me mover, uma tábua rangeu em algum lugar nas proximidades. Eu vi uma sombra sob a borda de uma porta do outro lado do hall de entrada. Estava pairada lá, como se estivesse ouvindo. Por um longo momento, eu apenas fiquei ali, oscilando em algum lugar entre o instinto de correr e meu desejo de ver Tristan. Finalmente, os passos recuaram e uma porta se fechou na parte de trás da casa. Descongelada, subi as escadas para o segundo andar dois degraus de cada vez, olhando para cada porta até que eu vi Tristan. Ele estava de pé, de costas para mim em uma mesa de desenho, que foi ajustada para enfrentar uma janela de sacada com vista para o oceano, e ele estava segurando algo em suas mãos. De repente, ele jogou o item pesado no fundo da gaveta de um armário sob a mesa, trancou a gaveta, embolsou a chave, em seguida, virou-se antes que eu pudesse pensar em uma boa desculpa para eu estar pairando lá. — Oi! — ele disse, com os olhos brilhando com a minha visão. Meu coração aqueceu e eu relaxei instantaneamente. — Oi. Ele estava vestindo uma camiseta azul água que fazia seus olhos se destacarem, até mesmo do outro lado do quarto. Havia algo em vê-lo ali, em seu próprio espaço, que o fazia parecer vulnerável. Ele olhou em volta para a colcha bagunçada, a mala aberta ao pé da cama — cheia de tênis e chinelos


e o que parecia ser um par de pantufas de urso — e o espelho com tema náutico com uma rachadura no canto direito. — Hum, bem-vinda ao meu quarto — disse ele. Então ele coçou a parte de trás do seu pescoço, sorrindo timidamente, e rapidamente fechou a mala. — Obrigada — eu disse. — Krista me deixou entrar. — Então, você está pronta para o seu tour? — ele perguntou. — É por isso que estou aqui — eu disse, sorrindo. — Estou feliz que você ainda esteja animada com tudo isso — Tristan respondeu, pegando na ponta esculpida do estribo da sua cama. — Especialmente depois de ontem à noite. Às vezes, quando o conduzido não atravessa tranquilamente, os novos Lifers têm uma tendência a... — Surtar? — eu falei. — Para dizer o mínimo — ele respondeu com uma risada. — Eu deveria saber que você seria diferente. — Ele segurou o meu olhar por um longo momento, até que comecei a corar. — Então, aonde vamos? — eu perguntei finalmente. — Siga-me — disse ele, dirigindo-se para a porta. Ele parou e olhou para trás por cima do ombro, com um sorriso de parar o coração. — Você vai adorar isso.


11 QUALQUER LUGAR, MENOS AQUI Traduzido por Vivian Nantes

—E

u sabia! — Empurrei Tristan com as duas mãos. — Eu sabia que alguém estava me observando naquele dia! Através da janela brilhante eu tinha uma visão perfeita do quarto do outro lado da rua — o quarto que Olive tinha ocupado na pensão Freesia Lane na semana passada, quando ela estava aqui. Eu tinha ido procurá-la lá quando ela não apareceu no café da manhã, e eu podia jurar que alguém estava me espionando deste quarto. — Sim, era Lauren — disse Tristan, segurando a cortina de brocado azul. — Ela me disse mais tarde que ela tinha certeza de que você a viu aqui. Ela teve um ataque de pânico tão grande que Krista teve de deixá-la reorganizar seu guarda-roupa para acalmá-la. — Isso é calmante? — Eu levantei uma sobrancelha para Tristan. Ele ergueu as mãos. — É para Lauren. — Eu vi as cortinas se moverem, mas eu não vi quem estava por trás delas. — Era estranho, olhar pela janela, imaginando meu próprio rosto curioso espiando do outro lado. — Com a prática, você ficará realmente boa em não ser vista — Tristan me disse. Suas palavras pairaram no ar por um longo momento, e eu tinha a sensação de que ele estava pensando a mesma coisa que eu. Ele não tinha feito um grande trabalho em não ser visto por mim. Tristan pigarreou. — Então, o que você acha do tour por trás das cenas até agora? Mordi meu lábio inferior e olhei ao redor da sala. Os pisos de madeira eram velhos e barulhentos, e os móveis de jardim eram desgastados e colocados a esmo ao redor da sala deixando algo a desejar. Tinha sido assim em cada “lugar de vigia” que Tristan tinha me levado — o sótão-biblioteca,


que proporcionava uma visão perfeita de 360 graus da cidade a partir de suas janelas, o caminho acima da loja de surf com vista para o cais. Até mesmo o apartamento no andar de cima do Crab Shack tinha oferecido nada mais do que um sofá de vinil e um refrigerador quebrado. Como quer que seja a vida de um Lifer, ela não é glamorosa. — Vocês não querem, você sabe, ficar à vontade? — eu perguntei. Tristan riu e encostou-se à janela, o sol iluminando seu belo rosto e destacando as linhas de seu peito. Corei e desviei o olhar, concentrando-me na calçada do lado de fora. Fisher e Kevin passaram, no meio de uma conversa intensa, e Fisher verificou por cima do ombro três vezes no espaço de cinco segundos. Em seguida, eles desapareceram de vista. Aproximei-me da janela ao lado de Tristan, para ver se alguém estava seguindo eles, mas a rua estava vazia. — Nós nunca estamos em um único lugar por muito tempo, eu acho — disse Tristan. — Mas se você quiser fazer alterações em qualquer lugar, fique à vontade. Você é uma de nós agora. Ele me deu um olhar que enviou um calor quente no meu peito, como se ele estivesse contente, aliviado, na verdade, por finalmente ser capaz de dizer isso. — Anotado — eu disse, a minha frequência cardíaca pulando por todo o lugar. — Então, o que vem agora? Tristan hesitou. Ele mudou de forma quase imperceptível de um pé para o outro. — Bem, há mais um lugar que você deveria ver. Ficou claro que o que quer que fosse, ele não queria exatamente mostrá-lo para mim. Intrigada, eu o segui descendo as escadas e saí para a luz do sol. Não demorou muito para eu descobrir onde ele estava me levando, e meu pulso começou a vibrar quando paramos fora da casa cinza em frente à minha própria casa. Tristan tinha me dito que sua avó morava lá e que gostava de ver o tempo passar. Foi assim que ele tinha explicado as cortinas se movendo, minha constante sensação de estar sendo observada, e o fato de que ele sempre parecia estar saindo de lá. Olhei por cima do ombro para a janela de Darcy, esperando que ela não estivesse olhando. A casa olhou de volta para mim, suas duas janelas superiores e a porta dupla da frente formando um rosto acusatório. — Você está bem? — perguntou Tristan. — Sim — eu respondi secamente. — Tudo bem, então. Nós subimos os degraus e Tristan empurrou a porta. Ela soltou um alto rangido quando se abriu. Não foi até que eu entrei na fria e sombria casa


vazia que eu percebi que eu realmente tinha imaginado como poderia ser no interior. Em minha mente eu tinha visto cadeiras em torno de uma mesa de jogos antiga. Eu imaginava laços de renda colocados sobre as costas dos sofás estofados, um tapete de chita desbotada, uma lareira decorada com bugigangas e retratos emoldurados de netos. Em vez disso, o que me cumprimentou foi um monte de nada. As paredes eram cinzas e vazias, a lareira com tábuas, e a única mobília no primeiro andar era uma mesa branca lisa, colocada no centro da sala de estar. — Vamos — disse Tristan calmamente. Agarrei-me ao corrimão gasto quando o segui pelas escadas para o quarto de frente ao de Darcy. Aqui encontramos três cadeiras de vime brancas com almofadas desbotadas e manchadas, todas de frente para as janelas. Eu empurrei a cortina e olhei para fora. Darcy estava deitada em sua cama de dossel, segurando uma revista com o braço estendido ao longo do seu rosto. A vista era tão perfeita que eu poderia vê-la piscar. — Uau — eu disse. — Isso é muito... — Assustador? — Tristan forneceu. — Sim — eu disse, me afastando da janela. — Talvez devêssemos... Em vez de terminar sua sentença, ele desfez a fita que amarrava a primeira cortina, e o tecido caiu contra a janela, bloqueando a visão da minha casa. Então ele fez o mesmo com as outras duas janelas, jogando as fitas no chão e lançando-nos na escuridão relativa. — Sinto muito — disse Tristan finalmente. — É só que... é o que nós fazemos. Eu tentei pensar em todas as vezes em que eu estava na varanda ou no quarto de Darcy. Tentei me lembrar o que ele e seus amigos podem ter visto. — Qual é o objetivo? — eu perguntei por fim. Ele pareceu surpreso. — O que você quer dizer? — Eu quero dizer qual é o objetivo? — eu perguntei, estendendo a mão em direção às janelas cobertas. — Qual é o objetivo de toda a observação? — Oh. — Ele riu, como se estivesse aliviado. Ele gentilmente descansou as mãos na parte de trás de uma das cadeiras de vime. — Temos que ficar de olho nos visitantes. Temos que interagir com eles, porque somos essenciais para enviá-los onde eles precisam ir. Um jorro frio de medo caiu sobre mim. — Espere um minuto. Você disse que você não decide onde as pessoas acabam. — Nós não decidimos — respondeu Tristan. — E o que isso quer dizer? — eu perguntei. — Como você é essencial?


Ele mordeu o lábio inferior e olhou para o teto de gesso, cheio de rachaduras. — É um pouco difícil de explicar, mas basicamente, tudo o que vemos, tudo o que ouvimos... tudo isso é usado na decisão final. — Você tem que escrever um relatório ou algo assim? — eu perguntei, apoiando minhas mãos na cadeira em frente a sua. — Não. Não há nada disso — disse Tristan com uma risada curta. — A informação que recolhemos apenas vai para onde ela precisa ir. — Então o que você está dizendo é que você é um telepata — eu disse. Ele deu de ombros, inclinando a cabeça para um lado. — Mais ou menos. Nós todos somos. — E você envia mensagens telepáticas para quem? Deus? — eu perguntei, quase rindo do absurdo do conceito. Felizmente, porém, consegui segurar minha língua. Eu não queria ofendê-lo. — Eu realmente não sei — disse Tristan. — Eu nunca tentei fazer essa pergunta. — Como você pode nunca ter feito essa pergunta? — eu disse, meu aperto ficando mais forte na parte de trás da cadeira. — Essa é a pergunta mais importante que existe! Por que estamos aqui? Por que estamos fazendo isso? Se eu vou ser os olhos e ouvidos de alguém, eu meio que gostaria de saber quem é esse alguém. — Eu não fiz essa pergunta, Rory, porque eu nunca vou ter uma resposta — disse Tristan, sua voz chegando a um ponto muito próximo da raiva, um ponto que eu nunca vi antes. Olhei para o chão, meu rosto queimando. — Oh. Claramente este era um tema de alguma frustração para ele também. Só que ele estava lidando com ele por um tempo muito longo. Afastei-me dele e fui até a janela. Com um dedo, movi a cortina alguns centímetros para o lado, olhando para a minha casa, a nossa casa, a última casa que a minha irmã, o meu pai e eu iríamos viver juntos, e meu peito se encheu. Meus olhos arderam e eu engoli uma respiração. — Você está bem? Senti o calor do corpo de Tristan quando ele andou atrás de mim, sua respiração fazendo cócegas no meu pescoço. No mesmo instante, meu coração começou a bater forte. — Sim — eu disse calmamente. — Eu estou bem. — Eu sinto muito — ele sussurrou, enviando um arrepio pela minha espinha. — Eu não quis ser rude. Virei a cabeça levemente para o lado. Minha respiração estava superficial, meu pulso pulava com ele tão perto. — Está tudo bem.


— Eu tento não questionar tudo, porque eu sei que o que estamos fazendo aqui é importante — disse ele, em voz baixa. Eu me virei para encará-lo, tão rápido que minha trança passou por seu bíceps e nossos joelhos se tocaram. Eu me pressionei de volta na janela, achatando a cortina atrás de mim, mas ele nem sequer pestanejou. — Como? — eu perguntei esperançosamente, olhando em seus olhos. — Como você sabe? Seus olhos percorriam meu rosto, passando rapidamente de meus lábios às minhas bochechas, dos meus olhos ao meu cabelo. — Estamos mantendo o equilíbrio do universo — disse ele. — Não há nada mais importante. Seus cílios se agitaram e ele olhou para minha boca. Meus lábios formigavam e os meus dedos coçaram para estendê-los e agarrar sua mão, sua cintura, seu braço. Lembrei-me da sensação de seu polegar passando no meu rosto na noite passada, o jeito que ele me segurou perto na enseada, como ele olhou nos meus olhos ontem, quando ele me disse o quão forte eu era. Tão bonito. Tão verdadeiro. Em uma onda de bravura, eu fiquei na ponta dos pés e pressionei meus lábios contra os dele. Por uma fração de segundo, tudo foi perfeito. Seus lábios macios, o cheiro inebriante de mar e sal na sala, o som das ondas quebrando fora da janela aberta. Mas, então, Tristan se afastou abruptamente. Ele arrasou a parte de trás de sua mão contra os lábios, os olhos arregalados. Foi só nesse momento que eu percebi que ele não tinha me beijado de volta. — Eu... Eu sinto muito — eu gaguejei, nervosa. — Eu não... — Não, eu sinto muito — disse ele, finalmente abaixando a mão, com uma expressão indecifrável no rosto. — Eu não tive a intenção de dar-lhe a impressão errada, Rory. Eu nunca quis... Isso não estava acontecendo. Isso não estava acontecendo. Eu deslizei ao longo da janela, me afastando dele, mortificada. As coisas que ele disse... todo o toque, os olhares, a tensão óbvia entre nós... como eu poderia tê-lo interpretado tão mal? Mas, claramente, era exatamente o que eu tinha feito. Claro que eu tinha. Eu só beijei um cara antes e ele tinha definitivamente me beijado primeiro. Além disso, Tristan era perfeito. Ele era o Garoto de Ouro. O cara que todo mundo admirava, que qualquer outro cara queria ser, e provavelmente o cara com quem toda garota queria estar. Aposto que ele tinha beijado centenas de meninas ao longo dos anos sem fim de sua existência. Talvez até mesmo milhares. Eu era apenas a mais recente


perdedora patética e recentemente falecida a atirar-se nele. E agora eu ia ter que viver com essa humilhação — esta humilhação de arder a pele — para sempre. Enquanto ele olhava para mim, eu percebi que ele estava desejando que ele pudesse estar em qualquer lugar, menos aqui. Eu conhecia o sentimento. — Esqueça isso — eu disse rapidamente. — Isso nunca aconteceu, ok? Vamos fingir que nunca aconteceu. Virei as costas para ele antes que ele pudesse me ver chorar pela segunda vez em dois dias e tropecei em direção à porta, deixando Tristan e tudo que restava do meu orgulho para trás.


12 SENTENÇA DE MORTE Traduzido por Vivian Nantes

E

u tropecei na calçada em frente da minha casa, piscando para conter as lágrimas, e algumas folhas amarelas flutuavam para baixo da árvore de magnólia no nosso quintal antes de serem pegas pela brisa do oceano. Quando eu abri a porta, eu podia senti-lo me olhando da casa cinza. Sempre, sempre me observando. Uma onda de desespero ameaçou me superar quando eu imaginei a escuridão de uma eternidade sem ele. Foco, Rory. Foco. — Ei, linda. Eu vacilei com a voz familiar. Joaquin. Fantástico. Exatamente o que eu precisava. Ele aproximou-se por trás de mim e atravessou o portão como se fosse convidado. — Eu não estou com paciência para nada agora, Joaquin — eu disse, caminhando rapidamente em direção a varanda. — Não está com paciência para quê? Eu só vim para... — Joaquin de repente parou e deu um tapa em seu pescoço. — Ai! — O que foi? — eu disse, girando e olhando para ele. Sua mão tremia quando ele olhou para a palma da mão. Enrolado no centro havia uma vespa pequena e muito morta. — Você está bem? — eu perguntei por educação. Joaquin não respondeu. Ele segurou a parte de trás do seu pescoço por um segundo com a outra mão e olhou ao redor, como se esperasse a parte final de uma brincadeira. Mas não havia ninguém além dele, eu, e os pássaros cantando nos galhos da árvore de magnólia sombreando a passarela. Quando ele olhou para a vespa novamente, seu tremor cresceu violentamente. — O que foi? Isso é ruim? — eu perguntei, alarmada agora. — Você é alérgico?


— Não — disse Joaquin. — Eu só... Ele balançou a cabeça, e em vez de jogar o pequeno cadáver no chão, ele enfiou a mão no bolso. Joaquin trocou seu peso e apertou um olho. — Onde estávamos? — Eu acho que eu estava prestes a ir para dentro e bater a porta na sua cara — eu disse, subindo nos degraus da varanda, que rangiam sob os meus pés. — Ok, mas espere um segundo — ele implorou vindo atrás de mim. Eu joguei as minhas mãos para cima. — Por quê? Atrás dele, as cortinas na janela do segundo andar do outro lado da rua se fecharam. Minha garganta fechou, e eu cruzei meus braços com força sobre meu peito. Joaquin deu um passo mais perto. — Olha, eu só queria ver como você está hoje. Às vezes, o segundo dia é ainda mais difícil do que o primeiro. — Como você acha que eu estou? — eu perguntei, olhando atrás de mim para a porta. Eu só queria entrar antes de Tristan sair. Eu não conseguiria de nenhuma maneira lidar com vê-lo novamente naquele momento. Joaquin tocou na sua picada e fez uma careta. — No momento, eu diria... lívida? — Você tem alguma ideia de como isso é difícil? — eu vociferei, arrancando uma flor de gerânio da jardineira da janela mais próxima. — Passei o dia todo ontem ouvindo a minha irmã falar sobre encontrar seu próximo ficante, e tudo que eu conseguia pensar era Você está morta e você não faz ideia. Ela nunca vai se formar no ensino médio ou fazer aquela tatuagem que ela sempre quis, ou economizar para aquela jaqueta de couro maldita que ela está falando desde o Natal passado. Ela nunca vai fazer nada, e eu sei disso e eu não posso dizer a ela. Você tem alguma ideia do quão terrível é esta sensação? — Espere um minuto. Darcy quer ficar com outra pessoa? — perguntou Joaquim, com o rosto consternado. — É Fisher? Meu queixo caiu. — Você está brincando comigo? Isso é tudo o que você ouviu do que eu disse? — Tudo bem, tudo bem, acalme-se. — Joaquin estendeu a mão para mim. — Você esmagou a pobre flor. Eu olhei para as pétalas rosas espalhadas pelos meus pés e soltei o que restou do gerânio da minha mão suada. Então eu vi seus dedos na minha pele e puxei meu braço para trás, inclinando-me para longe dele.


— Nem tente aquele truque de mente Lifer em mim. Eu não vou deixar você me controlar. — Eu nem pensaria nisso. — Joaquin cruzou os braços sobre o peito e sorriu de uma forma divertida. — O que foi? — eu disse, jogando a flor no chão. — Por que você está me olhando desse jeito? — Eu gosto dessa atitude — disse ele. — Eu pensei que você fosse uma pessoa certinha demais, mas eu estou adorando essa coisa toda desafiadora que você está sendo agora. Desafiadora? Ele achava que eu estava sendo desafiadora? Estava mais para virando um caso perdido emocional. Mal sabia ele que o meu estado maníaco atual resultou de um coração partido, nada mais. Voltei a olhar para a casa cinza, mas ela estava quieta. — Eu fiquei totalmente perdido por pelo menos uma semana — disse Joaquin, recostando-se contra a grade da varanda. — Quando eu cheguei aqui, eles me colocaram com Ursula naquela casa de gengibre rosa na Sunset. — Espere. — Eu balancei minha cabeça. — Colocaram você? E quem é Ursula? — Oh, você sabe que é Ursula. A garçonete na loja de departamentos? Aquela com o cabelo branco? Ela supostamente é a minha avó. Nós moramos juntos. Pensei na mulher alegre que eu tinha visto atrás do balcão na semana passada. — Ela é supostamente a sua avó? — eu ecoei. Joaquin deu de ombros. — É. Todos nós, que morremos quando éramos jovens, fomos colocados com os adultos quando chegamos aqui, para nossas situações de vida parecerem normais para os visitantes — ele explicou. — Como Tristan e Krista vivendo com a prefeita... — Hã? — eu balancei minha cabeça enquanto eu tentava acompanhar. Joaquin suspirou e sentou-se sobre o parapeito, acomodando-se. — A prefeita não é sua verdadeira mãe. Krista e Tristan não são nem sequer parentes. Você sabia disso, não é? Ela só chegou aqui no ano passado, e ele está aqui desde sempre. Eu pisquei. Krista e Tristan pareciam tão parecidos que eram praticamente gêmeos. Como eles poderiam não ser parentes? O sol de repente estava muito mais quente do que estava há pouco. — De qualquer forma — Joaquin continuou, — quando eu cheguei aqui, passei tempo demais com Ursula amontoado sob uma colcha florida


que cheirava a naftalina e gardênias, chorando como um bebê. Até hoje, se eu até mesmo passar por um arbusto de gardênias eu passo mal. — Posso te perguntar uma coisa? — eu disse, meu coração vibrando nervosamente enquanto eu seguia um sulco no lado do balanço da varanda com o meu dedo. Ele me olhou nos olhos, cruzando os braços sobre o estômago. — Você quer saber como eu morri. Seu olhar era firme. Pela primeira vez, notei que manchas douradas e verdes salpicavam o marrom no fundo dos seus olhos. Prendi a respiração. — Isso é uma coisa ruim de se perguntar? — Não. Todo mundo pergunta, eventualmente. — Ele se inclinou para trás. — Eu cometi suicídio. Depois que eu matei minha mãe e irmã. Eu congelei. — Você... o quê? Joaquin balançou a cabeça, sua mandíbula apertada. — Era 1916. Eu era uma espécie de babaca bêbado, e meu pai tinha acabado de comprar um daqueles automóveis ultramodernos — disse ele sarcasticamente. — Espere um minuto, 1916? — eu disparei. — Você está aqui desde... — Sim, eu sei. Eu pareço jovem para a minha idade — ele brincou. — De qualquer forma, eu e meus amigos saímos e bebemos muito uísque, e no caminho de casa eu estava dirigindo, se você poderia chamar aquilo de dirigir, e então havia um carrinho de supermercado capotado na estrada, e eu não o vi até o último segundo. E quando eu desviei... eu desviei direto para a minha família. Eles estavam voltando do trabalho à noite, e eu... as matei. Quero dizer, não o meu pai. Ele não estava lá, mas... Ele desviou o olhar e brevemente levou sua mão ao nariz. — De qualquer forma, meu pai parou de falar comigo depois disso, e eu parei de fazer praticamente qualquer coisa — Joaquin continuou, seu tom neutro. Ele se inclinou para trás e brincou com sua pulseira de couro, movendo-a para cima e para baixo em seu braço, mas ele só se moveu cerca de uma polegada. — Eu não conseguia dormir sem ver seus rostos, sem ouvir a minha irmãzinha gritar... Então, uma noite, subi para o sótão com um pedaço de corda e... Ele fez um pequeno movimento de suspensão com a mão e estirou a língua. Eu fiz uma careta e olhei para longe, revoltada. — Não faça isso — eu disse. — Não faça o quê? — perguntou ele. — Fazer piada sobre isso. Isso não é engraçado. — Eu sei que não é engraçado — disse ele ferozmente. — Acredite em mim, eu sei. Eu pensei que me pendurando eu estava fugindo disso, mas em


vez disso, eu acabei aqui, e aqui estou, por quase cem anos, e a cada dia eu ainda vejo seus rostos. Eu ainda posso ouvi-la gritar. Olhei para o assoalho sob os meus pés, meu lábio inferior tremendo. Ele tinha acabado de confirmar o meu pior pesadelo. Ficar aqui para sempre significava nunca esquecer. Significava nunca escapar. Significava que eu ia me sentir estúpida, humilhada e pequena por toda a eternidade. Eu podia sentir o começo de um buraco negro se abrindo dentro de mim. Isso não era bom. Isso não era nada bom. A porta da casa cinza se abriu, e Tristan saiu. Ele abaixou a cabeça, tomando cuidado para não olhar em minha direção, até mesmo para não notar minha presença, em seguida, virou-se e saiu correndo pela rua. Meus olhos se encheram de lágrimas. — Eu tenho que ir — eu disse a Joaquin, levantando-me e empurrando a porta aberta. — Rory, espera — disse Joaquin, ficando em pé. Mas eu simplesmente bati a porta atrás de mim e caí no chão. Ontem, a eternidade parecia uma possibilidade, uma esperança. Mas agora eu sabia que era exatamente o oposto. A eternidade era uma sentença de morte.


13 RACHADURAS Traduzido por Vivian Nantes

D

urante toda a tarde eu a assisti sentada em sua varanda, suspirando com seu coração partido. Um dia e ela já percebeu: A eternidade não é tudo o que deveria ser. Eu a levaria comigo se eu pudesse, mas ela é realmente o que eu finjo ser: boa. Ela nunca iria concordar com o meu plano. Mas eu já vejo acontecendo, as rachaduras na fachada perfeita. A picada é apenas o começo. E eu vou fazer o que eu sempre fiz: sorrir, acenar, e enganar a todos. Ninguém nunca vai suspeitar de nada.


14 A REGRA DE JESSICA Traduzido por L. G.

O

Jeep levantava e mergulhava enquanto subia o monte rochoso em direção à lugar nenhum. Tudo o que eu podia ver na minha frente era o céu e as estrelas, e eu me segurei na barra do carro, somente esperando que Bea fosse tão hábil atrás do volante como pensava que era. Ao meu lado, no banco traseiro, Krista sorria com a sua cabeça inclinada para trás, como se estivesse gostando da sensação de quase ter o cabelo arrancado do seu couro cabeludo. À sua direita, Fisher olhava fixamente para frente, seus óculos espelhados o protegendo contra o vento. Joaquin e Bea ocasionalmente conversavam no banco da frente, mas com todo o barulho do vento no meu ouvido e o disparo frenético do meu coração, eu não consegui escutar o que eles estavam dizendo. Eu não tinha ideia de onde estávamos indo. Tudo o que eu sabia era que tinha levado meia hora para Joaquin me convencer a entrar no carro, prometendo a torto e a direito que o que quer que fosse que faríamos, ia me fazer sentir melhor sobre tudo. Só quando ele mencionou que Tristan não iria — ele estava trabalhando no último turno no Thirsty Swan — que eu finalmente concordei em vir. — Olhe para as estrelas! — Krista falou, abrindo os braços. — É, elas são... ótimas — respondi categoricamente. À frente, o chão pareceu simplesmente acabar, como se a gente estivesse chegando a um tipo de precipício. — Hum, Bea! — eu gritei, me inclinando para frente. — Talvez você devesse parar. — Não se preocupe. Está tudo bem — ela falou de volta, olhando para mim por cima do ombro. — Mas você está indo em direção ao precipício! — eu gritei, vendo a borda do mundo correndo em minha direção em uma rapidez alarmante. — Não se preocupe! — Fisher falou com um sorriso.


Meu coração estava na garganta. O que era tão legal nisso? Eles iam cair de um abismo só para me provar que não podíamos morrer? — Eu estou preocupada! — gritei, frustrada com a calma deles. — Me desculpe se eu ainda não estou acostumada a ser uma Lifer, mas eu acabei de chegar aqui e eu não queria... Bea de repente puxou o freio de mão e nós derrapamos para frente. Eu fechei meus olhos enquanto o Jeep virava de lado, as rodas traseiras balançando em direção ao precipício. Eu ouvi a terra e as pedras escorregarem para fora da beira, e eu cerrei meu punho, esperando sentir o chão cair abaixo de mim. Temendo a queda livre. E então nós paramos. — Chegamos! — Todos para fora! O Jeep balançava enquanto os outros saltavam para as rochas. Enquanto minha respiração estabilizava, eu podia ouvir as ondas quebrando em algum lugar abaixo. Bem devagar, eu abri um olho e depois o outro. As estrelas cintilavam acima. Eu ainda estava viva. Relativamente falando. — Qual é o problema de vocês? — eu guinchei, levantando do acento. Instantaneamente, o mundo precipitou-se abaixo de mim. O pneu estava perfeitamente alinhado com a borda do precipício, e a água estava a quilômetros abaixo de mim. Um movimento errado e eu ia cair pela borda. Devagar, eu me sentei novamente, respirando pelo nariz e expirando pela boca. À minha direita, Bea e Fisher estavam tirando suas roupas e andando em direção à borda do precipício, rindo e conversando pelo caminho. Kevin parou seu carro preto elegante ali perto, e ele, Lauren e Cori desceram, todos eles largando suas roupas pelo caminho. Não havia nenhum sinal de Tristan. Ou de Nadia, por sinal. Joaquin e Krista pararam do outro lado do Jeep. — Desculpa. Bea é a nossa habitante viciada em velocidade — Krista falou, amarrando seu cabelo em um rabo de cavalo. Joaquin deu um passo para frente. — Eu te ajudo a descer. Eu escorreguei pelo banco e fiquei de pé tremendo. Joaquin estendeu a mão e agarrou minha cintura. Eu pulei, assumindo que ele iria para trás, mas ele não foi e nossos quadris roçaram. Eu ergui meu olhar em direção aos seus olhos castanhos. Ele ainda estava me segurando. — Bem — ele falou — Talvez você não seja assim tão certinha. Eu ruborizei e dei um passo para trás. — O que estamos fazendo aqui? — Vem ver! — Krista falou excitadamente. Os outros estavam reunidos na borda larga do abismo. Eu andei em direção a eles com os meus joelhos trêmulos, agarrando a frente do meu


suéter com as duas mãos. O vento feroz jogou o meu cabelo contra o meu rosto. À distância eu conseguia ver a ponte, a neblina rodopiando preguiçosamente ao redor de seus suportes. Fiquei na ponta dos pés atrás dos outros e olhei para baixo. Tudo o que eu vi foi água. Água, espuma, ondas e rochas. — É um penhasco — eu disse sem emoção. — É. — Sem camisa, Fisher foi indo para trás, jogando seus óculos em uma pilha de roupas. — E é perfeito para isso. Meus olhos arregalaram. — Não! Mas era tarde demais. Fisher já tinha pisado para fora da borda. Ele soltou um grito alto e feliz enquanto caía. Parecia que cinco minutos haviam se passado antes de ele finalmente atingir a água. Ele estava tão abaixo de nós que eu nem ouvi o som dele caindo na água, mas eu vi a água branca espirrar ao seu redor. Por um longo momento, ninguém falou nada. Eu tinha certeza de que nunca viria Fisher novamente. Ninguém, morto ou vivo, conseguiria sobreviver a uma queda dessas. Mas então, de repente, a água se rompeu e a sua cabeça emergiu. Ele soltou um grito e os outros comemoraram. Meus ombros caíram com alívio enquanto Fisher nadava em direção a algumas rochas baixas e escalou nelas. — Isso foi demais! — Joaquin gritou. Fisher fez um formato de conchas com a sua mão ao redor da boca, e um momento depois eu ouvi um fraco convite. — Quem é o próximo? Joaquin, Lauren, Bea, Kevin, Cori e Krista se viraram para olhar para mim. — Ah não — eu disse, indo para trás — De jeito nenhum. Eu vou esperar vocês no carro. — Vamos, Rory. É uma sensação maravilhosa — Bea falou implorando. — Aqui, olha. Eu faço isso. Não tem problema — Cori me falou. E então ela se virou e pulou, desaparecendo de vista num piscar de olhos. O resto deles aplaudiram, vaiaram e gritaram. Dessa vez eu não olhei, mas eu ouvi ela gritar para nós quando emergiu. — A água está perfeita! Loucos. Eles eram todos loucos. Cada um deles. Eu me virei e comecei a ir embora o mais rápido que pude, meu pulso vibrando em minhas orelhas. Krista, Bea e Lauren vieram na minha direção, mas eu levantei minhas mãos para elas, meu tênis esmagando as pedrinhas e a areia.


— Vocês façam o que quiserem — eu falei. — Mas só para a sua informação, pressão de grupo não me afeta. — Nós não estamos tentando te pressionar — Bea falou, fazendo uma careta como se eu a tivesse ofendido. — Se você não quer fazer, não faça. — Por que vocês estão fazendo isso? — eu exigi, me sentindo irritada e envergonhada que eles fossem tão negligentes com uma coisa que me matava de susto. — Isso deve ser como uma queda do vigésimo andar! Bea encolheu os ombros. — Por que nós podemos. Tem muita coisa que você pode fazer quando percebe que não pode morrer. Meu olhar passou correndo por ela até a beira. Então aquilo tudo era para isso. Ilustrar o ponto de Joaquin. Eu iria “viver” para sempre. O que significava que nada podia me machucar. Mas isso não significava que eu estava pronta para pular de um precipício. — Ei, se você não quiser pular, não se preocupe — Krista falou, alcançando minha mão com as suas. Sua pele era quente e macia. — Nós vamos ficar aqui sentadas com você. — Nós vamos? — Bea perguntou, desapontada. — Não deixe que eu detenha vocês — eu falei. — Não, nós queremos passar um tempo com você, certo? — Krista falou para as outras enquanto ela me puxava em direção a um agrupamento de rochas grandes. — Vamos sentar. Bea suspirou, olhando demoradamente para o penhasco. — Está bem. — Estou dentro — Lauren disse encolhendo os ombros. Krista e eu nos sentamos em uma rocha cinza grande e lisa e Lauren e Bea empoleiraram-se ao nosso redor. Bea sentou com seus joelhos juntos, seus pés separados e empurrou seu cabelo para trás do seu ombro, sua mandíbula cerrada. Lauren brincava com a concha dourada que ela usava em uma corrente ao redor do seu pescoço. Eu olhei por cima do meu ombro para as ondas longe abaixo, me sentindo constrangida. Ser o centro das atenções não era minha praia. — Então — Krista começou, mordendo seu lábio. — Você está bem? Eu congelei. Tristan tinha dito alguma coisa a ela? — Aham. Por que? — É só que Joaquin ficou falando que devíamos te animar e quando Tristan chegou na loja de departamentos depois do seu tour, ele nem olhou na minha direção — Krista explicou. — Alguma coisa aconteceu entre vocês? — Eu e Tristan? — eu chiei — Não. Claro que não. Nós não, quero dizer, ele não... — Ah Deus. Você gosta dele, não é? — Krista guinchou.


— Ah. Outra não — Bea disse sem rodeios. — O que você quer dizer com outra? — eu perguntei. Lauren inclinou-se para trás em suas mãos. — Só não deixe Nadia ficar sabendo. — Eu sabia! — eu exclamei — Ela gosta dele, não é? Silêncio. As outras três trocaram olhares de reconhecimento, e um novo e terrível pensamento me ocorreu, um que explicaria tudo o que tinha acontecido essa manhã e também o tornaria dez vezes mais vergonhoso. — Espere um pouco. Tristan e Nadia estão, tipo, juntos? — Ahn, não — Krista disse como se a ideia fosse ridícula. — Por favor. — Não que ela não queira — Lauren falou, esticando suas pernas. — Lauren! — Bea chutou a canela de Lauren com o pé. — O quê? — Os olhos de Lauren estavam arregalados. — Eu só estou dizendo! Rory deveria saber. Se você tem uma queda por Tristan é melhor saber. Confie em mim. Eu pisquei. Lauren tinha uma queda por Tristan também? — O que você quer dizer? Espera, é por isso que ela está sempre me espreitando e me olhando feio? — Ela está te espreitando? — Krista exclamou. Bea suspirou alto e ergueu seu olhar para as estrelas. — Eu não sei sobre espreitar, mas Lauren estava falando sobre a Regra de Jessica. — Que Regra de Jessica? — eu perguntei. Alguém deixou escapar um grito alto e quando nós olhamos, Kevin havia desaparecido de vista. Nós esperamos alguns momentos até que ele gritasse novamente, sua voz ecoando das profundezas. — Vocês perdedoras vão fazer isso ou não? — Joaquin gritou para a gente. — Não tire suas calças! — Bea gritou de volta. Ele riu e depois tirou a camisa antes de mergulhar da borda. — O que é a Regra de Jessica? — eu repeti. — Basicamente, o negócio é o seguinte — Lauren disse, colocando seu cabelo preto brilhante atrás da orelha. — Jessica era uma Lifer que chegou aqui bem antes de qualquer uma de nós três e aparentemente Tristan se apaixonou por ela. Tipo, loucamente. Nós estamos falando de correr descalço pelo campo, jurar devoção eterna debaixo das estrelas, romance do tipo épico. Me contorci, meus pés enrolando dentro dos meus tênis. — E? Os olhos de Lauren brilharam com malícia de um jeito que me fez lembrar da minha irmã e suas amigas em casa antigamente. Elas tinham


exatamente a mesma expressão quando tinham uma boa história. Ela se inclinou para mim conspirativamente. — E então ela... — Terminou com ele — Bea interrompeu secamente. Lauren se virou bruscamente para olhar para ela. — Ela terminou com ele, partiu seu coração e ele prometeu nunca mais ter um relacionamento com uma Lifer. E foi o que Nadia descobriu quando ela tentou ficar com ele quando chegou. Quando foi isso? Trinta anos atrás? — Por que não? — eu perguntei. — Quero dizer, por que não entrar em outra relação? Pessoas terminam o tempo inteiro. Krista respirou fundo. — Porque ela... De repente eu fui cegada por um flash de luz. Todas nós nos viramos ao som de um motor acelerando. Um carro esporte preto com um enorme pássaro de fogo pintado no capô veio voando pela colina, saído do nada, e derrapou até parar, arremessando terra e pedras por todo o lado. Pete desceu de trás do volante e correu até a lugar dos saltos, deixando o motor, as luzes e o rádio ligados. Ele puxou a camisa branca para fora de sua cabeça. — Uhul! — ele gritou. E então se jogou da beira do precipício. Pois é. Pessoas loucas. Eu estava vivendo entre um monte de pessoas loucas. Eu estava prestes a voltar para a conversa quando a porta do passageiro se abriu e Nadia saiu. Ela olhou em minha direção com uma expressão convencida, bateu a porta, e andou calmamente. Seu moicano estava ainda mais espetado esta noite e ela usava um delineador preto grosso que fazia com que seus olhos parecessem enormes. — O que vocês garotas estão fazendo? — ela disse provocadoramente, empurrando sua mão nos bolsos da sua jaqueta de vinil preta. — Tem um grupo de tricô acontecendo? Essas foram as primeiras palavras que eu realmente a ouvi dizer. Bea, Lauren e Krista se viraram para olhar para mim. — O quê? — Nadia falou, olhando debaixo do seu nariz para mim. Eu me levantei para ficar de pé, meu interior tremendo e deslizando. Nadia me olhou com interesse. — Você tem algum problema comigo? — eu exigi. Bea, Lauren e Krista se levantaram e ficaram ao nosso redor, formando um círculo. Ela levantou um ombro. — Eu tenho alguns, na verdade — ela cuspiu, me olhando de cima a baixo como se eu fosse suja. — O quê? — perguntei, virando minhas palmas da mão para cima. — Se isso for por causa de Tristan...


