ÉS - Da Poesia à Poética - Caderno de introdução à Estética

ÉS - Da Poesia à Poética

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UNIVERSIDADE NACIONAL TIMOR LOROSA’E

Universidade Nacional Timor Lorosa’e Reitor Dr. Francisco Miguel Martins Expediente Universidade Nacional Timor Lorosa’e Faculdade de Filosofia Avenida Cidade de Lisboa, Dili, Timor-Leste Telefone: (670) 3324031 / e-mail: ff@untl.edu.tl www.untl.edu.tl Coordenador Maria José Barbosa Imagem da capa António Sampaio Projeto Gráfico Sylvia Printing Impressão Gráfica da UNTL Revisão do texto “Caderno de Introdução à Estética” Centro de Língua Portuguesa da UNTL Missão O presente trabalho constitui, sobretudo, um guia introdutório de apoio ao estudo e investigação da disciplina de Estética. A sua elaboração visa a criação de um recurso de apoio às aulas da disciplina de Estética, a serem ministradas na Faculdade de Filosofia da Universidade Nacional Timor Lorosa’e, e de uma primeira aproximação bibliográfica das condições históricas e atuais da arte em Timor.

ISSN: 2708-2679

LIAN ÉS – Da Poesia à Poética, Caderno de Introdução à Estética, Universidade Nacional Timor Lorosa’e, Díli, UNTL, 2019.

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APRESENTAÇÃO

PREFÁCIO

1

MARTINHO BORROMEU

INTRODUÇÃO

3

OS PROBLEMAS FUNDAMENTAIS DA FILOSOFIA ANTIGA

3

MARIA JOSÉ BARBOSA

CADERNO DE INTRODUÇÃO À ESTÉTICA

6

PLATÃO

7

SÍNTESE E ARTICULAÇÃO DAS IDEIAS ENUNCIADAS:

16

ARISTÓTELES

18

SÍNTESE E ARTICULAÇÃO DAS IDEIAS ENUNCIADAS:

30

IMMANUEL KANT

31

SÍNTESE E ARTICULAÇÃO DAS IDEIAS ENUNCIADAS:

40

BIBLIOGRAFIA

41

MARIA JOSÉ BARBOSA

POESIA SAGRADA TIMORENSE

44

ULIK – UM POEMA DE GUERRA

45

BENJAMIM CORTE-REAL E M ARIA JOSÉ BARBOSA SETE POEMAS DEDICADOS À VIDA DOS AGRICULTORES TIMORENSES

54

VICENTE PAULINO POEMA DE CONSAGRAÇÃO DO CASAMENTO TRADICIONAL

62

XISTO VIANA EU E VOCÊ ESTAMOS LÁ E NÃO PARA ELE

64

DUARTE DA COSTA BARRETO BUNEH AS’IR – POESIA DA CERIMÓNIA HAMULAK BUNEH

67

MARIA JOSÉ BARBOSA E DOMINGOS MARQUES

D’ARTE KONSOLIDARTE

74

ARTE COMO MEIO DE CONEXÃO

75

ALESSANDRO BOARCCAECH

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PREFÁCIO

O presente trabalho constitui, sobretudo, um guia introdutório de apoio ao estudo e investigação da disciplina de Estética. A sua elaboração visa a criação de um recurso de apoio às aulas da disciplina de Estética, a serem ministradas na Faculdade de Filosofia da Universidade Nacional Timor Lorosa’e, e de uma primeira aproximação etnofilosófica das condições históricas e atuais da arte em Timor.

No que concerne à disciplina de Estética, com a duração de um semestre, este manual pretende fornecer um possível roteiro de leitura, ainda que introdutório e deficitário, de Estética.

Assim, começar-se-á por introduzir as primeiras intuições filosóficas, com a apresentação da Teoria do Belo em articulação com o Bem e a Verdade, própria do contexto da filosofia clássica grega, até às conceções contemporâneas da Estética, entendida como o estudo dos sentidos e da perceção, tal como foi introduzida por Kant.

O curso, tal como é apresentado neste manual, carece de riqueza bibliográfica e apresentarse-á, seguramente, deficitário e superficial ao leitor familiarizado na matéria, mesmo o nãoespecializado. Tal facto se justifica pela necessidade de fornecer aos alunos, que não têm outro recurso bibliográfico, mais do que referências históricas e nucleares da temática em questão, um possível roteiro de leitura. No que concerne à bibliografia selecionada, recorremos somente à que se encontra disponível na biblioteca da Faculdade de Filosofia da UNTL e na Internet, por forma a possibilitar consultas posteriores. Em virtude do perfil do aluno a que se destina e das condições em que foi realizado, este manual marca tão-somente o início de uma investigação que se pretende contínua. Neste primeiro intento de aproximação à Estética timorense, propomos o seguinte itinerário: da poesia à poética. Da poesia, procurar-se-á, com a colaboração de alguns Docentes da UNTL, recolher uma amostra da poesia sagrada timorense que possa servir, num projeto de investigação futuro, de recurso na fundação de uma nova ética. Na procura das primeiras configurações da mesma, incluir-se-á, na terceira e última parte, algumas imagens de obras de arte que integraram a primeira exposição coletiva de arte contemporânea timorense – Konsolidarte – comentadas pelos próprios autores.

Consagrar-se-á como linha de orientação e de diálogo, para a seleção e grelha de leitura dos autores em análise, a proposta de leitura da história de J. Rancière, nomeadamente, a apresentada em Le partage du sensible (2000). À luz do proposto, o motor da história ocidental não são os factos históricos, seja pela sua razão ou pela distribuição cronológica, mas sim os acontecimentos a-históricos, o que acontece num determinado instante e produz inquietação, medo e/ou estranhamento. Sempre que acontece algo imprevisto e extraordinário, que instiga o pensamento a criar uma outra grelha de leitura da experiência possível, produz-se uma rutura na organização conceptual de que resulta um novo sentido histórico. O regime das artes é esta configuração, organização conceptual que garante a inteligibilidade da história. Ao atribuir uma coerência entre a sensibilidade individual e o sentido da história, a cosmovisão que nasce a partir do acontecimento a-histórico (circuitos de visibilidade e de informação dotados de uma carga simbólica) legitima a própria organização social. É esta perturbação na ordem dos eventos que marca o aparecimento e a mudança de um regime das artes. Na tradição ocidental, podemos distinguir três grandes regimes de identificação das artes – o regime platónico ou o regime ético das artes; o regime aristotélico

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ou o regime poético ou representativo das artes; e o regime kantiano ou o regime estético das artes.

Estes constituem a base do pensamento atual da cultura ocidental.

As verdades prometidas que irrompem a cada acontecimento (a)histórico são impressas na linguagem dos poemas e passíveis de interpretação. As presenças sensíveis das verdades enigmáticas do ethos comunitário encontram-se encerradas nas memórias individuais. Procurar perceber a inteligibilidade do sentido comum de uma comunidade é auscultar as possíveis ligações existentes entre a memória das subjetividades singulares e a memória da comunidade ética. Para tal, e em especial no contexto timorense, procurar-se-á realizar uma primeira aproximação às verdades proféticas encerradas nas poesias sagradas e registar os intentos singulares de dois artistas timorenses de encontrar novas poéticas. Justifica-se, assim, o desejo e a necessidade de um levantamento da cartografia sensível entre a poesia tradicional (heroica) e a poética atual de Timor Lorosa’e.

Martinho Borromeu Decano da Faculdade de Filosofia

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INTRODUÇÃO Não sendo nossa pretensão realizar uma análise exaustiva da proposta teórica de Rancière, procurar-se-á, nesta breve nota introdutória, apresentar os conceitos centrais do seu pensamento para uma melhor compreensão do que se apresentará no corpo do texto.

Rancière defende que tanto a política como a arte produzem discursos que desenham o mapa das relações sensíveis que, por sua vez, consagra e regula uma comunidade. Este mapa sensível espelha a cartografia que estabelece os circuitos do visível, do dizível e do exequível e regula a relação entre os modos de ser, as maneiras de fazer e o poder de dizer. O sentido comum de determinada sociedade é definido pelo poder de cada um de compor para si um recorte sensível no espaço e no tempo. Este sentido, que se aproxima do que usualmente designamos por senso comum, é apreendido por todos os seres humanos que, por sua vez, animam o sentido da história ao imprimir na sociedade as palavras, os gestos e os ritmos dos ciclos de produção/reprodução e de poder/submissão.

O «sensível partilhado» (partage du sensible) é a forma a priori da subjetividade política.

Este sentido comum é o substrato das evidências sensíveis e das formas de legitimação de quem pode ver e «tomar parte» na organização social em função daquilo que faz, do tempo e do espaço que ocupa. Este mapa cartográfico que determina o sentido comum de uma sociedade – as formas de inscrição do sentido da comunidade – instaura o que Rancière (2000) denomina por «inconsciente estético» (inconscient esthétique). A prática artística, segundo o mesmo autor, opera ao nível desta estrutura (inconsciente), que não é a da linguagem ou de um saber fazer (Rancière.

J., 2004, p.37). A arte, para o mesmo, deve procurar alterar a relação das palavras com as coisas ao atribuir às palavras novas ideias, usos e significados e produzir deslocações nas perceções dos indivíduos por forma a incitar a transformação do espetador – o que se limita a ver – em ator – o que abandona a sua postura passiva e entra como protagonista no palco da comunidade (Rancière, J., 2008, pp.7-29). Comecemos, então, por expor os diferentes momentos paradigmáticos de estética acidental e as suas crises.

OS PROBLEMAS FUNDAMENTAIS DA FILOSOFIA ANTIGA Os primeiros filósofos, chamados de “físicos”, “naturalistas” ou “cosmólogos”, procuraram pensar a totalidade do real, vista como physis (natureza), que assumia a dimensão de todo o cosmos. O problema filosófico por excelência era a questão cosmológica.

A principal característica da cosmologia clássica é a afirmação da existência da physis, natureza eterna que se encontra em constante transformação. O fundo eterno, perene, imortal e imperecível aparece como elemento fundamental a todas as propostas teóricas cosmológicas, numa clara rejeição das explicações religiosas da criação do mundo. Pese embora a physis seja imortal, as coisas físicas são mortais. O mundo está em contínua mudança sem, por isso, perder a sua forma e a sua estabilidade.

Sobre esta mesma época da Filosofia, sugere-se a leitura do Guia das aulas de Filosofia Antiga, do Professor J. A. Graça (2010), da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, e o 1.º Volume da História da Filosofia de Nicola Abbagnano (10/2013). A filosofia grega, tal como nos é apresentada por Abbagnano (10/2013), compreende “um certo número de períodos, cada um dos

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quais determinado pela escolha de posição no problema fundamental da pesquisa. Se considerarmos o problema em torno do qual virá sucessivamente gravitar a pesquisa, podemos distinguir cinco períodos: cosmológico, antropológico, ontológico, ético, religioso” (p.23). Estes períodos não correspondem a uma ordenação cronológica, como sugere Abbagnano, pretendem somente assinalar o nascimento, desenvolvimento e decadência do pensamento filosófico na Grécia Antiga (p.24). A divisão da história em épocas depende da grelha de leitura de quem propõe a ordenação. Escrever a história é sempre um ato de interpretação, de ordenação, que parte de uma ideia de história como destino comum e fonte ou origem da própria história, tal como esclarece Rancière (2004, p.61). Rancière, por exemplo, prefere falar de tradição ocidental e não de história ocidental, sob argumento de que os sentidos introduzidos na história se encontram sempre presentes, sempre latentes no ethos coletivo. Há, em Rancière, um claro abandono da leitura progressista e teleológica da história, autor que desvaloriza as categorias temporais de passado e de futuro (Barbosa, M., 2013, p. 39). Na sua leitura, podemos distinguir três grandes regimes, sendo o primeiro o regime platónico, ao qual se segue o regime aristotélico e, por último, o kantiano, tal como afirmámos anteriormente.