— Tristan? — ela gritou indignada. — Você está brincando comigo? Isso não é sobre Tristan. É sobre o fato de que eu não confio em você. Meu queixo caiu. — O que eu fiz para você? Bea e Lauren trocaram olhares alarmados, como se elas não soubessem o que iria acontecer e não gostassem disso. — Como se você não soubesse — Nadia falou, salientando seu queixo. Meus dedos se enrolaram com frustração. — Me esclareça. — Ok, está bem — Nadia falou. — Desde que você chegou aqui, alguma coisa está errada. Todas essas coisas estranhas vêm acontecendo. Meus olhos se estreitaram. — Que coisas estranhas? — Isso não é culpa dela — Lauren falou para Nadia, não defensivamente, mas como se a minha inocência fosse óbvia. — Como você sabe? — Nadia exigiu. — Ninguém sabe com certeza. — Que coisas estranhas? — eu repeti, olhando ao redor para os outros. — Pare de fingir que você não sabe! — Nadia gritou, ficando bem na minha frente. — Nadia, já chega! — Bea gritou, segurando seu braço. — Me solta, Beatrice — Nadia se voltou para ela — Você não me diz o que eu posso ou não dizer. — Se Tristan estivesse aqui, ele diria a mesma coisa — Bea disse, andando em sua direção ameaçadoramente. Ela era alguns bons centímetros mais alta do que Nadia, com muito mais músculos. — Então cale. Essa. Boca. O rosto pálido de Nadia ficou vermelho. — Ok, mas eu sei que eu estou certa — ela disse, olhando em minha direção. — E eu vou provar. Então ela se virou e foi embora, passando a toda velocidade pelas pedras e terra em direção ao carro de Pete. Ninguém disse nada. Nadia foi para trás do volante e saiu voando com o carro. — Do que ela estava falando? — eu perguntei quando o ronco do motor virou um zumbido maçante. — Que coisas estranhas têm acontecido desde que eu cheguei? Krista abriu a boca para falar, mas Bea sacudiu a cabeça, silenciando-a. — Lauren? — falei. — Não posso. Não cabe a mim — ela falou, colocando suas mãos debaixo da manga do seu suéter. Meu peito borbulhou com frustração, ameaçando transbordar. — Então cabe a quem? Ninguém disse nada. — Cabe a quem? — eu gritei. — A Tristan?


Ainda nenhuma resposta. Lauren olhou por cima do ombro como se tivesse alguém ali que pudesse tirá-las dessa confusão incômoda. — Ótimo. Eu vou embora daqui — eu cuspi, caminhando para longe. — Muito legal que eu possa contar com a minha nova família. — Rory, volta aqui! São mais de três quilômetros até a cidade! — Krista exclamou para mim. — Ainda bem que eu sou uma corredora! — eu gritei de volta. Eu continuei andando, indo direto para a escuridão, meus pés torcendo e escorregando em cima do terreno desnivelado. Árvores cresceram dos dois lados da estrada, e um vento duro mandou uma chuva de folhas marrons sobre minha cabeça e ombros. Eu apertei mais o meu suéter e cerrei meus dentes. Marchei ao redor de uma curva na estrada e congelei quando vi um par de faróis, iluminando uma selvagem área de plantas. O carro era prata e elegante, parado no silêncio. As luzes do freio estavam acesas e as janelas começaram a se abaixar quando eu cheguei. Algo se moveu à minha direita, e eu me abaixei atrás de um arbusto de frutos silvestres, espiando por cima dos galhos desiguais. O Policial Dorn deslizou por trás de uma barreira — uma barreira pela qual ele poderia ver tudo o que estava acontecendo no penhasco — e andou até o carro, seu sapato de couro preto brilhando na luz da lua. Ele se inclinou na janela do veículo para conversar com o motorista, mas eu não consegui ouvir nada além do som de sangue correndo no meu ouvido. A conversa continuou por uns minutos antes do vidro da janela se levantar novamente e o carro rolar para longe lentamente. Dorn se endireitou, suspirou, e checou seu relógio antes de se mover na direção oposta. Quando eu fiquei de pé no chão sólido novamente, meus joelhos estavam tremendo. Dorn parecia estar em todos os lugares recentemente. Eu pensei no olhar acusatório que ele e Grantz haviam me dado no parque, junto de Nadia, e o sentimento estranho que eu tive na casa de Tristan essa manhã, como se alguém estivesse ouvindo — observando. E era uma coincidência Pete estar no porto ontem à noite, ou ele estava me seguindo também? Um vento frio soprou ao meu redor, e eu me arrepiei dos pés à cabeça. Eu corri até a estrada em direção ao sul o mais rápido que consegui. Eu queria respostas, e até onde eu sabia, só havia um lugar que eu podia consegui-las.


15 OBLIVION Traduzido por Manoel Alves

T

ristan estava sozinho atrás do bar no Thirsty Swan, metodicamente movendo um pano branco em círculos sobre a superfície de madeira escura. Eu hesitei na porta, toda a esperança frustrada e humilhação quente daquela manhã voltando, e comecei a repensar toda essa ideia. Mas não era como se eu pudesse evitá-lo para sempre. Segurando minha respiração, eu abri a porta de tela e deixei o estrondo ressoar atrás de mim. Foi a primeira vez que vi o local tão quieto e silencioso, o único som vinha do tique-taque do ventilador no centro do teto, que empurrava o ar salgado ao redor da sala. — Desculpe, estamos fechados — disse Tristan, olhando para cima. Quando ele me viu, fez uma pausa, e uma expressão de dor passou rapidamente através de seus olhos. — Rory — disse ele, deixando cair o pano. Eu encontrei-me olhando para suas mãos. — O que foi? Foco, Rory. Foco. — Quem é Jessica? — perguntei. Tristan estendeu a mão e agarrou a borda do bar. Seu peito retraiu, como se eu tivesse acabado de jogar-lhe uma lança através do coração. Uau. Lauren não estava exagerando quando usou a palavra épico. — Como é... Quem te disse sobre Jessica? — ele perguntou, finalmente, sua voz um sussurro. Caminhei até o balcão, tentando usar um frio distanciamento. Todas as cadeiras foram viradas de cabeça para baixo e colocadas em cima das mesas, suas pernas finas apontando em direção ao teto. Sob meus pés, o chão brilhava. Eu olhei em direção às portas da cozinha, a luz brilhando através das rachaduras, e me perguntei se alguém estava lá.


— Lauren, principalmente — eu disse-lhe com naturalidade. — Logo antes de Nadia aparecer e me acusar de ser responsável por toda essa coisa estranha que está acontecendo. Alguma ideia do que se trata? Os olhos de Tristan brilharam. — Ela não deveria ter feito isso — ele disse. — Eu vou falar com ela. Eu deslizei para um assento. — Então, o que aconteceu entre você e Jessica? — eu perguntei, cruzando as mãos na minha frente. Tristan suspirou, pressionando ambas as mãos sobre a superfície do balcão. Lá fora, um sino apitou tristemente enquanto um barco fazia o seu caminho para a marina. — Jessica partiu o meu coração — ele me disse, sua mandíbula fraquejando. — Eu pensei que ela fosse... perfeita. Mas ela acabou sendo exatamente o oposto. — Ele respirou fundo e me olhou como se decidisse se devia ou não dizer o que estava na ponta da língua. — Ela foi a primeira Lifer que quebrou as regras. Eu senti como se o banco do balcão tivesse acabado de inclinar sob mim. — O que você quer dizer com “quebrou as regras”? Tristan virou seu perfil para mim. Ele beliscou seu lábio inferior entre o polegar e o indicador, pensando, em seguida, saiu de trás do balcão, pegando o banco ao lado do meu. Ele se virou para mim, e sua coxa pressionou contra o interior da minha. Meu coração acelerou, um calor se irradiou na minha perna, no meu peito, e todo o caminho até o meu couro cabeludo. Em seguida, ele acelerou novamente quando ele não se afastou. — Você se lembra de ontem, quando nós lhe dissemos o que aconteceria se você dissesse ao seu pai e a sua irmã o que estava realmente acontecendo aqui? — ele perguntou, olhando nos meus olhos. — Como eu poderia esquecer? — eu disse, minha pulsação vibrando rapidamente em meus pulsos, nos meus ouvidos, em meu peito. — Bem, Jessica decidiu que era... imoral nós mantermos esse segredo — Tristan me disse. — Ela achava que os visitantes mereciam saber a verdade. Então ela foi de casa em casa... contar a eles. — O quê? — eu arfei. Tristan assentiu, olhando para mim com um olhar distante. — O que aconteceu a seguir não foi bonito. Foi devastador, na verdade. — De repente, seus olhos se arregalaram e, sem pensar, eu estendi a mão e a coloquei sobre a dele. Ele congelou por um segundo, seus músculos tensos, então me agarrou de volta. Prendi a respiração, olhando para nossos dedos, sentindo o calor de sua pele pressionada contra a minha. — O que aconteceu? — perguntei.


— Você tem que entender que isso foi há muito tempo atrás — disse Tristan, tocando sua pulseira de couro. — As pessoas que estavam aqui na época... eles morreram durante a Primeira Guerra Mundial — eles haviam visto seus irmãos e filhos sair e nunca mais voltar. Alguns haviam tido pouca ou nenhuma comida por semanas a fio, assistiram seus filhos sofrerem. A população de Juniper Landing ficou, em geral... — Irritada? — eu disse, assim que absorvi essa nova informação — que Tristan tinha estado aqui, pelo menos, por tanto tempo quanto Joaquin esteve. Ele olhou para mim e bufou. — Sim, irritada. — Ele soltou um suspiro. — Então, irritados, eles formaram uma multidão. Engoli em seco. — Uma multidão? Tristan assentiu tristemente. — Movimentos eram comuns naquela época. — O que você fez? — perguntei. — Não havia nada mais que pudéssemos fazer — respondeu ele. — Tentamos argumentar com eles, mas uma vez que as pessoas com raiva ficam juntas, e estão em busca de sangue, não ficam satisfeitas até conseguirem o que querem. Os combates eclodiram e um monte de pessoas ficou ferida, mas finalmente conseguimos manter tudo sob controle. — Ele apertou os lábios, contrariado. — Nós, Lifers, conhecíamos a ilha muito melhor. Tivemos o que Dorn chamaria de uma vantagem tática. Meus nervos chiaram com a menção de Dorn, e eu pensei mais uma vez nele sussurrando para a pessoa no carro prata. — Ele estava aqui? Tristan balançou a cabeça. — Ainda não. Ele é muito mais recente. Apareceu durante a primeira Guerra do Golfo. — Ah! — eu disse, fazendo cálculos rápidos em minha mente. Há quanto tempo Tristan estava aqui para 20 anos ser considerado recente? — De qualquer forma, tivemos que reunir todos que Jessica tinha contado e levá-los para a ponte — Tristan continuou, seus olhos azuis escuros com dor. — Essa foi a pior parte, o envio de todas as pessoas à Terra das Sombras. Uma dor encheu meu peito. — Mas não foi culpa deles Jessica contar. — Sim, mas essa é a regra — disse Tristan enfaticamente. — Ela existe para assustar Lifers de dizer às pessoas a verdade, roubando-lhes a chance de resolver seus problemas, mas Jessica claramente não se importava com isso, e uma vez que foi feito, não havia nada que pudéssemos fazer para mudá-lo. Eu não poderia ter enviado eles para a Luz nesse momento mais


do que eu poderia ter salvado Jessica. São as moedas que tomam a decisão, e as moedas sabiam. Todos foram condenados à Terra das Sombras. Ele soltou minha mão e pressionou suas palmas em seu jeans, inspirando e expirando. Ele balançou a cabeça e olhou para o teto como se não pudesse acreditar que nada disso tivesse realmente acontecido, apesar de ter sido quase uma centena de anos atrás. — Mas isso é tão... errado — eu disse. — Existe alguma maneira de mudar as regras? Ele olhou para mim e, infelizmente, zombou. — Bem que eu queria. Ficamos em silêncio por um momento, ouvindo o tique-taque em cima de nós. — O que aconteceu com Jessica? — eu perguntei. — Jessica — disse ele, em seguida, olhou-me nos olhos. — Jessica foi enviada para Oblivion. Minha mão foi para o meu pulso, apertando minha pulseira de couro. — Mas você disse que havia apenas dois destinos. — Sim. Para os visitantes — disse ele em voz baixa. — Oblivion é uma região terrível muito específica da Terra das Sombras. É reservada para Lifers que quebram as regras. — Então... espere um minuto — eu disse, saindo do banco, meus pés batendo no chão com um baque. — Se eu tivesse contado à minha família o que estava acontecendo no desembarque da balsa ontem, não só eles teriam ido para a Terra das Sombras, como também eu teria ido para Oblivion? Você não sentiu a necessidade de compartilhar esse pequeno fato comigo? — Eu não precisei — Tristan me disse. — Eu sabia que você não iria dizer a eles. Você os ama demais para fazer isso com eles. — É por isso que você... quero dizer... — Fiz uma pausa, tentando reunir coragem para dizer o que eu queria dizer, o que eu precisava saber. — É por isso que você se afastou de mim esta manhã? — eu me atrapalhei. — Porque você acha que eu vou quebrar as regras? Porque você não confia em mim? Tristan balançou a cabeça e desceu de seu banco do bar. — Não — disse ele. — Eu não acho que você irá quebrar as regras. Eu só... o que Jessica fez... me matou. Me matou porque eu não previ isso. Se eu não tivesse estado tão cegamente apaixonado por ela, eu poderia ter impedido o que aconteceu e ter salvo todas as pessoas — disse ele. — Esqueça sobre confiar em alguém. Durante muito tempo, eu não confiei em mim mesmo. E eu percebi que eu ia ter que viver com essa dor e incerteza para sempre.


Eu inspirei e expirei lentamente. Por um longo momento, apenas olhamos um para o outro, e tudo o que eu queria fazer era abraçá-lo. Segurálo. Envolver meus braços em torno dele e dizer-lhe que eu era diferente, que eu nunca iria machucá-lo, que eu não era Jessica. Mas ele não se mexeu, e nem eu o fiz. — Isso é o melhor, Rory — disse Tristan finalmente, formalmente. Olhei em seus olhos e vi uma dureza que rachou meu coração em dois. — É o que é melhor para nós dois.


16 ERRADO Traduzido por Manoel Alves

E

ntão, agora ela sabe. Nem tudo neste lugar mágico é exatamente o que parece. O que quer que as pessoas digam sobre confiança e família, há sempre segredos. Sempre meias-verdades. Há sempre mais para aprender. Mas agora ela sabe o fato mais importante, que por mais idealista que todos nós tentamos parecer, as coisas podem dar errado aqui. Elas podem dar muito, muito errado. A questão é: será que ela sequer percebeu que isso já está acontecendo? Será que ela vai ser capaz de parar isso antes que seja tarde demais? Não se eu puder ajudá-la.


17 A PREFEITA Traduzido por Manoel Alves

N

a manhã seguinte, eu estava na nossa cozinha, rodeada de ovos trincados e farinha branca. Depois de várias tentativas, a massa de panqueca que eu tinha feito finalmente começou a manter sua forma arredondada na panela. Coloquei outra frigideira na boca mais próxima e peguei os fósforos. Hoje ia ser um dia normal. Só eu e minha família, comendo panquecas, bacon e tomando café fresco. Sem Lifers, sem conduções, sem acusações insanas. Apenas um dia normal. Eu risquei um fósforo, mas nada aconteceu. Tentei novamente. Nada. Eu estava indo para uma terceira tentativa, quando vi algo se mover do lado de fora da janela da cozinha. Eu estava tão distraída que o fósforo escapou e a chama queimou meus dedos. — Ai! — O fósforo caiu no chão de linóleo, e eu pulei. — Ótimo — eu disse a mim mesma, chupando meus dedos. — Queime-se por causa de um pássaro estúpido. Mas assim que eu disse, vi um outro flash. Alguém atravessando a janela de trás, bem em frente ao nosso terraço. Alguém vestindo um moletom preto. Meu coração caiu. Quem quer que fosse estava me observando. Coloquei os fósforos silenciosamente sobre o balcão, indo na ponta dos pés em direção à porta. O espião ou tinha caminhado para a praia ou estava parado no ponto entre as duas janelas, a menos de um metro de distância. Prendi a respiração, e lenta e tremulamente estendi a mão para a maçaneta da porta. — O que você está fazendo? Minha mão voou para o meu coração. Darcy estava na porta entre a cozinha e a sala da frente, olhando-me como se eu estivesse conduzindo experimentos químicos na mesa da cozinha.


— Fazendo panquecas? — eu disse silenciosamente, tentando recuperar-me de meu momento de pânico. — Ah, é? Como é que está indo? — ela perguntou, indo até o fogão em seus pés descalços. Ela deu uma olhada na panela e torceu o nariz para a gororoba borbulhosa e gelatinosa no centro de uma mancha de óleo. — Não muito bem — eu respondi, meus ombros caindo. Ela pegou a panela e jogou toda a bagunça na pia. Abri a porta rapidamente e olhei para fora. Nada além dos malmequeres farfalhando na brisa do oceano. — Está nos genes, eu acho — disse ela. — Lembra de quando a mãe tentou fazer panquecas em forma de pinguim? — É claro. — Eu sorri tristemente enquanto fechava a porta. Eu nunca esqueceria daquele dia. Eu tinha oito anos, e minha mãe tinha quase incendiado a casa com uma bola de fogo, deixando uma enorme mancha negra no teto da cozinha, mas em vez de surtar, ela tinha aberto todas as janelas, largado a panela e a massa restante no lixo, e encontrou um cupom para o restaurante IHOP. — Eu acho que nós polimos três dúzias de panelas naquela manhã — disse Darcy enquanto abria uma garrafa de água. — Eu sinto falta do IHOP — eu disse com um sorriso nostálgico, enxugando as mãos em uma toalha de cozinha. — Da gordura, da manteiga... do arrependimento. Darcy riu quando um corvo pousou na nossa janela, grasnando para nós. — Essa deve ser a nossa primeira refeição quando chegarmos em casa — sugeriu ela, enxaguando a panela. — Rooty Tooty Fresh ‘N Fruit. Nós fechamos os olhos. — Com frutado extra — nós dissemos juntas. E nós duas rimos. Era a fala da minha mãe. Na verdade, era a fala do meu avô, mas minha mãe havia pegado para si. Darcy pegou a mistura para panquecas, enquanto as lágrimas encheram meus olhos. Não chore. Não chore por causa do IHOP, eu disse a mim mesma, segurando o pano de prato. Não havia nenhuma maneira de explicar isso. Enquanto eu observava Darcy mover em torno da cozinha, seus movimentos graciosos tanto como os da minha mãe, eu me perguntava que tipo de coisa altruísta que Darcy e meu pai precisariam fazer para transformá-los em Lifers, e como eu poderia ajudá-los a realizar essas proezas. Eu já tinha dito adeus à minha mãe; eu não queria ter que dizer adeus a eles, também. Não se havia alguma coisa que eu pudesse fazer sobre isso.


— Que tal a gente começar de novo? — disse Darcy, puxando alguns ovos fora da geladeira. — Nós? — eu perguntei, com uma feliz surpresa. Ela encolheu os ombros. — Eu já cozinhei para um monte de vendas de bolos. Eu devo ter aprendido alguma coisa. Onde está o seu copo de medição? — perguntou Darcy, pegando uma vasilha limpa do armário. Cheguei a passar para ela a xícara de café de cerâmica que eu estava usando, e ela agarrou meu braço, olhando para a minha pulseira de couro. Minhas bochechas queimaram e eu o puxei de volta. — Onde você conseguiu isso? — ela exigiu. — Em nenhum lugar — eu disse automaticamente. Ela me deu uma olhada de “boa tentativa”, e eu suspirei, derrotada. — Krista deu para mim. — Ela apenas lhe deu uma. Simples assim — disse ela com ceticismo. Eu encolhi os ombros. Obviamente Darcy tinha notado, assim como eu tinha no início, que Tristan, Joaquin e toda a sua multidão usavam essas pulseiras. — Então... o quê? Você faz parte do seu grupinho agora? — ela perguntou, abrindo uma gaveta tão violentamente que todos os utensílios deslizaram para frente. — Não! Claro que não. Ela pensou que eu fosse gostar — eu improvisei. — Isso não significa nada. — Uh-huh. — Ela tirou um conjunto de copos de medição de plástico e fechou a gaveta. — Se é o que você diz. Engoli em seco, sabendo o quão ciumenta Darcy devia estar. Ela deveria ser a popular, a menina legal, não eu. Se havia uma coisa que ela odiava, era ser excluída. De tudo. — Darcy, eu... Naquele momento, meu pai veio correndo pelas escadas. Eu estava prestes a perguntar se ele queria panquecas quando ele entrou na cozinha, e a questão morreu na minha língua. Seu rosto estava corado, seus olhos selvagens, o seu cabelo normalmente bem penteado saindo de trás das orelhas. Era um olhar que eu conhecia bem. Durante muito tempo, o temperamento do meu pai tinha sido além de curto, sua capacidade de ser paciente era nula. Sempre que o cara da tv a cabo se atrasava uma hora, ou se esqueciam das suas batatas fritas na janela do drive-through ou ele tinha que esperar no médico por mais de 15 minutos, este era o olhar que ele tinha em seu rosto, como o de um louco perturbado.


— Meninas — disse ele, metade dentro, metade para fora da cozinha. — Eu só vim dizer que eu estou indo para o continente. — O quê? — eu soltei, segurando o balcão conforme minhas pernas cederam abaixo de mim. — Posso ir com você? — perguntou Darcy, ao mesmo tempo. — Por quê? — eu exigi. — Porque nós estamos aqui há mais de uma semana e ninguém entrou em contato conosco — meu pai explicou, sacudindo o punho com raiva. — Nem o FBI, nem os oficiais dos EUA. E eu não consigo ligar a partir desta maldita ilha. Eu não sei vocês, mas eu gostaria de saber o que está acontecendo em casa e se Steven Nell ainda está à solta. Suor escorria na parte de trás do meu pescoço. Steven Nell não estava mais à solta. Ele estava morto, assim como nós estávamos, com exceção, de acordo com Tristan, que eu o mandei para a Terra das Sombras. Estávamos completamente seguros agora. Se você considera estar morto um estado de bem-estar. — Pai, eu tenho certeza que está tudo bem — eu disse, tentando manter o desespero longe da minha voz. — Não, não está! Não está nada bem! Olhei para o meu pai, com os seus olhos esperançosos brilhando de preocupação. Ele só estava tentando nos proteger. Apenas tentando nos levar para casa. Eu amava meu pai naquele momento. Mais do que eu o amava em muito tempo. Mas eu não podia deixá-lo sair desta ilha. — Pai, vamos apenas esperar alguns dias. Talvez depois... Mas ele não quis ouvir. Ele fechou a porta com tanta força que sacudiu as vidraças. Eu estava no meio da sala de estar quando ele pulou para dentro do carro e o acelerou para fora da garagem. — Droga — eu disse baixinho, desatando meu avental. — Aonde você vai? — Darcy exigiu, jogando uma mão para cima enquanto eu corria para a porta. — Eu já volto. — Mas e as panquecas? — ela gritou atrás de mim. — Sinto muito! — eu gritei de volta. Na rua, eu persegui o carro. Meu pai virou à esquerda em direção a cidade em alta velocidade e desapareceu acima da colina. Corri atrás dele tão rápido quanto eu consegui. O que estou fazendo? Eu pensei desesperadamente, tentando controlar minha respiração. Não há nenhuma maneira de eu conseguir alcançá-lo.


Mas eu sabia que eu tinha que tentar. Sua vida após a morte poderia depender disso. Quando cheguei no topo da colina, vi o carro do meu pai do outro lado do parque, voltando-se para o embarcadouro. Eu tomei um momento, aliviada. Pelo menos ele não estava indo para a ponte. O vento soprava, e com o canto do meu olho eu vi um flash estranho vindo das janelas rotundas da biblioteca. Meu coração acelerou. O flash apareceu novamente. Em seguida, novamente. Era como se alguém estivesse enviando um código Morse, brilhando a luz do sol de volta para o mundo com um espelho. Eu olhei mas não consegui ver nada, e de repente, as cortinas caíram. Meu pai virou a esquina, e eu me afastei da janela. Respirando fundo, eu corri através do parque, em seguida, até a colina para o penhasco. Ao longe, balançando sobre ondas espumantes, estava a balsa. Ela ainda atracaria em alguns minutos, mas uma vez que atracasse, o meu pai iria tentar embarcar. Eu fiz a única coisa que eu poderia pensar em fazer — corri até a porta da frente de Tristan e caí contra ela, batendo nos painéis de madeira tão duro quanto eu podia com as duas mãos. Tristan abriu a porta. Ele olhou com raiva até que me viu. Então seu rosto se suavizou. — Rory, o que... — O que acontece se alguém tentar sair da ilha? — eu exigi, agarrando seu braço. Ele ficou pálido. — O quê? — Meu pai... ele está a caminho... da balsa — eu disse entre suspiros. — Ele quer voltar para o continente para descobrir o que está acontecendo com Steven Nell. Eu consegui colocar a maior parte para fora em um suspiro, então me inclinei contra a parede. O mundo estava começando a girar, e eu tinha de curvar-me para não desmaiar. — Você está bem? — ele me perguntou, firmando meu ombro em seu aperto forte. — Sim! Mas o meu pai... — Eu cuido disso — disse ele, voltando-se para a porta do outro lado do hall de entrada. Dei um passo cambaleante para ir com ele, mas ele colocou a mão no meu ombro novamente. — Você deve esperar aqui fora. A prefeita pode ser meio... — Ele fez uma pausa enquanto eu olhava para ele através de minha franja suada. — Espere aqui — disse ele com um sorriso triste e apologético.


— Ok. Apenas se apresse. Por favor — eu disse a ele. Então eu caí em um banco antigo contra uma das janelas da frente, inclinando a cabeça para trás contra o vidro frio. Quando eu fechei os olhos, tudo o que eu podia ver era a determinação no rosto do meu pai. Se Tristan não tivesse automaticamente uma resposta para isso, então isso não ia acabar bem. Ouvi uma porta se abrindo e eu pulei. Uma mulher alta, em um terno cor creme e saltos, saiu do escritório, seus dedos longos e afilados apertados na frente dela. Sua maquiagem parecia profissionalmente aplicada, e não havia um único fio de cabelo escorregando para fora de seu coque louro. Brincos de diamante pendiam de suas orelhas, e ela usava um colar de pérolas ao redor do pescoço imperioso. Quando ela sorriu para mim, eu corri minha língua sobre os meus próprios dentes da frente ligeiramente tortos. — Rory Miller — disse ela em um tom de boas-vindas, com a mão se estendendo na frente dela. — É um prazer distinto finalmente conhecê-la. — Hum, você também — eu disse, sacudindo a mão fria e seca com a minha quente e úmida. Olhei além dela para Tristan. Ele levantou os ombros, tão confuso como eu. Ele fez parecer que ela ficaria irritada com minha intromissão, mas eu era um “prazer distinto”? — Diga-me... o que o seu pai está querendo fazer? — ela perguntou, erguendo a mão para o queixo e inclinando a cabeça como um político a ouvir um trabalhador demitido. — Ele está tentando sair da ilha — eu disse à ela. — Eu não sabia o que fazer. O que vai acontecer com ele caso consiga... — Interessante, interessante — disse ela, estreitando os olhos azuis claros. — Bem, eu não quero que você se preocupe com isso por mais um minuto — disse ela, apertando as mãos novamente. — Eu vou cuidar disso. Ela sorriu para mim, depois para Tristan, como se ela fosse uma espécie de mágico e nós dois ingênuos extasiados. — Ok, mas o que... Tristan me lançou um olhar que dizia para parar, então eu o fiz, e a prefeita virou-se e caminhou de volta para seu escritório. A porta se fechou com um clique, e dois segundos depois eu podia ouvi-la falando em voz baixa. Tristan caminhou até mim, vigiando a porta o tempo todo, como se esperasse que ela abrisse novamente. — O que ela vai fazer? — eu sussurrei. — Não se preocupe — ele respondeu. — Se a prefeita diz que vai cuidar de algo, ela vai cuidar.


— Mas o que acontece com as pessoas quando tentam sair da ilha? — eu perguntei, meu coração acelerado. O rosto de Tristan era um branco. — Eu não tenho certeza se alguém já tentou antes. Uma porta no corredor atrás de Tristan de repente fechou. Meu coração pulou uma batida. — O que foi? — perguntou Tristan, notando a minha mudança de comportamento. — O que há de errado? Passei por ele e abri a porta. Diante de mim estava uma grande cozinha, moderna, com todas as comodidades para um micro-ondas, um forno de aço inoxidável, uma geladeira dupla — o oposto completo das nossas típicas da década de cinquenta. Mas o detalhe importante era que estava vazio. Nem uma alma estava lá, e nenhum prato estava fora do lugar. — O que foi? — perguntou Tristan novamente, vindo atrás de mim e empurrando a porta ainda mais. — Nada — eu disse. — Eu podia jurar que alguém estava aqui. Eu vi a porta se movendo. Tristan olhou ao redor, mas viu a mesma coisa que eu. Uma cozinha vazia. — A casa tem corrente de ar às vezes — disse ele. — Eu tenho certeza que foi apenas o vento. — Oh — eu respondi. — Eu acho que sim. Mas quando me virei para ir, ouvi passos em cima, seguido por um riso suave e lento. E foi assim que eu soube: Alguém estava me observando. Porque, nesta ilha, alguém sempre está.


18 LAVAGEM CEREBRAL Traduzido por Lua Moreira

M

eu pai nunca voltou para casa. Passei o dia inteiro na varanda da frente fingindo ler no meu iPad, mas eu estava na verdade olhando a estrada. Com exceção de alguns ciclistas, um skatista, e um casal feliz passeando, não vi ninguém durante todo o dia. No momento em que o sol começou a mergulhar atrás da casa cinza do outro lado da rua, eu tinha cerca de uma dúzia de teorias sobre o que a prefeita quis dizer quando disse “Eu vou cuidar disso”, e nenhuma delas era boa. Eu olhei para o teto da varanda, inclinando a cabeça contra a borda dura da parte de trás do balanço. Do canto do meu olho, eu vi que um dos vasos de malmequer no parapeito da varanda tinha murchado e caído, sua flor anteriormente amarela brilhante tinha se tornado castanha. Sentei-me rapidamente. Eu podia jurar que algumas horas atrás essa flor estava viva e bem, seu caule curvado em direção ao sol. — Oi, Rory! Eu fiquei tão assustada que quase dei um pulo. Aaron caminhou em minha direção, uma grande sacola de comida balançando ao seu lado. Sentei-me enquanto ele abria o portão da frente, colocando os pés no chão da varanda. — Oi — eu disse, tentando sorrir. — Eu trouxe jantar para vocês, o suficiente para quatro pessoas. Aaron levantou a sacola, que estava impressa com o logotipo Crab Shack, e sorriu de volta. Ele estava vestindo uma camisa polo vermelha com a gola levantada, assim como o cara que ele conversava no bar na outra noite. Meu coração se afundou com a lembrança do meu pai. — Obrigada. Isso é ótimo. Mas o meu pai não está em casa, por isso só vai precisar de três.


— Mais para mim, então — ele disse alegremente, estendendo a mão para a porta da frente e mantendo-a aberta para mim. Incrível como a fonte de tanta angústia para mim era uma surpresa feliz para ele. — Darcy — gritei quando a porta se fechou. — Aaron está aqui. Ouvi-a ranger a cama, em seguida, sua porta bateu, e ela apareceu no topo da escada. Seu cabelo estava em um coque e enrolado em torno de seu rosto, como se ela estivesse se preparando para o baile. — Oi! — disse Aaron brilhantemente. — Para quê é o coque? — Gostou? — ela perguntou, virando a cabeça de um lado para o outro antes de descer as escadas trotando. — Eu o chamo de Tédio Absoluto. Aaron riu. — Nomeado muito criativamente. — O que você trouxe? — perguntou Darcy, escoltando ele até cozinha. — Cheira bem. Assim que Darcy abriu a sacola, a porta da frente se abriu e meu pai entrou na casa, lançando para dentro a luz da varanda. — Pai — gritei. Ele mal teve tempo de abrir os braços antes de eu correr para eles. — Você está de volta! — Eu estou — disse ele, deixando cair as chaves sobre a mesa ao lado da foto emoldurada da minha família. — Por que essas boas-vindas? Eu hesitei. Ele não estava agindo como alguém que tinha ido em uma missão infrutífera para consertar as vidas de suas filhas. Na verdade, ele parecia feliz e relaxado. Radiante, até. — Hum... onde você esteve? — eu perguntei. Ele já estava olhando por mim para a cozinha, onde Darcy e Aaron estavam desembalando a comida sobre a mesa de fórmica. — Você nunca vai acreditar — disse ele. — Eu estava na casa da prefeita, e ela vai me ajudar a publicar o meu livro! — Sério? — Darcy guinchou, dando uma mordida no camarão frito enquanto se sentava à mesa. — Como? — Aparentemente, ela trabalhava numa editora, e ela conhece vários agentes e editores — disse meu pai, passeando pela cozinha e olhando para a variedade de peixes, batatas fritas e molhos que Aaron tinha colocado para fora. — Como vai você, Aaron? — ele perguntou, batendo-lhe nas costas. — Vou bem, senhor. Sirva-se — respondeu Aaron. — Papai, isso é ótimo — disse Darcy enquanto meu pai ia até o armário dos pratos. — Você o terminou? — Quase — ele respondeu alegremente. — Ela disse que vai lê-lo assim que ele for concluído.


Caminhei lentamente para o limiar da cozinha, observando os três se prepararem para as suas refeições. Parecia algum tipo de comédia muito iluminada. O pai solteiro, sua linda filha, e seu doce amiguinho. Por um breve momento eu me perguntei se era por isso que esta casa era decorada como algo saído dos anos cinquenta. Eles estavam — quem quer que eles fossem — tentando pintar o pano de fundo da perfeita família americana antes que as pessoas se mudassem? — Foi lá onde você esteve o dia todo? Com a prefeita? — eu perguntei. Meu pai franziu a testa, pensando, enquanto ele enchia o prato com moluscos fritos. — Não. Eu fui dar uma caminhada, almocei na loja de departamentos, em seguida, esbarrei com ela na biblioteca. Falso. Completamente falso. Ele saiu daqui em uma missão e seguiu para a balsa. De nenhuma maneira ele havia passado o dia andando. Alguém ou alguma coisa tinha ferrado com sua memória — ferrado com sua mente. Olhei para Darcy, esperando que ela perguntasse sobre o continente, mas ela não o fez. Ela simplesmente se levantou da mesa e foi buscar bebidas para todos. Eles tinham mexido com sua mente, também. — Você vai pegar algum? — perguntou Aaron, olhando para mim por cima do ombro. — Se você for, é melhor você começar ou vou comer tudo. Eu só olhei para ele. Eles todos tinham sofrido lavagem cerebral. Cada um deles. Se Darcy desaparecesse hoje à noite, então amanhã Aaron não se lembraria dela. E se Aaron desaparecesse também, meu pai não se lembraria de nenhum dos dois. Como é que eles fazem isso? Como eles apagam memórias de todos e as substituem por novas? — Rory? — disse meu pai. E pior ainda, se isso estava acontecendo ao meu redor, como é que eu sei que não está acontecendo comigo, também? Tudo o que tinha ocorrido desde que cheguei aqui poderia ser uma mentira. — Na verdade, eu não estou me sentindo muito bem — eu disse, dando um passo para trás. — Eu acho que apenas vou para a cama. Corri subindo as escadas de dois em dois degraus, ignorando o chamado de meu pai para voltar. O que é que isso importa? Não havia qualquer possibilidade de que ele se lembrasse disso pela manhã.


19 A MOEDA Traduzido por Lua Moreira

E

u vi no segundo que acordei na manhã seguinte. Pousado no meio da minha mesa de cabeceira marrom polida havia uma única moeda de ouro. Estendi a mão para ela, meus dedos tremendo, e coloqueia deitada no centro da palma da minha mão. Como a moeda tinha chegado lá? Eu senti como se tivesse em cada manhã de Natal a partir do dia em que meu cérebro com minha lógica amorosa de quatro anos de idade tinha percebido a improbabilidade de o Papai Noel existir. Todos os anos após os meus quatro anos de idade eu tentei ficar acordada para ver como tudo realmente acontecia, como aqueles presentes apareciam sob a árvore, mas todos os anos eu cochilava e acordava com um sobressalto, espantada com a maravilha de tudo, mas secretamente com raiva de mim mesma por não ter, mais uma vez, visto a verdade com meus próprios olhos. Inclinando-me para trás contra meus travesseiros, eu deslizei a moeda entre os meus dedos, tentando manter a tristeza que pairava na baía, sabendo que eu estava evitando o real significado. Hoje era o dia. Eu ia fazer minha primeira condução real, tudo por minha conta. Mas em vez de sentir-me cheia de propósito e alegria, meu peito estava incrivelmente pesado. Eu ia começar a minha missão sem Tristan. Eu desci as escadas e fui para a cozinha, com foco na máquina de café, mas um borrão azul do lado de fora na praia me congelou. Era Tristan. Ele estava sentado na praia atrás de nossa casa, olhando para a água. De repente, eu poderia jurar que senti a moeda queimar um buraco no bolso da frente da minha calça jeans. Eu esqueci tudo sobre o café e me dirigi para fora. Tristan não se virou quando me aproximei. Ele estava com as pernas puxadas para cima, seus braços descansando sobre os joelhos enquanto ele brincava com um pedaço de cana quebrada entre as mãos. O vento assobiava nos meus ouvidos enquanto, no meio do oceano, uma vela


listrada com as cores do arco-íris balançava sobre as ondas. Eu caí ao lado de Tristan e peguei a moeda. Ele olhou para ela. — Hoje é o dia — disse ele. — Você sabe quem é? — perguntei. Ele balançou a cabeça e empurrou as pernas para fora do assento na frente dele, cutucando a cana na areia ao seu lado, fazendo uma marca longa e reta. — Ainda não. Mas você vai saber, em breve. Engoli em seco, olhando para a água, a minha mandíbula deformando. — O que você está fazendo aqui? — Eu queria saber sobre ontem... — Sim. Sobre isso... — eu interrompi. Tristan hesitou por um segundo. — O que houve? — O que diabos aconteceu com o meu pai? — eu exigi. — Quando ele chegou em casa, era como se sua memória tivesse sido apagada. — O que você esperava que acontecesse? — perguntou ele de forma neutra. Por alguma razão, esse tom blasé deslizou sob a minha pele. Era da mente do meu pai que estávamos falando. Da sua memória. Suas emoções. Ele pode ser apenas mais um cara morto para Tristan, a prefeita e o resto de Juniper Landing — apenas mais um visitante mantendo-se no escuro, mas ele era meu pai. O único pai que eu tinha. — Eu não sei — eu retruquei, me levantando. — Eu pensei que vocês fingiriam que a balsa quebrou ou a prefeita iria... apenas convencê-lo de que ela descobriria o que estava acontecendo com Nell. Tristan levantou-se, ainda segurando a pequena cana. O vento soprou seu cabelo para trás de seu rosto, e eu não pude deixar de notar o quão afiadas as maçãs do seu rosto de repente ficaram. — Qual seria o ponto disso? — ele perguntou calmamente. — Ele só ia começar a fazer mais perguntas amanhã. Como se limpar a memória fosse uma solução óbvia e nada insidiosa. Eu gemi e comecei a caminhar de volta para minha casa. Tristan, é claro, me seguiu. — Rory, olha, eu sinto muito se você acha essa coisa toda perturbadora, mas é assim que funciona por aqui — disse ele. — Você prefere que seu pai esteja lá em cima agora mesmo em pânico, planejando sua próxima tentativa de ir embora? Olhei para as janelas do quarto do meu pai. Ele tinha ficado acordado até tarde trabalhando em seu romance com renovado entusiasmo, agora que a prefeita o tinha convencido de que ela poderia publicá-lo. Ele estava,


provavelmente, em sua mesa agora, editando e reorganizando, murmurando linhas de diálogo em voz alta para si mesmo. — Claro que não — eu disse. — Mas isso não faz a coisa ser certa. — Eu olhei através dele para o veleiro, desejando que eu pudesse estar nele, navegando para... bem, qualquer lugar, menos aqui. — Como é que funciona, exatamente? — eu perguntei. — A prefeita tem poderes especiais ou algo assim? Ela passou aqui em algum momento e limpou o cérebro de Darcy, também? — Não. Não é como se ela tivesse que tocar uma pessoa ou alguma coisa assim — disse ele, seus olhos azuis sérios. — Na maioria das vezes, o ajuste na memória simplesmente acontece por conta própria. Como quando um visitante vai embora e ninguém se lembra dele no dia seguinte. É automático. Seu pai foi um caso especial. Ela teve que colocar novas memórias em sua mente, e uma vez que ela fez isso, as memórias de Darcy foram alteradas para coincidir com as dele. Estremeci com o vento e me abracei com força. — Como ela faz isso? Coloca novas memórias? Tristan correu os dedos pelos cabelos loiros. — É meio louco, na verdade. Ela apenas fica com a pessoa, olha nos olhos e lhes conta uma história — ele explicou. — Quando ela faz isso, o que quer que seja que ela tenha dito a eles, eles acreditaram que realmente aconteceu dessa forma. — Então, ela hipnotiza as pessoas — eu disse. — De certa forma. Mas ela não faz isso muitas vezes — disse Tristan. — Só em situações extremas. Eu balancei a cabeça, tentando engolir o caroço na minha garganta. — Por que eu ainda me lembro do que aconteceu? Tristan se virou para mim totalmente. — Porque você é uma Lifer — disse ele, como se fosse óbvio. — Nossas mentes não podem ser alteradas. — Como eu posso saber disso? — eu exigi. — Como eu sei que tudo o que aconteceu comigo é real? — Porque, — disse ele, estendendo a mão e colocando-a no meu braço, — eu estou lhe dizendo. Eu juro para você, Rory. Você está segura aqui. Fiquei olhando para sua mão, uma acusação nos meus olhos. Ele rapidamente me soltou. — Você pode fazer isso também? — eu perguntei, olhando sua mão enquanto ele a empurrava no bolso. — Implantar novas memórias? Eu posso?


Tristan suspirou. Ele caminhou até os degraus que levavam ao nosso terraço e sentou-se, deslizando em direção ao corrimão para me dar espaço suficiente para se juntar a ele. — Não. Só a prefeita pode fazer isso. — Então, ela tem poderes especiais — eu disse, sentando ao lado dele, mas certificando-me de que nenhuma parte da minha perna tocasse qualquer parte dele. — Alguns. — Ele usou a cana para desenhar uma série de linhas verticais na areia no degrau. — Ela foi enviada aqui depois que a coisa com Jessica aconteceu — disse ele, mantendo os olhos em seu trabalho. — Ela pode dizer se um Lifer com más intenções chega aqui, e se chegar, ela pode enviá-los direto para Oblivion. Minha garganta apertou. De alguma forma, o vento de repente se tornou mais frio do que estava um momento atrás. — Bem, isso é terrível. — O quê? — ele perguntou. — Uma pessoa que tem esse tipo de poder — eu disse a ele, me perguntando como ele não podia ver isso. — Isso já aconteceu antes? Ela já enviou alguém para lá? Tristan assentiu. — Duas vezes. Ambos homens. Eu nunca descobri seus nomes. Ela simplesmente... lidou com eles. — Então, eles nem sequer chegaram a defender seu caso? — eu perguntei. — Eles não tiveram chance de se redimir? Tristan olhou-me nos olhos e balançou a cabeça. — Nós não podemos deixar que isso aconteça novamente, o que aconteceu com Jessica. Não podemos correr esse risco. Parecia tão extremo. Mas então, eu não tinha estado aqui quando Jessica tinha enviado o seu mundo oscilando em direção ao abismo. Eu não podia imaginar como deve ter sido os visitantes se levantando contra os Lifers. Todo o medo, a raiva e paranoia. O vento me bateu com tanta força naquele momento que eu tremi. — Você está com frio? Tristan moveu-se para colocar o braço em volta de mim, e eu automaticamente me encolhi. — Não faça isso. Ele piscou. — O quê? Eu só estava... Levantei-me, tremendo da cabeça aos pés quando arrepios apareceram por toda a minha pele. — Você não pode me dizer que você não pode ficar comigo e, em seguida, continuar a fazer coisas desse tipo. Não é justo, Tristan — eu disse, minha voz embargada. Ele levantou-se e me encarou, tão perto que nossos pés descalços se tocaram. Meu peito irradiava calor com cada batida dolorosa do meu


coração. Eu cruzei meus braços sobre o estômago, me controlando desesperadamente. Foco, Rory. Foco. — Rory... — Não — eu disse. — Por favor, Tristan. Apenas... não. Ele deu um pequeno passo para trás, e foi todo o incentivo que eu precisava. Corri até os degraus e através do terraço, batendo a porta da cozinha atrás de mim. Só quando eu estava dentro em segurança que eu olhei para trás. E Tristan ainda estava sozinho na areia, na parte inferior da escada. Assistindo.


20 MEU PRÓXIMO Traduzido por Yasmin Mota

C

orrer. Correr era bom. Correr clareou minha cabeça. Elevou minhas endorfinas. Fez-me sentir positiva, como se tudo fosse ficar bem. Até que me deparei em uma curva para o centro da cidade e vi a grande mansão imperial da prefeita olhando para mim, e um impulso de medo me impediu. Como pode uma pessoa ser autorizada a exercer tanto poder? Se ela pode enviar as pessoas para Oblivion, mesmo sem consultar ninguém, o que a impedia de banir todas as pessoas que não concordavam com ela? Toda pessoa que olhava para ela errado? Toda pessoa que usava um par de jeans rasgado, ou pisava em uma flor ou jogava lixo no chão? Eu corri até a loja de departamentos e parei sob a sombra de seu toldo azul e branco listrado. Apoiando as mãos nos meus joelhos, olhei para as torres, o alpendre envolvente, as janelas, e me perguntei o que ela estava fazendo lá agora. Ela estava limpando a memória de outra pessoa? Decidindo o destino de um pobre Lifer? Calma, Rory, eu disse a mim mesma, em pé e ereta novamente. Tristan disse que era apenas em situações extremas. Não há nada para se preocupar. O vento mudou, e eu automaticamente olhei para o cata-vento. O nevoeiro tinha ido e vindo cerca de uma hora antes, quando meu pai e eu estávamos do lado de fora no quintal, assando hambúrgueres para o almoço, e o cata-vento estava agora apontando para o sul. Eu me perguntava qual alma infeliz tinha sido levada para a Terra das Sombras — e estava grata que não tinha sido eu a fazê-lo. Outro vento forte arrancou um pêssego podre de uma árvore próxima, e rolou até parar aos meus pés. Uma minhoca preta e gorda cutucou a cabeça para fora de um amassado marrom viscoso na polpa do pêssego. Eu fiz uma careta e chutei o pêssego o mais forte que pude para o arbusto no final da calçada.


Respirando fundo, estendi a mão para meu tornozelo por trás para alongar meu quadríceps. Do outro lado do parque, eu vi o homem a quem Dorn tinha apertado as mãos na outra noite correr os degraus da biblioteca e entrar. Abaixei os pés e estiquei meus braços para trás para alongar meu peitoral. Kevin deu a volta ao lado da biblioteca, olhou rapidamente por cima do ombro, e entrou. Ele foi logo seguido por Dorn. Em seguida, Bea. Deixei meus braços caírem, a curiosidade formigando na base do meu crânio. Certamente, dois segundos depois, a porta da delegacia abriu e Fisher e Joaquin apareceram, cada um carregando duas malas pesadas. Eles viraram à direita e foram direto para a biblioteca. Apertei os olhos, meu coração batendo furiosamente. O que eles estavam tramando? Alcancei meu outro tornozelo por trás para alongar o outro quadríceps e perdi o equilíbrio. — Te peguei! Aaron subiu na calçada da rua e agarrou meu braço. No segundo em que nos tocamos eu tive um flash. Aaron em um chão de madeira, se arrastando para a janela, suas unhas cavando na madeira enquanto chamas e fumaça tomavam conta dele. Ele estendeu a mão para o parapeito da janela, luzes vermelhas e azuis pulsando do lado de fora, sabendo que se ele pudesse apenas ficar de joelhos, se pudesse sinalizar para alguém... Ele tentou respirar, mas sua garganta estava fechada, seus pulmões virados do avesso. Alguém do lado de fora estava gritando seu nome. Ele caiu no chão e fechou os olhos, balbuciando, engasgando, morrendo. — Ei! Você está bem? Pisquei, meus olhos turvos, até o belo rosto de Aaron entrar em foco. Seu rosto sorridente, inocente e doce. Eu respirei fundo e tossi, me dobrando. — Rory — ele perguntou, acariciando minhas costas e parecendo alarmado. — Rory? Fale comigo. O que aconteceu? Eu balancei minha cabeça encarando os tijolos debaixo dos nossos pés, tentando não chorar em voz alta. Soltei um suspiro alto e fiquei de pé, segurando no ombro dele para me equilibrar, mas depois recuei com medo de outro flash e, ao invés disso, agarrei uma das colunas que sustentavam a marquise. Minha pulseira de couro escorregou de meu pulso suado para o meu cotovelo. — Eu não sei — eu engasguei. — Eu só... fiquei tonta. — Você está bem? Talvez devêssemos entrar para tomar uma água — Aaron sugeriu. — Ou um sorvete. Por minha conta.


Olhei para ele, tentando não deixar o horror e tristeza transparecerem. — Claro — eu disse, apenas para fazê-lo parar de ser tão solícito, para que eu pudesse pensar e raciocinar. — Eu só preciso me alongar um pouco mais. Te encontro lá dentro. — Você tem certeza que está bem? — Aaron perguntou novamente, com seus olhos castanhos preocupados. Ele estendeu a mão para apertar meu ombro e eu vacilei, prendendo a respiração, mas desta vez, nada aconteceu. Eu fiquei bem onde eu estava, neste mundo, com a brisa soprando ar fresco ao nosso redor, o zumbido baixo de conversa emanando de dentro do restaurante. — Eu estou bem — eu disse. — Juro. — Ok. Vou pegar uma mesa. — Ele entrou ao som de sinos tilintando e foi finalmente, felizmente embora. Fui até a esquina, longe da vista das janelas, e cobri minha boca com a mão. Pobre Aaron. Ele tinha estado tão sozinho. Tão assustado. Tão desesperado. Alguém tão incrível como ele não deveria ter morrido daquela maneira. Ninguém deveria ter que morrer daquela forma. De repente, uma mão encostou no meu ombro, e eu pulei, girando ao redor. Era Krista, vestindo seu uniforme de garçonete, com um lápis escondido atrás de uma orelha. — Você está bem? Eu vi você pela janela e pensei que você ia desmaiar. — Sim, quase. — Eu verifiquei para ter certeza de que estávamos sozinhas. O casal que eu tinha visto sair da barca ontem passou de skate, de mãos dadas, e a Menina Ioga estava de volta no parque, executando uma ponta-cabeça perfeita. — Agora, quando Aaron me tocou, eu tive o flash mais vívido da maneira como ele morreu. — Oh, sim. Isso — disse Krista, com um suspiro. — Foi um saco quando comecei a trabalhar aqui. Quero dizer, é sempre um saco, mas nas primeiras vezes foram terríveis. — Que diabos é isso? — eu perguntei. Dois corvos voaram e se empoleiraram na parte de trás de uma das cadeiras ao ar livre. Um terceiro se juntou a eles, forçando-os a afastar para o lado e ajustar suas garras na barra de ferro fundido. — Isso é o que acontece quando você toca a próxima pessoa que vai guiar — Krista me disse, enrolando o rabo de cavalo loiro em torno de seu dedo. — Como a morte deles é algo que eles não podem falar sobre si mesmos, ela é “revelada a você” — ela acrescentou, fazendo o sinal de aspas com as mãos. — Permite que você os entenda melhor para que você possa ajudá-los em tudo o que precisam passar.


Eu mal ouvi alguma coisa depois das palavras próxima pessoa que vai guiar. — Espere um minuto — eu disse a Krista, balançando as mãos na minha frente. — Espere um minuto, espere um minuto. Você está me dizendo que o meu próximo encarregado é... Aaron? Krista mordeu o lábio inferior. — Parece que sim — disse ela. — Eu realmente sinto muito. A porta atrás dela se abriu e a “avó” de Joaquin, Ursula, colocou a cabeça para fora. — Krista, querida? Você tem pedidos. — Eu tenho que ir — disse Krista, se desculpando. Então ela fez uma pausa enquanto segurava a porta. — Você vai ficar bem. Quero dizer... não vai? — Claro — eu disse, acenando com a cabeça distraidamente. — Eu vou ficar bem. Ela apertou minha mão mais uma vez antes de se virar em um redemoinho de seda e rendas e voltando para dentro. Ursula, no entanto, ficou. — Posso te servir alguma coisa, querida? — ela perguntou com simpatia, sua pulseira de couro agarrada a seu pulso grosso. Eu tentei sorrir. — Não, obrigada. Eu estou bem — eu menti. Assim que ela se foi, eu afundei na calçada, sentando com as costas contra a parede do edifício enquanto os corvos crocitavam e gritavam. Meu interior estava oco, entorpecido. Aaron iria embora. Antes que eu percebesse, ele estaria fora da minha vida para sempre. E eu seria a única a fazê-lo ir.


21 CONFISSÃO Traduzido por Matheus Martins

—V

ocê acha que Darcy vai sair e se juntar a nós? — Aaron perguntou-me naquela noite, cruzando os braços atrás da cabeça. Nós dois estávamos em espreguiçadeiras no terraço de trás, olhando para as estrelas. Meu pulso acelerou nervosamente. No bolso da minha calça jeans, a moeda de Aaron pressionava fortemente contra a minha coxa. Havíamos passado o dia todo juntos, e tanto quanto eu queria me concentrar em aproveitar o tempo restante que eu tinha com ele, os mesmos pensamentos se mantiveram pairando no fundo da minha mente: Quando? Quando isso iria acontecer? Como eu poderia saber que era a hora? Senti-me constantemente no limite, como se a qualquer momento uma bomba estivesse prestes a explodir. — Provavelmente não. Ela tem um encontro com Fisher — eu disse. Aaron levantou a cabeça, intrigado. — Sério? Eu suspirei. — O segundo em dois dias. — Você não aprova? — Aaron brincou, estreitando os olhos. — Não é isso — eu disse, apenas meio-mentindo, roendo as minhas unhas. Lá em cima, uma nuvem de mosquitos pairava em torno da luz ao ar livre. — É só que... eu sinto falta dela, eu acho. Eu prefiro que ela passe um tempo comigo. — Ah! Isso é tão doce! — disse Aaron, me cutucando com uma mão. — Então diga a ela! Eu zombei. — Sim, claro. Aaron se levantou em um braço e rolou para me encarar. — Não. Estou falando sério. Você devia dizer. Basta ser honesta sobre como você se sente. Isso é o que eu faria se eu pudesse falar com o meu pai. Suas pálpebras se abaixaram por um segundo, e eu pude sentir seu corpo inteiro enrijecendo diante do pensamento em seu pai.


— O que aconteceu com vocês dois? — eu perguntei suavemente, de alguma forma falando com o nó na minha garganta. — Você nunca contou. — Eu sei — respondeu Aaron. Quando ele abriu os olhos novamente, eles estavam cheios de lágrimas. — É porque eu tenho vergonha. Ele só estava tentando cuidar de mim, e eu... Do nada, Aaron começou a soluçar, um soluço silencioso e meio torturante. Ele rolou de costas novamente e colocou a mão sobre os olhos. Sentei-me e coloquei meus pés no chão, torcendo minha pulseira de couro em volta do meu pulso. — Ah... Deus. Sinto muito, Aaron. Eu não queria incomodá-lo. — De repente, eu me senti quente por toda parte, e eu estava grata pela brisa fresca do oceano nas minhas costas. — Você não tem que falar sobre isso, se você não quiser. — Não, eu vou falar. — Ele respirou fundo pelo nariz e sentou-se, puxando os joelhos até o peito. — Eu vou falar — ele repetiu numa voz mais calma. — Eu estava saindo com um cara — ele disse com uma fungada. — Charles. Meu pai nunca o aprovou. Disse que ele era desrespeitoso e imaturo. Eu pensei apenas que ele não me queria com nenhum cara, então eu o ignorei. Eu gostava de Charlie porque ele parecia perigoso. Eu achava que era excitante que ele dirigisse uma moto e vivesse numa minúscula cabana perto da água. Eu achava que era legal. — Ele disse a última palavra com veneno nela. Eu avancei para frente em meu assento, inclinando-me em direção a ele e colocando minha mão em suas costas. No segundo em que eu o fiz, toda a sua angústia, toda a sua tristeza, insegurança e raiva correu através de mim tão rápido que a dor era quase demais para suportar. E assim do nada, eu soube. Era a hora. Aaron estava pronto para seguir em frente, e era assim que eu deveria ajudá-lo. Eu deveria ouvir, estar aqui por ele, para deixá-lo confessar tudo. — Então, o que aconteceu? — eu perguntei em voz baixa. — Uma noite, minha família saiu para jantar, e voltamos para casa mais cedo, porque minha irmã tinha adoecido. Encontramos a porta de casa aberta — disse ele, dando-me um olhar compreensivo, como se ele esperasse que eu visse no que isso ia dar. — Meu pai disse a todos para esperarem do lado de fora, e ele entrou por conta própria. Dois segundos depois, ouvimos gritos e, de repente, Charlie veio correndo para fora da casa e arrancou pela rua. Ouvimos a moto fugindo antes de meu pai conseguir voltar a descer as escadas. Charlie sabia que íamos ficar fora toda a noite e tinha usado a oportunidade para tentar nos roubar.


Meu coração deu um baque horrível e fatigado. — Oh meu Deus. Aaron, isso é... — Horrível. Eu sei — disse Aaron. Ele balançou as pernas para o lado da cadeira e me encarou, o que me obrigou a puxar minha mão de volta. — Mas a pior parte é que eu o defendi. Com isso, Aaron escondeu o rosto entre as mãos e chorou. Cobri minha boca, sem saber o que dizer. Tudo que eu sabia era que eu não queria interrompê-lo. Ele precisava tirar isso do seu sistema, e eu ia deixá-lo. Depois de alguns minutos, ele limpou o nariz com as costas da mão e suspirou. — Sinto muito. — Não, está tudo bem — eu disse a ele. — Vá em frente. — Bem, eu disse a meu pai que ele merecia. Que ele era tão mente fechada e que não era de se admirar que Charlie sentisse a necessidade de puni-lo — disse Aaron. — Eu o acusei de empurrar a nossa riqueza na cara de Charlie o tempo todo, de praticamente tentá-lo a fazer aquilo. Então eu disse a ele que ia fugir com Charlie e não ia voltar mais. — Uau — eu respirei, olhando para o rosto manchado de Aaron. — O que aconteceu? Seus olhos adquiriram um vazio distante, como se ele quisesse guardar para si mesmo tudo o que ele ia dizer em seguida. Estendi a mão e peguei a dele, entrelaçando meus dedos com os dele. Meus dedos imediatamente começaram a latejar com a força de seu arrependimento. — Quando cheguei à casa de Charlie, ele tinha ido embora. O local foi dizimado — disse Aaron, olhando para nossas mãos. — Ele simplesmente fugiu. E quando eu tentei ligar para ele, seu número havia sido alterado. Sem nenhuma explicação, nenhum pedido de desculpas, nem mesmo um rompimento por e-mail. Ele apenas partiu. — Ele respirou trêmulo e contou todo o resto. — Então, eu vim para a América para ficar com meu tio e ficar longe por um tempo. Foi uma conversa com ele que me fez perceber como eu estava errado, na verdade. Mas, então, o incêndio aconteceu, e eu não tive a chance de ligar para o meu pai desde então. O incêndio. O incêndio que tirou a vida de Aaron. E por causa disso, ele nunca teria uma chance de ligar para o pai. — Eu só estou tão arrependido, sabe? — disse Aaron, seu lábio inferior tremendo quando ele me olhou nos olhos, apertando a minha mão com tanta força que doía. — Eu só queria que ele me perdoasse. Eu só queria que ele me perdoasse por ser tão idiota.


Eu soltei sua mão, sentei-me ao lado dele, e passei meus braços em torno dele. Aaron enterrou seu rosto contra o meu ombro, segurando uma das mãos sobre os olhos enquanto ele chorava. Senti toda a sua tristeza e arrependimento através de mim de novo, e desta vez foi tão avassaladora que as lágrimas brotaram por trás dos meus próprios olhos. Pisquei-as de volta, mas foi inútil. Em pouco tempo, sua camisa listrada estava pontilhada com lágrimas. — Está tudo bem — eu disse a ele, com minha voz embargada. — Ele te perdoa. Eu sei que ele te perdoa. Ele ama você. Ele sabe que todo mundo comete erros, e ele te perdoa. — Você acha? — perguntou ele, cansado. — Eu sei que ele te perdoa — eu respondi. Aos poucos, a tristeza de Aaron começou a diminuir. A dor em meu coração esvaziou, substituída por um calor distinto e reconfortante. Aaron se afastou e me olhou nos olhos. Ele parecia uma pessoa diferente de repente. Como se ele estivesse mais calmo, satisfeito, talvez até mesmo feliz. E eu o tinha feito se sentir assim. Confessar para mim, me ouvir dizer que seu pai o perdoou, lhe dera paz. Deixei escapar um suspiro e sorri. Mas não até Aaron sorrir de volta em uma espécie de alívio que eu percebi, de repente, quão ingênua que eu tinha sido. Percebi que a vida não era sobre Tristan. Isto não era nem sobre mim. Isso era sobre Aaron. Tratava-se de ajudá-lo a abrir mão de todo o horror e seguir em frente. Tratava-se de conduzi-lo através da maior transição que ele já fez. Este era um verdadeiro propósito. Algo puxou suavemente o meu cabelo, e quando eu olhei para baixo, o nevoeiro já havia engolido os pés de Aaron. Ele rolou em todo o assoalho do terraço, colidindo com a porta de vidro e em torno dos plantadores. Mas desta vez, algo estava diferente. Eu podia ver um caminho claro através da névoa, levando para longe das cadeiras e em direção à praia. Houve um rangido nas escadas, e eu me virei. Tristan subiu ao nosso encontro. — Ei, cara — disse ele. — Ei — Aaron respondeu. Tristan deu um passo em minha direção. Olhei para o Tevas em seus pés. — Você está pronta? — Sim — eu disse calmamente. — Eu acho que nós estamos.


A expressão de Aaron estava confusa, mas não assustada. Eu, no entanto, estava apavorada. Eu estava prestes a dizer adeus a ele, para sempre. Eu estava prestes a mandá-lo para o além. Tristan estendeu a mão para mim, em seguida rapidamente mudou de ideia e colocou-a no bolso traseiro. — Está na hora.


22 SURPRESAS Traduzido por Matheus Martins

E

nquanto estávamos no final da ponte com o turbilhão de nevoeiro em torno de nossos tornozelos, Aaron olhou de mim para Tristan com uma expressão inocente, como um garoto do lado de fora do pátio de recreio em seu primeiro dia de escola, imaginando se seus pais realmente iam deixá-lo lá sozinho. — O que estamos fazendo aqui? — ele questionou. Tristan olhou para minha mão. Senti o peso frio da moeda na palma da minha mão. Limpei a garganta, e meus olhos se encheram de lágrimas. — Estamos aqui para dizer adeus — eu disse. Tristan baixou a cabeça e deu um passo para trás na estrada rochosa e de areia, dando-nos espaço. Aaron olhou para mim interrogativamente. — Você vai a algum lugar? — Não — eu disse com tristeza. — Você vai. Entreguei-lhe a moeda, e ele segurou-a entre o polegar e o indicador, estudando-a. — Para onde eu vou? — Para algum lugar incrível — eu disse a ele, meu coração doendo como um louco. — Para algum lugar onde você vai ser feliz... e estar em paz. Era assim que eu imaginava que a Luz seria. Do jeito que eu esperava que fosse. Aaron sorriu. — Isso soa bastante incrível. Eu sorri, lutando para conter as lágrimas, e coloquei minha mão em suas costas, virando-o em direção à ponte. — Tudo o que você tem a fazer é se agarrar a isso e atravessar a ponte — eu disse a ele. — Você vai estar lá antes que possa notar. Aaron deu um passo, então olhou para mim. — Eu gostaria que você pudesse vir.


— Eu também. — Eu estendi a mão e abracei-o tão firmemente quanto pude, tentando solidificar a sensação dele, seu cheiro limpo, na minha memória. — Foi tão bom conhecer você — eu sussurrei. — Você também — ele me disse. — Obrigado por tudo. De verdade, Rory. Você tem sido uma boa amiga. Olhei para Tristan. Era quase como se Aaron soubesse para onde estava indo. Talvez uma pequena parte dele soubesse. — Adeus — disse Aaron para Tristan formalmente. Tristan ergueu a mão em um aceno, e Aaron entrou na névoa que cercava a ponte. No instante em que ele se foi, eu deixei cair meu rosto em minhas mãos e chorei, sentindo-me culpada e egoísta por isso. Aaron ia ficar bem. Ele estava indo para a Luz. Era eu que estava chorando por nada. De repente, senti a mão quente de Tristan deslizar para cima das minhas costas e apertar meu ombro. — Rory — disse ele, sua voz cheia de angústia, de dor, conforto e esperança. Eu me virei para ele, sabendo que meu rosto estava coberto de lágrimas, sabendo que meu nariz estava inchado, que meus olhos estavam vermelhos e os lábios estavam secos e inchados. Sabendo e não se importando. Tristan estendeu a mão e passou o polegar sobre meu rosto, inclinando meu rosto para que eu tivesse que olhar nos olhos dele. — Rory — disse ele de novo. — Sinto muito — eu solucei. — Eu só... eu não quero... eu não quero que ele vá. — Eu sei — disse ele, enxugando uma bochecha com a ponta do polegar. — Eu sei. Ele tomou uma respiração afiada, e, em seguida, antes que eu pudesse perceber o que estava acontecendo, ele me beijou. Ele me beijou tão forte que eu cambaleei para trás até que ele aprofundou seu aperto em mim para me segurar. Eu deslizei minhas mãos até suas costas largas e emaranhei meus dedos no seu cabelo macio e espesso na nuca de seu pescoço. Tristan me beijou como um cara que nunca tinha beijado ninguém antes. Como uma pessoa que estava tão faminta para ser beijada que nunca mais poderia parar. Não que eu quisesse que ele parasse. Nem sequer importava que a minha pele estivesse manchada de lágrimas. Eu nunca tinha experimentado um beijo tão perfeito. Eu nunca tinha experimentado nada tão perfeito. Quando ele finalmente se afastou, suas mãos seguraram a parte de trás da minha camiseta e estávamos tão perto que eu não poderia dizer quais


pernas eram de quem. Nós dois respirávamos ofegantes, nossas exalações misturando-se entre nós. — Eu pensei que você tinha dito... — Esqueça o que eu disse — ele interrompeu. — Estou cansado disso. — Cansado de quê? — eu perguntei, minha testa vincando. — Cansado de tentar me manter longe de você — disse Tristan com um suspiro. Ele segurou a minha nuca com uma mão. — Eu só tenho feito isso por dez dias, e parece uma eternidade. Ele me beijou de novo, e eu sorri sob seus lábios. Ele estava contando os dias, lutando o tempo todo para não me querer, e agora ele estava quebrando as regras por mim — quebrando suas próprias regras. Tudo parecia mais leve de repente. Era como se um estrangulamento no meu coração tivesse afrouxado e agora ele realmente pudesse respirar. Tristan interrompeu o beijo e passou os braços em volta de mim. Por um longo tempo, nós só ficamos lá, envolvidos um contra o outro. Meus cílios ainda estavam molhados, e o meu coração transbordando. Eu me inclinei para trás para olhar nos olhos dele novamente, mas, em seguida, a expressão de Tristan de repente escureceu. Olhei por cima do ombro para ver o que tinha chamado sua atenção. Ao longo do lado da estrada, uma faixa de juncos verdes estava seca e ficando marrom, pendendo em direção à estrada. Alguns deles estavam quebrados, projetando-se em ângulos violentos, como dedos ossudos estendendo-se de uma sepultura. — O que é isso? — eu perguntei. — Nada — disse ele, forçando um sorriso. — Não é nada. — Ele entrelaçou os dedos com os meus. — Vamos voltar. — E o seu carro? — eu perguntei, olhando para o seu Range Rover, estacionado perto do pé da ponte. — Eu venho buscá-lo mais tarde — ele me disse. — Neste momento, eu estou no clima para um bom e longo passeio. Com você. Eu sorri. — Eu gosto desse plano. Com nossas mãos balançando entre nós, descemos a colina em direção à cidade. Tristan apontou vários pontos de referência para mim — uma árvore que ele usou para subir quando ele chegou pela primeira vez na ilha, tentando ver o outro lado do oceano; uma colina íngreme que ele e Joaquin uma vez correram em motos antes de colidir um com o outro na parte inferior; o local no parque onde ele e Krista tiveram um piquenique quando ela aprendeu a verdade sobre Juniper Landing e seu papel aqui. Senti o quanto Tristan adorava este lugar — e não apenas a sua missão, mas esta ilha.


O centro da cidade de Juniper Landing estava movimentado, cheio de pessoas que indo para as docas para jantar ou passeando pelo parque com cones de sorvete. A música vibrante de uma flauta flutuava para fora através de uma janela aberta enquanto em algum lugar portas de tela rangeram e pessoas riam. Tudo parecia tão calmo, e a grama sob os nossos pés brilhava da umidade deixada pela neblina. — E este é o lugar onde eu estava de pé à primeira vez que a vi — disse Tristan, parando em frente à loja de departamentos. — Você se lembra disso? — eu perguntei corando. — Eu nunca esqueci disso — disse ele, parecendo nostálgico. Eu ri de repente. — O que foi? — perguntou ele, apertando a minha mão. — Eu ainda não posso acreditar que você me beijou — eu disse. Ele respirou fundo e corou. — Eu só finalmente decidi... — O quê? — eu perguntei, mordendo meu lábio inferior. — Você decidiu o quê? Ele ergueu um ombro e me olhou nos olhos. — Eu decidi que você é mais importante. Por um segundo eu não conseguia respirar, mas em um bom sentido. Havia tanto significado nessa frase, tanta rendição e confiança, que realmente me tirou o fôlego. Eu estava ficando na ponta dos pés para beijá-lo quando seus olhos desviaram além de mim e ele ficou tenso. Virei-me para ver que Nadia tinha acabado de sair da loja e agora estava na calçada, com uma expressão atordoada no rosto. Minha boca ficou seca quando seus olhos lentamente se arrastaram até nossas mãos, ainda entrelaçadas. — Nadia — disse Tristan. Seus olhos escuros eram como punhais. — Inacreditável — disse ela, dando um passo para fora da calçada. — Tanto pelas regras, hein, Tristan? — ela gritou, jogando as mãos ao alto enquanto andava para o outro lado da rua. Ela pegou uma bicicleta suja que havia sido jogada na grama do parque e rapidamente pedalou para longe, descendo em direção à praia. Tristan suspirou. — Eu estou supondo que isso não seja bom — eu disse calmamente. — Não, provavelmente não — ele respondeu. Eu estava prestes a perguntar-lhe sobre Nadia, sobre o que exatamente tinha acontecido entre eles e o que ela quis dizer a outra noite quando ela confrontou-me quando vislumbrei o cata-vento pelo canto do meu olho.