No entanto, de acordo com a sequência proposta por Abbagnano, ao período cosmológico segue-se o período antropológico, no interior do qual se reuniram as condições necessárias para o aparecimento do pensamento platónico.

Com o aparecimento das “Olimpíadas”, o homem começa a evidenciar talentos físicos e intelectuais, que assumem progressivamente uma enorme relevância social. No século IX a.C. há uma mudança no modo de instituir o poder. O desenvolvimento das potencialidades do homem, tanto físicas como espirituais (virtude), sobretudo no seu esforço de alcançar a honra (“Areté”), afasta os gregos do exercício do poder pelas armas. Assim, no período socrático ou antropológico, o poder passa a ser identificado como virtude e beleza. Nos poemas épicos de “A Ilíada” e “A Odisseia”, assim como nas tragédias de Sófocles, Eurípides e Ésquilo, o ideal de força é o poder que o homem podia alcançar pelo desenvolvimento harmonioso das suas capacidades e da sua adequada relação com as forças que governam a natureza.

Os problemas morais tornam-se cada vez mais específicos com a distinção entre a esfera do homem individual e a esfera do homem social. Nasce assim a distinção dos problemas éticos e dos problemas políticos. J. A. Graça (2010) descreve esta mutação nos seguintes termos: Da cidade arcaica à cidade clássica; conflitos sociais e experiências políticas; aristocracias, oligarquias, tiranias e tiranias populares; a invenção da democracia; a cidade como espaço e palco privilegiado às aventuras do logos; a palavra como chave da construção de um novo cosmos social e político; as noções de circularidade, centralidade, equidistância e imunidade, como elementos fundamentais para a criação de uma nova consciência cı́vica; a relaçaõ entre a organização fı́sico-polı́tica da cidade e a organização mental do cidadaõ (polites); similitude entre arquitectura urbana e intelectual; o desenvolvimento intelectual, político, económico e cultural sob a égide do regime democrático; virtudes e erros do regime democrático; o regime democrático como um espaço de risco e de oportunidade, de crise, de conflito, de oposição de argumentos; o domínio absoluto da palavra e da persuasão (peitho) sobre qualquer outra forma de poder; o confronto de pontos de vista (theoria) e a necessidade de reflectir para optar (p.62).

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Uma das características gerais da sociedade clássica grega é a tradição oral. O carácter rudimentar da escrita exige uma mobilização total da memória. A importância do conhecimento registado nos Poemas Homéricos atribui aos poetas um elevado estatuto social. Os poetas são os detentores da memória do povo, desde a origem, a fonte e o arquivo da história não escrita. Cabe ao poeta a arte de gerir e convocar a memória e, sobretudo, evocar a inspiração divina (J. A. Graça, 2010, p. 63).

Sócrates, Platão e Aristóteles aparecem neste contexto de efervescência conceptual. À semelhança dos seus precedentes, também eles abordaram os problemas da génese e da natureza do conhecimento, bem como os problemas lógicos e metodológicos, que caraterizam até à atualidade o projeto do pensamento filosófico, ligado ao método da pesquisa racional. As questões que os referidos filósofos procuraram responder eram: como pode o homem alcançar a verdade?

Qual a contribuição dos sentidos e da razão na conquista da verdade? Qual a natureza do verdadeiro e do falso? Quais são as formas lógicas através das quais o homem pensa, julga e raciocina? Quais são as normas para pensar corretamente? Que condições são exigidas para que um tipo de raciocínio possa ser qualificado de verdadeiro?

Platão descobriria, e procurou demonstrar, que a realidade (ou o ser) não é de um único género, que existe uma realidade inteligível para além do cosmos sensível. Esta nova dimensão passaria a ser chamada de metafísica (o estudo das realidades que transcendem as realidades físicas). Essa descoberta leva Aristóteles a distinguir a física como doutrina da realidade física, da metafísica, como realidade suprafísica. A física ficou assim a designar a “ciência” da realidade natural e sensível e a metafísica como a que estuda o que está para além da física. Precisemos, então, o enquadramento conceptual destes dois autores, incidindo no que releva para a disciplina de Estética.

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CADERNO DE INTRODUÇÃO À ESTÉTICA

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PLATÃO Platão recebe, claramente, uma enorme influência da escola pitagórica. A importância atribuída às matemáticas, a complexa arquitetura do universo que marcou o edifício conceptual platónico, mais do que em Sócrates, é um traço claro desta influência. Mas é em Parménides que Platão encontra o seu maior interlocutor, como defende J. A. Graça (2010, p. 126). No poema Da Natureza, Parménides (s.d.) parte do aforismo “um que é, que não é para não ser” (B2) para estabelecer a igualdade entre o “pensar e ser” (B3). Sócrates retoma o princípio de Parménides, no diálogo Parménides de Platão (s.d.), nos seguintes termos: “Declaras em teus Poemas que Todo é um” (II). Partindo do presente axioma, Sócrates conclui, a determinado momento, o seguinte: “Se diz do Uno que é, do ser que é uma unidade; e se não são idênticos o Ser e o Um, o Ser e o Uno pertencem àquilo mesmo que supusemos, a saber, o Um que É” (Platão, s.d., XIII). Esta derivação assume uma enorme importância na estruturação do pensamento ocidental (Barbosa, M. J., 2017, p.104).

Da posição defendida por Parménides resulta uma dificuldade lógica na relação do uno e o múltiplo, que, para solucionar, Platão introduz “é” parmenideano a possibilidade de “não é”, e entre estas duas categorias ontológicas (“ser” e “não ser”) uma terceira, o “devir” (Graça, J. A., 2010, p. 126). Esta tríade ontológica constitui o princípio ordenador de toda a dialética platónica.

No diálogo Fédon (s.d.), entre outros, Platão articula a influência do pensamento pitagórico com as novas categorias ontológicas (do Ser) para a sua conceção de alma. Nesta obra, a alma énos apresentada como a forma da vida, como prova o seguinte excerto: Estamos, por conseguinte, de acordo, que quando alguém vê um determinado objeto e diz: O objeto que tenho neste momento diante dos olhos aspira a ser como outro objeto real, porém fica muito aquém dele, sem conseguir alcançá-lo, visto lhe ser inferior: essa pessoa, dizia, ao fazer semelhante observação, tinha necessariamente o conhecimento do objeto com o qual ela disse que o outro se assemelhava, porém era inferior.

Forçosamente. E então? Não se passará a mesma coisa conosco, em relação às coisas iguais e à igualdade em si mesma?

Sem dúvida nenhuma. É preciso, portanto, que tenhamos conhecido a igualdade antes do tempo em que, vendo pela primeira vez objetos iguais, observamos que todos eles se esforçavam por alcançá-la porém lhe eram inferiores.

Certo.

Como também nos declaramos de acordo em que não poderíamos fazer semelhante observação nem ficar em condições de fazê-la, a não ser por meio da vista ou do tato, ou de qualquer outro sentido. Não estabeleço diferenças.

De fato, Sócrates, são equivalentes; pelo menos no que respeita ao tema em discussão.

De qualquer forma, é por meio dos sentidos que observamos tenderem para a igualdade em si todas as coisas percebidas como iguais, porém sem jamais alcançá-la. Ou que diremos?

Isso mesmo.

Logo, antes de começarmos a ver, a ouvir, ou a empregar os demais sentidos, já devemos ter adquirido em alguma parte o conhecimento do que seja a igualdade em si, para ficarmos em condições de relacionar com ela as igualdades que os sentidos nos dão a conhecer e afirmar que estas se esforçam por alcançá-la, porém lhe são inferiores. É a consequência necessária, Sócrates, do que foi dito antes.

E não é certo que vemos e ouvimos e fazemos uso dos demais sentidos logo após o nascimento?

LIAN - Da Poesia à Poética Perfeitamente.

Será preciso, então, é o que afirmamos, já termos antes disso o conhecimento da igualdade.

Certo.

Antes do nascimento, por conseguinte, ao que parece, é que necessariamente o adquirimos.

Parece, mesmo.

XX – Logo, se o adquirimos antes do nascimento e nascemos com ele, é porque conhecemos antes do nascimento e ao nascer tanto o igual, o maior e o menor, como as demais noções da mesma natureza. Pois tanto é válido nosso argumento para a igualdade como para o belo em si mesmo e o bem em si mesmo, a justiça, a piedade e tudo o mais, como disse, a que pusemos a marca de O próprio que é, assim nas perguntas que formulamos como nas respostas apresentadas. A esse modo, adquirimos necessariamente antes de nascer o conhecimento de tudo isso.

Certo.

E se, depois de adquirido tal conhecimento não o esquecêssemos, desde o nascimento o possuiríamos e o conservaríamos toda a vida. Pois conhecer, de fato, consiste apenas no seguinte: conservar o conhecimento adquirido, sem vir nunca a perdê-lo. O que denominamos esquecer, Símias, não será precisamente a perda do conhecimento?

Não será outra coisa, Sócrates, respondeu.

Se, em verdade, segundo penso, antes de nascer já tínhamos tal conhecimento e o perdemos ao nascer, e depois, aplicando nossos sentidos a esses objetos, voltamos a adquirir o conhecimento que já possuíramos num tempo anterior: o que denominamos aprender não será a recuperação de um conhecimento muito nosso? E não estaremos empregando a expressão correta, se dermos a esse processo o nome de reminiscência? (XIX-XX).

A questão lógico-gnosiológica surge, em Platão, de forma articulada com o problema da virtude e do bem, que, por sua vez, se relaciona com a natureza da arte e do belo. Na procura da natureza da expressão e da linguagem artística, nasce as questões estéticas. Aparecem ainda as questões relacionadas com a natureza do discurso retórico – habilidade de persuadir pela oralidade, com objetivo único de convencer –, que assume grande importância na Antiguidade.

A ideia do Bem, da Verdade e do Belo aparecem de forma articulada na teoria das ideias que Platão apresenta na República. Nesta obra, Platão apresenta a hierarquia dos conhecimentos tal como estes se distribuem entre o mundo sensível e o mundo inteligível. A Ideia do Bem (B), pela sua dignidade, está para além do saber e da beleza. A função da Ideia do Bem, apresentada como equiparada ao sol (Rep., VI, 507b – 509d) é a de iluminar as ideias e permitir o ato do conhecimento. “A Ideia do Bem é o garante do conhecimento”, como defende o Professor Álvaro dos Penedos (08/07/2000), que apresenta o seguinte esquema da Alegoria da Linha com base no diafragma apresentado na República (s.p.):

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Com recurso à Alegoria da Linha, Platão identifica e situa as quatro operações da alma – as que não recorrem a imagens (ciência), que considera as operações do estado superior (noesis e dianoia), que aparecem no extremo superior do segmento, e aquelas em que a alma é afetada somente por imagens (opinião), que considera as do estado inferior (pistis e eikasia) e, como tal, coloca-as no extremo oposto às anteriores (Silva, J.W. 2011, p.95).

Sócrates, no Livro VI da República, consagra a distinção entre filósofos e filodoxos (Silva, J.W. 2011). Segundo o mesmo, os filósofos contemplam os objetos invariáveis, eternos e verdadeiros, enquanto os filodoxos, porque se encontram presos às aparências, são amantes do espetáculo. Somente os filósofos, porque são iluminados pelo Ser e pela Verdade, podem dar garantia de elaborar leis boas, belas e justas, assim como de preceitos morais dessa mesma natureza. Como podemos ler: – Logo, sabes também que se servem de figuras visíveis e estabelecem acerca delas os seus raciocínios, sem contudo pensarem neles, mas naquilo com que se parecem, fazem os seus raciocínios por causa do quadrado em si ou da diagonal em si, mas não daquela cuja imagem traçaram, e do mesmo modo quanto às restantes figuras. Aquilo que eles modelam ou desenham, de que existem as sombras e os reflexos na água, servem-se disso como se fossem imagens, procurando ver o que não pode avistar-se, senão pelo pensamento.

– Falas verdade.

– Portanto, era isto o que eu queria dizer com a classe do inteligível, que a alma é obrigada a servir-se de hipóteses ao procurar investigá-la, sem ir ao princípio, pois não pode elevar-se acima das hipóteses, mas utilizando como imagens os próprios originais dos quais eram feitas as imagens pelos objetos da secção inferior, pois esses também, em comparação com as sombras, eram considerados e apreciados como mais claros.

– Compreendo que te referes ao que se passa na geometria e nas ciências afins dessa.

– Aprende então o que quero dizer com o outro segmento do inteligível, daquele que o raciocínio atinge pelo poder da dialética, fazendo das hipóteses não princípios, mas hipóteses de facto, uma espécie de degraus e de pontos de apoio, para ir até àquilo que não admite hipótese, que é o princípio de tudo, atingido o qual desce, fixando-se em todas as consequências que daí decorrem, até chegar à conclusão, sem se servir em nada de qualquer dado sensível, mas passando das ideias umas às outras, e terminando em ideias.

– Compreendo, mas não o bastante – pois me parece que é uma tarefa cerrada, essa de que falas – que queres determinar que é mais claro o conhecimento do ser e do inteligível adquirido pela ciência da dialéctica de que pelas chamadas

LIAN - Da Poesia à Poética ciências, cujos princípios são hipóteses; os que as estudam são forçados a fazê-lo, pelo pensamento, e não pelos sentidos, no entanto, pelo facto de as examinarem sem subir até ao princípio, mas a partir de hipóteses, parece-te que não têm a inteligência desses factos, embora eles sejam inteligíveis com um primeiro princípio. Parece-me que chamas entendimento, e não inteligência, o modo de pensar dos geómetras e de outros cientistas, como se o entendimento fosse algo de intermediário entre a opinião e a inteligência.

– Apreendeste perfeitamente a questão – observei eu –. Pega agora nas quatro operações da alma e aplica-as aos quatro segmentos; no mais elevado, a inteligência, ao segundo, o entendimento, ao terceiro entrega a fé, e ao último a suposição, e coloca-os por ordem, atribuindo-lhe o mesmo grau de clareza que os seus respectivos objetos têm de verdade (Platão, s.d./2001, 511a/e, pp: 312-313).

Neste seguimento, Platão, ainda na obra A República (s.d./2001), assume uma posição severa, de forte condenação para com a cultura poética clássica e as artes em geral. No livro X, Platão defende que a poesia mimética pode destruir a inteligência (diá noia) dos ouvintes (595 ab, p.449). A educação dos cidadãos, que deve procurar somente a verdade para formar uma cidade justa, é a maior preocupação de Platão. Os poetas, que têm como modelo as Musas e imagens sensíveis, produzem composições que se situam, de modo aleatório, entre a sensação, perceção, pensamento, emoção e ação. Sem conhecimento dos fundamentos da Paideia, os poetas, seguindo meras inclinações, recorrem ao saber prático para compor imagens e produzir emoções. Sem saber controlar nem avaliar os seus efeitos nos espetadores, os poetas distanciam-na da verdade, pela forma como embelezam a linguagem, e limitam-se a (re)produzir aparências, cópias de cópias.

Como podemos ler no excerto que se segue, a arte, para Platão, é uma questão ética: – Não entendo de harmonias – prossegui eu –. Mas deixa-nos ficar aquela que for capaz de imitar convenientemente a voz e as inflexões de um homem valente na guerra e em toda a ação violenta, ainda que seja mal sucedido e caminhe para os ferimentos ou para a morte ou incorra em qualquer outra desgraça, e em todas estas circunstâncias se defenda da sorte com ordem e com energia. E deixanos ainda outra para aquele que se encontra em actos pacíficos, não violentos, mas voluntários, que usa do rogo e da persuasão, ou por meio da prece aos deuses, ou pelos seus ensinamentos e admoestações aos homens, ou, pelo contrário, se submete aos outros quando lhe pedem, o ensinam ou o persuadem, e, tendo assim procedido a seu gosto sem sobranceria, se comporta com bom senso e moderação em todas estas circunstâncias, satisfeito com o que lhe sucede. Estas duas harmonias, a violenta e a voluntária, que imitirão admiravelmente as vozes de homem bem e mal sucedidos, sensatos e corajosos, essas, deixa-as ficar. (...)

– Mas, na verdade, o bom e o mau ritmo seguem, imitando-o, aquele, o estilo bom, este, o inverso; e do mesmo modo sucede com a boa e a má palavra, como há pouco se disse, e não a palavra a esses.

– Realmente, são eles que devem adaptar-se às palavras.

– Mas o modo de expressão e a palavra não dependem do carácter da alma?

– Como não?

– E, da expressão, tudo o mais?

– Sim. – Logo, a boa qualidade do discurso, da harmonia, da graça e do ritmo depende da qualidade do carácter, não daquele a que, sendo debilidade de espírito, chamamos familiarmente ingenuidade, mas da inteligência que verdadeiramente modela o carácter na bondade e na beleza.

– Exatamente – disse.

– Portanto, não devem os jovens procurar por toda a parte estas qualidades, se querem executar o que lhes incumbe?

LIAN - Da Poesia à Poética – Devem procurá-las, sim.

– Mas também a pintura está cheia delas, bem como todas as artes desta espécie. Cheia está a arte de tecelagem, de borda, de construir casas, e o fabrico dos demais objetos. Em todas estas coisas há, com efeito, beleza ou fealdade. E a fealdade, a arritmia, a desarmonia, são irmãs da linguagem perversa e do mau carácter; ao passo que as qualidades opostas são irmãs e imitações do inverso, que é o carácter sensato e bom.

– Absolutamente – disse.

– Mas então só aos poetas é que devemos vigiar e forçá-los a introduzirem nos seus versos a imagem do carácter bom, ou então a não poetarem entre nós? Ou devemos vigiar também os outros artistas e impedi-los de introduzir na sua obra o vício, a licença, a baixeza, o indecoro, quer na pintura de seres vivos, quer nos edifícios, quer em qualquer outra obra de arte? E, se não forem capazes disso, não deverão ser proibidos de exercer o seu mester entre nós, a fim de que os nossos guardiões, criados no meio das imagens do mal, como no meio de ervas daninhas, colhendo e pastando aos poucos, todos os dias, porções de muitas delas, inadvertidamente não venham a acumular um grande mal na sua alma? Devemos mas é procurar aqueles dentre os artistas cuja boa natureza habilitou a seguir os vestígios da natureza do belo e do perfeito, a fim de que os jovens, tal como os habitantes de um lugar saudável, tirem proveito de tudo, de onde quer que algo lhes impressione os olhos ou os ouvidos, procedente de obras belas, como uma brisa salutar de regiões sadias, que logo desde a infância, insensivelmente, os tenha levado a imitar, a apreciar e a estar de harmonia com a razão formosa?

– Seria essa, de longe, a melhor educação.

– Não é então por este motivo, ó Gláucon, que a educação pela música é capital, porque o ritmo e a harmonia penetram mais fundo na alma e afectam-na mais fortemente, trazendo consigo a perfeição, e tornando aquela perfeita, se se tiver sido educado? E, quando não, o contrário? E porque aquele que foi educado nela, como devia, sentiria mais agudamente as omissões e imperfeições no trabalho ou na conformação natural e, suportando-as mal, e com razão, honraria as coisas belas, e acolhendo-as jubilosamente na sua alma, com elas se alimentaria e tornar-se-ia um homem perfeito, ao passo que as coisas feias, com razão as censuraria e odiaria desde a infância, antes de ser capaz de raciocinar, e, quando chegasse à idade da razão, haveria de saudá-la e reconhecê-la pela sua afinidade com ela, sobretudo por ter sido assim educado (s.d./2001, pp: 128-133).

O modelo de homem grego está claramente descrito na passagem acima redigida. A condição de heroicidade helénica, tal como é relatada nos poemas homéricos, revela-se insuficiente à consciência ética dos grandes filósofos atenienses. O termo Paideia, que aparece somente no contexto do pensamento helénico no séc. V a. C. (Jaeger, W., 1936, p.25), nomeia esse novo ideal, o da necessidade de formar o homem e o cidadão. Como afirma M. Barbosa (2016), “pela voz de Sócrates, nasce um novo projeto de humanidade” (p. 40). Tal como Platão esboça nas Leis (346 a.C.), da educação depende a existência de uma sociedade justa.

E devemo-nos lembrar, para além disso, que estamos a falar de educação, e não de um treinador, ou de um capitão de um navio, mas de um cidadão perfeito que sabe como governar e como obedecer; e tal educação deseja a virtude, e não da saúde ou força ou meramente inteligência. Para um bom homem, a educação é de todas as coisas a mais preciosa, e está em necessidade constante de renovação.

'Estamos de acordo.' E nós concordámos anteriormente que o homem bom é aquele que está capacitado para autocontrolar-se, e o mau homem são aqueles que não (Livro I – N. Trad.).1 1

“And we must remember further that we are speaking of the education, not of a trainer, or of the captain of a ship, but of a perfect citizen who knows how to rule and how to obey; and such an education aims at virtue, and not at

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Já na obra O Banquete (s.d./2006), o Filósofo defende a necessidade de o homem abandonar a devoção ao mundo sensível para alcançar a virtude e a verdade pela contemplação das ideias puras. Cabe aos filósofos desenvolver competências de desvelamento da essência e da ordem eterna intrínseca ao mundo sensível. O caminho proposto é da realidade para a verdade, que implica alterar a tendência natural da alma, que se inclina espontaneamente para o mundo material, tal como é exposto no excerto que se segue: São esses então os casos de amor em que talvez, ó Sócrates, também tu pudesses ser iniciado; mas, quanto à sua perfeita contemplação, em vista da qual é que esses graus existem, quando se procede corretamente, não sei se serias capaz; em todo caso, eu te direi, continuou, e nenhum esforço pouparei; tenta então seguir-me se fores capaz: deve com efeito, começou ela, o que corretamente se encaminha a esse fim, começar quando jovem por dirigir-se aos belos corpos, e em primeiro lugar, se corretamente o dirige o seu dirigente, deve ele amar um só corpo e então gerar belos discursos; depois deve ele compreender que a beleza em qualquer corpo é irmã da que está em qualquer outro, e que, se se deve procurar o belo na forma, muita tolice seria não considerar uma só e a mesma a beleza em todos os corpos; e depois de entender isso, deve ele fazer-se amante de todos os belos corpos e largar esse amor violento de um só, após desprezá-lo e considerálo mesquinho; depois disso a beleza que está nas almas deve ele considerar mais preciosa que a do corpo, de modo que, mesmo se alguém de uma alma gentil tenha todavia um escasso encanto, contente-se ele, ame e se interesse, e produza e procure discursos tais que tornem melhores os jovens; para que então seja obrigado a contemplar o belo nos ofícios e nas leis, e a ver assim que todo ele tem um parentesco comum, e julgue enfim de pouca monta o belo no corpo; depois dos ofícios é para as ciências que é preciso transportá-lo, a fim de que veja também a beleza das ciências, e olhando para o belo já muito, sem mais amar como um doméstico a beleza individual de um criançola, de um homem ou de um só costume, não seja ele, nessa escravidão, miserável e um mesquinho discursador, mas voltado ao vasto oceano do belo e, contemplando-o, muitos discursos belos e magníficos ele produza, e reflexões, em inesgotável amor à sabedoria, até que aí robustecido e crescido contemple ele uma certa ciência, única, tal que o seu objeto é o belo seguinte (Platão, s.d./ 2016, p. 26).