Instantaneamente, toda a atividade em torno de mim escureceu. Tudo o que eu podia ver era o cisne dourado, pousado lá em cima gordo e orgulhoso no topo de sua seta. A seta que apontava para o sul. Minha visão acinzentou. Agarrei seu braço, uma tontura me atingindo tão forte que eu pensei que eu poderia desmaiar. — Tristan — eu engasguei. Ele se virou para olhar, e sua mandíbula se afrouxou. — Isso... isso não... — eu gaguejei. — Não pode ser. Isso não significa que... Aaron não foi para a Terra das Sombras. Uma linha de preocupação formou-se entre os olhos de Tristan. Ele parecia estar pesando sua resposta. Pesando-a por muito tempo. — Tristan — eu gritei. Um casal que estava sentado em uma mesa próxima virou-se boquiaberto. — Venha aqui. — Tristan me puxou delicadamente, mas com firmeza em torno da esquina no final do bloco, longe dos olhos curiosos dos visitantes. Eu pressionei as costas contra a parede exterior da loja de departamentos, meu coração batendo desesperadamente dentro do meu peito. — Isso não está acontecendo. Isso não pode estar acontecendo — eu disse a ele. — Sinto muito — disse ele com firmeza. — Mas está. — Não! — eu lamentei. — Ele era uma boa pessoa. Você devia ter sentido o pesar e a tristeza vindo dele hoje à noite, quando ele falou sobre o seu pai. De jeito nenhum ele fez algo terrível o suficiente na vida para garantir que ele seja enviado para a Terra das Sombras. — Eu sinto muito, Rory, mas isso acontece às vezes — disse Tristan com calma, suavemente. Ele passou a mão no meu cabelo, então descansou confortavelmente no meu ombro. — Nós pensamos que conhecemos as pessoas, mas... — Mas nada! — eu gritei, tirando suas mãos de cima de mim e me empurrando para longe da parede. — Nós temos que ajudá-lo. Temos que tirá-lo de lá. Temos que... — Não! — ele gritou. Parei, surpresa por ele ter gritado. Tristan olhou para o lado, mas eu não tinha certeza se ele estava envergonhado por ter gritado na minha cara ou tomando um fôlego, porque ele estava muito irritado. — Nós não podemos — disse ele com mais calma. — O que você quer dizer com nós não podemos? Houve um erro. Deve haver algo que possamos...


— Ninguém nunca volta da Terra das Sombras — disse Tristan ameaçadoramente. — Ou da Luz. Uma vez que é feito, está feito. Meus olhos se encheram. — Mas Aaron... — Mesmo se pudéssemos tirá-lo de lá, nós não iríamos — Tristan interrompeu, com sua mandíbula apertada. — As moedas nunca estão erradas. Eu pressionei minhas mãos em minha testa, incapaz de compreender, incapaz de aceitar o que ele estava dizendo. Eu tinha levado Aaron até lá em cima e lhe disse que ele estava indo para algum lugar para ser feliz e para estar em paz. Eu o havia enviado em seu caminho com aquele sorriso confiante no seu rosto. Ele me disse que eu era uma boa amiga. Ele me agradeceu por tudo o que eu tinha feito. E eu o mandei direto para o inferno. — Não, Tristan. Não! — eu chorei, afastando-me dele. — Isso não pode estar certo. Nós temos que fazer alguma coisa. Temos que fazer! — Não há nada que possamos fazer, Rory — disse Tristan severamente, olhando por mim para o cata-vento. — Se Aaron foi para a Terra das Sombras, é para onde ele deveria ter ido.


23 IMAGINAÇÕES Traduzido por Matheus Martins

E

stá acontecendo. Está finalmente, finalmente acontecendo. Tinha que ser desse jeito, é claro. Ele teve que ir. Uma pessoa na minha posição precisa de alguns bodes expiatórios. E não é sempre mais poderoso quando o cordeiro é especial? Quando é querido? Quando vai fazer falta? Rory pensou que ele estava indo para a Luz, o que quer que isso seja. Imagino que é diferente para todos, seja qual for a versão de uma pessoa do que o céu seja. Se o que você amou na vida mais do que qualquer coisa era a sua família, você passaria para sempre em algum resort grande e legal, cercado por eles, com grandes jantares todas as noites, cheio de conversa e risos. Se tudo o que importava para você eram os esportes, você iria passar a eternidade assistindo jogos do Torneio de Futebol Americano, as finais da Série Mundial de beisebol e os eventos Olímpicos, e para quem quer que você estivesse torcendo sempre ganharia. Quando eu imagino a Terra das Sombras, no entanto, não há nada. Nada além de escuridão. Você se sentiria sozinho, assustado, triste e perdido para sempre, sempre se perguntando por que você foi abandonado, sempre em busca de alguma partícula de luz que você nunca vai encontrar. Na Terra das Sombras, você seria frio. Não apenas um frio que-necessita-de-umcobertor, mas um frio verdadeiramente e totalmente doloroso-até-os-ossos. O tipo de frio que ninguém na terra jamais sentiu. O tipo de frio que gera aflição e desespero. Não que eu vá saber com certeza. Porque eu encontrei um caminho para sair de Juniper Landing, para sair do meu próprio inferno pessoal. E agora que começou, é apenas uma questão de tempo até que eu esteja livre.


24 O EQUILÍBRIO Traduzido por Matheus Martins

E

rrado. Tudo estava errado. Eu tinha acabado de começar a acreditar neste lugar, começado a acreditar no que Tristan tinha dito sobre nós desempenhando um papel importante, de alguma forma ajudando a manter o equilíbrio. Eu tinha começado a acreditar em nosso propósito. Mas se Aaron poderia ser relegado para a Terra das Sombras, então o equilíbrio estava seriamente errado. Eu me arrastei em torno da esquina para a Magnolia Lane, em seguida, me escondi nas sombras de uma árvore de pêssego enorme, esperando para garantir que a casa estava silenciosa. Eu não queria falar com ninguém, com medo de que eu pudesse não aguentar e dizer coisas que não deveria, ou começar a chorar sem uma boa explicação e nunca parar. Quando finalmente entrei na casa, abri a porta lentamente, para não deixá-la ranger, em seguida, segurei a maçaneta para que o trinco não clicasse. Quando eu o soltei cuidadosamente, a tranca silenciosamente deslizou no lugar. Eu tinha certeza de que eu estava com a casa só para mim. Até eu me virar e encontrar Darcy parada no fundo das escadas com Fisher. — Se escondendo? — ela brincou. — Deus! Você me assustou — eu disse, meus olhos correndo entre os dois. O cabelo dela estava desgrenhado, e a camiseta dele estava meio para fora da calça. — Desculpe — disse ela. Eu comecei a passar por eles para subir as escadas, o que obrigou Fisher a descer dos dois últimos degraus para o chão. — Rory, espera — disse Darcy. — Você está bem? Fiz uma pausa, desejando que eu pudesse dizer tudo a ela — que eu pudesse contar qualquer coisa — mas eu não podia. Eu não conseguiria nem editar e dizer a ela que eu estava triste porque Aaron tinha deixado à ilha, porque ela não se lembraria de que Aaron sequer tinha existido. Era assim


que a nossa relação seria a partir de agora. Eu mantendo segredos e tentando acompanhar o que ela podia e não podia se lembrar. A não ser que ela se tornasse uma Lifer. Por favor, deixe-a fazer algo altruísta e ganhar a maldita pulseira que ela tanto quer para que eu não tenha que lidar com tudo isso sozinha. Eu olhei nos olhos de Fisher, e ele disparou de volta um olhar interrogativo de preocupação. Eu vi sua mão se mover ao seu bracelete, e ele o girou e o girou. Ele sabia que alguma coisa tinha me assustado, e ele estava preocupado comigo. Eu teria gostado de falar com ele agora — de falar com qualquer outro Lifer e descobrir o que eles pensavam. Mas eu não podia exatamente pedir a Fisher para ir ao meu quarto com Darcy bem ali. — Eu só estou com uma dor de cabeça — eu disse a ela, olhando para o chão. — Vou me deitar. Ela começou a dizer outra coisa, mas suas palavras foram abafadas pelos meus passos pesados enquanto eu corria pelas escadas. No momento em que cheguei ao terceiro andar, as lágrimas começaram a cair. Eu me joguei na minha cama, apertei os punhos nas minhas têmporas, e tentei respirar. — Está tudo bem — eu disse a mim mesma em voz alta. — Está tudo bem. Tudo vai ficar bem. Mas eu estava mentindo para mim mesma, o que só fez a frustração queimar mais quente debaixo da minha pele. Aaron estava sofrendo. Agora, neste exato momento, ele estava sofrendo na Terra das Sombras. E se as almas fossem torturadas lá? Ou se fosse apenas um grande e escancarado nada — um vasto plano vazio de solidão? Ele estaria com dor? Ele estaria com medo? Será que ele estaria se perguntando por que eu fiz isso com ele? Claro que ele estaria. Ele tinha que me culpar, porque eu era a última pessoa que ele tinha falado, a última pessoa que ele havia tocado, aquela que o tinha enviado para a condenação eterna, com um sorriso choroso e um aceno. Rolei para o meu lado, agarrei meu travesseiro, e chorei. Minha imaginação estúpida foi à loucura, evocando imagens de fogo e demônios, ceifadores sinistros e sepulturas frias, vozes insultantes e sussurrantes, órbitas vazias e bocas mortas escancaradas — lama, sujeira e lágrimas. Apertei os olhos fechados e tentei não ver isso, mas eu não conseguia. Tão ruim quanto as minhas teorias eram, eu nunca saberia exatamente o que estava acontecendo com Aaron, e essa era a pior parte de tudo. O não saber. — Não.


Sentei-me na cama, puxando o travesseiro no meu colo, e cerrei os dentes juntos. Tinha que haver uma maneira de reverter isso. Era um erro, que precisava ser corrigido. Eu nĂŁo ia deixar Aaron sofrer para sempre, pensando que eu o havia condenado a um destino pior que a morte. Eu ia consertar as coisas.


25 CULPA Traduzido por Matheus Martins

E

u acordei na manhã seguinte com lágrimas escorrendo pelo meu rosto, meu nariz entupido, ao som dos gritos de Aaron — que havia atormentado meus sonhos a noite toda — ecoando nos meus ouvidos. Ofegante, eu pressionei a minha mão na minha testa. Meu coração pulou uma batida, e eu virei para olhar para o meu criado-mudo. Nenhuma moeda. Graças a Deus. Eu não poderia lidar com conduzir qualquer outra pessoa hoje. Um olhar para o relógio me disse que já passava das dez. Levei alguns minutos para lembrar que era quarta-feira; eu deveria estar na casa de Krista agora. Eu joguei os lençóis de lado, troquei rapidamente para uma camiseta e calça de moletom, e fiz uma nova trança no meu cabelo. Então eu atolei meu boné de beisebol desgastado de Princeton sobre o meu cabelo sujo, e saí. Arrastei-me para o andar de baixo o mais silenciosamente possível. Atrás de sua porta fechada, meu pai teclava distante em seu teclado. Eu fui na ponta dos pés até a porta aberta do quarto da minha irmã. Ela estava deitada de costas na cama, lendo uma revista. Eu passei por ela o mais silenciosamente possível. Eu não podia lidar com ela questionando onde eu estava indo de novo; eu não tinha ideia de que tipo de desculpa que eu poderia dar neste momento. Lá fora, o sol aquecia os meus ombros enquanto eu acelerava, caminhando pela cidade, meus olhos grudados no chão. Se Nadia, Dorn ou Pete estavam se escondendo, me vigiando, eu não queria saber. Eu só queria chegar até Krista o mais rápido possível e descobrir se alguém tinha a menor ideia sobre o que tinha acontecido na noite passada. Enquanto eu subia o caminho para a costa íngreme, a grande mansão azul parecia pairar ameaçadoramente acima, e lá estava o cata-vento, ainda apontando teimosamente e dolorosamente ao sul.


De alguma forma, bater na porta pareceu inútil. Segurei a maçaneta de ouro frio com a mão trêmula e abri a porta. A primeira coisa que ouvi foram vozes furiosas gritando atrás da porta fechada do gabinete da prefeita. Eu congelei no meu caminho. — Eu estou dizendo a você, todos eles estão limpos! — a prefeita retrucou, soando frustrada. — Mas isso não é possível — uma voz masculina respondeu. — Você verificou o... — Sim! Claro que eu verifiquei! Você está achando que eu sou algum tipo de imbecil? — Oi, Rory! — disse Krista alto. Eu pulei. Krista estava no topo das escadas em um vestido listrado azul e branco, seu cabelo loiro caído ao redor de seus ombros. No momento em que ela falou, os gritos pararam. Olhei para a porta do escritório, esperando a prefeita sair, mas não aconteceu nada. Eu me perguntei o que ela faria se eu simplesmente batesse na porta e dissesse o que tinha acontecido com Aaron. Ela não gostaria de saber se alguém tivesse sido levado para o lugar errado? Não era esse tipo de coisa que deveria ser chamado a atenção dos responsáveis? — Vamos para cima! — disse Krista. — Estamos apenas trabalhando em algumas guirlandas e outras coisas. Eu hesitei, olhando para a porta da prefeita. — Rory? — disse Krista. — Estou indo! — eu respondi relutantemente, seguindo-a até as escadas rangentes. O quarto de Krista era enorme e rosa, com detalhes em madeira escura e uma lareira de pedra em uma parede. Havia tapetes florais em toda parte, e Lauren estava sentada na beirada do maior deles, amarrando cordões de fio branco e espesso. Krista se sentou em frente a ela e cuidadosamente empurrou uma agulha e linha na parte de trás de uma pequena flor de pano. Bea estava estirada em cima da cama de dossel queensize, folheando revistas. Espalhado por todo o piso de madeira havia centenas de flores, caixinhas de contas de vidro coloridas do tamanho de bolas de pingue-pongue, e sacos cheios de grandes penas brancas e cor de rosa. — Você pode ajudar Lauren com as guirlandas — Krista sugeriu enquanto eu pairava na porta. — Guirlandas. Claro.


— O padrão é rosa-rosa-amarelo-rosa-rosa-branco — Lauren me instruiu, apontando para uma das caixas de contas quando me sentei ao lado dela. — Porque nós temos mais rosa do que qualquer outra cor. Olhei para Bea, que riu. — Ela é obsessiva por detalhes — explicou ela. — Tudo bem, então — eu disse. Eu puxei a caixa de contas em minha direção, peguei um carretel de cordão pesado, e comecei a trabalhar, me perguntando se eu poderia abordar o assunto da condução de Aaron. — De onde veio tudo isso? — perguntou Joaquim, de repente aparecendo na porta. — Dá para acreditar que estava tudo na sala de relíquias? — perguntou Krista. Havia uma leveza sobre ela esta manhã. O tecido fino e luminoso de seu vestido fazia sua pele brilhar, e ela não tinha parado de sorrir desde que cheguei. De repente, ela sacudiu a cabeça como se algo engraçado ou agradável acabara de acontecer com ela, mas ela não compartilhara. Eu desejei que eu estivesse em seu estado de espírito, de onde quer que ele tenha vindo. — O que é a sala de relíquias? — eu perguntei. — É uma grande sala do andar de baixo que Tristan converteu em um armário de armazenamento — disse Bea, de braços cruzados virando uma página. — É onde colocamos todas as coisas dos visitantes, uma vez que eles seguem adiante. — E nós meio que vamos às compras lá sempre que precisamos de alguma coisa — acrescentou Lauren. Engoli em seco, sentindo-me subitamente quente ao redor da gola da minha camiseta. Eu sabia sobre a sala que eles estavam falando. Eu tropecei lá acidentalmente na semana anterior e vi a correia da guitarra que pertenceu ao músico do parque, pendurada em uma prateleira. Eu gostaria de saber se todas as coisas de Olive e Aaron estavam lá embaixo agora — sua guitarra e seu equipamento do surf de vela, seus suéteres folgados e seus jeans de mauricinho — à espera de serem escolhidos e reivindicados. — Você está brincando — disse Joaquin. — Quando teremos o circo da Barbie passando por aqui? Bea bufou. Joaquin olhou para o meu rosto em branco. — Pelo menos alguém aqui acha que eu sou engraçado. — Rosa-rosa-branco-rosa-rosa-amarelo — Lauren murmurou baixinho enquanto amarrava cada conta. Joaquin pegou um saco de penas e o abriu. O saco explodiu por cima de tudo.


— Joaquin! Estou tentando me concentrar! — Lauren repreendeu, espanando uma pena rosa de sua perna. Uma branca caiu diretamente em cima da minha cabeça, o fim dela pendendo para tocar meu nariz. Eu funguei, irritada. Eu não podia acreditar que eu estava ali fazendo isso enquanto Aaron estava preso na Terra das Sombras. — Desculpe — Joaquin revidou. Ele olhou para cima e para baixo enquanto Krista empurrava a agulha e a linha através do centro de uma das flores. — O que você está fazendo? — Fazendo colares de flores! — respondeu ela alegremente. — E você? — ele perguntou a Bea. — Descansando meus braços depois de carregar toda essa porcaria até aqui — disse ela, sem levantar os olhos de sua revista. — E eu simplesmente aprendi a fazer o olho de gato perfeito com sombra cinza e delineador preto — ela acrescentou em um tom irônico. Eu duvidava que ela já tivesse usado maquiagem para os olhos em sua vida. — Então eu acho que eu deveria... — Vocês já enviaram uma alma sobre a ponte e, em seguida, descobriram que ela acabara no lugar errado? — eu soltei. Bea parou a página num movimento súbito. Lauren parou de resmungar. Joaquin me encarou. — Você está brincando? Nunca — disse Krista, seu joelho saltando quando ela amarrou a ponta do fio do colar que tinha acabado. Eu não tinha certeza se ela se sentia aliviada com a resposta ou mais confusa. Quando ninguém mais entrou na conversa, ela olhou em volta para o grupo. — Mas, no entanto, eu não estou aqui há muito tempo. Por quê? Todo mundo ainda estava olhando para mim, e eu comecei a me sentir exatamente como eu não queria me sentir — estúpida. A atenção de Joaquin era de alguma forma mais intensa do que a das outras, os olhos castanhos afiados, como se a minha pergunta não o tivesse interrompido, mas sim o assustado. — É, por quê? — perguntou Lauren. — Por nada — eu disse, levantando um ombro. Meus dedos tremiam quando estendi a mão para a próxima conta. — Só estou tentando aprender o ofício. — Isso acontece — disse Bea finalmente, sentando-se. — É chato, mas acontece. — Normalmente é alguém que você acha que supostamente deveria ir para a Luz, mas que acaba na Terra das Sombras — disse Lauren. A pequena


ponta rosa da sua língua se estendeu quando ela começou a se concentrar novamente. Meu estômago se apertou. — Sério? — eu disse. — Algumas pessoas são muito boas em esconder suas verdadeiras naturezas — confirmou Joaquin, recolhendo as penas caídas ao redor dele e empurrando-as de volta para o que restava do saco de plástico. Ele o fez com mais veemência do que o necessário, e seu punho de repente rasgou outro buraco na parte de trás do saco, tornando-o inútil. Ele jogou a coisa toda para o lado, fazendo uma confusão ainda maior. Lauren suspirou, mas Joaquin não pareceu notar. — Mas as que realmente são ruins são bastante óbvias. Eu não acho que eu já vi alguém que eu estava convencido de que era ruim acabar na Luz. Apenas o contrário. — Oh — eu disse. — Isso é... interessante. Então talvez Tristan estivesse certo. Talvez Aaron tivesse me enganado totalmente. Mas eu simplesmente não conseguia me convencer disso. De repente, a postura de Lauren desmoronou. — Rory! É rosa-rosaamarelo-rosa-rosa-branco! Não branco-branco-amarelo-rosa-rosa-branco! Olhei para minha guirlanda e vi que eu tinha, de fato, colocado as últimas contas incorretamente. — Tudo bem. Elas não têm que estar todas perfeitas — disse Krista, batendo no meu joelho. — Sim, elas têm! — Lauren protestou. — Não, elas não têm. Vai ser eclético! — Krista respondeu. — Eclético é para amadores — Lauren murmurou. Ela estendeu a mão para a guirlanda do meu colo e a puxou com força. — Eu vou começar de novo. Krista e eu trocamos um olhar, e eu quase ri. Quase. — Ceeer-to — disse Joaquin, de pé. — Essa coisa toda de comitê de decoração é um pouco intenso demais para mim, então eu vou... — Não! Você acabou de chegar — Krista gemeu, levantando-se. Mas Joaquin já estava a meio caminho da porta. No instante em que seu pé bateu no corredor, ele parou, sobressaltado. — Oh. Oi, cara. — Oi — disse Tristan. Tristan deu um passo ao virar a esquina, com as orelhas vermelhas. Com a visão dele, todos os sentimentos intensos que cercaram o nosso beijo voltaram correndo, picando minha pele, e fazendo-me corar, mas eles foram rapidamente cortados pela memória dele gritando comigo. Ele obviamente


estava parado do lado de fora da porta, e eu me perguntei se ele tinha ouvido a nossa conversa sobre a ponte. — Você vai ajudar? — Krista lhe perguntou, esperançosa. — Porque se você quiser, você e o Joaquin podem checar a tenda e certificar se todas as peças estão lá. Eu sei que aqui está um pouco menininha, então... — Na verdade, eu passei para te lembrar — disse Tristan, pressionando as palmas das mãos juntas, — que há um lugar que você deveria estar agora. Os olhos de Krista se arregalaram, e ela cobriu a boca com uma mão. — Merda! Eu tenho que fazer a limpeza das coisas de Aaron. Minha pele se arrepiou. Tristan olhou para mim se desculpando. Estava claro que ele não queria que isso fosse dito em voz alta. — Sinto muito. — Krista baixou seu colar sobre a pilha de versões acabadas ao lado de sua cama. — Eu vou agora. Acho que a festa acabou, pessoal. — Eba! — Bea aplaudiu baixinho, lançando a revista em direção a uma pilha de outras na cabeceira de Krista. Ela deslizou passando direto do topo e caiu no chão, onde aterrissou com um som de tap. Bea não fez nenhum movimento para pegá-la. Lauren, por sua vez, tinha colocado minhas contas de lado e começado a organizar a bagunça de penas de Joaquin. — Eu faço isso — eu disse. — O quê? — disse Tristan. — Sério? — perguntou Krista. — Sim, eu quero fazer. — Eu queria saber se havia alguma pista do por que Aaron tinha acabado onde estava. Na Terra das Sombras. Talvez se eu tivesse uma prova de que a moeda tinha tomado a decisão certa, eu poderia de alguma forma começar a me sentir melhor sobre tudo isso. — Eu deveria aprender a fazer essas coisas, não é? — Isso seria incrível, Rory — disse Krista, olhando para o seu projeto. — Eu tenho tanta coisa para fazer. Inclusive cupcakes. Na verdade, você pode vir ajudar com eles amanhã? Às duas da tarde — ela perguntou alegremente, olhando para mim com grandes olhos azuis. — Claro, sem problema — eu respondi, distraída ao pisar sobre a caixa de contas em que eu estava trabalhando e caminhando em torno das pilhas de sacos de flores e plumas. Quando eu estava a caminho da porta, Krista agarrou Bea. — Você pode tomar o lugar dela com as guirlandas — ela sugeriu alegremente. Bea gemeu.


— Você vai pagar por isso, Miller! — Desculpe! — eu falei por cima do meu ombro. — Eu vou com você — Tristan ofereceu. — Você não tem que ir — eu disse secamente. Seu rosto entristeceu. — Você ao menos sabe onde ele estava hospedado? Apertei os olhos, pensando. — Ele mencionou um quarto, mas... não. Ele sempre ia à minha casa. — Aquilo era algum tipo de pista? Será que ele tinha escondido alguma coisa de mim? — Eu posso levá-la — Joaquin ofereceu. Nós dois ficamos tensos. Por um segundo, eu tinha esquecido que ele estava ali. — Tudo bem. Eu cuido disso — disse Tristan, ficando ao meu lado, como se quisesse bloquear Joaquin. Descemos as escadas juntos, visivelmente não nos tocando. Perto dos últimos degraus, olhei para cima e flagrei Joaquin hesitante no topo, olhando para nós com uma expressão amuada. Tristan segurou a porta da frente aberta para mim, e quando passamos, vi que a porta do gabinete da prefeita estava entreaberta. Um segundo depois, ela se fechou. — Você viu isso? — eu sussurrei. — Vi o quê? — perguntou ele, fechando a porta atrás de nós. A minha resposta ficou presa na minha garganta. O nevoeiro estava rastejando lentamente por todos os lados, rolando sobre a grama e se aglomerando dos canteiros de flores ao pé da escada. Simples assim, a prefeita foi esquecida. — Alguém mais está sendo conduzido — eu disse, sem rodeios. — Parece que sim — disse Tristan. Mordi a língua para não dizer o que eu queria: Espero que a pessoa acabe no lugar certo.


26 PERSPECTIVA Traduzido por Matheus Martins

E

u estava na porta do quarto de Aaron, um quarto pequeno e quadrado em um motel chamado Bayside, em uma avenida bem morta. Tristan pairava a poucos metros atrás de mim, mantendo uma distância respeitosa enquanto o nevoeiro continuava a engrossar a nossa volta. Esperei por algum tipo de epifania me atingir — que um profundo pensamento me ocorresse e que colocasse tudo em perspectiva — mas tudo que eu conseguia pensar era nisso: Aaron era um minimalista. Não havia um pingo de roupa à vista. Não havia copos de refrigerante, pacotes de doces ou revistas. Não havia lâminas de barbear, migalhas de bolinhos ou tecidos amassados. O único item pessoal era a sua mochila de lona de praia, que estava jogada sobre as costas de uma cadeira, e uma cópia de capa dura de Contos da Cidade, que estava em sua mesa de cabeceira ao lado do velho telefone do motel, seu espiral perfeitamente alinhado com a borda da mesa. — Então... o que eu faço? — eu disse calmamente. — Encontre sua mala, coloque tudo dentro, e... — E então nós levamos de volta para a sala de relíquias — eu completei, virando-me para olhar por cima do meu ombro. Tristan pigarreou. — Sim. — Então todo mundo poderá dar uma olhada nessas coisas e pegar o que quiser — eu disse amargamente. — Não é bem assim — Tristan respondeu, enfiando as mãos nos bolsos. — As pessoas não invadem simplesmente o lugar de alguém toda vez que ele segue em frente. Nós apenas deixamos lá, e isso pode ou não ser usado eventualmente. Eu balancei a cabeça quando o nevoeiro assobiou girando em torno de nós. — Mesmo você dizendo isso, ainda não parece certo para mim.


Os olhos azuis de Tristan pareciam tristes. Ele olhou para baixo, arrastando a ponta do seu tênis através da tábua de madeira da passarela que se estendia pelo comprimento do edifício, que servia como uma espécie de varanda. — Rory, sobre ontem à noite... Meu coração acelerou. Eu não estava pronta para falar sobre isso com ele. Ainda não. — Eu deveria começar. Eu respirei fundo e passei por cima da soleira. O carpete cinza no interior do motel estava desgastado como um papel fino, assim como em um verdadeiro motel no mundo real. Eu me perguntava por que eles não poderiam arrumar o lugar um pouco, considerando que era a última parada antes da eternidade. Será que os visitantes realmente suspeitariam de algo se os quartos do motel passassem a ter novos carpetes? — Você quer que eu...? — Não — eu disse a Tristan. — Eu estou bem. Eu olhei no pequeno armário e encontrei uma mala de tweed bastante nova de Aaron, a qual eu coloquei na cama. A abertura do zíper soou como uma bomba explodindo no silêncio induzido pelo nevoeiro. Quando eu abri a gaveta de cima da cômoda, o arrepio que passou por mim foi tão feroz que eu tive que parar e me forçar a respirar. Havia uma camisa de rúgbi de Aaron, a que ele tinha usado no Thirsty Swan com Darcy e comigo apenas alguns dias atrás. Sua toalha de praia dobrada. Suas camisetas brancas simples. Levantei-os para fora e senti o cheiro da colônia de Aaron. O cheiro trouxe lágrimas aos meus olhos. De repente, tudo o que eu conseguia pensar era em acabar logo com isso. Coloquei suas coisas na mala e movi para a próxima gaveta, tentando ignorar a pontada no meu coração quando eu toquei a roupa de mergulho de nossas aulas de surf de vela na semana passada. Quando eu encontrei os tênis que ele tinha usado na praia na minha primeira noite na ilha — os que me fizeram sentir menos como uma perdedora por estar usando os meus — eu tive que engolir um soluço. Joguei-os na mala e a fechei. Não havia drogas, nem álcool, nem mesmo um maço de cigarros. Eu não encontrei nenhum diário cheio de desenhos maníacos e violentos iluminando os sentimentos internos de Aaron. Nenhuma revista estilo serial-killer com rostos riscados com um X vermelho. Não havia listas de nomes das pessoas que o tinham injustiçado e mereciam vingança. Nada de bonecas decapitadas, cachorros mortos ou sacos de cabelo. Eu encontrei, no entanto, uma foto dobrada de David Beckham em sua gaveta de roupas íntimas.


É. Esse cara era uma ameaça real para a sociedade. Eu esvaziei o banheiro de suas garrafas perfeitamente alinhadas de shampoo, condicionador, gel e sabonete líquido, examinei sob a cama de Aaron, em seguida, abri a gaveta de sua mesa de cabeceira. Algo deslizou para fora da parte de trás e bateu contra o batente da frente da gaveta. Meu coração ficou preso na minha garganta. Era o celular dele. Olhando por cima do meu ombro, eu não vi nada além da porta aberta; Tristan estava me dando o meu espaço. Trêmula, eu liguei o celular, e ele soltou um sonoro bing garboso ao voltar à vida. Não havia, é claro, nenhuma mensagem nova, mas quando eu rolei para as chamadas de saída de Aaron, uma lágrima escorreu pelo meu rosto. Havia vinte e três chamadas para o pai dele durante os últimos três dias e algumas para o seu irmão e sua irmã. Ao lado de cada uma delas havia uma mensagem terrível: CHAMADA PERDIDA. Sentei-me na cama, segurando o celular com as duas mãos, lágrimas silenciosas escorrendo pelo meu rosto. Aaron tinha sido um bom filho que queria fazer as pazes com seu pai. Eu sabia. Eu tinha sentido isso na noite passada quando o segurei. Ele estava arrependido do que tinha feito, e tudo o que ele queria no mundo era ter seu pedido de desculpas ouvido. Não havia um osso ruim no corpo de Aaron, e esse quarto provava isso. Ele era apenas uma pessoa, uma boa pessoa que tinha sido amigável com minha irmã e comigo, todo o tempo sofrendo com a sua culpa. A luz do quarto mudou, e eu olhei para a janela de quatro painéis. O nevoeiro estava começando a rolar para fora, revelando o estacionamento vazio, a cerca viva bem cuidada e um moinho de vento em forma de gaivota preso no centro do gramado da frente do outro lado da rua. Tristan entrou pela porta, sua expressão cheia de dor. — Você está bem? — Não — respondi sem rodeios. Virei a tela do celular para ele. — Olhe para isto. Basta olhar. Tudo o que ele tentou fazer o tempo todo foi ligar para o seu pai para que ele pudesse se desculpar. Isso era tudo o que importava para ele. Como ele merece estar na Terra das Sombras? Tristan soltou um suspiro. Ele sentou-se ao meu lado na cama, o colchão fraco curvando sob nosso peso. — Eu sinto muito, Rory — disse ele, colocando o braço em volta de mim. — Eu sinto muito que você tenha que passar por tudo isso. Uma raiva deslizou através de mim, tão quente e repentina que me fez saltar sobre os meus pés.


— Pare com isso! — eu exigi. — Apenas pare! Eu não quero que você me diga como você sente muito. Eu quero que você conserte isso! — Eu não posso — disse Tristan, balançando a cabeça. — Eu não posso consertar. — Você está me dizendo que você enviou todas aquelas pobres pessoas para a Terra das Sombras por mais de cem anos e vocês nem sequer tentou, em todo esse tempo, descobrir uma maneira de trazê-los de volta? — eu exigi. Um terrível choque de dor cruzou o rosto de Tristan. — Como você pode dizer isso para mim? — ele perguntou, levantando-se da cama. — Eu te disse o quão terrível tem sido para mim viver com isso. Você não acha que eu não os teria trazido de volta se eu pudesse? — Deve haver uma maneira, Tristan — eu disse. — Tem que haver. — Rory, olha, eu sei que você é uma solucionadora de problemas — disse ele, irritado. — Que você é uma questionadora e uma cientista, mas eu posso te dizer que este é um problema que você nunca vai encontrar uma resposta. — Eu não posso acreditar em você — eu disse, voltando-me para a porta. — É como se você não se importasse. Como se você quisesse que ele apodrecesse no inferno. Tristan ficou ali, encarando-me, sua mandíbula se movendo sob sua pele. — Como você pode ser tão complacente? — eu vociferei. — Quer saber, Rory? — Tristan disse, com os olhos em chamas. — Eu acho que nós dois precisamos nos esfriar um pouco. Eu vou dar o fora daqui. — Ele deslizou pela minha direita para passar pela porta e entrar na luz solar brilhante. — Mas e as coisas de Aaron? — eu gritei para ele de volta. — Deixe-as aí — ele gritou, sem olhar para mim. — Eu venho buscálas mais tarde. Ele chegou ao final da calçada, virou a esquina e desapareceu. Naquele momento, o celular tocou na mesa de cabeceira, o seu toque antigo badalando tão alto que eu pulei. Um momento depois, ele tocou de novo. Lentamente, fui até a mesa e peguei o celular, a minha mão tremendo quando eu o trouxe para o meu ouvido. — Alô? Fora da janela, quatro corvos pousaram em cima do muro do outro lado da rua, me olhando com seus olhos negros vidrados. Do outro lado da


linha, havia o som fraco de uma respiração lenta e rítmica. Meu coração batia forte contra a minha caixa torácica. — Alô? — eu disse de novo, segurando o celular. Risos ecoaram através da linha. Baixinhos no começo, mas ficando cada vez mais altos. Desliguei a chamada e saí correndo do quarto, deixando a porta aberta atrás de mim.


27 UM ALIADO Traduzido por L. G.

C

orri para casa o mais rápido que pude, meu sangue pulsando em meus olhos, ouvidos e nas pontas dos meus dedos. A brisa fria do oceano não fez nada para esfriar minha pele superaquecida. Aquela ligação tinha sido para mim? Tinha sido feita por alguém que sabia que Tristan e eu estávamos lá ou tinha sido somente uma coincidência? Um corvo grasnou em cima da minha cabeça enquanto eu corria pelo quarteirão, e eu tive uma sensação horrível no estômago. Uma sensação de que, em Juniper Landing, não haviam coincidências. Eu corri pelo parque, virei na esquina que dava para a Freesia, e me choquei com alguém. — Aonde você vai com tanta pressa? — perguntou o Oficial Dorn, me encarando abaixo de seu nariz com olhos cortantes. Eu dei um passo para trás, tremendo como uma folha. — Para lugar nenhum — eu disse automaticamente. Seus olhos se estreitaram. — Para casa. Ele se moveu infinitesimamente para fora do meu caminho e eu parti novamente colina abaixo. Quando eu cheguei ao fim, chequei por cima do meu ombro e meu coração martelou. Dorn não havia se movido, seu olhar suspeito ainda estava fixo em mim. Eu cerrei minha mandíbula e continuei andando. — Rory! Eu colidi tão forte com o ombro de Joaquin que ele teve que agarrar o tronco do pessegueiro mais perto para evitar cair. Um pássaro assustado voou para longe dos galhos, fazendo chover dúzias de folhas marrons e verdes enrugadas em nossos ombros. Elas mergulharam para o outro lado da rua desaparecendo atrás da cerca florida no lado oposto. Joaquin tentou alcançar minha mão, mas eu a puxei para longe. — Eu não quero falar com você agora, Joaquin — eu disse, passando por ele. — Eu só quero ficar...


— Pare! — ele gritou. — Eu preciso saber por que você estava perguntando sobre pessoas que estão sendo levadas para o lugar errado. Eu congelei no meu caminho. A brisa levantou o cabelo do meu ombro e mandou arrepios pelo meu braço. Devagar, eu me virei. Joaquin estava ofegante, como se ele tivesse acabado de correr. Suor pontilhava seu lábio superior e seu couro cabeludo. — Por quê? — Porque eu acabei de ingressar aquela garota, Jennifer? Aquela com o corte de fada? — ele falou — E ela foi para a Terra das Sombras. Eu pisquei. — Espere. Como isso é possível? — eu perguntei. — Você estava com a gente quando a névoa nos envolveu. — Eu... recebi o chamado dois segundos depois que você saiu, então eu fui até o quarto dela e a peguei — Joaquin exclamou. — Eu não estava tão surpreso, porque ela era muito simples. Não havia nenhum negócio inacabado ali, então não era como se ela precisasse da minha ajuda para seguir em frente. Eu só a busquei e a levei para a ponte. Mas depois, quando eu voltei para a cidade... — O cata-vento estava apontando para o sul — eu terminei sem rodeios. — É. — Joaquin inclinou seu rosto em direção ao chão por um segundo, com sua mão no quadril. Quando ele olhou para cima novamente, seu olhar normalmente convencido estava profundo, quase suplicante. — O que você disse antes na casa da Krista sobre alguém ir para o lugar errado.... Por que você nos perguntou isso? — Oh, isso era apenas... — Eu desviei o olhar. Minha reação instintiva era manter a paz, não causar nenhum alvoroço a mais do que eu já tinha causado. — Rory, não brinque comigo agora. Por favor — Joaquin falou em uma voz urgente que me cortou o coração. — Jennifer não... ela não merece o que está passando. Ele estava desesperado. Eu podia ver em seus olhos. — Aaron foi para a Terra das Sombras na noite passada — eu contei a ele. — E eu sei com toda certeza que ele não pertence àquele lugar. Joaquin soltou minha mão, seu olhar ficando insípido. — E me deixe adivinhar, Tristan te falou que é assim que as coisas são. Que você tinha que aceitar e seguir em frente. — Sim — eu disse. Joaquin girou e deu uns passos para trás. Seus dedos se curvaram em punhos, depois esticaram. Finalmente, ele inspirou e me encarou.