No que concerne à arte, na Grécia Antiga, havia a distinção entre o processo de produção de um artefacto e o da produção de discursos, sendo estes últimos revestidos de um grande valor. Os gregos sabiam que não podiam dispensar a utilidade das artes técnicas, o saber fazer dos artifícios, que era reconhecido pela sua excelência. No entanto, revela-se progressivamente necessário indagar (diálogos) sobre o Ser e a Verdade (logos), que implica uma arte distinta. Esta função, até então realizada pela poesia, pelo caráter ético e inspirador da mesma, segundo Platão, só pode ser realizada por quem sabe desvelar (alétheia) a verdade, ou seja, quem detém o saber sobre o que é e o que se faz, que são os filósofos.

Ao qualificar a poesia como um produto de imitação, Platão coloca-a em igualdade com os produtos dos artesãos, pouco valorizados na hierarquia social dos gregos. A reprovação de Platão à mimética poética está registada nos primeiros livros da República, e claramente refletida no seu wealth or strength or mere cleverness. To the good man, education is of all things the most precious, and is also in constant need of renovation. 'We agree.' And we have before agreed that good men are those who are able to control themselves, and bad men are those who are not.”

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livro X, onde esclarece as distintas "formas da alma" (o epithymetikón, o thymoediés, o logistikón)2. Considerando que só Deus cria e conhece a ideia, os homens só podem aceder à realidade (filósofos), à aparência (artificies) ou à imitação (poetas, pintores, entre outros). Estes últimos, que criam representações da aparência, como são os poetas e os pintores, estão três níveis afastados da realidade, como esclarece Platão no seguinte excerto: – Considera então o seguinte: relativamente a cada objecto, com que fim faz a pintura? Com o de imitar a realidade, como ela realmente é, ou a aparência, como ela aparece? É imitação da aparência ou da realidade?

– Da aparência.

– Por conseguinte, a arte de imitar está bem longe da verdade, e se executa tudo, ao que parece, é pelo facto de atingir apenas uma pequena porção de cada coisa, que não passa de uma aparição. Por exemplo, dizemos que o pintor nos pintará um sapateiro, um carpinteiro, e os demais artificies, sem nada conhecer dos respectivos ofícios. Mas nem por isso deixará de ludibriar as crianças e os homens ignorantes, se for bom pintor, desenhando um carpinteiro e mostrando-o de longe com a semelhança, que lhe imprimiu de um autêntico carpinteiro.

– Sem dúvida.

– Mas afigura-se-me, meu amigo, que de todos estes assuntos, se disse apenas o seguinte: quando alguém nos anunciar, a respeito de outrem, que encontrou um homem conhecedor de todos os ofícios e de tudo quanto cada um sabe no seu domínio, e com não menos exactidão do que qualquer especialista, deve responder-se a uma pessoa dessas que é um ingénuo, e que, ao que parece, deu com um charlatão e um imitador, por quem foi iludido, de maneira que lhe pareceu um sábio universal, devido a ele não ser capaz de extremar a ciência da ignorância e da imitação.

– Absolutamente exacto.

– Temos então a considerar, depois disto, a tragédia e o seu corifeu, Homero, uma vez que já ouvimos dizer que esses poetas sabem todos os ofícios, todas as coisas humanas referentes à virtude e ao vício, e as divinas.

Efectivamente, um bom poeta, se quiser produzir um bom poema sobre o assunto que quer tratar, tem de saber o que vai fazer, sob pena de não ser capaz de o realizar. Temos, pois, de examinar se essas pessoas não estão a ser ludibriadas pelos imitadores que se lhes deparam, e, ao verem as suas obras, não se apercebem de que estão três pontos afastados do real, pois é fácil executá-las mesmo sem conhecer a verdade, porquanto são fantasmas e não seres reais o que eles representam; ou se tem algum valor o que eles dizem, e se, na realidade, os bons poetas têm aqueles conhecimentos que, perante a maioria, parecem expor tão bem.

– É assunto a examinar com todo o cuidado.

– Supõe então que, se uma pessoa pudesse fazer ambas as coisas, o objecto a imitar e a imagem, se entregaria com afinco à confecção de imagens e poria essa aptidão na primeira linha da sua vida, como o seu mais precioso bem?

– Eu cá, não.

– Mas se, na verdade, ele fosse conhecedor das coisas que imita, aplicarse-ia, julgo eu, muito mais às obras do que às imitações, tentaria deixar criações

2

As faculdades que asseguram a ligação do corpo com a alma são o logistikón (o elemento calculador da razão), o thymoeidés (elemento irascível) e o epithymetikón (elemento apetitivo). As referidas faculdades, que asseguram a relação do corpo com a alma, são apresentadas por J. W. Silva (2011) em articulação do ser (on) com a vida (zoe) e o intelecto (nous). Retomando a explicação de Proclo, J. W. Silva afirma: “As três qualidades de um dos extremos, a alma, são: ser sem partes (ameres), ter a capacidade de desejar (orektikon) e ser inteligente (noetikon). Opostas às qualidades da alma, as qualidades do outro extremo, o corpo, são: ter múltiplas partes (polymeres), não ter a capacidade de desejar (onorekton) e não ser inteligente (anoeton). Ao entrecruzar tais qualidades de acordo com o ser, a vida e o intelecto, encontramos as duas médias proporcionais possíveis: o thymoeidés que, com relação ao ser, é sem partes, com relação à vida, é capaz de desejar, com relação ao intelecto, é sem inteligência; o epithymetikón que, com relação ao ser, é constituído de partes, com relação à vida, é capaz de desejar, com relação ao intelecto, é sem inteligência (2011, pp: 38-39).

LIAN - Da Poesia à Poética numerosas e belas como monumentos comemorativos da sua pessoa, e empenharse-ia mais em ser elogiado do que em elogiar.

– Assim o creio, porquanto a honra e o proveito não seriam os mesmos.

– Por conseguinte, não vamos pedir contas a respeito de outros assuntos a Homero ou a qualquer outro dos poetas, perguntando se algum deles era médico, e não só imitador da linguagem dos médicos, ou a quantas pessoas qualquer poeta dos antigos ou dos modernos se diz ter restituído a saúde como Asclépios, ou quantos discípulos deixou na arte de curar, como os descendentes que aquele teve; tão-pouco façamos perguntas sobre as outras artes; deixemo-los. Mas acerca daqueles assuntos mais elevados e mais belos, sobre os quais Homero se abalançou a falar, guerras, comando dos exércitos, administração das cidades e educação do homem, é de certo modo justo dirigirmo-nos a ele para interrogar: “Meu caro Homero, se, relativamente à virtude não estás afastado três pontos da verdade, nem és um fazedor de imagens, a quem definimos como um imitador, mas estás afastado apenas dois, e se foste capaz de conhecer quais são as actividades que tornam os homens melhores ou piores, na vida particular ou pública, diz-nos que cidade foi, graças a ti, melhor administrada, como sucedeu com a Lacedemónia, graças a Licurgo, e com muitas outras cidades, grandes e pequenas, devido a muitos outros? (s.d./ 2001, pp: 455-457).

Platão, ainda na República (s.d./ 2001), na procura de um modelo de justiça, compara as partes da alma às proporções musicais nos seguintes termos: Na verdade, a justiça era qualquer coisa neste género, ao que parece, excepto que não diz respeito à actividade externa do homem, mas à interna, aquilo que é verdadeiramente ele e o que lhe pertence, sem consentir que qualquer das partes da alma se dedique a tarefas alheias nem que interfiram umas na outras, mas depois de ter posto a sua casa em ordem no verdadeiro sentido, de ter autodomínio, de se organizar, de se tornar amigo de si mesmo, de ter reunido harmoniosamente três elementos diferentes, exactamente como se fossem três termos numa proporção musical, o mais baixo parte apetitiva , o mais alto parte racional e o intermédio parte irascível , e outros quaisquer que acaso existam de permeio, e de os ligar a todos, tornando-os, de muitos que eram, numa perfeita unidade, temperante e harmonia (...) chamando justa e bela à acção que mantenha e aperfeiçoe estes hábitos, e apelidando de sabedoria a ciência que preside a esta acção; ao passo que denominará de injusta a acção que os dissolve a cada passo, e ignorância a opinião que a ela preside (p. 204).

Segundo o mesmo, a relação da alma com o corpo é assegurada por três elementos – o elemento calculador (verdade), o elemento apetitivo (belo) e o elemento irascível (bem). Cada elemento tem uma função e um objeto. Em cada função há uma potência. Desempenhar bem uma função é produzir um tipo de bem, ou seja, realizar uma virtude. Assim, a virtude do elemento calculador é a sabedoria, a do elemento apetitivo é a temperança, enquanto que o elemento irascível é a coragem. Como afirma: – Logo, na verdade, e ainda que assim não pareça a alguns, o tirano autêntico é um autêntico escravo, de uma adulação e servilismo extremo, lisonjeador dos piores; incapaz de satisfazer de algum modo os seus desejos, mostra-se muito carecido de quase tudo e pobre de verdade, se alguém souber contemplar a sua alma inteira, toda a vida cheio de medo, carregado de dores convulsivas, se, na realidade, a sua disposição é semelhante à da cidade na qual manda. Ora ela é semelhante, ou não?

– É, e muito.

LIAN - Da Poesia à Poética – Por conseguinte, além desses defeitos, devemos ainda atribuir a este homem os que anteriormente referimos, que é forçoso que existam e ainda cresçam mais nele do que antes, devido a estar no poder, que são a inveja, a deslealdade, a injustiça, a hostilidade, a impiedade, a maldade de toda a espécie de que ele é hospedeiro e sustentáculo, conjunto de que resulta ser ele o mais desgraçado quem dele se aproxima.

– Nenhuma pessoa de juízo te contradirá.

– Vamos lá então! Finalmente, tal como o juiz supremo dá a sentença, dáa também tu, dizendo que é, na tua opinião, o primeiro em felicidade, quem é o segundo, e julga todos os cinco por ordem, o partidário da realeza, da timocracia, da oligarquia, da democracia, da tirania.