— Tem uma coisa que você deveria saber — ele respondeu. — Tudo isso? — Ele olhou para baixo para as folhas que cobriam a calçada. — Não devia estar acontecendo. Eu apertei os olhos, confusa. — O quê? Você quer dizer as folhas mudando? Eu sei que é cedo, mas... — Não! Você não entende. Essas coisas nunca acontecem — ele disse, andando pela larga calçada na minha frente, as folhas mortas e secas sendo esmagadas embaixo do seu pé. — Folhas não mudam, flores não morrem, pássaros não caem do céu, peixes não se empilham nas praias, e definitivamente, definitivamente não há vespas. Eu balancei minha cabeça. — Mas no outro dia você foi picado ali fora... — Eu sei, Rory. E em quase cem anos nessa ilha, essa foi a primeira vespa que eu vi — ele disse veementemente. — Nós temos abelhas porque temos flores, mas não vespas, nem marimbondos, nem outro inseto, nada disso. — Isso é loucura. É... Depois, bem devagar, uma compreensão começou a surgir. A reação estranha de Joaquin à picada da vespa. Os cravos esbranquiçados no vaso da varanda — vivos em um minuto, mortos no outro. Os juncos perto da ponte que fizeram Tristan empalidecer. — E essas coisas... quando elas começaram a acontecer? — eu perguntei, as acusações de Nadia ecoando na minha mente. — Foi quando eu cheguei aqui? — Eu não sei — Joaquin respondeu. — Ninguém sabe exatamente quando começou, mas definitivamente é recente. Eles pensam que pode ser porque o equilíbrio do bem e do mal por aqui tenha sido afetado de algum jeito. Que talvez um Lifer tenha... — Virado mal — eu arfei. Meu estômago retorceu quando eu lembrei de Jessica. — Joaquin, na outra noite Nadia me acusou de ser responsável por todas essas coisas estranhas que estão acontecendo por aqui. Isso significa que ela pensa eu sou a razão pela qual as coisas estão morrendo? — eu exigi. — Ela pensa que eu sou maldade pura ou coisa assim? Joaquin simplesmente me encarou. Eu senti como se eu fosse vomitar. E se Nadia levasse suas suspeitas para a prefeita? E se a prefeita acreditasse nela? — Ela vai me mandar para Oblivion — eu sussurrei, minha visão embaçando. — Não — Joaquin disse. — Rory, ela não vai. Ninguém acha que ela está certa sobre você.


— Dorn acha! — eu insisti. — E talvez Grantz, também. E se ela começar a convencer outras pessoas? E se ela convencer todo mundo? Joaquin alcançou o meu ombro e apertou forte. — Isso não vai acontecer — ele disse, olhando nos meus olhos. — Eu não vou deixar. Tristan não vai deixar. Nadia só está procurando agulha no palheiro. Agora, respire fundo. Eu inspirei e soprei devagar através dos meus lábios apertados. Eu me senti ligeiramente melhor. Mas apenas ligeiramente. — Tudo bem? — ele me perguntou Eu balancei a cabeça. — Tudo. — Ótimo. — Ele me soltou. — Olha, eu sei que você não é a causa de tudo isso, mas definitivamente alguma coisa está acontecendo. E agora, acima de tudo, pessoas boas estão indo para a Terra das Sombras. O que quer que isso seja, não é nada bom. Limpei a garganta. — Então o que faremos? — Há somente uma pessoa para conversar por aqui quando tem algo errado — Joaquin falou, indo em direção a cidade. — E seja lá o que o Santo Tristan pense, alguma coisa está claramente errada. — Nós vamos até a prefeita? — eu perguntei tremulamente. Joaquin confirmou com a cabeça, seus punhos agora fortemente cerrados. — Nós vamos até a prefeita.


28 PISCAR DE UM MOSQUITO Traduzido por Lua Moreira

J

oaquin caminhou até a casa de Tristan sem bater. Em algum lugar próximo ouvi vozes sussurrando urgentemente, mas ficaram em silêncio quando fechei a porta. Joaquin já estava caminhando em direção ao escritório da prefeita. — Apenas vá — eu ouvi a voz de Tristan sussurrar. Uma voz feminina respondeu. — Mas, Tristan, você tem que entender... — Eu não quero ouvir isso! Vá! Eu ainda estava tentando descobrir a quem a voz pertencia, quando Tristan e Krista apareceram perto do canto na sala de estar. — J. — disse Tristan, com os olhos ardendo. — Nós precisamos conversar. Hesitei no centro da porta de entrada. Krista mexia com sua pulseira. A porta na parte de trás da casa bateu se fechando. — Agora não, cara — Joaquin respondeu. Ele caminhou até o gabinete da prefeita e bateu com força na porta. — Que diabos você está fazendo? — Tristan perguntou, seguindo-o. — Reportando um problema à prefeita — Joaquin respondeu. Tristan ficou entre ele e a porta, empurrando-o para trás. — Você não pode simplesmente invadir aqui assim. — Fique longe de mim! — Joaquin gritou, girando seus braços para empurrar Tristan para longe. — Esta é a minha casa! — Tristan gritou. Joaquin riu de uma maneira sarcástica. — Nem comece com essa merda, Tristan. — Que merda? — Tristan respondeu, empurrando Joaquin no peito. — O que você quer dizer? — Você sabe o que eu quero dizer. — Joaquin empurrou de volta.


As narinas de Tristan queimaram. — Rory, faça alguma coisa — Krista suplicou, abraçando os braços contra o peito. — Gente! Para com isso! — eu gritei, tentando ficar entre eles. — Nós não viemos aqui para brigar. — Bem, então tire-o daqui — Tristan cuspiu. — A prefeita vai nos matar. Você sabe que ela odeia quando nós... A porta atrás dele de repente se abriu, e a prefeita saiu. Meu coração paralisou ao vê-la. Ela usava um terninho azul vivo, uma camisa rosa claro, e o sorriso de um político. Seu cabelo loiro estava preso com tanta força que fez sua pele parecer esticada. Ela parecia mais alta de alguma forma. Mais ampla. Mais intimidante. Esta mulher poderia me mandar para Oblivion. Ela poderia mandar todos nós se sentisse vontade. Tristan deslizou para fora do caminho, tomando posição atrás de Joaquin como se ele estivesse se preparando tanto para apoiá-lo como para expulsá-lo. A prefeita começou a fechar a porta, mas não antes que eu visse que alguém estava sentado na cadeira em frente à sua mesa, colocando dois tênis Converse preto fora de vista pouco antes que ela batesse. — Posso ajudá-lo, Sr. Marquez? — perguntou a prefeita, apertando as mãos de uma forma paciente. Quando seus olhos pousaram em mim, senti um arrepio nos meus ossos. — Sim. Há algo acontecendo por aqui, e eu acho que você deve saber sobre isso — disse Joaquin, seu peito arfando. — Alguma coisa além do óbvio. Tristan atirou para mim uma espécie de olhar traído, como se perguntando se isso era o que ele pensava que era. — Tudo bem, então — ela perguntou. — O que está acontecendo? — Nada — disse Tristan, tentando arrastar Joaquin para longe. — Não é nada. Uma pequena rachadura serpenteou através do meu coração. Ele realmente não acreditava em mim. Em Aaron. Ele realmente pensava que a moeda estava com a razão. Ele estava envergonhado que Joaquin e eu estivéssemos perdendo o tempo da sua “mãe”. — Não é nada — disse Joaquin, olhando a prefeita nos olhos com determinação impressionante e inflexível. — Acabei de enviar uma menina para a Terra das Sombras, alguém que não pertencia àquele lugar, e Rory fez o mesmo na noite passada. O cata-vento tem apontado para o sul com


muito mais frequência do que nunca. Todas essas pessoas não podem pertencer à Terra das Sombras. A prefeita olhou para mim por cima do ombro de Joaquim, em seguida, ergueu o queixo em direção ao chão e deu uma risadinha. Minhas mãos estavam escorregadias. — Sr. Marquez, as moedas nunca estão erradas — disse ela simplesmente. Meus dedos se fecharam como garras, adrenalina quente correndo em minhas veias. — Elas estão desta vez — eu disse, meu coração pulsando nos meus ouvidos. — Desculpe-me, mas você não sabe nada sobre isso — respondeu ela com condescendência. — Corrija-me se eu estiver errada, mas você nem sequer fez uma condução solo ainda, não é? Ela olhou para Tristan. Ele balançou a cabeça, mudo. — Mas eu sei que Aaron era uma boa alma — eu protestei, minha voz tremendo. — Eu senti. Isso não quer dizer nada? Os olhos azuis da prefeita estalaram com raiva. — Isso significa que você ainda é nova aqui — disse ela bruscamente. — E você não tem ideia do que está fazendo. — Agora, espere um minuto — disse Tristan, ficando ao lado de Joaquin. — Talvez o cata-vento estivesse errado — Krista saltou de repente, sua voz soando fina. Meu coração se encheu com gratidão para com Krista e com esperança. O cata-vento estar errado significaria que Jennifer e Aaron tinham realmente ido para a Luz e a seta simplesmente tinha indicado o contrário. Outra risada da prefeita. — Querida, o cata-vento nunca está errado. — Bem, agora está — eu disse, dando um passo em direção a ela com toda a calma que pude. — Por favor, se pudéssemos falar sobre isso — eu implorei. — Alguma coisa está errada. Eu sei o que eu senti. Sei que Aaron era uma boa pessoa. Se você apenas... — Pare! — a prefeita trovejou. Ela deu a volta por Joaquin e Tristan como se sua parede de músculos fosse nada mais do que uma poça no chão e parou bem na minha frente. Terror apoderou-se do meu intestino, e eu cambaleei um passo para trás. — Você está ouvindo o que você mesma está dizendo? Você não era algum tipo de gênio científico na sua vida anterior? Eu não disse nada. Naquele momento era difícil até respirar.


— O que você acha que é mais provável? Que um sistema que está em vigor sem um único problema desde o início dos tempos, de repente, se descontrole, ou que você, alguém que tem existido neste reino por menos tempo que o piscar de um mosquito, fez um erro de julgamento? — Seus lábios enrolaram em algo que se assemelhava a um sorriso, mas senti mais como uma ameaça. — O que você diz, Srta. Miller? Qual é a sua hipótese? Todo o meu corpo tremia sob seu exame minucioso enquanto ela me olhava vagarosamente de cima a baixo. Eu apertei meus dentes e segurei a minha língua. — Foi isso o que eu pensei — ela disse, satisfeita. — Olha, todos nós sabemos que algo está errado — disse Joaquin com calma, com paciência. — Flores e animais morrendo, a mudança das folhas, picadas de vespas... Você sabia que Kevin encontrou um ninho de vermes em seu quintal hoje de manhã? E há aranhas, moscas e... — Estou bem ciente do que está acontecendo, Sr. Marquez — disse a prefeita, tensa. — Eu não preciso que você de todas as pessoas venha aqui para me dizer. — Então, você não vai nem ouvir o que temos a dizer? — perguntou Joaquim. — Você não vai sequer considerar a possibilidade de que as pessoas estão sendo mandadas para o lugar errado? Ela levantou a cabeça e olhou para Joaquin e Tristan. — Eu acho que você desperdiçou bastante do meu tempo. Eu gostaria que você saísse agora — disse ela, caminhando de volta para seu escritório, de volta para quem estava esperando naquela cadeira. Ela parou ao lado de Tristan e olhou por baixo do nariz para ele. — Todos vocês. Ao meu lado, Krista fez um som em algum lugar entre um grito e um guincho. — Vamos — disse Tristan para o resto de nós. Ele caminhou até a porta e segurou-a aberta. Krista foi a primeira, vibrando como uma borboleta assustada. Joaquin hesitou por um momento, mas acabou pisando forte para fora. Eu estava passando por Tristan quando a voz da prefeita me parou. — Ah, e Miller? Eu parei e olhei para ela. Nas sombras lançadas pela janela com cortinas ao lado dela seu rosto parecia uma caveira. — Não volte sem um encontro marcado. Em seguida, ela entrou em seu escritório e bateu a porta.


29 SEMPRE Traduzido por Yasmin Mota

L

á fora, Joaquin tirou o braço de Tristan dele e correu até a borda do penhasco. À distância, nuvens de tempestade se reuniram, com relâmpagos piscando no fundo cinza escuro. Eu respirei fundo e tentei relaxar, mas as últimas palavras da prefeita ainda estavam nos meus ouvidos. Em dois dias apenas, eu deixei de ser um “prazer distinto” para ser alguém que precisava marcar hora. Alguém que teve a porta batida na sua cara. Foi só porque eu estava do lado de Joaquin, ou era algo mais? — Qual é o problema com você? — Tristan perguntou, cobrando Joaquin. Uma rajada de vento soprou seu cabelo para trás de seu rosto à medida que eles se aproximavam do penhasco. — Você sabe que ela odeia quando chegamos de repente, sem avisar. — Você realmente acha que eu dou a mínima? — perguntou Joaquim, girando para enfrentar Tristan. — Alguma coisa está acontecendo por aqui, Tristan. Algo maior do que uma magnólia murcha aleatória ou uma centopeia que você encontrou no gazebo. Você não sente isso? Porque eu sinto. Eu posso sentir isso em cada centímetro do meu corpo. Tristan zombou. — Você é tão melodramático. Krista e eu estávamos a uma distância segura enquanto os meninos se enfrentavam. Eu podia sentir a prefeita nos observando através de suas janelas do escritório, mas eu me recusei a virar. Krista, no entanto, continuava olhando furtivamente de volta para a casa. Ao longo da frente da varanda, o jardim que uma vez tinha estado repleto de margaridas era agora um quadrado seco de palha marrom. — E se ela nunca mais nos deixar voltar? — ela sussurrou, mordendo o lábio inferior. — Tenho certeza que ela vai. É a sua casa — eu respondi. — Sim, mas não é realmente — disse Krista. — Não é como se ela fosse realmente minha mãe. E eu nunca a vi tão furiosa antes.


Krista brincou com sua pulseira, olhando para o chão. — Não podemos continuar a deixar isso acontecer! — Joaquin gritou, as veias pulsando em seu pescoço. — Você sabe que o cata-vento está apontando para o Sul com muito mais frequência do que o habitual. Se as pessoas estão sendo enviadas para o lugar errado, então qual é o ponto de tudo isso? Qual é o ponto da nossa existência? Outro vento frio veio do oceano, deixando-me momentaneamente sem fôlego. As nuvens estavam se movendo em um ritmo acelerado; eram uma sombra sinistra de aço cinza. Krista deu alguns passos em direção à varanda e longe do penhasco. — As pessoas não estão sendo enviadas para o lugar errado — Tristan respondeu teimosamente. — O sistema funciona, Joaquin. Sempre funcionou. — Sempre? — perguntou Joaquim, erguendo as sobrancelhas. Algo se passou entre eles. Alguma comunicação silenciosa. Tristan parou, completamente imóvel e em silêncio, como se pesando sua resposta. Alisei minha trança. Joaquin estava falando sobre Jessica, ou havia algo mais acontecendo? — Você esteve aqui por mais tempo do que qualquer um, Tristan — disse Joaquin, deslocando seu peso de um pé para o outro. — Você sabe que as coisas nem sempre são o que parecem. Que o sistema pode ser contornado. — Não — disse Tristan com firmeza. — Não desse jeito. Nada como isso já aconteceu antes. Isso não pode acontecer, J. Simplesmente... não é possível. Eles se encararam, o vento soprando as mangas de suas camisas apertadas contra seus braços, até que, finalmente, Joaquin riu e recuou. — Dane-se isso; eu estou fora — disse ele, passando por mim. Krista desviou o olhar quando ele passou. — Então, você realmente não vai nos ajudar? — eu perguntei a Tristan, minha voz quase abafada pelo turbilhão do vento. Ele virou as palmas das mãos para fora, os olhos determinados, mas ainda cheios de tristeza. — Não há nada para ajudar. Este lugar não está com problemas, Rory. Ele não pode estar com problemas. Pressionei meus lábios, hesitando. — Mas... Jessica o violou, não foi? Uma sombra de raiva atravessou seu rosto. — Aquilo foi diferente — disse ele, ferozmente. — Ela voluntariamente ignorou uma regra, mas uma vez que ela fez isso, a mecânica trabalhou como deveria. As pessoas que haviam sido comprometidas foram para a Terra das Sombras, como


deveriam. Você está tentando dizer que as moedas podem ser alteradas, que a decisão final pode estar errada. Isso não pode acontecer. — Mas eu sei que Aaron não pertence à Terra das Sombras. Eu sei disso. — Olhei para o meu tênis, apertando meus dedos até que machucaram. Não era nada comparado com a dor dentro do meu peito. — E se pudéssemos trazê-los de volta? — Nós não podemos — disse Tristan, puxando as mangas para baixo. — Mas e se pudéssemos? E se houvesse uma maneira de... — Não importa, de qualquer maneira — interrompeu Krista. — Se Tristan tem tanta certeza que eles estão aonde deveriam estar, então não devemos trazê-los de volta. — Exatamente — disse Tristan, seu rosto como pedra. — Mas eles não estão onde deveriam estar! — eu lamentei. — Não podemos continuar a ter a mesma conversa, Rory — disse Tristan com firmeza. — Confie em mim. Nada está errado, e ninguém vai voltar. De repente, senti todo o meu corpo oco. Não haveria um jeito de convencê-lo, de fazê-lo entender o quão terrível, o quão errada, o quão desesperada eu me sentia. Algo ou alguém tinha enviado Aaron à Terra das Sombras quando ele pertencia à Luz. E nada que Tristan dissesse ia mudar minha mente sobre isso. Ele estava certo sobre uma coisa: nós não poderíamos continuar a ter esta conversa. — Rory — disse Tristan, dando um passo à frente, implorando. Eu instintivamente recuei. — Eu tenho que ir — eu disse, meu coração partido, juntamente com a minha voz. — Mas você não entende... — Eu tenho que ir. Eu me virei e corri atrás de Joaquin, o vento me fazendo chorar. Quando cheguei à esquina da casa, meu pé ficou preso em uma pedra e eu tropecei. Do canto do meu olho, eu vi um par de olhos escuros olhando para mim através da janela do escritório e, no segundo em que eu os vi, as cortinas se fecharam. Me ergui e corri. — Joaquin! — gritei. Ele estava atravessando o pátio de trás, dirigindo-se para a floresta no canto sudoeste da ilha. — Joaquin, pare! — gritei novamente enquanto as nuvens moveram para bloquear o sol. Joaquin finalmente parou perto da linha das árvores, mas ele não se virou. Um estrondo de trovão soou nas proximidades enquanto eu corria


para alcançá-lo, empurrando meu cabelo amarrado para longe do meu rosto. Uma enorme gota de chuva caiu na minha bochecha. Soltei um suspiro, engasgada de raiva, confusão e desespero. — O que vamos fazer? — eu perguntei, com minhas mãos em meus quadris. — Eu não sei — ele respondeu simplesmente. — Por que ele não nos ouve? — eu perguntei. Joaquin suspirou. — Você tem que entender.... Se Tristan admitir que algo está errado, se ele mesmo começar a pensar sobre isso, então vai ter que questionar tudo. É como se estivéssemos lhe pedindo para desistir de todo o seu sistema de crenças. Sem esse lugar... sem toda a coisa do “equilíbrio do bem e do mal”, ele não tem nada. Ele teria a mim, eu pensei quando a chuva começou a cair com mais força. — Bem, por que ele não me disse isso? Joaquin me olhou nos olhos. — Talvez você devesse perguntar a ele. Eu empurrei o meu cabelo para longe do meu rosto. Não me ocorreu que mesmo que Joaquin estivesse chateado, ele estava conseguindo ver o lado de Tristan das coisas. — Vocês são bons amigos, não é? Joaquin sorriu. — Quando nós não estamos brigando, sim. Tristan é como um irmão. Assim como Darcy e eu. Nós duas poderíamos brigar como loucas, mas, no final, sempre estaríamos lá uma pela outra. E de repente eu entendi por que Krista estava tão ansiosa para ser minha amiga desde que eu cheguei na cidade. Como as meninas mais novas aqui, tínhamos muita coisa em comum. Ela provavelmente estava morrendo de vontade de ter uma melhor amiga, uma figura fraternal. Mas eu já tinha uma irmã. A irmã que eu pretendia manter para sempre comigo, se eu pudesse descobrir como. — Nós temos que fazer alguma coisa — eu disse. — Com ou sem Tristan. Temos que... — Olha, você devia entrar — disse Joaquin, olhando em direção à cidade. — Eu tenho que estar em um lugar agora. Nós vamos achar um jeito de resolver isso de manhã. Quando ele começou a se afastar de mim, o céu abriu, a chuva caiu na grama ao redor de nós e logo encharcou minhas roupas. As folhas das árvores viraram de cabeça para baixo, e algumas das menores inclinaram-se em direção ao chão. Eu comecei a tremer. — Nós não podemos esperar até de manhã — eu protestei, me abraçando contra o frio repentino. — E se alguém for conduzido hoje à noite? E se for enviado para o lugar errado?


— Isso não vai acontecer — Joaquin respondeu, balançando a cabeça. A água pingava de seus cílios e queixo. — Ninguém nunca é conduzido durante uma tempestade. Eu ri sarcasticamente. — Oh, e não há nenhuma chance dessa regra ser quebrada? Joaquin me deu um olhar duro. — Eu sinto muito, Rory, mas há algo que eu tenho que resolver. Você vai ter que confiar em mim. Eu estarei na sua casa bem cedo de manhã. Então ele se virou e entrou na floresta, desaparecendo entre duas árvores enormes. Eu só fiquei ali, encharcada e perplexa, meus dentes batendo, esperando o final da piada. Ele tinha algo para resolver no meio da floresta agora, quando dois segundos atrás ele estava prestes a passar por cima de Tristan? Tremendo da cabeça aos pés, eu me virei para olhar de novo para a casa da prefeita. Eu nunca tinha visto por esse ângulo antes, e pela primeira vez, notei a grande garagem de frente para a calçada. A porta estava aberta e, no interior, a salvo da chuva e do vento, estava um conversível prateado. O mesmo carro que eu tinha visto em marcha lenta perto do penhasco na outra noite. A prefeita se encontrou com Dorn. Dorn, que estava me olhando assim como Nadia estava. Um calafrio percorreu minha espinha e, quando me virei para ir, vi Tristan de pé na varanda sob seu telhado grande, olhando para mim. Você está aqui por mais tempo do que qualquer um, Joaquin tinha dito. E Tristan não tinha discutido. Aquilo era realmente verdade? Quanto tempo era “mais tempo do que qualquer um”? E era mesmo possível que alguém tivesse sido enviado para Juniper Landing sozinho, sem ninguém lá para guiá-lo? Lentamente, eu voltei para a cidade. Joaquin não queria lidar com isso esta noite? Está certo. A partir deste momento, eu tinha minha própria missão para cumprir.


30 1766 Traduzido por Matheus Martins

N

avegar na descida para a enseada naquela noite com chuva torrencial e escura como breu era aterrorizante. O vento estava tão forte que inclinava a chuva de lado, cada gota era como um dardo afiado contra a minha pele. Na metade do declínio rochoso, meu pé escorregou nas pedras e, quando meus braços estenderam-se para agarrar o nada, eu tinha certeza que eu estava prestes a cair para a morte. Então minhas costas atingiram um ponto irregular e eu me lembrei: Eu não podia morrer. Mas eu podia sentir uma dor insuportável. Levantei de joelhos e verifiquei o bolso da minha capa de chuva para me certificar de que minha lanterna não tinha caído para fora. Trêmula, fiquei de pé e dei pequenos passos por todo o caminho até a parte inferior da colina. Quando eu finalmente consegui ver a areia, eu abri minhas mandíbulas e pulei os últimos metros. O chão foi esmagado sob as solas dos meus tênis, borbulhando em torno do piso de borracha com a consistência de mingau de aveia. Eu pude apenas distinguir as corcovas sombrias das cavernas daquela distância. Não surpreendentemente, elas eram escuras e tranquilas. Eu acendi a lanterna e corri ao longo da parede de rocha à minha esquerda, avançando para frente até que eu finalmente encontrei a abertura da caverna. Ela parecia menor de alguma forma, enquanto eu estava ali na frente dela sozinha. Ameaçadora. Por um breve momento eu pensei que eu vi algo tremular no fundo, e eu quase virei e corri. Não tem ninguém aqui, eu disse a mim mesma, ouvindo a chuva, enquanto ela batia contra a capa de vinil do meu capuz. Eles teriam que ser loucos para sair daquilo. Claro, eu era louca só por estar aqui. E depois de ver os Lifers surfando na tempestade na semana passada e o mergulho no precipício na outra noite, eu já sabia que alguns dos outros não estavam exatamente em seu juízo


perfeito. Mas este lugar era meu agora, tanto quanto era deles. Se tinha alguém lá dentro, eles teriam apenas que lidar com isso. Eu respirei fundo e deslizei para dentro da caverna. A abertura estreita estava entupida com fumaça, do tipo inebriante e cinza que inchava depois de um incêndio apagado. Quando cheguei na esquina, eu cobri minha boca com a manga e corri pelo feixe da lanterna ao longo do chão. Como previsto, uma fogueira ardia. Algumas pequenas brasas ainda brilhavam laranja brilhante na escuridão, e a fumaça cinza grossa serpenteava-se a partir do centro dos troncos carbonizados, desaparecendo perto do teto alto da caverna. — Alguém ai? — eu chamei. Não houve resposta. Em algum lugar nas profundezas da caverna, água escorria em um ritmo constante. Isso não fazia sentido. Se alguém tivesse estado aqui antes de mim, eu teria colidido com eles saindo, fosse na praia ou nas rochas. A menos que houvesse uma outra entrada para a caverna, ou alguma outra saída para a enseada que não tinham me mostrado. Esqueça isso, eu disse a mim mesma. Você veio aqui por uma razão. Tentei ignorar minhas mãos trêmulas enquanto eu apontava a luz da lanterna para a parede à minha direita. Eu encontrei o nome de Krista novamente, as letras em bolhas e floreadas proclamando sua chegada. A poucos metros de distância, Nadia tinha escrito seu nome em uma escrita inclinada e sofisticada: NADIA LINKOVA (NASH) 1982. Bem debaixo dela, Cori tinha adicionado o nome dela: CORI HERTZ (MORRISON) 1982. Não era de se admirar que elas eram tão próximas. Elas apareceram aqui por volta da mesma época. Outra razão pela qual Krista provavelmente esperava que nós duas nos tornássemos melhores amigas. Eu segui em frente, iluminando nomes desconhecidos como Corina Briggance (Horrance) de 1993 e Wallace Brooks (Garretson) de 1979. Parei quando eu encontrei o nome de Kevin, enorme e irregular, perto do topo da parede, um dragão que cuspia fogo intrincado pintado acima dele, a ondulação da cauda em torno de seu ano, que era 1965. Kevin tinha chegado aqui no ano que meu pai nasceu. Lentamente, eu fiz o meu caminho ao longo da parede, lendo nome após nome. Em direção ao fundo da caverna, os anos ficavam mais velhos e mais velhos. 1921, 1915, 1906, 1899. Alguns pareciam apressadamente pintados, com tinta branca e espessa. Outros pareciam ser escritos em giz, provavelmente o único instrumento que poderiam encontrar naqueles dias. Eu não poderia imaginar que algumas das pessoas que eu tinha visto na rua


tinham estado aqui por quase 200 anos. Como isso era possível? Como era viver tanto tempo assim? Eu olhava na escuridão, tentando entender as palavras que se desvaneciam com o tempo, prendendo a respiração enquanto esperava que a minha luz pudesse encontrar o nome que eu estava procurando. Quando finalmente o fiz, eu estava no ponto mais profundo da caverna. E lá, gravado na pedra ao nível dos olhos, estava o nome de Tristan. TRISTAN SEVARDES (PARRISH) 1766. Eu inalei bruscamente. Ele estava vivo antes mesmo de os EUA serem um país. Ele tinha, de fato, morrido antes da Guerra Revolucionária. Ele tinha mais de duzentos anos de idade. Houve um barulho, como uma raspagem, perto da boca da caverna, e eu deixei cair minha lanterna. Quando eu busquei por ela, ela escorregou por entre meus dedos e bateu no meu dedo do pé. Xingando baixinho, eu peguei a novamente e brilhei a luz perto da abertura. O fogo ainda ardia. — Olá — eu disse, minha voz soando fraca e assustada. Meu dedo do pé latejava. Limpei a garganta, tentando soar mais autoritária. — Quem está aí? Sem resposta. Dei dois passos em frente. — Vamos lá, pessoal. Isso não é engraçado — eu disse. Escutei fortemente para o som vir de novo, mas isso não aconteceu. Tudo o que eu podia ouvir era o som ensurdecedor da minha própria respiração, e o fraco eco das ondas quebrando lá fora. Eu olhei para o nome de Tristan novamente. 1766. De repente, todo o meu corpo começou a tremer. Os maníacos rabiscos nas paredes começaram a se fechar. Eu tentei tomar um fôlego, mas minha garganta estava bem fechada. Eu tinha que sair daqui. Eu tinha que respirar. Eu pressionei uma mão contra a parede fria e cambaleei para a saída. Foi quando um som crepitante me parou. — Olá? — eu chamei novamente. Eu dei um passo hesitante para a frente. Outro estalo. Algo no canto da minha visão brilhou. Havia um pedaço de papel branco preso ao fundo do meu tênis. Legal. Está ficando paranoica, Rory. Abaixei-me e arranquei a página da minha sola, depois continuei me movendo. Lá fora, a chuva havia reduzido a um chuvisco. Tomei uma respiração profunda de ar fresco da noite e inclinei o rosto para o céu, deixando a chuva


acalmar meu rosto. Depois de um tempo, o ritmo da minha respiração voltou ao normal. Eu me inclinei contra a parede de pedra e apontei minha lanterna sobre o papel. Era uma folha pequena e retangular arrancada de um bloco de notas padrão, do tipo que repórteres rabiscavam em filmes antigos. Alguém tinha desenhado uma linha no centro e fez marcas de rabiscos de cada lado, cada conjunto de quatro cortados completamente com um longo traço — um antigo método de contar. Em uma coluna havia treze barras. Na outra, apenas nove. Alguém estava fazendo uma contagem, mas de quê? — O que você tem aí? Eu fiquei tão assustada com a voz que cambaleei para trás e tropecei, batendo a cabeça numa pedra afiada na parede. De repente, três lanternas acenderam, e Nadia, Pete e Cori apareceram como que do nada, capuzes escuros puxados em seus cabelos. Antes que eu tivesse tempo de me mover, Pete se adiantou e pegou a página dos meus dedos. — Espere! — eu gritei. Nadia brilhou sua luz sobre o papel. Seus olhos negros se arregalaram. — Puta merda. Isso é o que eu penso que é? — Ela virou a luz no meu rosto, efetivamente me cegando. Eu joguei meus braços para cima e apertei os olhos, mas tudo que eu podia ver eram uma dúzia de pontos roxos e três sombras aparecendo. — Você está realmente mantendo um registro de todas as pessoas que você manda para o inferno? — O quê? Não! Eu apenas achei isso na caverna! — eu protestei. — Ele ficou preso ao meu tênis. Olha, você pode ver as marcas da pisada. Eu avancei para agarrá-lo de volta, mas Pete puxou para cima e para fora do meu alcance. — Boa tentativa — ele disse com um sorriso de escárnio. — Você acha que eu vou deixar você destruir as provas? Os três me olharam. Mesmo o rosto normalmente amigável de Cori tinha ficado tenso. Voltei a olhar para a parede sólida atrás de mim. Não havia nenhum lugar para ir. Nenhum lugar para correr. — Sabemos que é você — Nadia zombou. — Tudo começou quando você chegou aqui. — É a única explicação — disse Cori friamente, cruzando os braços sobre o peito, enquanto Pete me encarava debaixo de seu nariz. — Não é — eu lhes disse, tentando impedir minha voz de tremer. O céu se abria novamente, pingos de chuva pesados se atiravam em mim. — Eu juro para vocês. Não sou eu.


— É? Bem, vamos ver o que a prefeita tem a dizer sobre isso — Nadia cuspiu, agarrando meu pulso, beliscando a pele entre o polegar e os dedos. De repente, alguém pulou da encosta e se agachou ao meu lado. Soltei minha lanterna. Cori gritou, mas o aperto de Nadia só ficou mais apertado. — Solta ela — Joaquin rosnou, empurrando o capuz preto do rosto. Nadia soltou instantaneamente minha mão e se apoiou nos pés, pisando direito para o feixe onde minha lanterna caiu. Eu parei de respirar. Um Converse preto. Nadia tinha estado no gabinete da prefeita esta tarde. Meu maior medo estava confirmado; a menina que achava que eu era responsável por tudo de errado na ilha era oficialmente os ouvidos da prefeita. Talvez fosse por isso que a atitude da prefeita em relação a mim havia mudado de forma tão abrupta. Eu estava ferrada. Eu estava muito, muito ferrada. — Ela é culpada, Joaquin — disse Pete, empurrando a contagem no bolso. — Você e Tristan tem que parar de protegê-la. — Cara, ela acabou de chegar — Joaquin apontou. — Você realmente acha que ela poderia ser responsável por tudo o que está acontecendo? — É porque ela acabou de chegar aqui que sabemos que ela é responsável — Nadia revidou, atirando-me um olhar com olhos apertados. — Não pode ser um de nós. — Acho que devemos levar isso para a prefeita agora — disse Pete, avançando em mim. Joaquin mudou de lado para ficar entre nós. — Sai de perto dela, Pete. Eu não estou brincando. Nadia riu, sacudindo a cabeça para o chão. Trovões ressoavam à distância. — Você é tão previsível, J. Será que realmente tenho que te lembrar o que aconteceu da última vez que você e Tristan entraram em uma disputa idiota por causa de uma garota? — Seu olhar parou em mim. — Alguém aí ainda não disse a ela sobre isso? Meu coração apertou. Relâmpagos brilharam, e eu peguei um vislumbre do perfil de Joaquin. Sua mandíbula estava apertada, e suas mãos se apertaram em seus lados. — Não é nada disso — disse Joaquin através de seus dentes. — E você nem mesmo estava aqui ainda, Nadia. — Ele cuspiu o nome dela como um palavrão. — Não fale sobre coisas que você não entende. — Bem, eu não entendo uma coisa — disse Nadia, dando um passo à frente e inclinando a cabeça para trás para colocar-se em posição de defesa diante de Joaquin. — É melhor você não chegar muito perto dela. Você nunca sabe onde você pode acabar.


Relâmpagos brilharam de novo, e veio um trovão ensurdecedor logo em seguida. Eu estava tão assustada que peguei a mão de Joaquin. Ele congelou. Os olhos de Nadia dispararam para os nossos dedos, e por uma fração de segundo eu tinha certeza que ele iria se afastar. Mas em vez disso, ele ergueu o queixo e fechou os dedos nos meus. Sua pele estava quente e áspera. — Eu não estou preocupado — disse Joaquin claramente. — Sim, bem. Você deveria estar — disse Pete, levantando o queixo. — Venham. Nós temos algo para mostrar à prefeita. Os três se viraram e se afastaram. Suguei algumas respirações, a chuva batendo no meu rosto, tentando ignorar a dor lancinante de lágrimas atrás de meus olhos. Joaquin ficou ali, meio na minha frente, ainda segurando minha mão. Quando ele finalmente se virou, ele olhou para os dedos entrelaçados antes de olhar para mim. Seus olhos escuros penetraram o meu medo. — O que ele quis dizer com eles têm algo para mostrar à prefeita? — ele questionou. — Eu encontrei uma coisa — eu disse. — Na caverna. Algum tipo de registro. Eu não tenho nenhuma ideia do que é, mas eles acham que é meu, e eles acham que isso significa alguma coisa. — Meu estômago se apertou. Se a prefeita suspeitava de mim, eu estava ferrada. Joaquin olhou para o chão, fixando nas pegadas moles e molhadas na areia entre os dedos dos nossos sapatos. Eu comecei a tremer, e quanto mais tempo ele ficava em silêncio, mais violento o tremor se tornava. Será que ele pensava que eu era culpada, também? Ele era a única pessoa que acreditava em mim, que queria ajudar a salvar Aaron. Eu não podia lidar com isso, com nada disso, se Joaquin não estivesse do meu lado. — Aqui. — Ele soltou minha mão e abriu o zíper de sua jaqueta pesada, arremessando-a sobre meus ombros em um movimento suave. O interior estava aquecido pelo seu corpo e seu consolador cheiro almiscarado me envolveu. Meu tremor parou instantaneamente. — Vamos lá — disse ele enquanto eu empurrava os braços nas mangas. — Temos que te levar para casa. — Mas e quanto...? — Não se preocupe — Joaquin me disse, olhando sombriamente na direção dos outros que tinham ido embora. — Eu vou cuidar deles.


31 REGISTRO Traduzido por Matheus Martins

N

ove jรก foram, faltam onze. Estรก registrando tudo perfeitamente, santa Rory? ร timo.


32 AO NORTE Traduzido por Matheus Martins

N

ão dormi a noite toda. Eu apenas fiquei ouvindo. Aguardando Dorn vir bater na minha porta. À espera de uma multidão enfurecida de Lifers me arrastar para a casa da prefeita para o meu julgamento. Mas nada aconteceu. Durante toda a noite eu olhei para o teto, segurando meu travesseiro, e nada. Então, no momento em que Joaquin abriu a porta da loja de departamentos para mim na quinta-feira de manhã, eu estava como um zumbi cansado. Meus olhos estavam meio abertos e eu arrastava meus pés, mas eu ainda estava super-consciente de cada olhar curioso, cada movimento ao meu redor. Eu estava esperando a emboscada. Os sinos da porta tilintaram sobre nossas cabeças. Lá fora, o sol estava brilhando novamente, e a loja estava repleta de pessoas, tomando seu café no balcão, folheando revistas velhas, e conversando sobre a tempestade. — Você viu todos os destroços levados para a praia? — Uma árvore enorme caiu na rua Hermit Crab. — Vão dar uma grande Festa Eu-Sobrevivi-À-Tempestade no Thirsty Swan esta noite. Joaquin suspirou. — Acho que serei chamado para trabalhar mais tarde. Todas as mesas estavam tomadas, e parecia que não íamos encontrar um assento. Então vi Krista e Fisher na cabine mais distante da porta. Fiquei surpresa por Fisher estar ali tão cedo, considerando que eu tinha ouvido ele e Darcy se esgueirando de volta para a casa após as três horas da manhã. Quando ele levantou a mão para sinalizar para nós, Krista se virou em seu assento como uma criança de jardim de infância animada. — O que eles estão fazendo aqui? — eu perguntei a Joaquin, abafando um bocejo. — Eles queriam vir — ele respondeu.


— Oi, Rory! — Krista deu um tapinha no assento de vinil azul ao lado dela, e eu deslizei para ele, enquanto Joaquin se espremia ao lado de Fisher, os dois ocupando todo o banco. Havia um copo meio cheio de milk-shake de laranja na frente de Fisher, mas Krista tinha apenas água. — O que está acontecendo? — perguntou Fisher, seus olhos verdes quase tão assustadoramente perto. — Ninguém mais foi conduzido desde ontem de manhã — informou Joaquim. — E eu tive que dormir na minha cama na noite passada — Krista me assegurou, tocando minha perna, como se a possibilidade de ela e Tristan não voltarem para a casa deles tivesse me preocupado a noite toda. — Hum, que bom — eu disse. Peguei o saleiro, apenas para ter o que fazer com minhas mãos trêmulas. — Isso é bom. — Fisher conduziu outra pessoa dois dias atrás, e ela acabou na Terra das Sombras, também — explicou Joaquim. — De jeito nenhum Alec deveria ter ido para lá — disse Fisher, tomando um longo gole em seu canudo. — De jeito nenhum. O cara era um sacerdote. — Sério? — eu perguntei, colocando o saleiro de vidro de volta sobre a superfície da mesa. Fisher se contorceu e limpou a garganta. — Não, quero dizer, não literalmente, mas em sua vida ele com certeza agiu como um. Krista riu, e todo mundo olhou para ela. — Desculpa. — O que vocês crianças vão querer hoje? — perguntou Ursula, aparecendo no final da nossa mesa. Ela olhava para Joaquin como se o resto de nós não estivesse lá. — Bom dia, Ursula — disse Joaquin com um sorriso. — Você parece bastante atraente hoje. Ursula fungou. — Nem sequer tente isto. Você deixou o assento levantado de novo esta manhã. Fisher riu e balançou a cabeça. — Deixei? Sinto muito. Eu juro que eu vou compensar você — Joaquin brincou. — Sim, sim. Eu já ouvi tudo isso antes. — Ela fungou novamente. Desta vez, seu olhar moveu ao redor da mesa. — Então, o que vocês vão querer? — Hum, café? — disse Krista. — Café está bom — acrescentei. Ursula olhou para o saleiro ainda se movendo e eu parei, corando. — Desculpa.


Ela limpou a garganta e olhou para Joaquin. — Eu vou querer a omelete espanhola com pimentas extras, uma porção de batatas fritas e uma pequena pilha de panquecas — disse Joaquin. — Ah, e leite com chocolate. — É o seu intestino. — Ela empurrou a caneta atrás da orelha e começou a se virar. — E não se esqueça de pegar alguns sacos de chá em seu caminho de casa. — Qual é dessa sua obsessão com chá ultimamente? — perguntou Joaquin. — Eu nunca vi você beber chá antes desta semana. Ursula fez uma careta. — Apenas pegue o chá. — Exploradora — disse Joaquin com um sorriso. Por uma fração de segundo, eu pensei que ela estava quase sorrindo, mas, em seguida, ela se foi. — Ela está de mau humor — comentou Fisher. — Não é? Ela tem estado assim há alguns dias — Joaquin respondeu, esfregando as palmas das mãos sobre as coxas. — Como uma mudança de personalidade instantânea. — Eu notei isso também — disse Krista. — Ontem, quando estávamos trabalhando juntas, ela se manteve emburrada. — Você acha que há algo errado? — eu perguntei, olhando para o balcão, onde Ursula estava servindo café para dois rapazes. A mulher da ioga do parque estava sentada no último banco, olhando para mim. Eu me virei de novo, meu coração na minha garganta. — O que poderia haver de errado? Ela mora comigo — disse Joaquin, levantando o peito. Olhei para baixo, tentando ignorar a sensação dos olhos da mulher da ioga na parte de trás do meu crânio. — Podemos voltar para a razão de estarmos aqui? — eu perguntei. — Então ninguém foi conduzido ontem. E hoje? Eu não ganhei nenhuma moeda esta manhã. Algum de vocês ganhou? — Não — disse Joaquin. — Eu ganhei — disse Krista, levantando a mão levemente. — Eu também. — Fisher colocou a moeda sobre a mesa. Joaquin pegou e estudou. — Vocês acham que elas poderiam ser adulteradas de alguma forma? — eu perguntei, pensando na teoria de Nadia — que eu tinha propositadamente conduzido as pessoas para o inferno. Se alguém quisesse fazer isso, não teria de alguma forma adulterado as moedas?


— Parece normal para mim — disse Joaquin, colocando-a na minha frente e de Krista, o lado do sol para cima, para que pudéssemos vê-la. — Elas são todas iguais. Quando a pessoa que está seguindo em frente toca sua moeda, ela basicamente se transforma dependendo se a pessoa é boa ou má. Até aquele momento, a moeda não passa de um pedaço de ouro. Os sinos da porta tilintaram e eu olhei por cima do meu ombro. A mulher da ioga tinha acabado de sair do prédio. Eu suspirei de alívio. — Ok, então talvez eu esteja certa — disse Krista enquanto Ursula entregava os nossos cafés. Ela empurrou a moeda de volta sobre a mesa para Fisher e esperou que a garçonete se afastasse antes de continuar. — Talvez seja o cata-vento que esteja maluco. — Eu acho que poderia ser — disse Joaquin. — Por que não? Talvez ele tenha entortado em uma das tempestades — Fisher sugeriu, empurrando a moeda no bolso de trás e estendendo a mão para o seu milk-shake. — Está tendo um monte delas recentemente. Talvez ele simplesmente continue apontando para o sul porque está quebrado. — Nós devemos manter um olho nisso — eu disse, com uma esperança saltando dentro do meu peito novamente. — Se ele nunca apontar para o norte, saberemos que algo está acontecendo. Quero dizer, não é como se cada pessoa que passa por aqui agora é inerentemente má. — Fiz uma pausa e olhei para eles. — Certo? — Certo — disse Joaquin. — De jeito nenhum — Fisher concordou. Girei o saleiro entre o polegar e o indicador, hesitando em fazer minha próxima sugestão. — E se a gente parar de conduzir almas? Por um segundo, Krista, Joaquin, e Fisher ficaram ali sentados, olhando um para o outro. — Nós não podemos fazer isso — disse Krista finalmente. — Se fizermos isso, então o nevoeiro vai aparecer e nunca mais vai embora novamente. — Além disso, iria ficar muito lotado por aqui — acrescentou Fisher, tomando o seu milk-shake. — O que é um pouco de superlotação em comparação com o envio de um grupo de pessoas boas para a Terra das Sombras por toda a eternidade? — eu disse asperamente. Ursula colocou dois pratos de comida na frente de Joaquin. Vapor subiu do prato de omelete como se os ovos tivessem acabado de ser retirados da panela e o cheiro das cebolas fritas e pimentas picantes encheram minhas


narinas, fazendo meu estômago vazio roncar. Quando Ursula afastou-se da mesa, ela soltou um enorme espirro. A loja ficou em silêncio. Krista ficou tensa ao meu lado. Olhei para Joaquin. Seu rosto estava ficando pálido. — Saúde — um dos visitantes falou. Joaquin levantou-se e pôs as mãos nos ombros de Ursula. — Você está... o que você...? Então Ursula começou a chorar e fugiu do restaurante. Alguns dos clientes trocaram olhares confusos. Krista e Fisher se entreolharam como se tivessem acabado de ver uma reportagem de um ataque terrorista. — O que aconteceu? — eu perguntei, achatando as palmas das mãos contra a borda da mesa. — Ursula espirrou — Krista sussurrou, olhando para Joaquin cautelosamente. — E? — eu perguntei quando as conversas em torno de nós começaram a se elevar novamente. Joaquin virou-se e apertou as mãos ao lado do meu banco, apoiando todo o seu peso corporal nele. — E Lifers não ficam doentes, lembra? — disse ele por entre os dentes. — Nós podemos nos machucar se, tipo, cairmos de uma moto e raspar os joelhos... — Temos que parecer autênticos para os visitantes — Fisher interrompeu. — Mas nós não tossimos, não espirramos, nós nem sequer soluçamos — concluiu Joaquim. — Talvez fosse apenas uma coceira aleatória — sugeri. Fisher balançou a cabeça. — O que não acontece. Eu tremi, dobrando o guardanapo no colo. Outra faceta da vida em Juniper Landing que era oblíqua. Outro percalço no sistema que era supostamente livre-de-percalços. — Você acha que ela está realmente... doente? — eu perguntei em voz baixa, olhando para Joaquin. — Quero dizer, você acha que é por isso que ela queria o chá? Uma percepção varreu o rosto de Joaquin. — É por isso que ela tem estado tão estranha. Ela não queria me dizer. — Pobre mulher, provavelmente está apavorada — Fisher comentou. Joaquin atou as mãos atrás da cabeça, com os cotovelos para fora como asas, e respirou fundo. — Eu vou atrás dela.


Fisher olhou para a porta, e seu rosto caiu. Ele levantou-se lentamente de sua cadeira. — Ei pessoal, a névoa. Virei-me no meu lugar, empurrando-me para cima em meus joelhos. Como previsto, o nevoeiro tinha escorregado para a cidade muito rápido, encobrindo o parque, parte da biblioteca e todos os prédios do outro lado. A sala ficou silenciosa enquanto todos paravam para assistir. Joaquin caminhou em direção à porta. O resto de nós o seguiu. Alguns visitantes nos olharam com curiosidade quando Joaquin abriu a porta, fazendo com que os sinos soassem, e saiu para a névoa. Krista, Fisher, e eu nos juntamos a ele, um por um, amontoados juntos sob o toldo listrado da loja de departamentos. A neblina era tão espessa que instantaneamente molhou minha pele e meu cabelo e entupiu os meus pulmões. — O que vamos fazer? — perguntou Krista. — Vamos esperar — Joaquin respondeu. Ele deu um passo para a beira da calçada e olhou para a esquerda, mais ou menos na direção da casa de Tristan. Minha respiração estava superficial enquanto eu silenciosamente recitava toda a tabela periódica. Então eu contei até cem, e então contei novamente. E mais uma vez. Fisher bateu os punhos contra um dos pilares que sustentavam o toldo enquanto Krista pairava atrás de nós. Depois do que pareceu uma eternidade, a nuvem de cinza ao nosso redor começou a ficar fina. — É isso — disse Joaquin, olhando para a retirada do nevoeiro. — Se o cata-vento virar para o sul, há definitivamente algo de errado com ele. Não podem ter tido quatro almas malignas em sequência. De nenhuma maneira. — Se ele apontar ao sul, eu vou subir lá em cima eu mesmo e consertálo — disse Fisher severamente. Os últimos dedos da névoa deslizaram pelo parque, deixando para trás suas trilhas molhadas e um céu azul claro. No topo da casa de Tristan, o cata-vento virava lentamente. E virava. E virava. O vento soprava do leste, chicoteando as bandeiras nos mastros ao longo da rua principal em direção ao oeste, mas o cata-vento continuava girando. Ele girou uma última vez, e parou, apontando ao norte. — Ok, então isso é bom — disse Krista. — Não, não é — Joaquin estalou. — Se o problema não é o cata-vento, se ele não está nos dizendo que às pessoas estão indo para o sul, quando eles não estão, então isso significa que Jennifer, Aaron e Grant acabaram todos na Terra das Sombras quando não deveriam. Krista ficou rosa em torno das orelhas. — Oh.


— O que diabos está acontecendo por aqui, J.? — perguntou Fisher, ajustando seus ombros largos. Parecia que ele estava pronto para bater na cara de alguém e só estava esperando por um adversário para se mostrar. — Já chega — disse Joaquin. — Eu vou convocar uma reunião. Diga a todos que nos reuniremos no Swan à meia-noite. Eu quero saber se isso aconteceu com mais alguém e quantas vezes. Se tivermos pessoas suficientes juntas, a prefeita vai ter que nos ouvir. Nesse meio tempo, eu vou dar uma olhada em Ursula. — Boa sorte, cara — disse Fisher, apertando a mão de Joaquin. — Eu vou à praia. Pete e eles estão, provavelmente, lá em baixo. — Não — disse Joaquin, olhando para mim. — Não perca tempo com eles. — Por que não? — perguntou Fisher, puxando a cabeça para trás. — Eles não vão... eles não vão querer te ouvir — disse Joaquin. — Mas fale com Bea, Lauren e Kevin. Fisher fez uma careta em confusão e bateu os punhos juntos. — Hum... certo — ele disse com ar de dúvida, quando Joaquin correu para longe. Ele olhou para mim e Krista, como se a espera de uma explicação. Eu só levantei os ombros. — Tudo bem, então. Kevin provavelmente está dormindo na enseada, então eu vou lá. — Eu vou encontrar Lauren e Bea. Quer vir comigo? — Krista ofereceu. — E quanto a Tristan? — perguntei. — Eu vou dizer a ele quando eu chegar em casa — disse ela com um encolher de ombros. — A menos que você queira fazer isso. Olhei por cima do ombro para a enorme mansão azul na costa, onde Tristan, que não acreditava em mim, vivia sob o mesmo teto com a mulher que poderia me enviar direto para Oblivion. Minha garganta ficou seca de repente. — Na verdade, eu acho que vou voltar para casa e checar a minha família — eu disse. — Ok, está bem, então, te vejo mais tarde? — perguntou Krista esperançosa. Pisquei, com uma confusão estampada em meu rosto. — Vamos assar cupcakes? — ela me lembrou, juntando e separando os dedos. — Para a festa? Às duas horas. — Certo. Certo. Desculpe — eu disse. — Eu estarei lá.


— Eu vou com você — Fisher ofereceu, colocando sua mão grande na parte inferior das minhas costas. — Eu vou por esse caminho de qualquer maneira. — Ok. Deixamos Krista, virando ao norte da rua principal e nos dirigindo para a Freesia Lane. Nós só tínhamos dado dois passos quando vi algo pelo canto do meu olho — algo que fez meu sangue parar frio. Darcy. Ela estava em pé perto da fonte no centro do parque, em seu vestido de verão favorito, olhando para mim. Para mim e Fisher. O menino pelo qual ela estava apaixonada que tinha acabado de colocar o braço em volta de mim. — Darcy! — eu chamei. Mas ela girou nos calcanhares e desapareceu sobre o topo da colina.


33 COMPRIMIDOS Traduzido por L. G.

D

arcy não estava em casa. Eu tinha voltado para lá, pronta para explicar, mas ela não estava. E meu pai estava digitando em seu notebook, como sempre. Mesmo com o sol brilhando através das janelas, o lugar parecia desolado, e eu passei a manhã inteira nervosa, esperando ouvir a porta abrir no andar de baixo. Antecipando o confronto. Mas Darcy não voltou. O que significava que ela estava realmente brava. Ela ainda não estava em casa quando eu saí para ir até Krista. Enquanto eu cortava caminho pelo parque, torci minhas mãos na minha frente, tentando ignorar o meu medo crescente de ir à casa da prefeita. Em vez disso, me concentrei em Tristan e o que iria dizer a ele para fazê-lo acreditar em mim sobre as conduções. Eu entendo por que você está com medo, mas eu não posso aceitar isso, pensei. Aaron não pertence à Terra das Sombras. Eu balancei minha cabeça, rindo ironicamente de mim mesma enquanto eu passava pela fonte. Eu disse exatamente a mesma coisa um milhão de vezes ontem. Por que sua resposta seria diferente? Talvez... Eu entendo por que você está com medo, mas há claramente algo errado por aqui, pensei. Você não quer nos ajudar a descobrir o que é? Mordi o lábio. Talvez funcionasse melhor se eu deixasse Aaron fora disso. Eu estava endireitando meu ombro e começando a me preparar mentalmente para essa coisa toda de caminhar-para-a-toca-do-leão quando os vi. Pete e Cori, sentados em suas bicicletas sujas, a menos de três metros de distância, olhando para mim. Meus passos automaticamente desaceleraram enquanto frustração borbulhava dentro de mim. O que foi? Eu queria gritar. Qual é o problema de vocês comigo?


Mas então o Policial Dorn e o Chefe Grantz se aproximaram para se juntarem a eles. E depois a Mulher da ioga do parque também. E o dono da mercearia. E duas outras pessoas que eu não conhecia. Eu parei no meio do caminho, adrenalina e medo surgindo em mim. Tudo o que estava faltando era Nadia e seus olhos negros penetrantes. Dorn inclinou-se para o ouvido de Grantz, e ambos fixaram seus olhares furiosos em mim. Os outros pareciam se mover juntos, como se preparados para um ataque. A voz de Tristan ecoou em minha mente: Uma vez que pessoas enfurecidas se juntam e saem à procura de sangue, elas não ficam satisfeitas até que consigam. Eu abaixei a cabeça e continuei andando, cada vez mais e mais rápido, até começar a correr no topo da colina. Eu tinha que chegar até Krista, até os meus amigos. Não foi até ver o cata-vento rangendo sobre a minha cabeça que eu congelei, uma nova onda de terror caindo sobre mim. Que ideia mais estúpida, ir para a casa da prefeita justo agora? Durante toda a noite eu fiquei esperando a emboscada. E se ela estivesse me esperando atrás da porta da frente de Tristan? De repente, Krista caminhou ao redor do lado da sua casa, com o rosto cheio de rugas de preocupação. Ela estava usando um vestido lavanda e seu cabelo estava puxado para trás nas laterais. Havia um vestígio de farinha no seu rosto e quando ela me viu, seus olhos brilharam. — Aí está você! — disse ela, pegando uma das minhas mãos com as suas. — Eu estava prestes a ir até sua casa para dar uma olhada em você. — Por quê? — Eu me sentia tonta. — Você está atrasada — ela respondeu. — E Joaquin disse algo sobre manter um olho em você. Ele pareceu estar preocupado. — Hum... sim. Acho que estou um pouco assustada com tudo o que tem acontecido por aqui ultimamente — eu disse, olhando uma última vez sobre o meu ombro. — Tristan está aí dentro? — Não, ele saiu há um tempo atrás — Krista respondeu. — Nadia veio até aqui, e eu acho que eles saíram para surfar ou algo assim. Meu estômago caiu aos meus pés. — O quê? — Oh. Certo. Sinto muito. — Krista fez uma cara de desculpas. — Tenho certeza que não é nada. Eu senti gosto de bile no fundo da minha garganta. Não era nada. Se os dois estivessem em algum lugar sozinhos, Nadia estava definitivamente tentando convencê-lo da minha culpa. Tentando fazê-lo acreditar que estava deixando uma outra menina jogar areia em seus olhos. E considerando que


a última vez que eu vi Tristan nós tínhamos brigado, eu não podia confiar que ele ficaria do meu lado. — Vamos — disse Krista, me puxando em direção à casa. Estávamos passando pelo jardim morto na frente da varanda quando um grito soou de dentro, seguido de uma porta batendo. Um bando de corvos decolou do telhado da casa, grasnando com raiva. — Hum, talvez nós devêssemos apenas sentar aqui por um tempo — Krista sugeriu, segurando a minha mão com tanta força que doía. — E quanto a Bea e Lauren? — eu perguntei, agarrando sua mão também. — Elas vão sobreviver. Olhamos uma para a outra e dividimos uma risada tensa pela sua escolha de palavras. Cautelosamente verificando a porta da frente, Krista me fez subir os degraus da varanda até um banco de vime de frente para o mar aberto. Assim que ela se sentou, Krista exalou todo seu ar, encolhendose contra as almofadas inchadas de uma forma não muito característica de Krista. — Qual é o problema? — perguntei. — Eu estive pensando sobre o que Joaquin disse ontem — ela me disse, pegando em um pedaço quebrado de vime no braço do banco. — Você sabe... por que estamos aqui ainda se tudo pode dar tão errado? Eu balancei a cabeça. — É. Krista suspirou e cruzou os braços magros sobre seu estômago. — Você sente saudades? Da sua vida? Minha vida. Considerando tudo o que tinha acontecido na minha nova vida nos últimos dias, eu não tive muito tempo para pensar sobre a minha antiga. E era quase impossível de se concentrar nela agora, sabendo que Tristan e Nadia estavam por aí em algum lugar, conversando. Mas depois de um momento, eu percebi que se eu não contasse a escola, não havia muito para sentir falta. Eu tinha amigos, mas não extremamente próximos. Eu já sentia saudades da minha mãe durante anos, então isso não havia mudado, e Darcy e meu pai ainda estavam comigo. Pensei rapidamente em Christopher, mas eu quase não conseguia me lembrar de como ele era. Quando eu pensava nele, sentia um zumbido agradável dentro do meu peito, mas nada mais. — Não muito — eu disse a ela. Ela me deu um olhar triste, como se estivesse esperando por outra resposta. — Mas acho que eu não fiquei tempo suficiente para realmente sentir saudades. — Isso é verdade — ela disse com outro suspiro.


Olhei para a sua figura pequena. Ela parecia tão frágil naquele momento, tão quebrável. — Krista — eu comecei gentilmente, — você quer me contar... eu quero dizer, você quer falar sobre como você... — Morreu? — ela perguntou, sua voz embargada. — Eu me matei. — Assim como Joaquin — eu disse. Ela riu asperamente. — Não exatamente. Eu não tive a intenção. — O quê? — engoli em seco, assustada. Krista virou as mãos várias vezes em seu colo. — Eu só... meu namorado, Andreas... ele terminou comigo, e eu só tomei alguns comprimidos porque eu imaginei que eu fosse desmaiar e então ele me encontraria. E quando ele me encontrasse, iria perceber o quanto me amava. Era uma coisa totalmente Romeu e Julieta. Nós deveríamos ir ao baile de formatura juntos, e eu tinha um vestido, e só queria que ele me levasse. Mas em vez disso, acabei aqui. Deveria ser perfeito, e eu acabei aqui. Sem ele. Ela pressionou seu rosto contra o meu ombro, dissolvendo-se em lágrimas. Eu a envolvi em um abraço e a deixei chorar, pensando no quão terrível devia ter sido para ela, sabendo que poderia ter ido ao baile com outra pessoa e ter continuado com a sua vida. Se ao menos ela não tivesse tomado tantos comprimidos. Era mais ou menos como eu me sentia sobre ter pego o atalho da floresta naquele dia. Se ao menos eu tivesse conseguido uma carona, se eu tivesse tomado o caminho mais longo, o Sr. Nell nunca teria tido a oportunidade de me atacar. Minha irmã, meu pai, e eu estaríamos todos vivos em Princeton. Estaríamos ainda no “outro mundo”. Eu não teria que me preocupar com a multidão enfurecida, com a prefeita, com a Terra das Sombras, ou Oblivion ou onde Tristan estaria agora e o que diria a ele quando tivesse a chance. Talvez eu sentisse saudades da minha vida. — Desculpe — disse ela, fungando. — Eu realmente sinto muito. Eu estive pensando muito sobre isso ultimamente, com o meu aniversário de um ano chegando e tudo mais... mas por alguma razão eu me senti pior hoje. — Está tudo bem, Krista — eu disse a ela, esfregando suas costas. — Ei, qual foi o seu ato altruísta? — eu perguntei, esperando que isso talvez a animasse. — Ah. Isso. — Ela riu e olhou para os seus dedos no colo. — Foi tão tosco. Não foi nada como salvar uma vida ou livrar o mundo de um maníaco do mal, como algumas pessoas. Eu sorri. — Conta. — Eu salvei uma boneca.


— O quê? Ela revirou os olhos um pouco, mas sorriu. — Eu estava aqui há três dias e eu estava na praia com algumas outras pessoas que seguiram em frente há séculos atrás, e havia uma família lá. Uma mãe, um pai e duas crianças pequenas. Descobri mais tarde que eles morreram em um acidente de carro. — Uau — eu disse, perplexa. — Enfim, a menina deixou sua boneca favorita perto da costa e ela foi levada pelo mar — Krista continuou. — Ela ficou totalmente maluca, chorou, gritou e seu pai estava agindo tipo “Que pena. Você tem que aprender a tomar conta das suas coisas”. — Quero dizer, a menina tinha tipo, três anos de idade. — Você está falando sério? — perguntei. — É. Bem legal — Krista concordou. — Tudo que eu conseguia fazer era olhar para a boneca rosa encharcada, boiando no oceano e a menina chorando, e me lembrou muito de quando eu era pequena. Eu tinha uma Raggedy Ann que eu levava comigo para todos os lugares. Quando eu me desfiz dela na quarta série, ela estava caindo aos pedaços e, provavelmente, totalmente doente. Ela sorriu de novo, parecendo nostálgica. — Então mesmo nunca tendo sido uma grande nadadora, eu mergulhei no oceano, nadei até lá e salvei a boneca para ela. Eu pensei que eu ia morrer quando voltei à praia. Eu estava ofegando tão forte que estava vendo estrelas. Mas ela teve sua boneca de volta. — Que incrível — eu disse. — O que o pai dela fez? — Ele basicamente grunhiu para mim — respondeu Krista. — Mas a garotinha estava tão feliz... eles seguiram em frente naquela noite. Engoli em seco, esperando que essa família, até mesmo o pai malhumorado, tivesse ido para a luz. Nós duas suspiramos ao mesmo tempo, olhando para o sol brilhando sobre o oceano. — Você sabe o que é isso, Krista? — eu disse finalmente. — É apenas um dia ruim. — O que você quer dizer? — ela perguntou. Seus olhos azuis estavam permeados de vermelho. — É algo que minha mãe costumava dizer. Um dia tudo pode parecer bem, e no dia seguinte tudo parece tão mal, mesmo que nada tenha mudado realmente — eu disse. — Nos dias ruins você tem que se lembrar dos dias bons, e então você vai saber que as coisas vão ficar bem de novo, eventualmente.


— Mas alguma coisa mudou realmente — Krista protestou, sentandose ereta, se afastando de mim. O banco gemeu quando ela trocou seu peso. — Eu gostava de quando eu tinha esse trabalho importante, conduzindo as pessoas ao seu destino final. Mas se isso está dando errado, então o que mais eu tenho? Ninguém aqui ao menos gosta de mim. — Isso não é verdade! — eu respondi enfaticamente. — Tristan te ama. — Não, ele não ama. Ele me acha chata — disse Krista, olhando para seu colo. Seu nariz empinado estava vermelho, e uma lágrima rolou lentamente pelo seu rosto. — Imagine como você se sentiria sendo filho único por 250 anos e, de repente, ficar preso com uma irmã. — Bem, as meninas adoram você — eu disse. — Por favor — ela respondeu, revirando os olhos. — Hã, duas delas estão aí dentro agora, fazendo cupcakes para a sua festa de aniversário, enquanto você esteve desaparecida por pelo menos quinze minutos — eu lembrei a ela. — Se isso não é dedicação, eu não sei o que é. Krista mordeu o lábio. — Eu aposto que Lauren está separando os granulados por cor e deixando Bea doida. — Provavelmente. — Eu ri. Nós duas olhamos para o oceano. — Eu acho que você só tem que encontrar o seu lugar, o seu objetivo, onde você quer estar a longo prazo — eu disse, pensando em Tristan, na minha nova e estranha relação com Joaquin e na minha amizade com Krista florescendo lentamente. — Nós todos temos. Mas leva tempo. — E nós não temos nada além disso — Krista murmurou. Uma batida suave soou atrás de nós, e eu olhei para trás para as janelas do escritório da prefeita. Dois olhos azuis claros me encaravam através de ripas de madeira entreabertas. Prendi a respiração. A prefeita sustentou meu olhar por um longo, longo momento antes de fechar as cortinas. Voltei-me para Krista, uma sensação horrível se espalhando por mim, de que talvez meu tempo estivesse se esgotando.


34 CRIME IMAGINADO Traduzido por Lua Moreira

J

oaquin ficou em silêncio enquanto me levava para a casa de Krista no final da tarde, olhando sorrateiramente para os Lifers no centro da cidade como se fosse meu próprio guarda-costas pessoal. Ele apareceu do nada quando tínhamos terminado o último lote de cupcakes com aroma de morango e tinha casualmente se oferecido para me acompanhar de volta à Rua Magnolia. Agora eu sabia o porquê. Ele achava que eu precisava de proteção. Eu não tinha certeza se isso me fazia sentir mais segura, ou muito mais aterrorizada. — Então... — eu disse finalmente quando chegamos do outro lado da praça e as sombras sempre presentes na Freesia Lane. — E aqueles Yankees? — O quê? — Joaquin estalou. Corei, bastante. — Desculpe. É só uma coisa... meu pai sempre diz isso quando há uma pausa constrangedora na conversa. É como um assunto. — Oh. — Foi a sua vez de corar. — Acho que estou um pouco tenso. Começamos a descer a colina, passando pelas altas e imponentes casas vitorianas, seus beirais decorados com entalhes, suas varandas forradas com bastante vasos de flores, embora algumas delas começassem a murchar e ficar marrom. O parque coberto no centro da pista estava deserto como sempre, e eu desviei os olhos do ranger assustador do balanço. — Você viu Tristan hoje? — ele perguntou de repente. Eu balancei minha cabeça, meu coração palpitando. Cada vez que uma porta se fechava ou uma tábua rangia dentro da casa de Krista, eu estava certa de que era a prefeita, vindo pela minha cabeça, mas sempre não era nada. Aparentemente, onde quer que ele e Nadia tenham ido, eles estavam se divertindo juntos. — Krista disse algo sobre ele ir surfar com Nadia — eu respondi.


Joaquin revirou os olhos. — Sim, claro — disse ele. — Tristan e Nadia são como... quais os dois elementos que explodem quando são misturados? — Bem, há o oxigênio e o fósforo... Há... — Então, eles são como isso — ele exclamou, olhando para o mar à distância. — Se eles passassem qualquer tempo juntos, nós saberíamos, porque a ilha teria sido destruída. Eu sorri, sentindo-me um pouco melhor. Joaquin, afinal, conhecia Tristan melhor do que ninguém. — Ele está provavelmente em uma de suas reflexões. — Suas reflexões? — eu perguntei. Chegamos na Magnolia e viramos para a minha casa. Acima, o céu começava a escurecer, o sol baixando sombreando as nuvens violeta e rosa. Joaquin suspirou. — De vez em quando, Tristan... Ele simplesmente desaparece — Joaquin explicou, olhando para um girassol morrendo que pendia no caminho até a calçada. Ele passou por cima dando um grande passo, como se ele pudesse de repente ganhar vida e mordê-lo. — Não diz a ninguém onde está indo. Apenas desaparece por um dia ou dois, e quando ele volta ele não fala sobre isso. Uma vez, eu finalmente consegui que ele me dissesse até onde tinha ido, e ele disse, “eu estava refletindo”. Foi isso. Então, agora nós chamamos de “suas reflexões”. Algo dentro de mim se afundou. O tempo todo, Tristan tinha estado empenhado em me proteger. Em adiar em me dizer a verdade sobre a minha nova existência, se certificando de que eu não ouvi sobre as coisas morrendo pela primeira vez, não me contando sobre Jessica e Oblivion. Mas agora, quando eu realmente precisava de proteção, era Joaquin que estava me acompanhando para casa, não ele. Ele estava sozinho em algum lugar, pensando. Mas eu supunha que era melhor do que a alternativa. — Bem, aqui estamos nós — disse Joaquin quando chegamos na minha porta da frente. — Lar doce lar. — É. — Parei com a mão no trinco. — Obrigada, Joaquin — eu disse, olhando-o nos olhos. — Eu aprecio você ter saído do seu caminho. — Ah, eu estava indo dar um mergulho à noite de qualquer maneira — disse ele, me descartando. Então, ele sorriu. — Eu vou descer e pegar você para a reunião desta noite. — Você não tem que fazer isso — eu disse, assim que meu sangue gelou, lembrando os olhares nos rostos dos seguidores de Nadia naquela tarde.


— Só por enquanto — disse ele. — Enquanto não descobrirmos tudo. O que nós vamos fazer. Eu balancei a cabeça, tentando me sentir tão confiante quanto ele parecia. — Ok. Eu empurrei o portão para abrir, mas ele não se mexeu. Quando eu olhei para ele, eu poderia jurar que ele prendeu a respiração. — Tem certeza que está tudo bem? Minhas mãos começaram a coçar, e houve uma pequena aceleração no meu pulso, mas eu ignorei. Este era Joaquin. Ele era um jogador. Ele tinha ferrado com a minha irmã. E eu estava com Tristan. Onde quer que ele estivesse. Ouvi um grasnido alto e os vi chegando, cinco manchas escuras contra o céu roxo. Os corvos voaram e pousaram no ápice de nosso telhado, um, dois, três, quatro, cinco. Acima, uma gaivota circulou e baliu, mas estava claramente em desvantagem. Ela finalmente se virou e subiu para o mar. — Sim — eu disse. — Eu estou bem. Vejo você mais tarde. Eu empurrei o portão aberto, obrigando-o a dar um passo para trás, e caminhei para dentro sem uma segunda olhada. Assim que eu inalei o familiar cheiro de mofo da casa, comecei a relaxar. Eu estava em casa. Eu estava segura. Então vi Darcy na mesa da cozinha, e meu coração gelou. Talvez eu não estivesse tão segura. — Ei, Darcy — eu disse casualmente, na esperança de que, se eu agisse como se nada estivesse errado, ela seguiria o exemplo. Mas Darcy só fez um grunhido, soando como zombaria na parte de trás de sua garganta e empurrou a cadeira para trás. — Darcy — eu implorei a ela. — Deixe-me em paz — disse ela, com um pé já no último degrau. Meu pulso começou a acelerar daquela forma doentia que ficava sempre que Darcy estava com raiva de mim, mas não havia nenhuma maneira de eu deixar que um mal-entendido sobre um cara ficasse entre nós. De novo não. Não agora, quando Nadia estava ocupada virando todos nesta ilha contra mim. Eu me encontrei com Darcy quando ela estava prestes a bater a porta do seu quarto. Apertei minha mão contra ela e a parei, apertando meu pulso. — Darcy, se é sobre Fisher, não há nada acontecendo — eu disse. Ela gemeu de novo e caminhou para mais longe em seu quarto, jogando um livro sobre a cama. Ele bateu na porta, e eu vi a antiga escrita prata, desvanecida, na capa de pano. O Morro dos Ventos Uivantes. Impressionante. — Você fugiu ou não fugiu de casa para tomar café da manhã com os dois caras que eu gosto? — Darcy exigiu.


Eu empalideci. Ela tinha visto Joaquin, também? — Não é como se eu... — Responda a pergunta — ela se irritou. — Ok, sim — eu disse. — Sim. Eu fiz isso. Mas você realmente acha que eu estou atrás de Joaquin? Ou de Fisher? Ela deixou-se cair em seu assento na janela, virando as palmas das mãos para cima sobre suas coxas. — Não, eu não acho que você está interessada em qualquer um deles. Não realmente — disse ela. — Mas você tem alguma ideia de como isso parece? É como se você estivesse tentando me machucar. Você. Minha própria irmã. Ela puxou as pernas para cima, ficando de costas para mim com naturalidade forçada, como se estivesse bem e não vibrando com 5.000 megahertz de raiva e tristeza. Meu peito arfava, desesperada para apenas dizer-lhe a verdade. Desesperada para consertar as coisas entre nós enquanto possível. Mas eu não podia. Porque se eu lhe dissesse a verdade, eu iria condenála à Terra das Sombras. Eu realmente desejava que ela tivesse acabado de realizar um ato altruísta, então isso tudo acabaria. O que eu não daria para colocar uma pulseira Lifer em seu pulso e contar-lhe tudo. Mas tudo que eu podia fazer era manter a minha boca fechada e esperar que isso acontecesse. E em breve. — Sinto muito — eu disse finalmente, em voz baixa. — Eu acho que eu já vou. — Tudo bem — ela cuspiu. — Vá! Virei meu calcanhar, mas parei na porta, enrolando meus dedos em torno da guarnição chanfrada. — Mas, Darcy, há uma coisa que você deve saber — eu disse, olhando por cima do ombro no meio do caminho. Ela suspirou. — O quê? — Eu nunca iria intencionalmente fazer algo para prejudicá-la — eu disse. — Nunca. Então eu deslizei para o corredor, fechando a porta atrás de mim.