– Mas é fácil julgar. Vou julgá-los pela ordem por que entraram em cena, tal como os coros, pelas suas virtudes ou vícios, pela felicidade e seu inverso.

– Vamos então contratar um arauto, ou proclamo eu mesmo que o filho de Aríston julgou que o melhor e o mais justo é o mais feliz, e que esse homem é o mais adepto da realeza e rei de si mesmo; e que o pior e o mais injusto é o mais desgraçado, e esse, por sinal o mais tirânico, é o que mais tiraniza a si e à cidade?

– Proclama.

– Acrescentei a esta proclamação que é assim, quer o facto passe despercebido a todos os homens e deuses, quer não?

– Acrescenta.

– Seja. Eis uma demonstração. Aqui tens outra, se te parecer que vale alguma coisa.

– Qual é ela?

– Uma vez que, tal como a cidade está dividida em três corpos, também a alma de cada um tem três partes, poderá admitir-se, parece-me, outra demonstração.

– Qual é ela?

– É a seguinte. Se há três partes, parece-me que haverá também três espécies de prazer, cada um específico de cada uma delas. E do mesmo modo com os desejos e os poderes.

– Que queres dizer?

– Uma parte era aquela pela qual o homem aprende, outra, pela qual se irrita; quanto à terceira, devido à variedade de formas que ostenta, não dispomos de um nome único e específico, mas designámo-la por aquilo que nela é mais eminente e mais forte: chamámos-lhe concupiscência, devido à violência dos desejos relativos à comida, à bebida, ao amor e a tudo quanto o acompanha; e chamámos-lhe amiga do dinheiro, porque é sobretudo com dinheiro que se satisfazem os desejos dessa espécie (Platão, s.d./ 2001, 580 a-e, pp: 424-425).

Cada arte, cada virtude e ciência é determinada por um objeto específico. A virtude é tão mais plena quanto mais Ser possuir, ou seja, quanto mais se afastar da opinião falsa (que ora é uma coisa ora é outra) e da ignorância (que se liga ao vazio) (Platão, s.d./ 2001, 585b-c, pp: 434-435).

Com esta teoria, Platão propõe uma clara ligação entre a ontologia, a epistemologia e a ética.

Tanto os poetas como os pintores, à luz desta ordem, perturbam a harmonia dos elementos.

Somente a música garante a união perfeita de coisas contrárias, a unidade na multiplicidade, ao assegurar o acordo na discordância (Silva, J. W., 2011, p. 78). Para Platão também a escrita e a pintura deviam ser proscritas, pois considerava-as superfícies de signos privados do sopro (alma) que anima e transporta a palavra viva. O ato da palavra "viva", aquele em que o locutor fala perante o destinatário apropriado, opõe-se à superfície muda dos signos pintados. Ou seja, ao plano do "vivo" opõe-se o “inanimado”. Mas, nem todos os oradores estão capacitados para o correto exercício da oralidade. Esta divisão reflete o princípio, proposto por Platão, de comunidade bem organizada.

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Assim, no desejo de fundar uma cidade sábia, temperante, corajosa e justa (Platão, 2001, 427e, p. 175), Platão, no terceiro livro da República, expulsa os “miméticien” (imitadores), pelo caráter falso das representações miméticas, por respeito ao princípio de divisão de trabalho, que tinha como objetivo retirar os artesãos de todo o espaço político comum e, sobretudo, pelo efeito pernicioso das imagens falsas na sensibilidade do espetador. Segundo o mesmo, o caráter sedutor das artes dramáticas, dotadas de grande beleza sensível, desperta nos jovens sentimentos brandos, como é o caso da fraqueza do terror, da insolência e da compaixão. A arte, ao atrair os jovens pelo prazer, desvirtualiza-lhes o caráter. Pela voz de Sócrates, Platão expõe do seguinte modo o efeito perverso da arte: – Se pensares que a parte da alma que há pouco contínhamos pela força, nos nossos desgostos pessoais, que tem sede de lágrimas e de gemidos em abundância, até se saciar, porque a sua natureza é tal que a leva a ter esses desejos, é nessas alturas, a parte a que os poetas dão satisfação e regozijo. Ao passo que a parte de nós que é a melhor por natureza, por não estar suficientemente educada pela razão e pelo hábito, abranda a vigilância dessa parte dada às lamentações, a pretexto de que está a contemplar males alheios, e que não é vergonha nenhuma para ela, se outra pessoa, que se diz um homem de bem, se lamenta a despropósito, louvá-la e ter compaixão dela, mas supõe que tira uma vantagem, o prazer, de que não aceitaria privar-se, desprezando todo o poema. É que, julgo eu, a poucos é dado fazer ideia de como inevitavelmente temos, na nossa vida íntima, o usufruto dos sentimentos alheios. Porquanto, depois de termos criado e fortalecido neles a nossa piedade, não é fácil contê-la nos sofrimentos próprios.

– Exactamente.

– Porventura não se aplica também o mesmo argumento ao ridículo? Se, numa imitação cómica ou numa conversa particular, ao ouvires gracejos de que pessoalmente te envergonharias, te divertires à grande e não os desprezares como coisa inferior, não estás a proceder exactamente do mesmo modo que quando se trata de sentir comiseração? É que à vontade de fazer rir, que continhas pela razão, com receio de ganhares fama de desabusado, dás-lhe então livre curso, e, depois de aí a refrescares, muitas vezes te deixas levar, sem dares por ela, a fazer de autor cómico em tua casa.

– É isso mesmo.

– E quanto ao amor, à ira e a todas as paixões penosas ou aprazíveis da alma, que afirmámos acompanharem todas as nossas acções, não produz em nós os mesmos efeitos a imitação poética? Porquanto os rega para os fortalecer, quando devia secá-los, e os erige nossos soberanos, quando deviam obedecer, a fim de nos tornarmos melhores e mais felizes, em vez de piores e mais desgraçados.

– Não posso dizer de outro modo (s.d./ 2001, pp: 471-472).

Com base nesta análise, e por respeito aos ritmos e aos ciclos da própria vida, cada cidadão deve agir somente de acordo com a sua natureza (alma). O “miméticien” é assim expulso da República pela sua natureza dupla, por fazer duas coisas em simultâneo (Barbosa, M. 2013, pp: 29-30), e por ludibriar as crianças e os homens ignorantes com as imagens que cria, duplamente afastadas da verdade.

SÍ NTESE E ARTICULAÇÃ O DAS IDEIAS ENUNCIADAS: 1.

Teoria da reminiscência: a alma e o conhecimento: a.

2.

Estabelecer a distinção entre o sensível e o inteligível.

Teoria do conhecimento e teoria das ideias:

LIAN - Da Poesia à Poética a.

3.

4.

Identificar o ponto de rutura entre o sensível e o inteligível.

Ética, teoria do conhecimento e teoria política: a. Associar a ideia de justiça à realização da virtude. i. Existem duas harmonias – a dos corajosos (violenta) e a dos sensatos (voluntária) – que só a palavra e a música conseguem entoar. b. Compreender o projeto de educação como uma revisão do paradigma de perfeição à escala humana.

Teoria da sublimação: o belo, o bem e a verdade: a. Identificar os três níveis do processo de sublimação: i. O despertar do Eros pelos belos corpos; ii. A contemplação do belo da ciência; iii. Superação da aparência sensória e elevação à dignidade da ideia pura e universal do belo. b. A expulsão do “miméticien” da cidade: proibição da criação de imagens falsas e perniciosas. i. Distinguir as superfícies equivalentes a signos mudos (escrita e pintura, por exemplo) do sopro que anima e transporta a palavra viva (Diálogos). ii. A escrita e a pintura como superfícies de reprodução das aparências e não da verdade.

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ARISTÓTELES Platão, ao defender a existência de duas realidades distintas – o Mundo das Ideias (inteligível) e o Mundo das Sombras (aparências) –, e a necessidade de combater o engano, a ilusão e a semelhança, desarticula a harmonia (pré)estabelecida entre as palavras e a realidade e fratura, para sempre, a unidade divina que servia de inspiração aos poetas. Aristóteles, ao atribuir à arte a função de (re)ligar a técnica ao divino, de apagar a diferença entre sujeito e mundo, volta a dar à palavra o poder de conduzir os movimentos próprios da vida (Barbosa, M., 2013, p.11). Ao contrário de Platão, Aristóteles não defende que as obras de arte são cópias da realidade, mas um modo possível de dar forma à matéria.

A Poética de Aristóteles, obra de valor incontornável nos estudos de Estética, propõe uma investigação filosófica sobre o “fazer poético” e o modo de avaliar o efeito da arte na formação e elevação espiritual dos homens – nas sensações (estéticas), na inteligência (noética) e nas emoções (patética). Como esclarece Fernando Santoro (2007): Por isso, a reflexão de Aristóteles sobre a produção da obra de arte não constitui exclusivamente uma estética, mas também uma noética do mito (que se configura até como uma abertura para a filosofia) e ainda uma patética das emoções (que se configura como uma abertura para a moralidade). De modo que a reflexão sobre o sentido da obra de arte não se dissocia da reflexão sobre a educação e a criação de valores, em dois níveis: intelectual de um lado, sentimental-moral de outro (p.5).

Aristóteles herda, de Platão, a categoria de “arte mimética”, mas está decidido a resgatar o valor tradicional de sabedoria e de verdade atribuído aos poetas. Recuperar a dignidade moral e política dos poetas implica responder às três acusações que lhes são imputadas (sobretudo) por Platão: a de se distanciarem da verdade (acusação de caráter poético), a de serem pérfidos sedutores (acusação de caráter estético) e a de serem deformadores do caráter emocional das pessoas menos cautas (acusação de caráter patético).

Na análise ao modo de ser e de proceder da epopeia, da tragédia (primeiro livro da Poética), da comédia e da sátira (segundo livro (perdido) da Poética), Aristóteles não retoma do seu mestre a oposição “ideia” versus “sombras”, o que será dizer, “verdade” versus “imitação”. A arte, segundo este autor, não é simuladora, mas sim verosímil. O sentido da arte não é o de assegurar a passagem da aparência (da ordem da opinião) à essência (da ordem do conhecimento), mas o de dar a ver o que não pode ser comtemplado sem ser pela representação. À semelhança da linguagem humana, a arte cumpre a função de representar as coisas. A função mimética é o da semelhança, da verossimilhança, do reconhecimento e da representação (Santoro, F., 2007, p.6). Na Retórica de Aristóteles (s.d/2005) podemos ler o seguinte: Tais são, pois, as matérias donde convém extrair os argumentos para aconselhar e desaconselhar, louvar e censurar, acusar e defender-se; tais são também as opiniões e as premissas que são úteis para as provas, pois é sobre tais matérias e a partir dessas premissas que se retiram os entimemas que tratam propriamente de cada um dos géneros oratórios.