35 CINCO ALMAS Traduzido por Yasmin Mota

E

u olhei para o tabuleiro de Scrabble no centro da mesa da cozinha, mas as letras poderiam muito bem ser hieróglifos. Minha visão ficou meio turva. Nada fazia sentido. Darcy me odiava. Joaquin, muito possivelmente, gostava de mim. Mas o pior de tudo era Nadia. Claramente, ela estava determinada a virar a cidade e, especialmente, a prefeita, contra mim. E agora ela pode até estar influenciando Tristan. E se ela o convencesse? E se ela e sua multidão enfurecida parassem de me encarar de distâncias seguras e viessem atrás de mim? — Bam! — meu pai gritou de repente, quase me derrubando da cadeira. — Quixotesco! Q em uma letra-tripla, X em uma palavra-tripla; são 188 pontos! Leia e chore. Olhei para ele, tentando voltar para o seu presente. O presente onde ele estava vivo e bem, devorando sorvete, jogando Scrabble com sua filha, e chutando seu traseiro desconsolado. Ele lambeu uma gota de calda de chocolate do seu lábio e sorriu. — Desculpe — ele disse quando viu meu rosto. — Isso foi um pouco exagerado. Mas você tem que admitir... Ele apontou para o tabuleiro, esperando pelos meus comprimentos. — Sim, papai. Você é um gênio — eu disse com uma voz inexpressiva, brincando. — Supere isso. Eu olhei para a folha de pontuação improvisada que ele tinha desenhado para nós, duas colunas rotuladas com R de Rory e P de Pai, e isso me lembrou do registro que eu tinha encontrado na caverna. Fiquei imaginando o que Pete tinha feito com ele, onde ele estava agora, se a prefeita tinha visto. — Você quer fazer uma pausa? — perguntou meu pai. — Eu não estou realmente certo de que sua cabeça está aqui esta noite.


Uma olhada no tabuleiro mostrou que ele estava certo. Minhas palavras eram pequenos pedaços estelares de genialidade, como cão, de e lona. Com uma palavra, ele praticamente aniquilou a minha pontuação. — Acho que não — eu disse a ele, inclinando-me para trás na cadeira, sentindo-me incrivelmente pesada. Lá fora, pelos vidros das janelas, as ondas batiam contra a costa, a maré baixa seguindo um ritmo baixo e constante. — Está tudo bem, Rory? — meu pai perguntou, vincando a testa com preocupação. — Parece que você está com o peso do mundo sobre seus ombros. Não o outro mundo. Apenas este, pensei. Olhei através da mesa da cozinha para ele, hesitante. Ao longo dos últimos anos, eu mal tinha falado com o meu pai, além de informá-lo quando eu estaria em casa, que eu tinha uma consulta médica, que eu precisava de dinheiro para um corte de cabelo. Fazia muito tempo desde que meu pai se ofereceu para conversar. — Alguma vez você já se sentiu como se pudesse confiar em alguém um dia e sentir completamente o oposto no dia seguinte? — perguntei, brincando com minhas peças no tabuleiro de madeira. Ele estreitou os olhos castanhos. — Isso é sobre um garoto? — Pai! — eu disse, corando ligeiramente. — Basta responder a pergunta. Ele se inclinou para trás também, imitando a minha postura, e pensou. — Sim. Sim, já — disse ele, por fim. — E? O que você fez? — perguntei. — Bem, Rory, as coisas nem sempre são exatamente o que parecem — ele disse. — Então eu dei a pessoa uma chance de explicar e, em seguida, decidi se foi ou não o suficiente para eu confiar nela de novo. — E? Foi? — eu perguntei, esperançosa. Ele franziu a testa e pegou a colher, girando-a nos restos derretidos de seu sundae. — No meu caso, não — disse ele, fazendo com que o meu coração caísse. — Mas isso não significa necessariamente que vai ser o mesmo com você. — Eu sei — eu respondi. Eu enrolei minhas mãos em punhos sobre a mesa, empilhei-os um em cima do outro e coloquei o queixo em cima deles. As sete letras jogáveis na minha frente soletravam SPITBLA. Meu pai suspirou, olhando pela janela à sua direita.


— Sua mãe sempre foi muito melhor para essas coisas — disse ele, melancolicamente. — Você está indo bem, pai — eu assegurei a ele, assim que Darcy entrou na sala com os pés descalços, a calça de pijama baixa em seus quadris. Ela jogou o próprio prato de sundae na pia, sem olhar para nós. — Estou? — perguntou o meu pai. Dei-lhe um pequeno, mas genuíno sorriso. — Sim. Você está ótimo. Ele suspirou e balançou a cabeça, como se pensando se deveria ou não confiar em mim. Então ele se sentou com a coluna reta e deixou cair a colher de volta em seu prato. — A névoa está vindo de novo. Eu levantei, derrubando a cadeira para trás, meus olhos de repente latejantes. A névoa cinzenta grossa já tinha cobrido todas as janelas, bloqueando nossa visão da casa ao lado, esmagando toda a luz. Fui até a porta de trás para olhar para fora, mas tudo que eu podia ver era a nuvem rodando. Ela estava se movendo mais rápido do que eu já tinha visto antes. Minha boca ficou seca quando puro pânico tomou meu coração. Isso não podia estar acontecendo. Não agora. Não quando não tínhamos dito a todos ainda — não quando ainda não tínhamos um plano. Darcy deu um passo para o lado do meu pai, que agora estava em pé. — Isso poderia ser mais assustador? Um barulho de repente, como latas de lixo de metal colidindo, nos fez saltar. Isso foi seguido por um grito rápido, mas muito real, de dor. — O que foi isso? — disse meu pai, já alcançando a porta. Eu agarrei o braço dele e apertei. — Não, pai! Não! Ele me ignorou. Ele abriu a porta, e alguns dedos de nevoeiro lamberam seus sapatos. Darcy e eu olhamos uma para a outra, e eu poderia dizer que ela estava tão apavorada como eu estava. — Olá? — meu pai gritou. — Tem alguém aí fora? Você está bem? A resposta foi um gemido suave, como um miado. Como um gatinho ferido. Só que eu nunca tinha visto um felino ou um gatinho nesta ilha. — Meninas, eu já volto — meu pai disse, pegando atrapalhado uma lanterna na gaveta mais próxima. — Vocês fiquem aqui. — Pai, não. Você não vai ser capaz de ajudar. Você não pode ver nada. — eu protestei. — Sério, pai — acrescentou Darcy. — Você não pode... — Fiquem aqui — repetiu ele. E então desapareceu. Por um longo momento, ficamos ali no limiar entre o ar fresco da cozinha e a úmida névoa quente. Eu ouvi meu pai descendo disparado os


degraus, gritando, mas depois disso, nada. O gemido tinha parado, e tudo que eu podia ouvir era o incessante silvo ameaçador do nevoeiro, as batidas do meu próprio coração e o som da respiração entrecortada de Darcy. — Onde ele está? — a voz de Darcy era estridente. — Tenho certeza que ele está bem — eu disse, automaticamente. — E se Steven Nell estiver lá fora? Eu congelei. — O quê? — E se ele nos seguiu? — perguntou Darcy, os olhos desesperados. — E se ele está apenas observando a gente? À espera de uma oportunidade para atrair um de nós para fora? E se ele está lá fora agora, perseguindo o papai? — Darcy, ele não está — eu disse, tentando usar uma voz suave, desejando que eu pudesse lhe dizer o porquê de eu saber que isso era verdade. — Confie em mim. Não há nenhuma maneira de ele... — Pai! — Darcy gritou em meio à névoa rodando. Não houve resposta. — Pai! Me responde! Nada. Olhei para Darcy. Darcy olhou para mim. Então, alguma coisa mudou em seu rosto. Algo endurecido. — Dane-se isso. Antes que eu pudesse piscar, ela se virou e mergulhou na névoa. — Pai! — sua voz já parecendo distante. — Papai! Onde você está? Xinguei baixinho e a segui, meu coração batendo contra minhas costelas enquanto eu tateava as escadas e o corrimão. — Darcy! — eu gritei. — Pai! Alguém riu. O mesmo riso que eu tinha ouvido através da linha de telefone no quarto de Aaron. A voz zombeteira ecoou de volta ao meu apelo: — Pai! Eu tropecei descendo os degraus, agarrando-me ao corrimão desesperadamente. Eu julguei mal o quão longe eu cheguei, e aonde eu pensei que houvesse mais um degrau, não havia nada. Meu estômago se abateu enquanto eu me inclinava para frente e caía de cara na areia. Dor irradiou através do meu crânio e da minha espinha, e prendeu meus braços. Outra risada, mas mais longe desta vez. — Pai! — eu gritei, ficando de joelhos. — Rory? — ele parecia incrivelmente longe, sua voz um mero coaxar. — Pai? Você está ferido? — eu perguntei, girando ao redor, cega. — Onde está Darcy? Um dedo seco roçou minha bochecha. Estendi a mão e dei um tapa nele, minha pele queimando da violência da minha própria mão.


— Pare com isso! — gritei o mais alto que pude — Pare de brincar comigo! Onde está minha família? Outro som atrás de mim. — O que você...? — meu pai disse. Houve o som inconfundível de um soco atingindo alguém. Um grito de dor. — Pai? — eu chorei, apavorada, desesperada. Senti os arredores na minha frente cegamente, à procura de alguém, qualquer um, na névoa. Havia uma luta. Uma lágrima. Um barulho. Virei-me em direção ao som, recuperando o fôlego novamente e novamente. Nada além de cinza. — Saia de cima dele! — Darcy gritou. Outro barulho. — Darcy!? — eu lamentei. Virei-me e meu pé ficou preso em algo duro. Eu voei para frente novamente, meus braços se estendendo para me firmar. Caí e levantei de volta em minhas mãos como um caranguejo, mas não foi um corpo que me fez tropeçar. Só um grande pedaço de madeira, apodrecido e cheio de buracos. Comecei a engatinhar, as lágrimas agora escorrendo pelo meu rosto. — Pai? Darcy? — eu sussurrei. — Onde vocês estão? Silêncio. Sem risos, sem zombaria, sem gritos. Meus dedos tatearam no escuro, cada vez mais frios enquanto cavavam na areia fria, não encontrando nada, além de algas, conchas e pedaços menores de madeira. Quanto mais eu procurava, mais certeza tinha de que alguém tinha levado a minha família. Que eu nunca iria vê-los novamente. A névoa pareceu se arrastar por horas. Quem quer que sejam, lutem, eu implorei silenciosamente. Não deixem que eles os levem para a Terra das Sombras. — Rory? — Darcy gritou de repente. — Você está aí? — Darcy! Naquele momento, pisaram na minha mão com um sapato. Eu gritei a plenos pulmões. — Rory? — Pai! — gritei, pulando para cima. Minha irmã jogou os braços em volta de mim, e joguei meus braços em volta do meu pai. Mas no segundo em que toquei meu pai, eu tive um súbito lampejo. Eu vi o Sr. Nell agarrá-lo por trás e virar a cabeça dele para o lado, quebrando seu pescoço. Eu ouvi o som da fragmentação dos ossos. Eu assisti a queda do corpo mole do meu pai no chão, atordoado, os olhos abertos, a boca para baixo de um lado como se ele tivesse acabado de ser anestesiado no dentista. Eu o soltei e cambaleei para trás. Até aquele momento, as


minhas únicas lembranças daquela noite foram as coisas que eu realmente vi, e eu não tinha visto meu pai morrer — só o seu corpo após o fato. Isso era novo, e era horrível. Encolhi meu corpo, engolindo mais e mais para evitar ficar arfante. Eu sabia o que isso significava. Meu pai nunca ia ser um Lifer. Ele estava seguindo em frente. E eu deveria conduzi-lo. — Rory? — perguntou Darcy, com os olhos preocupados. — Você está bem? Afastei-me dela e caí de joelhos na areia. Naquele momento, eu não poderia ter estado mais grata pelo nevoeiro que me envolveu. — Rory? Onde você está? — perguntou o meu pai. — Eu estou aqui — chiei. — Eu... eu tropecei. Eu respirei uma vez. Em seguida, novamente. Esforcei-me para impedir os soluços de virem. — Onde? — ele questionou. Seu pé chutou o lado da minha perna. — Oh. Opa. Desculpe. Este nevoeiro é tão espesso. E minha cabeça... — A sua cabeça? — Algum idiota tentou agarrá-lo — disse Darcy. — Sim, mas nós lutamos contra ele — meu pai respondeu, parecendo orgulhoso. — Sim, nós lutamos — respondeu Darcy. Empurrei-me do chão no exato momento em que o nevoeiro começou a levantar. Ele voltou para a água, os últimos vestígios girando provocadoramente em torno de meus tornozelos até que se foi. Meu pai estava segurando a parte de trás do crânio. Desviei a imagem de sua morte — e de sua iminente condução — para fora da minha mente. — Você está bem? — eu perguntei, agarrando-o pelo braço. Ele puxou sua mão para baixo e segurou-a na frente de nós. Seus dedos estavam com sangue. — Está tudo bem — disse Darcy, verificando o corte. — Ele vai sobreviver. — Você viu quem era? — perguntei a ela. — Não. Provavelmente apenas um idiota brincando — ela nivelou seu olhar com o meu, e eu sabia que isso significava que ela não queria que eu mencionasse Steven Nell. — Perdedores — eu disse, porque eu senti que deveria dizer algo enquanto ficava lá tremendo da cabeça aos pés. — Vamos lá, pai. Vamos levá-lo para dentro e limpar isso.


Nós subimos atrapalhados as escadas, ele instável de sua lesão e eu tremendo de desespero e medo. Assim que entramos na cozinha, eu parei subitamente. Em todo o alívio de encontrar a minha família aqui e bem, eu tinha esquecido o que o nevoeiro realmente significava. Alguém em algum lugar nesta ilha havia sido conduzido. Eles haviam ido para o destino certo? — Eu tenho que sair por um segundo — eu disse, deixando Darcy agarrando o braço do meu pai. — Limpe isso, ok? Eu já volto. — Você está brincando comigo agora? — Darcy exigiu. Eu gemi em frustração. — Sinto muito! Estarei de volta o mais rápido que puder. Então, com Darcy gritando comigo, eu corri para fora da porta da frente. Eu nem sequer me importei se Nadia e sua multidão enfurecida estivessem lá fora, esperando que eu caísse em suas garras em espera. Subi a colina tão rápido quanto eu pude, e assim que eu cheguei à Rua Principal, derrapei até parar e olhei para a casa de Tristan. Vi Fisher em pé no parque com Bea e Lauren. Bea me lançou um olhar compreensivo, em seguida, virou-se para o penhasco. O cata-vento girava loucamente, tão rápido que parecia um borrão. O movimento era tão estranho que chamou a atenção de alguns outros transeuntes, pessoas que não sabiam da verdade sobre Juniper Landing, pessoas que falariam sobre esse fenômeno de manhã, se perguntando se eles poderiam ter visto certo, se realmente tinha acontecido. Ele girou e girou até que pensei que ia sair voando para a noite. Mas então, de repente, parou. A seta apontou para o Sul, tremendo contra o céu escuro. Olhei para Bea e os outros. Fisher olhou para mim, sombrio. Então alguém engasgou. O cata-vento girava de novo, igual a antes, mas desta vez parou mais cedo. Apontando para o Sul. Girou novamente. Sul. E mais uma vez. Sul. E mais uma vez. Sul. No momento em que acabou, Lauren tinha cobrido a boca com as duas mãos. Bea estava vermelha de raiva. Fisher estava visivelmente suando. Naquele nevoeiro, cinco almas haviam sido tomadas. Cinco almas tinham sido relegadas para a Terra das Sombras.


36 NOVA REGRA Traduzido por Manoel Alves

—E

u não vou conduzi-lo — eu sibilei para Joaquin conforme seguíamos Bea, Fisher e Krista através do lotado Thirsty Swan para o corredor de trás. — Ele não vai. Não agora. Não quando todo mundo está indo para a Terra das Sombras. — Não se preocupe com isso — Joaquin sussurrou de volta, me puxando em direção à parede. — Ninguém espera que você o conduza. Eu não consigo nem acreditar que ele é o seu encarregado. É como se o universo estivesse tentando ferrar com você. Eu bufei. Como se o universo desse a mínima para mim. Mas Joaquin me encarou com um olhar que me fez murchar por dentro. Poderia o universo realmente estar ferrando comigo? — Você deveria ter visto Darcy, no entanto — eu disse, tentando pensar em outra coisa. — Ela tinha certeza de que Steven Nell estava lá fora, pronto para agarrar o meu pai, e ela correu para fora para salvá-lo. Foi intenso. As sobrancelhas de Joaquin vincaram. — Sério? Eu ri baixinho. — Sim. Eu nunca vi nada assim antes. Ela era, tipo, a Super Darcy. — Interessante — disse Joaquin, dando um passo para o lado para deixar um visitante passar com uma caneca de cerveja. — Desculpe ter perdido isso. Eu estava ocupado servindo sopa de galinha para a minha avó. — Sim! — Eu levei a minha mão à testa. — Como está Ursula? — Ela está... doente — Joaquin respondeu, suspirando. — Eu diria que ela vai ficar bem, uma vez que não parece tão ruim, mas com tudo que está acontecendo por aqui, como diabos eu vou saber? Bea, Fisher e Krista estavam todos esperando no corredor, olhandonos com expectativa. Joaquin procurou no bolso por conjunto de chaves, em seguida, abriu a porta do almoxarifado e apoiou-se contra ela, segurando-a


para nós. Eu entrei primeiro e me mantive de lado para abrir caminho. A sala era ampla e lotada com caixas e barris, coisas antigas de madeira com grampos de ferro que pareciam ter sido feitas há séculos. O ar cheirava a cerveja velha, serragem, amendoim e sal. Os outros entraram em silêncio, seus tênis e sandálias raspando no chão de madeira. Krista encostou-se em um barril, e Bea recostou-se ao lado dela contra uma prateleira cheia de condimentos em garrafas e canecas de café. Fisher assumiu um lugar perto da porta dos fundos, ajustando os ombros como um segurança. Um momento depois, Kevin apareceu, e imediatamente ele começou a andar e murmurar para si mesmo, como se tivesse bebido muito Red Bull. Então Lauren entrou, atirando-me um olhar ilegível enquanto passava por mim. — O que está acontecendo? — eu perguntei. Seus olhos correram para a porta. Joaquin tinha acabado de começar a fechá-la quando uma mão a parou. Prendi a respiração, esperando ver Tristan, mas não era ele. Era Pete. Um momento depois, Nadia e Cori se juntaram a ele. Eles caminharam ao longo da parede próxima até que o ombro de Pete bateu em uma pilha de caixas mais alta do que ele, e eles pararam. Nadia me lançou um olhar penetrante conforme ela se voltava contra as prateleiras. Meu estômago se apertou, e a temperatura na sala pareceu aumentar. Joaquin me deu um olhar que foi de alguma forma alarmada e suave ao mesmo tempo. Algo como, Sim, isso não é bom, mas vai ficar tudo bem. Eu pressionei minhas mãos suadas e esperei que ele estivesse certo. — Todo mundo está aqui? — perguntou Joaquim. — Falta Tristan — Krista apontou. Joaquin olhou para trás em direção ao bar barulhento. Um grito alto soou, como se o time da casa houvesse acabado de fazer um gol na TV. Exceto que não havia televisões aqui. Nem time da casa para ganhar. — Eu não acho que Tristan virá — disse ele, fechando a porta. Todo mundo olhou em volta nervosamente. — O que diabos está acontecendo? — perguntou Bea, estalando seus dedos. — O que está acontecendo é que acabei de enviar alguém para a Terra das Sombras — Kevin deixou escapar com veemência. — Alguém que não deveria estar lá. — Eu também — disse Krista calmamente. — Mais alguém? — perguntou Joaquim, pisando mais para dentro da sala.


Nadia levantou a mão, olhando diretamente para mim até que eu tive que desviar o olhar. — Eu também — disse Cori. Aquilo completava quatro. — Quem mais? Havia cinco — disse Joaquin. Sua pergunta foi recebida com silêncio, além do riso no bar. — Quem mais? — Joaquin gritou. — Pete! — disse Cori através de seus dentes. — Está bem! Eu levei alguém para lá, mas se ele foi para a Terra das Sombras, eu não tenho problemas com isso — disse ele. — Esse cara merecia. — Tudo bem, tudo bem — disse Joaquin. — Isso quer dizer que quatro de cinco foram para o lugar errado. — E três de nós tem um, também — disse Fisher. — Eu, J. e Rory. Todos os olhos desviaram para mim. — Há um impasse — Nadia murmurou. — Nadia, nem sequer comece — disse Bea. Minhas pernas tremiam. Meus olhos dispararam para a porta. — Oh, por favor! Vocês realmente não veem o que está acontecendo aqui? — disse Nadia, apontando para mim com a mão aberta. — Ela está fazendo isso! Primeiro as flores murchas, os insetos e as doenças, e agora isso! Tudo isso começou quando ela chegou aqui, mas de alguma forma ela deixou todos vocês submissos! Até mesmo Tristan! É como Jessica de novo. — Cala a boca sobre Jessica! — Joaquin gritou, sua voz soando alto pela sala. — Você não sabe nada sobre ela! A sala ficou em silêncio. Prendi a respiração, assustada. O peito de Joaquin arfou, seu rosto uma máscara de fúria endurecida. Ele pressionou o punho na outra mão e apertou a mandíbula. De repente me lembrei do que Nadia havia dito na outra noite na enseada, sobre um impasse com uma menina. Jessica. Tinha que ter sido. — Algum de vocês estava aqui quando o incidente de Jessica aconteceu? — perguntou Joaquim. — Não! Vocês não estavam. Eu estava, e isso não é nada parecido com o que Jessica fez. O que ela fez foi culpa de uma pessoa, o resultado de um erro de julgamento. Kevin zombou. — Tudo bem, um enorme erro de julgamento, mas ainda assim... — continuou Joaquin. — Ela fez uma escolha e agiu a partir dela. Isso não é nada como aquilo. Isso não poderia ser perpetrado por uma pessoa e, especialmente, não por uma pessoa que acabou de aprender os nossos hábitos há cinco dias.


— Eu não sei — disse Kevin, olhando-me de cima a baixo. — Ela matou alguém no outro mundo. Meu queixo caiu. — Ele era um assassino em série! — Ela estava apenas se defendendo, Kevin — Krista argumentou — E ele a matou primeiro. — Ela me lançou um olhar de desculpas. — Mais ou menos. — Sim, e você é mais um para se atirar pedras, Pegajoso, considerando a sua vida — acrescentou Bea. — Foda-se, Bea! Nem todos nós crescemos em uma casa perfeita com os pais perfeitos e genes atléticos loucos! — Kevin gritou, bem na cara dela. — Oh, você nunca vai parar de usar o seu pai bêbado como uma desculpa? — Bea respondeu. — As pessoas fazem suas próprias escolhas! — Você não tem nenhuma prova, Beatrice — Kevin zombou, olhandoa de cima a baixo. De repente, ela deu um soco nele, e a situação desmoronou. Pete pegou Kevin, Fisher ficou entre eles, e Lauren e Krista fizeram o seu melhor para segurar uma Bea furiosa. Eu me achatei contra a parede quando um pé rebelde voou em direção ao meu rosto. — Isso é o suficiente! — Joaquin gritou, agarrando Kevin pelas lapelas, jogando-o contra a porta. O barulho trouxe a atenção de volta. Eles congelaram no meio de um quadro violento, todo mundo encarando todo mundo, seus peitos arfando para respirar. Kevin tinha caído no chão, e Joaquin agora se inclinou com o braço estendido para ajudá-lo. Por incrível que pareça, Kevin o pegou. Todo mundo deu um suspiro de alívio quando ele silenciosamente se levantou, seu olhar tímido no chão. — Sinto muito, Bea — disse ele. — Eu também — respondeu ela, estendendo a mão. Depois de um momento, ele a apertou. Joaquin inspirou e expirou lentamente. — Olha, não podemos deixar que nossas emoções ganhem de nós agora — disse ele à multidão. — O que está realmente acontecendo aqui é enorme. Naquele momento, a porta se abriu. Fisher fez um movimento para bloquear o intruso, mas depois recuou. A prefeita entrou em cena usando um casaco preto sobre uma camisa branca passada, seu cabelo loiro puxado para trás de seu rosto, como sempre. Encolhi-me ao vê-la, sabendo no meu intestino que era isso. Ela e Nadia na mesma sala. Elas iam me acusar oficialmente. Elas iam me mandar para Oblivion.


Conforme a porta começava a se fechar atrás da prefeita, eu me aproximei de Joaquin, mais perto da porta que levava de volta ao bar. Em seguida, uma mão parou a porta traseira antes que pudesse se fechar, e Tristan deslizou através dela. Eu congelei. Sua pele normalmente bronzeada parecia pálida sob as lâmpadas fluorescentes. Seu olhar se lançou ao redor de rosto em rosto. Eu não poderia dizer se ele se sentia culpado, traído, ou algo completamente diferente, mas quando ele olhou nos meus olhos, eu me senti mais calma. Eu me senti segura. Pelo menos, relativamente. Quaisquer que fossem as suspeitas que meu cérebro tinha se entretido sobre onde ele estava hoje, meu coração estava feliz em vê-lo. — Bem — disse a prefeita, mexendo o nariz para topo empoeirado de uma caixa de vodca. — Isso não é acolhedor? Ela olhou para Nadia, que ergueu o queixo e sorriu. Um arrepio passou por mim. Joaquin deu um passo mais perto de mim. — O que você está fazendo aqui? — Joaquin exigiu. — Nós viemos, Sr. Marquez, para nos desculpar. — A prefeita fungou. — Parece que você e sua amiguinha aqui — disse ela, zombando de mim, — estavam corretos sobre as conduções. Meu queixo caiu ligeiramente. Eu não conhecia a prefeita há muito tempo, mas ela não me parecia o tipo de pessoa que admitia seus erros. — Então você admite? — disse Joaquin. — Você admite que algo está errado? Ela inclinou a cabeça. — Cinco almas irem para a Terra das Sombras em um nevoeiro é... — É sem precedentes — Tristan interrompeu. — Nada como isso já aconteceu antes. Desde que eu estou aqui, as boas almas sempre estiveram em maior número que as más. Sempre. E cinco nunca foram tomadas de uma só vez. — Ele olhou para mim. — Não apenas alguns deles não estavam destinados à Terra das Sombras, como alguns deles também não estavam preparados de modo algum. Olhei para Pete e Nadia, pensando na contagem da caverna. As boas almas sempre estiveram em maior número que as más. A quem o registro realmente pertencia? Olhei em volta da sala. Quem quer que fosse poderia estar aqui agora, observando. Louco para fazer mais cinco marcas na página. — Como é que vamos corrigir isso? — perguntou Lauren.


— É isso que... — disse Tristan. — Nós não sabemos. Até descobrirmos o que está acontecendo de errado, não poderemos saber o que consertar. Um murmúrio perturbador encheu a sala. — Mas vamos descobrir o que, ou quem, é o problema — disse a prefeita. Então ela virou-se e olhou diretamente para mim. — Vocês podem confiar em mim. Meu rosto ardeu tão intensamente que eu poderia ter desmaiado. Então, ela ainda achava que poderia ser eu. Ela só não tinha tomado sua decisão final ainda. Percebendo isso, de alguma maneira eu ainda consegui reunir coragem suficiente para dizer o óbvio. — Enquanto isso, nós temos que parar de conduzir almas — eu disse. A prefeita olhou-me de cima a baixo com frieza. — Eu concordo. O rosto de Nadia suavizou-se. — Nós conversamos sobre isso, e nós dois pensamos que é o melhor plano — Tristan disse à sala. — É melhor este lugar ficar nebuloso e cheio do que mais almas inocentes serem enviadas para a Terra das Sombras. — E quanto as almas que já estão lá? — perguntou Joaquim. — Podemos pegá-las de volta? Houve um silêncio longo e pesado. Ninguém se moveu. Ninguém respirou. — Você já sabe a resposta para isso — disse Tristan finalmente. — Ninguém nunca volta da Terra das Sombras. É por isso que é importante que todos entendam o que precisamos fazer. — A prefeita deu um passo para trás enquanto comandava o controle da sala. — A partir deste momento, não importa quantas moedas cada um de nós tiver, não importa o quão forte é o chamado, ninguém deve sair desta ilha. Estamos entendidos? — Sim — disse a sala como um só. — Ótimo — disse Tristan. Então ele me olhou nos olhos, seu olhar tão intenso que me tirou o fôlego. — Rory — disse ele com firmeza. — Nós precisamos conversar.


37 NINGUÉM COMO VOCÊ Traduzido por Manoel Alves

T

ristan e eu estávamos em silêncio enquanto caminhávamos de volta para sua casa, Krista e a prefeita arrastavam-se um pouco atrás de nós. De vez em quando eu captava o seu olhar; o olhar cauteloso nos olhos dele me fez segurar minha língua. Ele segurou a porta para mim, e juntos subimos as escadas rangentes para seu quarto escuro, a única luz vinha da lua cheia brilhando através da janela. Ele fechou a porta atrás de nós, e eu me virei para olhar para ele. Sua expressão se encheu de tristeza e simpatia, apologética e arrependida. — Eu sinto muito, Rory — disse ele. — Sobre o seu pai. Você deve estar... — Como? — Minha voz falhou. — Como você sabe? — É uma habilidade... especial que eu tenho — disse ele, dando um passo em minha direção. — Quando o encarregado de um Lifer é revelado pela primeira vez para ele, é revelado para mim também. — Então foi assim que você soube sobre Aaron — eu disse, lágrimas inundando meus olhos. Ele acenou com a cabeça. — Você está bem? — Não — eu respondi, balançando a cabeça enquanto as lágrimas transbordavam. — Como posso ficar bem? Ele está seguindo em frente. Ele vai... ele vai me deixar. Tristan fechou a distância entre nós, em seguida, puxou-me em seus braços. Eu inalei o cheiro dele, que era como o cheiro calmante e floral da própria ilha, e liberei toda a miséria, confusão e raiva que eu estava sentindo desde o momento em que eu tive aquele flash. Tristan afastou meu cabelo para trás do meu rosto, agarrando-se ao meu ombro com a outra mão. Ele beijou o topo da minha cabeça e sussurrou em meu ouvido, — Está tudo bem. Estou aqui.


Aos poucos, as lágrimas começaram a desacelerar, minha respiração voltando ao normal, até que finalmente eu estava tranquila. — Onde você estava hoje? — eu murmurei, olhando-o nos olhos. — Onde você estava quando você descobriu que eu ia conduzir o meu pai? — Eu estava na enseada — disse ele. — Com Nadia? A testa de Tristan vincou. — O quê? Não. Não com Nadia. Quero dizer, ela esteve aqui hoje mais cedo, mas eu não iria a nenhum lugar com ela. Eu estava na enseada, lendo. — Lendo? — eu repeti em silêncio. Tristan me soltou lentamente, como se tivesse medo que eu pudesse desmoronar com qualquer movimento brusco, e foi para sua mesa. Pela primeira vez, notei que a pilha em cima da mesa eram dezenas de diários encadernados em couro, alguns com páginas amareladas, outras eram brancas. Ele pegou um do topo da uma pilha e trouxe-o para mim, sentandose na beira da cama. Sentei-me ao lado dele. — O que é isso? — eu perguntei, arrastando minhas mãos sobre meu rosto para tentar secar as lágrimas. — Eu nunca tinha mostrado isso para ninguém — disse ele, inclinando a coluna para cima. — É o meu registro diário. O mais recente. Venho mantendo-os desde que cheguei aqui, por isso são realmente muitos até agora, mas esse é o que importa. — Por quê? — perguntei. Ele piscou e olhou para mim como se fosse muito óbvio. — Porque você está nele. — Tristan estendeu o diário para mim, olhando diretamente nos meus olhos. — Pegue-o. — O quê? — Eu quero que você fique com isso — ele disse com firmeza, colocando-o em minhas mãos. — Eu quero que você veja o que eu escrevi esta noite antes de voltar para a cidade — como você mudou tudo para mim. Fiquei olhando para a capa de couro liso do diário. — Mudou tudo? Tristan ficou em silêncio por um momento, depois soltou um suspiro. — Eu sinto muito por não ter lhe escutado — disse ele em voz baixa. — O que você e Joaquin estavam dizendo... simplesmente não fazia sentido para mim. Era como se vocês estivessem insistindo que o céu não é azul ou que o outro mundo não é redondo. Não fazia sentido. — Até que...? — Passei o dia todo hoje lendo isso — disse ele. — O cara nesse diário, ele é tão... idealista. — Ele riu. — Ele realmente acredita neste lugar. Mas


depois eu pensei no que você disse sobre a Jessica, e no que ela fez e o que aconteceu como resultado, e eu percebi... acreditar neste lugar não significa pensar que nada pode dar nada errado. Foi quando eu soube que eu não poderia fechar os olhos para o que estava acontecendo aqui. — Eu estava voltando para dizer à prefeita quando eu vi o cata-vento — ele continuou. — Isso foi a gota d’água. — Você viu isso? — eu perguntei, levantando minha cabeça. — Você estava lá? Ele acenou com a cabeça. — Eu tinha acabado de chegar na biblioteca quando o nevoeiro surgiu, e eu esperei lá. Eu vi você, quando você correu da sua casa. Eu vi seu rosto — quão devastada você estava — e fui direto para a prefeita. — Nós temos que consertar isso, Tristan — eu disse, desesperada. — Se eu tenho que... — Fiz uma pausa e respirei fundo, ignorando o dardo de dor em meu peito. — Se eu tenho que conduzir o meu pai, eu tenho que ter certeza de que ele está indo para o lugar certo. — Eu sei. — Ele colocou seus braços em volta de mim, e eu descansei meu queixo em seu ombro, fechando os olhos e saboreando a solidez dele. — Nós vamos descobrir. Eu prometo. — Isso é tudo que eu quero — eu respondi. — O que aconteceu com Aaron e Jennifer e as outras pessoas esta noite... não pode acontecer com mais ninguém. Tristan se afastou para que pudesse me olhar nos olhos. — Eu nunca conheci ninguém como você, Rory, você sabia disso? — Vindo de alguém que está aqui há tanto tempo como você, isso significa muito — eu disse levemente. Tristan sorriu e se inclinou para me beijar. Seus lábios possuíam um sabor salgado e meio doce que eu não podia descrever. Eu derramei cada centímetro de mim, cada gota de tristeza e saudade, de terror e desespero, de esperança e de amor, naquele beijo. Ele se afastou, seus olhos azuis procurando os meus por um longo momento. — Eu amo você, Rory Miller. Eu cravei meus dedos nele, agarrando-me a ele. — Eu te amo, Tristan Sevardes. Ele suspirou ao som de seu nome verdadeiro, me puxando para seu peito como se nunca fosse me soltar. Naquele momento eu soube que seja o que for que acontecesse com a minha família, ele nunca me deixaria. Nós estávamos juntos nessa. Para sempre.


38 TERMINAR O TRABALHO Traduzido por Manoel Alves

À

s vezes me incomoda o fato de ser tão fácil enganar as pessoas. É quase como se elas quisessem ser enganadas. Como se achassem que é reconfortante. Como se precisassem tanto acreditar na fachada que eu armei, acreditar em mim, neste lugar e tudo que ele representa, que se permitem ficar cegos para todo o resto. Ou talvez eu seja apenas muito boa. Mas logo, tudo isso vai mudar. Eles não serão capazes de negarem mais. Em breve eles vão me ver como eu realmente sou. Eles vão saber quem realmente detém todo o poder. Eu mal posso esperar.