LIAN - Da Poesia à Poética Uma vez que a retórica tem por objectivo formar um juízo (porque também se julgam as deliberações e a acção judicial é um juízo), é necessário, não só procurar que o discurso seja demonstrativo e digno de crédito, mas também que o orador mostre possuir certas disposições e prepare favoravelmente o juiz. Muito conta para a persuasão, sobretudo nas deliberações e, naturalmente, nos processos judiciais, a forma como o orador se apresenta e como dá a entender as suas disposições aos ouvintes, de modo a fazer que, da parte destes, também haja um determinado estado de espírito em relação ao orador. A forma como o orador se apresenta é mais útil nos actos deliberativos, mas predispor o auditório de uma determinada maneira é mais vantajoso nos processos judiciais. Os factos não se apresentam sob o mesmo prisma a quem ama e a quem odeia, nem são iguais para o homem que está indignado ou para o calmo, mas, ou são completamente diferentes ou diferem segundo critérios de grandeza. Por um lado, quem ama acha que o juízo que deve formular sobre quem é julgado é de não culpabilidade ou de pouca culpabilidade; por outro, quem odeia acha o contrário. Quem deseja e espera alguma coisa, se o que estiver para acontecer que tal coisa acontecerá, como até será uma coisa boa; mas para o insensível e para o mal-humorado passa-se exactamente o contrário.

Três são as causas que tornam persuasivos os oradores, e a sua importância é tal que por elas nos persuadimos, sem necessidade de demonstrações: são elas a prudência, a virtude e a benevolência. Quando os oradores recorrem à mentira nas coisas que dizem ou sobre aquelas que dão conselhos, fazem-no por todas essas causas ou por algumas delas. Ou é por falta de prudência que emitem opiniões erradas ou então, embora dando uma opinião correcta, não dizem o que pensam por malícia; ou sendo prudentes e honestos não são benevolentes; por isso, é admissível que, embora sabendo eles o que é melhor, não o aconselhem. Para além destas, não há nenhuma outra causa. Forçoso é, pois, que aquele que aparenta possuir todas estas qualidades inspire confiança nos que o ouvem. Por isso, o modo como é possível mostrar-se prudente e honesto deve ser deduzido das distinções que fizemos relativamente às virtudes, uma vez que, a partir de tais distinções, é possível alguém apresentar outra pessoa e até apresentar-se a si próprio sob este ou aquele aspecto. Sobre a benevolência e a amizade, falaremos na parte dedicada às emoções.

As emoções são as causas que fazem alterar os seres humanos e introduzem mudanças nos seus juízos, na medida em que elas comportam dor e prazer: tais são a ira, a compaixão, o medo e outras semelhantes, assim como as suas contrárias. Mas convém distinguir em cada uma delas três aspectos. Explico-me: em relação à ira, por exemplo, convém distinguir em que estado de espírito se acham os irascíveis, contra quem costumam irritar-se e em que circunstância; é que, se não se possui mais do que um ou dois destes aspectos, e não a sua totalidade, é impossível que haja alguém que inspire a ira. É o mesmo acontece com as outras emoções (pp: 159-161).

Com a inclusão da categoria de “verosimilhança”, Aristóteles introduz a possibilidade da mudança de carácter. Neste seguimento, o possível fica para o ser atual, como o ser de razão está para o ser real. O possível, que só pode ser entendido em relação a uma (hipotética) liberdade, tem como base um fundamento gnosiológico (produto da capacidade da nossa mente) e um fundamento ontológico (Ser), ou seja, supõe no Ser uma decisão livre que engloba conhecimento e vontade.

Noutros termos, os propostos por A. Melo, “é certo que no âmbito das técnicas ou das artes “poéticas” – quer as que fazem um simples “uso das coisas”, quer as que são “arquitectónicas” (por exemplo a arte do piloto de um navio que prescreve “a forma do leme”) –, o homem incide sempre sobre a matéria em acordo com adequados conhecimentos (explorando as suas potencialidades e fazendo-as passar a “acto”, a uma “forma”)” (p.89).

LIAN - Da Poesia à Poética

Os enredos (mythos) propostos pelos poetas, quando seguem as regras da verosimilhança e da necessidade, relatam o que pode acontecer. Com esta proposta, Aristóteles aproxima a poesia de um conhecimento de caráter universal, como o da Filosofia, como iremos analisar melhor de seguida.

Como observa M. A. Júnior na sua Introdução à Retórica de Aristóteles (2005), com base no exposto por C. Perelman e P. Ricoeur, Aristóteles estruturou a retórica, que propõe uma técnica de ação pela palavra fundada na tríade “retórica-prova-persuasão”, e paralelamente a técnica da criação que corresponderá à tríade “poiesis-mimesis-catharsis”. Como esclarece, “a sua Retórica ocupa-se da arte da comunicação, do discurso feito em público com fins persuasivos. A Poética ocupa-se da arte da evocação imaginária, do discurso feito com fins essencialmente poéticos e literários” (pp. 32-33). Não obstante, como apresenta Aristóteles no texto acima exposto, o ato oratório produz efeitos na perceção (aisthesis) dos ouvintes (retórica) ou espetadores (poética).

Mas, tal como nos apresenta M. Barbosa (2013), a noção aisthesis, que pode ser traduzida por perceção sensível, assume especial relevância na ordenação da cidade. Como explica, “a transição específica entre a animalidade e a humanidade define-se pela capacidade de compreender um logos (aisthesis) – esfera própria do escravo que participa numa comunidade linguística - e a posse do mesmo (hexis)” (p. 53). Aristóteles, na obra A Política (s.d./2004), define o escravo como um instrumento animado, uma ferramenta que faz parte do corpo do senhor. Reiterando o já asseverado em outros escritos, “O escravo é o homem que não encontra em si mesmo um fim, mas noutrem (Senhor)” (Barbosa, M., 2017, p. 3). Mas, como é demonstrado na obra Tópicos (s.d./2007), o verdadeiro instrumento para Aristóteles não é o corpo, mas sim o logos, que pertence exclusivamente ao senhor, o que tem poder de falar, de criar efeitos pela palavra. Não nos esqueçamos, portanto, de que o homem grego a que ambos os filósofos se reportam é ao homem livre (senhor) e não ao homem em geral. Sobre este mesmo tema, Aristóteles afirma o seguinte: É evidente, pelo que foi dito, que um governo e um governo político não são o mesmo, ou que todos os governos são iguais uns aos outros, como alguns afirmam; pois um é adaptado à natureza dos homens livres enquanto que o outro à dos escravos. O governo doméstico é uma monarquia, pois é o que prevalece em cada casa; mas um estado político é o governo dos homens livres e iguais. O mestre não é assim chamado por saber como gerir o seu escravo, mas porque ele o é; pelo mesmo motivo, um escravo e um homem livre têm as suas respetivas denominações. Há também um tipo de conhecimento apropriado para um mestre e outro para um escravo; o do escravo é da natureza daquele que foi ensinado por um escravo em Siracusa; pois ele, por um montante estipulado, instruiu os rapazes de todas as tarefas de uma família de escravos, das quais há vários tipos a serem aprendidos, como a arte da culinária e outros serviços similares, dos quais alguns são atribuídos a alguns, e outros a outros; sendo alguns empregos mais honrados, outros mais necessários; de acordo com o provérbio: "Um escravo se destaca de outro, um mestre se destaca de outro:" naquelas coisas em que consiste o conhecimento de um escravo. O conhecimento do mestre é poder empregar adequadamente os seus escravos, pois o domínio dos escravos é o trabalho , não a mera posse deles; não que esse conhecimento contenha algo de grandioso ou respeitável; pois para que um escravo deva saber como fazer, um mestre deve saber como ordenar; por essa razão, aqueles que têm a possibilidade de se libertar dessas atenções menores, empregam um mordomo para esta tarefa, dedicam-se ou a relações públicas ou à filosofia: o conhecimento para obter o que é necessário para uma família é diferente daquele que pertence ao mestre ou ao escravo: e fazer isto de forma justa deve ser através da guerra ou da caça. E, portanto, a maior parte

LIAN - Da Poesia à Poética da diferença entre um mestre e um escravo (s.d./2004, Book I, Chap. VII – N. Trad.).3

Aristóteles, na linha de Platão, retira dos grandes trágicos gregos a aceção de “erro” (hamartia), que será desenvolvida na Retórica (s.d./2005) e, sobretudo, na Ética a Nicómaco II (s.d./1991). Em virtude da sua relevância para a nossa análise, cingir-nos-emos à segunda obra mencionada.

No primeiro livro da Ética a Nicómaco II (s.d./1991), Aristóteles apresenta a tese que “a felicidade é o sumo bem”, ou seja, é o fim último, o bem supremo, o que todos os homens desejam (Livro I, 2). A felicidade, que é formulada nos termos da seguinte equivalência “vive bem, age bem” (Livro I, 8), aparece articulada com a noção de virtude, sendo esta definida como “hábitos dignos de louvor” (Livro I, 13). As virtudes morais correspondem aos hábitos práticos (ethos) que se incorporam no carácter do indivíduo, enquanto as virtudes intelectuais referem-se à formação intelectual do homem que progride pela aquisição gradual do conhecimento (Livro II, 1).

Partindo do princípio de que “o excesso e a falta são característicos do vício, e a mediania da virtude”, Aristóteles defende que os homens podem ser maus de modos distintos, mas têm um só modo de serem bons (Livro II, 6). Segundo o mesmo: Está, pois, suficientemente esclarecido que a virtude moral é um meiotermo, e em que sentido devemos entender esta expressão; e que é um meio-termo entre dois vícios, um dos quais envolve excesso e o outro deficiência, e isso porque a sua natureza é visar à mediania nas paixões e nos atos.

Do que acabamos de dizer segue-se que não é fácil ser bom, pois em todas as coisas é difícil encontrar o meio-termo. Por exemplo, encontrar o meio de um círculo não é para qualquer um, mas só para aquele que sabe fazê-lo; e, do mesmo modo, qualquer um pode encolerizar-se, dar ou gastar dinheiro — isso é fácil; mas fazê-lo à pessoa que convém, na medida, na ocasião, pelo motivo e da maneira que convém, eis o que não é para qualquer um. (...) A atitude a tomar em face do prazer é, portanto, a dos anciãos do povo para com Helena, e em todas as circunstâncias cumpre-nos dizer o mesmo que eles; porque, se não dermos ouvidos ao prazer, correremos menos perigo de errar. Em resumo, é procedendo dessa forma que teremos mais probabilidades de acertar com o meio-termo (Livro II, 9).

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“It is evident from what has been said, that a herile and a political government are not the same, or that all governments are alike to each other, as some affirm; for one is adapted to the nature of freemen, the other to that of slaves. Domestic government is a monarchy, for that is what prevails in every house; but a political state is the government of free men and equals. The master is not so called from his knowing how to manage his slave, but because he is so; for the same reason a slave and a freeman have their respective appellations. There is also one sort of knowledge proper for a master, another for a slave; the slave's is of the nature of that which was taught by a slave at Syracuse; for he for a stipulated sum instructed the boys in all the business of a household slave, of which there are various sorts to be learnt, as the art of cookery, and other such-like services, of which some are allotted to some, and others to others; some employments being more honourable, others more necessary; according to the proverb, "One slave excels another, one master excels another:" in such-like things the knowledge of a slave consists. The knowledge of the master is to be able properly to employ his slaves, for the mastership of slaves is the employment, not the mere possession of them; not that this knowledge contains anything great or respectable; for what a slave ought to know how to do, that a master ought to know how to order; for which reason, those who have it in their power to be free from these low attentions, employ a steward for this business, and apply themselves either to public affairs or philosophy: the knowledge of procuring what is necessary for a family is different from that which belongs either to the master or the slave: and to do this justly must be either by war or hunting. And thus much of the difference between a master and a slave.”

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LIAN - Da Poesia à Poética

A sabedoria prática (phronesis), apresentada como a função do homem enquanto tal, traduz a capacidade do homem de deliberar, de acordo com o princípio racional, e optar pela melhor ação (praxis). Concretizar ações virtuosas implica uma produção interna de si mesmo (Livro VI, 5), tese que Aristóteles defende com base no seguinte argumento: A origem da ação — sua causa eficiente, não final — é a escolha, e a da escolha é o desejo e o raciocı́nio com um fim em vista. Eis aı́ por que a escolha não pode existir nem sem razão e intelecto, nem sem uma disposição moral; pois a boa açao ̃ e o seu contrário naõ podem existir sem uma combinaçaõ de intelecto e de caráter. O intelecto em si mesmo, porém, naõ move coisa alguma; só pode fazê-lo o intelecto prático que visa a um fim qualquer. E isto vale também para o intelecto produtivo, já que todo aquele que produz alguma coisa o faz com um fim em vista; e a coisa produzida não é um fim no sentido absoluto, mas apenas um fim dentro de uma relação particular, e o fim de uma operação particular. Só o que se pratica é um fim irrestrito; pois a boa ação é um fim ao qual visa o desejo (Livro VI, 1).

No caso da phronesis, na qual a ação tem um fim em si mesmo, errar voluntariamente significa agir contra os princípios morais. Já um erro voluntário cometido ao nível da tekhné , tratando-se de um erro racionalizado, pode concretizar um final desejado. O erro voluntário, no âmbito da praxis, recai no vício, precisamente porque o homem escolheu racionalmente agir mal.

Já o erro não-voluntário, de que resulta uma ação realizada por ignorância e seguida de arrependimento, é menos grave. Considerando que as virtudes morais não são naturais ou espontâneas ao homem, este, para ser moralmente virtuoso, precisa de as atualizar constantemente.

Só pela adoção de hábitos dignos de louvor, como afirmámos anteriormente, o carácter pode ser considerado virtuoso e nobre. Por sua vez, as virtudes intelectuais, intimamente ligadas às virtudes morais, são responsáveis pela intencionalidade das ações. Conclui-se assim, face ao exposto, que o homem virtuoso (logo, feliz) realiza ações deliberadas de acordo com um princípio racional.

Como esclarece Aristóteles (s.d./1991): Visto que a virtude se relaciona com paixões e ações, e é às paixões e ações voluntárias que se dispensa louvor e censura, enquanto as involuntárias merecem perdão e às vezes piedade, é talvez necessário a quem estuda a natureza da virtude distinguir o voluntário do involuntário. (...)

Tudo o que se faz por ignorância é naõ -voluntário, e só o que produz dor e arrependimento é involuntário. Com efeito, o homem que fez alguma coisa devido à ignorância e não se aflige em absoluto com o seu ato não agiu voluntariamente, visto que não sabia o que fazia; mas tampouco agiu involuntariamente, já que isso não lhe causa dor alguma. E assim, das pessoas que agem por ignorância, as que se arrependem são consideradas agentes involuntários, e as que não se arrependem podem ser chamadas agentes não-voluntários, visto diferirem das primeiras; em razao ̃ dessa própria diferença, devem ter uma denominaçaõ distinta.

Agir por ignorância parece diferir também de agir na ignorância, pois do homem embriagado ou enfurecido diz-se que age não em resultado da ignorância, mas de uma das causas mencionadas, e contudo sem conhecimento do que faz, mas na ignorância.

Ora, todo homem perverso ignora o que deve fazer e de que deve abster-se, e é em razão de um erro desta espécie que os homens se tornam injustos e, em geral, maus. Mas o termo "involuntário" não é geralmente usado quando o homem ignora o que lhe traz vantagem — pois naõ é o propósito equivocado que causa a

LIAN - Da Poesia à Poética açao ̃ involuntária (esse conduziria antes à maldade), nem a ignorância do universal (pela qual os homens saõ passı́veis de censura), mas a ignorância dos particulares, isto é, das circunstâncias do ato e dos objetos com que ele se relaciona. Saõ justamente esses que merecem piedade e perdaõ , porquanto a pessoa que ignora qualquer dessas coisas age involuntariamente. (...)

A ignorância pode relacionar-se, portanto, com qualquer dessas coisas — isto é, qualquer das circunstâncias do ato; e do homem que ignorava uma delas diz-se que agiu involuntariamente, sobretudo se ignorava os pontos mais importantes, que, na opinião geral, são as circunstâncias e a finalidade do ato.

Além disso, a prática de um ato considerado involuntário em virtude de uma ignorância desta espécie deve causar dor e trazer arrependimento.

Como tudo o que se faz constrangido ou por ignorância é involuntário, o voluntário parece ser aquilo cujo princípio motor se encontra no próprio agente que tenha conhecimento das circunstâncias particulares do ato. É de presumir que os atos praticados sob o impulso da cólera ou do apetite não mereçam a qualificação de involuntários. Porque, em primeiro lugar, se fossem tais, nenhum dos outros animais agiria voluntariamente, e as crianças tampouco; e, em segundo lugar, seria o caso de perguntar se o que se entende por isso é que não praticamos voluntariamente nenhum dos atos devidos ao apetite ou à cólera, ou se praticamos voluntariamente os atos nobres e involuntariamente os vis. Não é absurdo isso, quando a causa é uma só e a mesma? Inegavelmente, seria estranho qualificar de involuntárias as coisas que devemos desejar; e é certo que devemos encolerizarnos diante de certas coisas e apetecer outras: por exemplo, a saúde e a instrução (Livro III, 1).

O homem virtuoso aristotélico é o homem da polis, animal político por excelência. O caráter voluntário ou involuntário do ato determina se o homem é justo ou injusto. O que acontece de modo não voluntário não são atos de (in)justiça (s.d./1991, Livro V, 8). Aristóteles realça assim a relação estreita e permanente entre ética e política. Nos seus termos: Ora, já mostrámos anteriormente como o recíproco se relaciona com o justo; mas não devemos esquecer que o que estamos procurando não é apenas aquilo que é justo incondicionalmente, mas também a justiça política. Esta é encontrada entre homens que vivem em comum tendo em vista a auto-suficiência, homens que são livres e iguais, quer proporcionalmente, quer aritmeticamente, de modo que entre os que não preenchem esta condição não existe justiça politica, mas justiça num sentido especial e por analogia.

Com efeito, a justiça existe apenas entre homens cujas relações mútuas são governadas pela lei; e a lei existe para os homens entre os quais há injustiça, pois a justiça legal é a discriminação do justo e do injusto. E, havendo injustiça entre homens, também há ações injustas (se bem que do fato de ocorrerem ações injustas entre eles nem sempre se pode inferir que haja injustiça), e estas consistem em atribuir demasiado a si próprio das coisas boas em si, e demasiado pouco das coisas más em si.

Aí está por que não permitimos que um homem governe, mas o princípio racional, pois que um homem o faz no seu próprio interesse e converte-se num tirano. O magistrado, por outro lado, é um protetor da justiça e, por conseguinte, também da igualdade. E, visto supor-se que ele não possua mais do que a sua parte, se é justo (porque não atribui a si mesmo mais daquilo que é bom em si, a menos que tal quinhão: seja proporcional aos seus méritos — de modo que é para outros que trabalha, e por essa razão os homens, como mencionamos anteriormente, dizem ser a justiça "o bem de um outro"), ele deve, portanto, ser recompensado, e sua recompensa é a honra e o privilégio; mas aqueles que não se contentam com essas coisas tornam-se tiranos.

A justiça de um amo e a de um pai não são a mesma que a justiça dos cidadãos, embora se assemelhem a ela pois não pode haver justiça no sentido incondicional em relação a coisas que nos pertencem, mas o servo de um homem e o seu filho, até atingir certa idade e tornar-se independente, são, por assim dizer, uma parte dele. Ora ninguém fere voluntariamente a si mesmo, razão pela qual também não pode haver injustiça contra

LIAN - Da Poesia à Poética si próprio. Portanto, não é em relações dessa espécie que se manifesta a justiça ou injustiça dos cidadãos; pois, como vimos ela se relaciona com a lei e se verifica entre pessoas naturalmente sujeitas à lei; e estas, como também vimos, são pessoas que têm partes iguais em governar e ser governadas.

Por isso é mais fácil manifestar verdadeira justiça para com nossa esposa do que para com nossos filhos e servos. Trata-se, nesse caso, de justiça doméstica, a qual, sem embargo, também difere da justiça política (s.d./1991, Livro V, 6).

Platão, como demonstrado anteriormente, problematizou, no que concerne à arte, o conteúdo falso das representações miméticas, o caráter sedutor da obra de arte (o seu valor estético) e a capacidade da mesma de produzir sentimentos nos jovens e homens ignorantes (o poder patético).

Aristóteles partilha da mesma preocupação do seu mestre e, por tal, dá não só importância ao modo de criar da arte como ao efeito da arte no espectador, como já fizemos alusão anteriormente. Já no que difere de Platão, Aristóteles procura, pela relação estabelecida entre ética (phronesis) e política (politique), resgatar o valor de verdade (educadora) da poesia tradicional grega a partir da compreensão de mimeses, que é originalmente platónica, e melhorar os homens para que possam ser felizes.

Consideremos, numa primeira aproximação, a definição aristotélica de tragédia tal como é apresentada na Poética (s.d./2008): A tragédia é a imitação de uma ação elevada e completa, dotada de extensão, numa linguagem embelezada por formas diferentes em que cada uma das suas partes, que se serve da ação e não da narração e que, por meio da compaixão e de temor, provoca a purificação de tais paixões.

Por "linguagem ornamentada" entendo a que tem ritmo, harmonia e canto e “por formas diferentes” haver algumas partes executadas apenas com metros, enquanto outras incluem o canto. Uma vez que a imitação é realizada por pessoas que actuam, a organização do espectáculo será necessariamente, em primeiro lugar, uma parte da tragédia; depois, a música e a elocução, pois é através destes elementos que realizam essa imitação (1449b, pp: 47-48).

As qualidades da Katharsis, termo que designa o efeito de “purificação das paixões” a que Aristóteles faz referência, eram já reconhecidas por Platão4, mas somente na aceção médica. O efeito de “purificação pelo delírio” das danças violentas das religiões místicas, que Platão reprovava, aparece em Aristóteles com uma nova interpretação na Política. Nesta, Aristóteles concretiza uma clivagem decisiva na arte, ao diferenciar a música de carácter didático ou ético da de natureza orgiástica ou catártica. Esta última, associada aos delírios bacantes dos rituais religiosos, é usualmente denominada de catártica, purificadora ou purgadora. Nos termos de Aristóteles (s.d./2004):

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Como esclarece Ana Maria Valente no Prefácio da Poética: “Ora este sentido médico é um dos três documentados em Platão, nas Leis I. 628d, em passo relativo a uma “purgação” qualificada de “médica”. O mesmo diálogo apresenta, noutro passo (Leis V, 736a), o significado de “depuração”; e noutro ainda (Leis IX, 868c) o de “purificação”. Esta última acepção está documentada em outros diálogos, em contextos que interessam particularmente ao nosso ponto de vista, porquanto se referem a duas possibilidades distintas de katharsis, a da alma e a do corpo. E o caso de um passo célebre de O Sofista (227b-d), aquele em que o Estrangeiro discute com Teeteto a maneira de designar o conjunto de forças que conseguem purificar um corpo animado ou inanimado” (Aristóteles, s.d./ 2008, 6 - pp. 47-49).