39 UMA MOEDA DE OURO Traduzido por Lua Moreira

N

o momento em que acordei na sexta-feira de manhã, eu parei de respirar. O ar estalava com um frio sinistro. Eu olhei para o teto, meus dedos enrolando no cobertor ao meu lado, aglomerando partes dele por dentro dos meus punhos. Eu não ia olhar para o criadomudo. Eu não ia olhar. Eu me recusava. Mas depois de dois minutos de olhos arregalados em protesto, meus olhos realmente doeram. Finalmente, eu virei bem lentamente minha cabeça, e lá estava, pousada no centro da minha mesa de cabeceira. Uma. Moeda. De. Ouro. *** — Parece que a Barbie, Minnie Mouse e Hello Kitty se reuniram para planejar o carnaval — eu disse a Bea naquela noite. — Enquanto estavam bêbadas. Estávamos sob a enorme tenda branca colocada atrás da casa de Tristan e Krista, cercada por vasos com topearias envoltos em tule rosa, mesas com louça amarela e rosa magenta, e garçonetes vestidas com tutus de primeiras bailarinas — com sapatilhas de balé, e tudo mais. Bea bebeu suco cor de pêssego de um copo de cristal cintilante e levantou uma sobrancelha para mim. Certo. Ela passou duas horas em uma escada hoje amarrando cuidadosamente guirlandas de contas e tule nas vigas. — Mas de um jeito bom — eu emendei. Eu estava trabalhando duro para me manter firme, para não pensar naquela moeda no meu quarto e o que significava para a minha família. Para não pensar em tudo o que estava acontecendo de errado em Juniper Landing. Para não ficar obcecada com Nadia, Jessica, a prefeita e Oblivion. Acima de tudo, eu tentei não pensar em como a pessoa que estava enviando


pessoas para a Terra das Sombras poderia ser um convidado dessa festa. Poderia estar nos observando agora, à espera de sua chance de pegar almas inocentes. — Sim, claro — disse Bea com um suspiro. — Nós duas sabemos que está horrível. Mas pelo menos ela está feliz. Ela olhou através das dezenas de mesas redondas e da pista de dança de azulejos brancos para Krista, que estava conversando com alguns visitantes em seu vestido de festa rosa godê. Pela primeira vez, eu vi que Bea realmente se importava com a nossa garota “aniversariante”. Os Lifers eram todos muito diferentes, mas eles eram uma família. — Está se divertindo? Tristan passou os braços em volta de mim por trás e acariciou minha nuca. Bea deu-nos uma espécie de olhar aborrecido e rapidamente desviou o olhar. — Está legal — eu disse enquanto ele beijava minha bochecha e se movia para ficar ao meu lado. Ele estava vestindo uma camisa polo azul clara e bermuda de linho branco, com o cabelo loiro roçando as sobrancelhas. — É bom apenas pensar em outra coisa por um tempo. — Concordo — disse Bea, engolindo o resto de sua bebida. — E o que eu estou pensando é em pegar mais ponche. Vocês querem alguma coisa? — Eu estou bem — disse Tristan. — Eu também — eu acrescentei, inclinando-me para ele. Bea revirou os olhos e se afastou, puxando a barra de sua minissaia jeans para baixo. Na pista de dança no centro da tenda, Lauren estava se soltando junto com uma multidão de visitantes, enquanto Pete era o DJ em uma cabine ao lado. As lanternas de papel e pedaços de guirlanda balançavam na brisa do mar enquanto as bailarinas entregavam saladas e champanhe nas mesas, então se afastavam, fazendo piruetas com os braços livres levantados elegantemente. Era como se todo o serviço fosse uma dança coreografada. O Oficial Dorn se arrastou lentamente em torno da tenda, as mãos cruzadas atrás das costas, mantendo um olhar furtivo sobre os convidados. Ele olhou para cima e encontrou meu olhar. Olhei para ele, até que ele desviou o olhar. — Que tipo de festa você acha que você vai ter para o seu aniversário? — perguntou Tristan, segurando-me mais perto. — Eu não sei — eu respondi. — Eu nem sequer pensei nisso. A ideia de estar aqui por um ano... parece impossível. — Espere até você estar aqui por cem — disse ele, meio brincalhão, meio sombrio.


Foi a primeira vez que ele sequer chegou perto de se aproximar da verdade sobre seu tempo na ilha. — Como é estar vivo por tanto tempo? — eu perguntei, virando-me para encará-lo e passando os braços levemente em volta do seu pescoço. Dorn passou por trás de Tristan, e eu ignorei seu olhar, mordendo minha língua para não perguntar onde sua amiga Nadia estava esta noite. — Você não se cansa? Você nunca quer apenas... — Acabar com isso? — Tristan perguntou, com uma cintilante sombra em seu rosto. — Eu não posso dizer que eu não tenha pensado sobre isso nos dias mais sombrios — tentado descobrir uma maneira de seguir em frente a partir daqui. Mas então eu lembro que eu devo estar aqui. Que este lugar precisa de mim. E eu só... sigo em frente. Eu levantei a outra mão e entrelacei os nossos dedos. — Você vai ter que me mostrar como fazer isso, quando eu começar a ter dias mais sombrios. Ele me deu um sorriso confiante. — Eu vou — ele disse, beijando a ponta do meu nariz. — Você sabe que eu vou. Eu derreti nele, e nos abraçamos por um longo tempo. Então ele viu algo sobre o meu ombro e se afastou. — O que foi? Virei-me para encontrar meu pai e a prefeita caminhando para a festa juntos. Ele estava vestindo um paletó desabotoado sobre a camisa, e ela estava com um lindo vestido preto com rendas no decote. Seu cabelo estava solto pela primeira vez desde que eu a conheci e estava tão longo que caía sobre seus ombros de uma forma feminina. Meu pai estava com a mão na parte inferior das costas dela, enquanto eles passavam em torno das mesas juntos. Meu estômago se apertou com o gesto íntimo. — Eu não quero nem saber — eu disse, engolindo em seco. Atrás de meu pai, Darcy e Fisher entraram na festa, formando um par deslumbrante, ele em uma camisa totalmente branca que contrastava com sua pele escura, ela em um vestido preto colante e saltos vermelhos. Eu vi algumas cabeças girarem à medida que eles passeavam por elas, e eu podia ler o ciúme nos olhares das meninas. Era assim que as pessoas sempre olhavam para Darcy. Como se a odiassem e quisessem ser ela, tudo ao mesmo tempo. Fiquei contente que Fisher a tinha trazido aqui. Darcy merecia uma festa. — Eu acho que todo mundo está acompanhado esta noite — disse Tristan enquanto uma nova música começava e Lauren e sua legião de visitantes comemoravam.


— Desde que estejamos juntos, isso é tudo que me importa — eu disse, descansando minha cabeça em seu ombro. De repente, uma série de explosões nas proximidades matou toda a conversa. A música parou abruptamente, e Krista gritou. — Krista? — Tristan gritou em alarme. Do nada, uma versão pop de “Feliz Aniversário” explodiu através dos alto-falantes. Tristan e eu olhamos um para o outro, confusos. — Que diabos é isso? Mas as palavras de Tristan ainda estavam pairando no ar quando as pessoas ao nosso redor começaram a ofegar e sorrir. Bea apontou para a parte de trás da tenda e aplaudiu. — O que é isso? — perguntei. — Eu não sei. Tristan pegou minha mão e me levou para a área em torno da tenda. Situado perto da parte de trás da propriedade, a uma distância segura dos convidados, estava uma grande assinatura feita de estrelinhas crepitantes, com as palavras FELIZ ANIVERSÁRIO KRISTA! soletradas em luzes brancas brilhantes. Joaquin estava por perto, olhando Krista com um sorriso arrogante. — Joaquin! Eu não posso acreditar que você fez isso! — Krista gritou, correndo para frente para dar-lhe um abraço. Ela cobriu a boca enquanto assistia seu nome brilhar, e todos começaram a aplaudir. — Cara, você se superou! — Tristan gritou para as vaias e gritos. Ele moveu-se para frente batendo as mãos contra as de Joaquin, e eu parei atrás dele. — Nada mau, hein? — perguntou Joaquim, claramente orgulhoso de si mesmo. Ele levantou a mão em direção à festa, e eu vi Pete, que havia colocado a canção “Feliz Aniversário”, acenar de volta. — Estou atordoada — disse Krista. — Eu pensei que você tivesse dito que essa coisa toda era idiota. Joaquin encolheu os ombros modestamente. — Sim, bem, era importante para você, então... — O melhor presente de aniversário de todos — Krista disse a ele. — Isso está indo bem, eu acho — disse Tristan, olhando por sobre a festa. — Até aqui tudo bem? — Sim — disse Krista. — Nenhuma neblina equivale a um bom aniversário. Olhei de volta para a tenda, onde Fisher e Darcy romperam com um beijo. Ela sorriu, feliz.


— Sim. Não está nada ruim. Nós quatro começamos a voltar em direção à multidão. Bea, Cori, e Kevin já estavam buscando suas saladas. Vi meu pai puxando uma cadeira para a prefeita, e de repente senti uma sensação de formigamento que começou em meus dedos. Todo o meu corpo ficou frio, e eu parei de forma tão abrupta que levou um momento para Tristan perceber que eu não estava ao lado dele. — Não — eu disse, apertando a minha mão ao meu coração enquanto meus olhos se enchiam de lágrimas. Mas a sensação efervescente não parou. Ela só veio mais forte, girando através de mim, borbulhando de meus dedos do pé e todo o caminho através do meu tronco para a minha cabeça. — O que foi? — disse Tristan, os restos de um sorriso ainda iluminando seu rosto. — O que há de errado? Minha garganta fechou completamente. Olhei para Tristan, desesperada, até que a percepção tomou conta de seu rosto. Então, de repente, um silêncio tomou conta de toda a costa. Bea deixou cair o garfo e olhou para nós. Lauren parou de dançar. Aos poucos, todos os outros na pista de dança ficaram em silencio também. Foi quando eu senti, subindo nas minhas pernas e nos meus ombros. A umidade fria dela. Os primeiros dedos da névoa enrolando em volta dos meus pés e meus joelhos ficando fracos. As estrelinhas começaram a assobiar e queimar, morrendo uma a uma. — Filha da... — Joaquin disse, virando-se para enfrentá-la. A névoa rolou em cima do penhasco, correndo em direção a nós sobre a grama. Tristan, Krista e Joaquin me encararam severamente até que a névoa os consumiu. — É o meu pai — eu resmunguei finalmente, o assobio da névoa em meus ouvidos. — Eu tenho que levar o meu pai.


40 ARRUINADO Traduzido por Manoel Alves

U

m caminho claro para o meu pai abriu no nevoeiro. Eu podia vê-lo claro como o dia, olhando com admiração, cegamente, em meio à névoa. Era para eu andar por esse caminho, pegar o seu braço, e conduzir ele sobre a ponte para a vida eterna. — Não — eu gritei. — Não! Eu não vou fazer isso. Eu não posso. — Eu me virei e corri, a neblina me engolindo de todos os lados. — Rory, não! — Tristan gritou. Eu praticamente podia senti-lo vindo atrás de mim e aumentando a velocidade. — Não! — Joaquin gritou. Parecia que ele estava em algum lugar à minha esquerda, mas era impossível dizer. Ainda assim, eu virei à direita, com lágrimas escorrendo dos meus olhos, deslizando pelo meu rosto, e pingando sobre meus ombros. Meu pai ia morrer. Ele ia morrer de verdade. Essa era a verdade, não era? Ele ia seguir em frente? Ele estava indo embora, e eu iria ser deixada aqui. Sozinha. — Rory! Pare agora! Algo na voz de Joaquin me fez congelar. Eu recuperei o fôlego, o esforço áspero arranhando meus pulmões. — Não. Se. Mova — Tristan instruiu. — Você está bem na borda do penhasco. Engoli em seco, minha cabeça pesando. De repente, eu podia senti-lo, o vazio na minha frente. Meu dedo se contraiu, e uma pedra caiu por cima da borda, clicando ao longo da parede para o nada sem fim. Eu tinha quase caído. Eu poderia ter morrido. Exceto... — E daí? — eu gritei, minha voz embargada enquanto eu me virava. Eu não podia vê-los. Não havia nada além do nevoeiro. — Eu não posso


morrer, certo? — eu gritei para o nada, meus dedos curvando ao meu lado. — Quem se importa se eu cair? — Não — disse Tristan, aparecendo em um redemoinho da névoa, com a mão estendida. — Você não pode morrer. — Mas você pode quebrar todos os ossos do seu corpo — Joaquin acrescentou, dando um passo ao lado de Tristan. — E acredite em mim, isso dói. Deixei Tristan fechar a lacuna entre nós e me puxar para longe da borda. Lá em baixo, as ondas se quebravam mais alto. — Está tudo bem, Rory — Tristan me garantiu, segurando-me no comprimento do braço. — Ninguém espera que você o leve. — Claro que não — acrescentou Joaquin. — Nós fizemos um pacto. — Não é isso — eu disse, fungando conforme balançava minha cabeça. — Eu não posso levá-lo hoje à noite, mas eu vou ter que fazer isso, eventualmente. Eu vou ter que dizer adeus ao meu pai. Eu tive que dizer adeus à minha mãe, e o próximo vai ser o meu pai, e depois Darcy... — Eu senti como se meu peito estivesse se abrindo. Como se ele nunca fosse ser consertado. — Eu não sei como eu vou fazer isso, Tristan — eu engasguei. — Não é justo. Não é... justo. — Eu sei — disse ele, puxando-me para ele e deixando-me chorar por toda a sua camisa azul imaculada. — Eu sei que não é justo. — Isso é tão tenso — disse Joaquin. — Nós nunca tivemos um Lifer que teve que sentar e assistir seus familiares irem um por um. Deixei escapar um soluço alto. — Cara. Apenas pare de falar — disse Tristan. Joaquin empalideceu. — Sinto muito. Em algum lugar nas profundezas da névoa, uma porta de carro fechou, e um motor acelerou. Um arrepio passou por mim. Ninguém deveria estar dirigindo nessa confusão, o que me fez pensar que tipo de pessoa tentaria, e por que razão. — Olha, não vamos descobrir o que está acontecendo ou como consertaremos isso hoje à noite, e ninguém vai levar o seu pai — disse Tristan, me liberando. — Então por que você não vai para casa com sua família? Passe algum tempo com eles esta noite. É isso que você deveria estar fazendo. — É mesmo? — eu perguntei, olhando para trás, para o que pensei ser a direção de casa. — Como faço para eles irem embora? Darcy me odeia, e meu pai está, claramente, em um encontro.


— Diga ao seu pai que você está vomitando — disse Joaquin. — Ele vai voltar para casa com você. Eu atirei-lhe um olhar de nojo, mas ele apenas deu de ombros. — E ele vai fazer Darcy ir junto, porque ele não vai querer deixá-la para trás nesta — acrescentou Tristan. — Ótimo. Então ela vai me odiar — eu murmurei. — Ela vai pensar que estou mentindo apenas para estragar sua noite ou algo assim. — Então, enfie o dedo em sua garganta e vomite se você tiver que fazer — disse Joaquin. — Isso vai finalizar o trabalho. Eu ri com descrença, mas não disse nada, e eu sabia, então, como a situação era urgente. Isso não era uma piada. Era o momento para eu e minha família irmos para casa e passar algum tempo juntos. Nós não tínhamos nenhum tempo de sobra.


41 NOITE DE CINEMA Traduzido por Manoel Alves

—E

este filme é estúpido — Darcy resmungou, aconchegandose ainda mais nas almofadas do sofá. — Morda sua língua — meu pai rebateu, com o braço pendurado em volta dos meus ombros. — Este é um dos maiores filmes de todos os tempos. Estávamos assistindo Super-Homem — o original da década de 1970 — em seu laptop, que brilhava intensamente no centro da mesa de café. Era ridiculamente brega, mas era um dos favoritos de meu pai, por isso, no momento, eu não me importei. — Tudo bem, mas vamos assistir Footloose depois — Darcy murmurou. — Com Kevin Bacon? — disse meu pai, esperançoso. Darcy lançou-lhe um olhar, como se tivesse vergonha de compartilhar o mesmo ar que ele. — Por favor. Pareço ter quarenta? — Tudo bem, tudo bem. Vamos assistir a sua versão. E você, Rory? — perguntou o meu pai. — Qual é a sua escolha para a nossa noitada de filmes? — Eu não me importo — eu disse honestamente, puxando a almofada por cima dos meus ombros. — Eu vou assistir qualquer coisa. — Um Homem Fora-de-Série, então — ele anunciou. Darcy gemeu, e eu abafei uma risada. Por minha parte, papai poderia ter o que quisesse. Eu não tinha sido forçada a fingir uma doença para que ele abandonasse a festa. A prefeita havia desaparecido misteriosamente, e ele disse que estava mais do que pronto para “ir embora desse lugar chato”, foram as palavras dele. Darcy tinha sido o mais difícil de convencer, mas meu pai bateu o pé. Joaquin estava certo. Ele não a queria voltando para casa sozinha no meio do nevoeiro. Então, aqui estávamos agora, abrigados em nossa pequena casa, a neblina ainda nublando as janelas enquanto fazíamos nossa maratona de filmes de família. Conforme o Super-Homem lutava com seu colar de


criptonita na tela, eu descansei minha cabeça contra o peito do meu pai e ouvi seus batimentos cardíacos improváveis. Eu não tinha feito isso há tanto tempo — ficar abraçada com meu pai — não desde que eu era uma garotinha. Agora era o único lugar que eu queria estar. Ele ainda estava quente, ainda respirando, ainda estava aqui. E isso era tudo que importava. Olhei pela janela da sala de estar para o nevoeiro do lado de fora, e um par de olhos sinistros e brilhantes olhou para mim. — Pai — gritei. — O quê? — ele perguntou. — O que foi? — Lá fora! Eu vi... Mas quando eu olhei para a janela novamente, os olhos tinham desaparecido. Fui até a porta da frente, tremendo, e a abri, encontrando um muro de nevoeiro cinza. Ao longe, um corvo grasnou. — Quem está aí? — eu exigi, enquanto meu pai e Darcy andavam atrás de mim. — Quem está aí? Silêncio. Nada, além do assobio do nevoeiro. — Foi, provavelmente, apenas um pássaro ou algo assim — disse Darcy, caminhando de volta para seu assento. — Este nevoeiro pode realmente mexer com a sua imaginação — meu pai acrescentou, colocando as mãos sobre meus ombros. — Venha. Vamos voltar para o filme. Ele esperou que eu fechasse a porta, em seguida, me levou de volta para o sofá. Nos acomodados juntos, mas desta vez eu descobri que não conseguia relaxar. Enquanto meu pai e Darcy assistiam Super-Homem salvar o planeta, eu mantive meus olhos sobre a janela e o turbilhão de nevoeiro no exterior. Alguém tinha estado lá fora, nos observando. Eu tinha certeza disso. E quem quer que fosse estava em busca de sangue.


42 OUTRO BELO DIA Traduzido por Manoel Alves

U

m alegre canto dos pássaros de manhã me puxou do meu estado sonolento no sábado. A primeira coisa que notei foi que meu rosto não estava no meu travesseiro, mas preso em algo com ranhuras — macio mas com ranhuras. Pisquei para abrir os olhos e olhei ao redor, desorientada. A sala de estar. Certo. Eu tinha desmaiado entre Ren ter sido chutado e... o que quer que tenha acontecido depois de Ren ter sido chutado. Olhei para o lado do sofá. Sem Darcy. Eu puxei a almofada de veludo que estava no meu colo, em seguida, estendi os braços sobre a cabeça, bocejando enquanto eu olhava para fora da janela. Era mais uma bela manhã em Juniper Landing. Com uma leve brisa, o sol brilhando, as ondas quebrando à distância... De repente, fui sugada para trás no sofá e atirada contra a parede, e todo o ar saiu de meus pulmões. Sol brilhando. O sol estava brilhando. Eu me joguei fora as almofadas do sofá, gritando, — Pai! Eu tropecei em uma poltrona enquanto corria para as escadas, e meu dedão do pé explodiu em dor. Lágrimas queimaram meus olhos enquanto eu tropeçava para frente, agitada, tremendo, com falta de ar. Ele não tinha ido embora. Ele não podia ter ido embora. — Pai! Papai! — eu gritei, subindo a escada. Abri a porta do seu quarto. Sua cama estava feita. Não havia chinelos no tapete ao lado dela. Não havia romances gastos sobre o criado-mudo. Nem copos, nem caneca de café, nem pilhas de páginas de manuscritos. Lágrimas transbordaram em meu rosto, eu cambaleei para o armário e o abri. Duas dúzias de cabides vazios olharam para mim. Tudo se foi. Tudo. — Não! — eu gritei, girando ao redor. — Não!


Corri para a porta de Darcy e estendi a mão para a maçaneta, quando, de repente, a porta se abriu. Darcy, usando uma camisola preta, estava diante de mim, com o cabelo em um emaranhado. — Por que você está gritando? — ela exigiu através de seus dentes, seus olhos meio abertos. — Onde está o papai? — eu gritei. Houve um momento de silêncio, então o rosto de Darcy lentamente fechou-se em confusão. — Papai? Ela pronunciou a palavra como se nunca a tivesse ouvido ou falado antes. Seus olhos eram de um branco total. Minha irmã tinha esquecido o nosso pai. — Oh meu Deus — eu disse baixinho, virando-me sobre meus joelhos que estavam tão fracos que se dobraram. Obriguei-me a respirar. Como isso podia estar acontecendo? Eu era a única que deveria conduzi-lo. Foi o que eles tinham prometido. Ninguém mais sairia da ilha. Eles haviam feito um pacto. E, de repente, algo me ocorreu. O pacto. Nadia. Nadia pareceu tão traída quando a prefeita concordou com meu plano. Ela não queria parar de conduzir almas. Por quê? Porque se nós parássemos, não haveria mais nada para me incriminar. Foi ela o tempo todo. Era ela que estava fazendo tudo isso e tentando me incriminar. Foi por isso que ela tinha sido a única Lifer que não tinha ido à festa de Krista na noite passada. Ela provavelmente estava em algum lugar — planejando sua vingança final. Ela queria tanto Tristan que estava disposta a trair os Lifers, conduzir o meu pai antes de seu tempo, e me enviar para Oblivion no processo. De repente, lembrei-me do par de olhos sinistros nos observando através da janela na noite passada. O par de olhos escuros e brilhantes. — Oh meu Deus — eu disse de novo. — Oh meu Deus, oh meu Deus, oh meu Deus. — O que diabos está acontecendo com você? — Darcy exigiu. Calcei meus sapatos e corri, mal descendo nos degraus da escada direito. Parei quando vi a mesa ao lado da porta, vazia. Ela tinha tirado a foto de família. A única que eu tinha da minha mãe, do meu pai, de Darcy e eu juntos. Eu ia matá-la. Batendo a porta atrás de mim, eu corri para a cidade. Na Freesia, o ciclista com sua prancha de surf desviou em torno de mim e caiu, mas eu não


me importei. Atirei-me na Rua Principal e quase colidi com o peito de alguém. — Rory! Era Joaquin. Ele segurou meus dois braços em um aperto de morte quando me inclinei para ele, arfando, ofegando por ar. Em meus pés, uma longa fila de formigas marchava em direção ao meio-fio. — Onde está o meu pai? — eu implorei. — Onde está o meu pai, Joaquin? Onde ele está? Inclinei-me sobre seu ombro, tentando dar uma olhada na casa da prefeita, necessitando ver. — Rory — disse ele, girando-me em um círculo, tentando me colocar de costas para o penhasco. — Não. Acalme-se. Apenas... — Fiquem longe de mim! — eu gritei, empurrando-o com tanta força que ele caiu na calçada. Por uma fração de segundo, nós dois nos encaramos, atordoados. Então eu me virei para olhar. Lá estava o cata-vento, dourado e luminoso contra o céu azul brilhante, pousado com o seu cisne orgulhoso, como se a sua mensagem fosse impecável, como se tivesse todo o poder do mundo. E estava apontando para o sul.


43 EVIDÊNCIA Traduzido por Yasmin Mota

—A

onde você vai? — Joaquin perguntou, enquanto eu corria para longe dele e começava a atravessar a cidade, minha visão tão borrada que eu mal conseguia enxergar direito. — Foi Nadia — eu cuspi, mantendo meus olhos na casa de Tristan. — Eu sei que foi. Eu vou dizer à Tristan e à prefeita. — Rory, pare! — Joaquin gritou. Ele agarrou meu braço quando cheguei ao meio-fio, e um carro parou bruscamente. — Você vai se machucar. Pare e respire um pouco. — Respirar? — eu gritei, meu coração fragmentando no meu peito. — Meu pai está na Terra das Sombras! Eu não posso respirar! Bea apareceu ao nosso lado. Seu rosto estava todo vermelho, e seu cabelo estava mais escuro na raiz, encharcado de suor. Fisher e Kevin estavam logo atrás, suas mandíbulas apertadas, parecendo sombrios. — O que aconteceu? — Bea perguntou, com falta de ar. — Onde está o nevoeiro? — O pai dela foi levado — Joaquin lhes disse, ainda segurando meu braço. — O quê? — Os olhos de Kevin se arregalaram. — Quem? — Nadia — eu disse, rangendo os dentes. — Você está brincando — respondeu Bea. — Nós não sabemos ao certo — disse Joaquin, apaziguando. — Não. Você não sabe ao certo. — Abaixei minha voz enquanto dois visitantes passeavam, despreocupados, de mãos dadas. — Eu sei o que vi. Ela estava na minha janela ontem à noite, nos observando. Apenas esperando nós adormecermos para que ela pudesse levá-lo. Lágrimas encheram meus olhos enquanto eu me lembrava da sensação dos braços do meu pai ao meu redor, minha bochecha descansando contra


seu peito. Lutei o máximo que pude para mantê-las afastadas. Eu não podia desistir agora. Eu tinha que ajudar meu pai. — Rory, eu sei que você não gosta de Nadia e ela não gosta de você — disse Bea. — Mas ela nunca faria algo assim. Ela vive para as regras, quase tanto como Tristan. — Foi ela, Bea. Eu juro para você. — Olhei para os óculos espelhados de Fisher e ele os tirou, como se percebesse que aquilo era muito importante para não me olhar nos olhos. Pela primeira vez durante toda a semana, eu sabia exatamente o que sentia por ele — sentia que ele poderia ser útil. — Onde Nadia mora? — O quê? — perguntou Fisher, olhando para Joaquin. — Uh... lá embaixo, perto das docas. Por quê? — Traga ela — eu disse. — Vá sozinho, leve alguém, o que você quiser fazer. Só a traga. Fisher riu nervosamente. — Hum, tudo bem. Eu não sei o que você está pensando agora, mas eu não recebo ordens de... — Traga ela — Joaquin resmungou. Fisher olhou para ele. — Vai, Fish. Quanto mais cedo nós a deixarmos contar o seu lado, melhor será para nós. — Eu estou indo — disse Fisher, e ele saiu correndo em direção à baía. — Nós estaremos na cada de Tristan! — eu gritei para ele. Então me virei e subi rápido a colina. Joaquin, Bea e Kevin estavam logo atrás de mim. Olhei turvamente para o cata-vento. Meu pai está na Terra das Sombras. Ela o mandou para a Terra das Sombras. Um soluço irrompeu dos meus lábios, e eu o engoli. Eu não podia pensar nisso. Não agora. Se eu pensasse nisso, iria cair em turbilhão negro de desespero, e eu não podia deixar isso acontecer. Eu era a única esperança do meu pai. Nadia era a chave. Se ela o tinha enviado para lá, ela tinha que saber como trazê-lo de volta. E se alguém poderia fazê-la falar, era a prefeita. No momento que eu cheguei ao topo da colina, vi Cori e Pete sentados no banco na bifurcação do caminho, uma trilha levando de volta para baixo da colina, em direção à praia e a outra para a casa. Duas bicicletas sujas estavam na grama ao lado deles. Ambos levantaram quando me aproximei. — Fique longe de mim! — eu gritei, virando em direção à casa. — Onde ela está indo? — Cori perguntou atrás de mim. — Ela enlouqueceu — Joaquin respondeu. — Ela acha que Nadia levou o pai dela. — O quê? — Cori gritou.


— Onde ela está, afinal? — Bea perguntou enquanto todos corriam para me acompanhar. — Eu não sei — respondeu Pete. — Eu não a vejo desde o Swan na quinta-feira. Eu pressionei meus lábios juntos, triunfante. Eu sabia. Ela tinha evitado seus amigos ontem? Foi ela. Tinha que ser ela. — Tristan! Prefeita Parrish! — corri para a varanda. Eu tropecei ao subir os degraus, e Krista abriu a porta. — Rory! Você está bem? — ela perguntou, dando um passo em minha direção. — Onde está sua mãe? — eu exigi. — Onde está Tristan? — Oh... ah... a prefeita não está aqui. Mas Tristan está no quarto, eu acho — disse ela, hesitante. — Por que você não... Passei por ela e subi as escadas rapidamente. Eu tinha que chegar até ele. Eu precisava dele. Eu precisava que ele me dissesse que iria me ajudar a corrigir isso. Que tudo ficaria bem. — Tristan! — eu chorei, minha voz falhando. — Tristan! A porta do quarto estava completamente aberta. Ele não estava lá, mas, no meio de sua cama, estava uma bolsa de cordão vermelho, com o fundo pesado e cheio. A visão daquilo, tão estranha e fora do lugar, me fez parar abruptamente. Eu respirei fundo e instavelmente enquanto ouvia o resto dos Lifers subindo as escadas. Joaquin olhou por cima do ombro para o quarto. — O que é isso? — ele disse. — Eu não sei — respondeu Krista. Com a confiança de quem tinha estado neste quarto dez milhões de vezes antes, Joaquin passou por nós e abriu a bolsa. Seu rosto perdeu a cor tão rápido que eu pensei que ele ia desmaiar. Ele olhou para mim, os olhos arregalados de terror. Todo mundo congelou. Bea e Kevin deram dois passos atrás de mim no quarto, enquanto Krista ficou enraizada comigo na porta. Cori e Pete pairaram no topo das escadas. — O que foi? — eu arfei. — O que há de errado? Joaquin virou a bolsa de cabeça para baixo. Dezenas e dezenas de enormes moedas de ouro choveram sobre a colcha, tilintando uma canção feliz ao deslizarem para fora, formando uma pilha bagunçada. Krista cobriu a boca com as duas mãos. Nadia se inclinou contra a parede. — Pu-ta. Merda — disse Kevin. Então, todos nós ouvimos um passo no corredor. — Rory? — disse a voz de Tristan.


— Tristan, não! — disse Krista. Mas ele já tinha entrado no quarto. Seus olhos focaram na pilha de moedas e seu rosto ficou frouxo. — Tristan? — eu disse, devagar. — O que diabos está acontecendo? — Joaquin exigiu. Lentamente, Tristan inclinou o queixo para cima. Ele me deu um longo olhar. As profundidades de seus belos olhos azuis rodaram com choque, dor, medo — e culpa. Senti algo irregular cortando meu coração, e meus joelhos começaram a dobrar. Então ele se virou e saiu correndo.


44 FAZÊ-LOS PAGAR Traduzido por Manoel Alves

E

u estava bem no fundo da caverna, uma lanterna presa no chão aos meus pés, brilhando em seu nome. TRISTAN SEVARDES (PARRISH) 1766.

Ele me fez acreditar que me amava, que ele estava disposto a mudar tudo por mim, mas tudo tinha sido um estratagema para me tirar do jogo. Ele e Nadia estavam juntos o tempo todo. Esse confronto entre eles na noite em que nos beijamos pela primeira vez tinha sido uma farsa. Ele estava mentindo para mim desde o primeiro dia. Armando para eu levar a culpa. Eu era tão estúpida. Tão, tão, tão estúpida. O vento movia-se do lado de fora, uivando através da boca da caverna. Eu tremi dentro do meu moletom pesado e o trouxe para mais perto. Eu nunca mais iria confiar em ninguém. Eu nunca iria me permitir amar. Claramente, eu não tinha senso sobre as pessoas, não tinha a capacidade de julgar o caráter, eu não possuía nenhuma ideia do que estava acontecendo na mente de outra pessoa. — Rory? A voz de Joaquin ecoou pela caverna, me rodeando, enchendo-me com um sussurro de esperança. — Aqui atrás — eu gritei. Sua luz da lanterna se lançou através da parede, iluminando fragmentos coloridos de nomes, uma profusão de letras e números. Gostaria de saber se Tristan tinha estado aqui, naquela noite, quando eu vim aqui para descobrir o nome dele. Se ele tinha se escondido de mim nas sombras. Se ele tinha deixado sua contagem para trás na pressa de fugir de mim. Bile subiu na minha garganta com a milionésima percepção de quão estúpida eu era.


Nunca mais. Nunca. Depois de um momento, Joaquin e Krista apareceram. Eu os havia deixado um pouco mais de uma hora atrás, mas os dois pareciam que tinham sido abandonados em algum lugar por dias. A camiseta branca de Krista tinha um traço de sujeira na frente, e a testa de Joaquin estava vermelha com queimaduras solares. Eles estavam sem ar quando pararam atrás de mim. — O que você está fazendo? — perguntou Krista, olhando para a lata aberta de tinta vermelha nos meus pés, o pincel saindo do topo. — Eu percebi que eu nunca adicionei meu nome na parede — eu disse friamente. Eu não deixaria minha voz trair minhas emoções. Quando comecei a deixar minhas emoções fluírem para fora, elas me afogaram. Meu olhar aguçado lançou-se para Joaquin. — Você já a encontrou? Nadia? — Ainda não, mas nós vamos — disse Joaquin, ofegante conforme eu virava de costas para eles e encarava a parede. Ele estendeu a mão para agarrar meu ombro. — Você está bem? — Não. Eu sou uma idiota — eu disse, olhando para o nome de Tristan. — Há várias coisas que eu estou lembrando. Na outra manhã em que eu entrei no quarto dele, ele escondeu algo na escrivaninha dele — provavelmente as moedas. — Eu olhei para Krista. — Então, você ouviu ele e Nadia conversando na quinta de manhã e eles estavam ambos fora o dia todo — e no mesmo dia cinco almas foram conduzidas? Eles devem ter estado em algum lugar, planejando. Certificando-se de que tudo aconteceria perfeitamente. — Eu não consigo ouvir isso — disse Krista, balançando a cabeça e dando alguns passos em direção à fogueira. Apertei os lábios enquanto olhava por cima do meu ombro para Joaquin, sabendo o quão difícil isso devia ser para ela. — Lembra daquela contagem que encontrei no outro dia? Aquela que Pete tirou de mim? — eu disse, e Joaquin assentiu. — Eu acho que era deles. Eu acho que foi por isso que Nadia imediatamente soube o que era e tentou ligá-la a mim. Eu vi Tristan fazendo esses mesmos tipos de marcas na areia no outro dia. — Isso é loucura — disse Joaquin, esfregando a testa. — Isso não pode estar acontecendo. — Eu só não havia entendido até hoje — eu terminei. — Pare com isso — Krista estalou de repente, vindo até nós. Sua pele tinha ido do branco ao vermelho, e eu nunca tinha visto seus olhos tão


irritados. — Tristan é o melhor de todos nós. Não há maneira de ele ter algo a ver com isso. — Krista... qual é a outra explicação, então? — perguntei. — Ele estava passando por muita coisa — disse Krista, olhando para o teto. — Ele estava distraído. Talvez Nadia tenha plantado as moedas em seu quarto, você já pensou nisso? — Então por que ele fugiu? — perguntou Joaquim. — Por que ele está se escondendo? Krista só olhava para ele. Ela não tinha uma resposta para isso. — E por que ele está com isso? — Enfiei a mão no bolso de trás da minha calça jeans e desdobrei a foto da minha família. — Onde você conseguiu isso? — perguntou Joaquim. — Quando vocês foram atrás de Tristan, Fisher voltou para nos dizer que Nadia tinha ido embora, e ele e Kevin vasculharam o quarto de Tristan — eu disse a eles. — Eles acharam isso na parte inferior do seu sapato. Eu olhei para a foto, encarando os olhos sorridentes do meu pai, antes de dobrá-la e colocá-la de volta no bolso. — Então o que vamos fazer agora? — perguntou Krista. — Simples. — Eu abaixei e peguei o pincel, raspando o excesso de tinta de suas cerdas na lata. — Nós descobriremos como trazer o meu pai, Aaron, Jennifer e os outros de volta. Eu levantei e comecei a pintar meu nome logo acima do de Tristan, a cauda do R tocando o topo do T. Precisei de toda a minha concentração para meu braço parar de tremer, mas eu consegui trabalhar com ele. — Mas como? — perguntou Joaquim, vendo o pincel como se estivesse hipnotizado. — Ninguém nunca voltou. — Tem que haver um jeito — eu disse com firmeza, mordendo minha língua para não rachar com as imagens do meu pai, Aaron e Jennifer rodando pela minha mente. Mergulhei o pincel na tinta novamente e metodicamente escrevi o meu último nome, Miller. — Se as pessoas podem ser enviadas erroneamente, tem que haver uma maneira de trazê-las de volta. Temos que acreditar nisso. — E depois? — perguntou Krista. — Se os recuperarmos. O que acontece então? Eu não respondi. Não até que eu tinha terminado. Não até que o meu nome estava totalmente inscrito na parede por toda a eternidade. RORY MILLER (THAYER) 2013.


A curva inferior escorria pela parede de rocha escarpada, a tinta vermelho-sangue estragando o topo do h branco de Parrish. Satisfeita, eu deixei cair o pincel de volta na lata e os encarei. — Então, vamos encontrar Tristan e Nadia — eu disse claramente. — E nós iremos fazê-los pagar.

FIM!


PRÓXIMO LIVRO: ENDLESS (INFINITO)

Sinopse: Rory Miller não apenas se apaixonou por Tristan Parrish. Ela se apaixonou pela ideia do para sempre. Ele foi o único que disse a ela a verdade sobre sua existência em Juniper Landing: que sua vida mortal acabou, e ela agora vai passar a eternidade na ilha, ajudando os outros no limbo a seguir em frente. Mas, como Juniper Landing, uma ilha brilhante com segredos obscuros, Tristan é bom demais para ser verdade. O garoto misterioso e dolorosamente lindo que Rory pensou que conhecia é responsável por um impensável mal — enviar as almas boas para a Terra das Sombras, a fim de obter uma segunda chance de vida na Terra. Ele já fez isso com o amigo de Rory, Aaron, e com seu próprio pai, mas quando Tristan envia sua irmã, Darcy, à Terra das Sombras também, Rory decide fazer justiça com as próprias mãos. Ela fará de tudo para salvar sua família, mesmo que isso signifique ir ao inferno e voltar.


TRILOGIA SHADOWLANDS Shadowlands Hereafter Endless


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