LIAN - Da Poesia à Poética Vamos agora entrar na questão sobre a harmonia e o ritmo; saber se todos os seus tipos devem ser usados na educação, ou se devem ser selecionados alguns peculiares; e também se devemos dar as mesmas orientações aos que estão envolvidos na música como parte da educação, ou se há algo diferente destes dois. (...) É evidente que se devem usar todas as harmonias; mas não para todas as finalidades mas as mais morais na educação: mas, para agradar o ouvido, quando outros tocam, o mais ativo e entusiástico; pois a paixão que existe fortemente em algumas almas, deve ser encontrada também em todos; mas a diferença, em pessoas distintas, consiste na existência em maior ou menor grau, de piedade, medo e entusiasmo, também; o último é tão poderoso, em alguns, que domina a alma: e, no entanto, nós vemos essas pessoas, pela utilização da música sagrada para acalmar a sua mente, que se torna tão tranquila e serena como se tivessem empregado a arte do médico; e isto deve necessariamente acontecer aos piedosos, aos temerosos e a todos os que são dominados pelas suas paixões: mais do que isso, todas as pessoas, na medida em que são afetadas por essas paixões, admitem a mesma cura e a sua tranquilidade é restaurada com prazer. Da mesma forma, toda a música que tem o poder de purificar a alma oferece ao homem um prazer inofensivo (Book VIII, Chap. VII - N. Trad.)5.

Segundo Aristóteles, o filósofo, sobretudo o que se dedica à investigação ética, recebe das personagens das epopeias, das tragédias e das comédias (esta última por oposição) modelos de ação que permitir-lhe-á compreender a natureza humana e apresentam exemplos de ações que se podem adotar em momento de difíceis decisões.

Como a tragédia é a imitação de uma acção e é realizada pela actuação de algumas pessoas que, necessariamente, são diferentes no carácter e no pensamento (é através disto que classificamos as acções [são duas as causas das acções: o pensamento e o carácter] e é por causa destas acções que todos vencem ou fracassam), o enredo é a imitação da acçaõ , entendendo aqui por enredo a estruturação dos acontecimentos, enquanto os caracteres são o que nos permite dizer que as pessoas que agem têm certas qualidades e o pensamento é quando elas, por meio da palavra, demonstram alguma coisa ou exprimem uma opinião. (...)

Mas o mais importante de todos é a estruturação dos acontecimentos. É que a tragédia não é a imitação dos homens mas das acções e da vida [tanto a felicidade como a infelicidade estão na acção, e a sua finalidade é uma acção e não uma qualidade: os homens são classificados pelo seu carácter, mas é pelas suas acções que são infelizes ou o contrário]. Aliás, eles não actuam para imitar os caracteres mas os caracteres é que são abrangidos pelas acções. Assim, os acontecimentos e o enredo são o objectivo da tragédia e o objectivo é o mais importante de tudo (Aristóteles, s.d./2008 - 1449b-1450a, pp: 47-49).

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“We are now to enter into an inquiry concerning harmony and rhythm; whether all sorts of these are to be employed in education, or whether some peculiar ones are to be selected; and also whether we should give the same directions to those who are engaged in music as part of education, or whether there is something different from these two. (…) It is evident that all harmonies are to be used; but not for all purposes; but the most moral in education: but to please the ear, when others play, the most active and enthusiastic; for that passion which is to be found very strong in some souls is to be met with also in all; but the difference in different persons consists in its being in a less or greater degree, as pity, fear, and enthusiasm also; which latter is so powerful in some as to overpower the soul: and yet we see those persons, by the application of sacred music to soothe their mind, rendered as sedate and composed as if they had employed the art of the physician: and this must necessarily happen to the compassionate, the fearful, and all those who are subdued by their passions: nay, all persons, as far as they are affected with those passions, admit of the same cure, and are restored to tranquility with pleasure. In the same manner, all music which has the power of purifying the soul affords a harmless pleasure to man”

LIAN - Da Poesia à Poética

A narrativa deve reunir, como afirma Aristóteles, “de acordo com o princípio da verosimilhança e da necessidade, a sequência dos acontecimentos, mudando da infelicidade para a felicidade e vice-versa” (s.d./2008 – 1451a, p. 52). Esta, a narrativa, é tão mais bela quanto mais inspirar temor e compaixão. Assim, segundo Aristóteles, o efeito da tragédia na sensibilidade dos espectadores, não é enfraquecedor mas depurativo, catártico. Estes sentimentos são tão mais facilmente suscitados quando mais inesperados são os factos narrados. O encadeamento da ação deve respeitar sempre o princípio da relação de causalidade (universalidade). Os factos acidentais (possíveis), os que acontecem como tendo um propósito, uma mensagem impossível de decifrar, como é o caso de Édipo, garantem o mais belo encadeamento entre todos os possíveis.

Ao colocar como regra do ofício do poeta a articulação do princípio da verosimilhança (possível) com o da necessidade (universal), Aristóteles articula a ação individual com a universal.

Ou seja, a ação da personagem a imitar, embora realizada por um indivíduo, assume um carácter universal. Como afirma Aristóteles (s.d./2008): Pelo exposto se torna óbvio que a função do poeta não é contar o que aconteceu mas aquilo que poderia acontecer, o que é possível, de acordo com o princípio da verosimilhança e da necessidade. O historiador e o poeta não diferem pelo facto de um escrever em prosa e o outro em verso (se tivéssemos posto em verso a obra de Heródoto, com verso ou sem verso ela não perderia absolutamente nada o seu carácter de História). Diferem é pelo facto de um relatar o que aconteceu e outro o que poderia acontecer. Portanto, a poesia é mais filosófica e tem um carácter mais elevado do que a História. É que a poesia expressa o universal, a História o particular. O universal é aquilo que certa pessoa dirá ou fará, de acordo com a verosimilhança ou a necessidade, e é isso que a poesia procura representar, atribuindo, depois, nomes às personagens. (...)

Assim, não é de todo necessário cingirem-se a histórias tradicionais sobre que versam, geralmente, as tragédias. Preocuparem-se com isso seria ridículo, pois mesmo as histórias conhecidas são conhecidas por poucas pessoas e, no entanto, agradam igualmente a todos. De tudo isto resulta evidente que o poeta deve ser um construtor de enredos mais do que de versos, uma vez que é poeta devido à imitação e imita acções. E, se lhe acontece escrever sobre factos reais, não é menos poeta por isso: nada impede que alguns factos que realmente aconteceram sejam possíveis e verosímeis e é nessa medida que ele é o seu poeta. (...)

Reconhecimento, como o nome indica, é a passagem da ignorância para o conhecimento, para a amizade ou para o ódio entre aqueles que estão destinados à felicidade ou à infelicidade. O reconhecimento mais belo é aquele que se opera juntamente com peripécia, como acontece no Édipo. Há sem dúvida outras formas de reconhecimento: mesmo coisas inanimadas ou acidentais podem ser alvo de reconhecimento e reconhecer é também saber se uma pessoa fez ou não fez certa coisa. Mas o reconhecimento mais próprio do enredo e da acção é aquele de que falámos. Esta forma de reconhecimento acompanhado de peripécia suscita ou a compaixão ou o temor (e a tragédia é, por definição, a imitação de acções deste género), pois que desse reconhecimento e dessa peripécia depende o ser-se infeliz ou feliz. Uma vez que o reconhecimento se faz entre pessoas, às vezes é só uma pessoa que é reconhecida por outra, se esta já é conhecida pela primeira, mas poderá ser necessário haver um reconhecimento de parte a parte: por exemplo, Ifigénia é reconhecida por Orestes através do envio da carta, mas é ainda necessário outro reconhecimento, o de Orestes por Ifigénia.

Portanto, estas são duas partes do enredo: peripécia e reconhecimento. A terceira é o sofrimento. Dentre elas, já se falou da primeira e da segunda; o sofrimento é um acto destruidor ou doloroso, tal como as mortes em cena, grandes dores e ferimentos e coisas deste género (1451b-1452b, pp. 54-59).

LIAN - Da Poesia à Poética

O efeito homeopático da tragédia, que não enfraquece o espectador, pelo contrário, torna-o mais forte, justifica a sua utilidade moral. Com este argumento, o da utilidade didática da representação, Aristóteles resgata o problema noético da mimeses e responde às acusações levantadas pelos seus mestres.

Assim, em modo de síntese, para Aristóteles existia a esfera do sensível – as que tratam do que é contingente e, por isso, própria para as atividades miméticas – e a esfera da ciência – que trata daquilo que é eterno e necessário (Barbosa, M., 2013, p.30). Nos termos de Aristóteles: Comecemos, pois, pelo princı́pio, discutindo mais uma vez essas disposições. Dê-se por estabelecido que as disposições em virtude das quais a alma possui a verdade, quer afirmando, quer negando, são em número de cinco: a arte, o conhecimento cientı́fico, a sabedoria prática, a sabedoria filosófica e a razão intuitiva (não incluı́mos o juı́zo e a opinião porque estes podem enganar-se).

Ora, o que seja o conhecimento cientı́ fico, se quisermos exprimir-nos com exatidao ̃ e não nos guiar por meras analogias, evidencia-se pelo que segue. Todos nós supomos que aquilo que sabemos naõ é capaz de ser de outra forma. Quanto às coisas que podem ser de outra forma, não sabemos, quando estão fora do nosso campo de observação, se existem ou não existem. Por conseguinte, o objeto de conhecimento cientı́fico existe necessariamente; donde se segue que é eterno, pois todas as coisas que existem por necessidade no sentido absoluto do termo são eternas, e as coisas eternas são ingênitas e imperecı́veis.

Por outro lado, julga-se que toda ciência pode ser ensinada e seu objeto, aprendido. E todo ensino parte do que já se conhece, como sustentamos também nos Analı́ ticos. Com efeito, o ensino procede às vezes por induçaõ e outras vezes por silogismo. Ora, a indução é o ponto de partida que o próprio conhecimento do universal pressupõe, enquanto o silogismo procede dos universais. Existem, assim, pontos de partida de onde procede o silogismo e que não são alcançados por este.

Logo, é por indução que são adquiridos.

Em suma, o conhecimento cientı́fico é um estado que nos torna capazes de demonstrar, e possui as outras caracterı́sticas limitativas que especificamos nos Analı́ ticos, pois é quando um homem tem certa espécie de convicçaõ , além de conhecer os pontos de partida, que possui conhecimento cientı́fico. E, se estes naõ lhe forem mais bem conhecidos do que a conclusão, sua ciência será puramente acidental.

Com isto damos por terminada nossa exposição do conhecimento cientı́fico.

4 Na classe do variável incluem-se tanto coisas produzidas como coisas praticadas. Há uma diferença entre produzir e agir (quanto à natureza de ambos, consideramos como assente o que temos dito mesmo fora de nossa escola); de sorte que a capacidade raciocinada de agir difere da capacidade raciocinada de produzir. Daı́, também, o não se incluı́rem uma na outra, porque nem agir é produzir, nem produzir é agir.

Ora, como a arquitetura é uma arte, sendo essencialmente uma capacidade raciocinada de produzir, e nem existe arte alguma que não seja uma capacidade desta espécie, nem capacidade desta espécie que não seja uma arte, segue-se que a arte é idêntica a uma capacidade de produzir que envolve o reto raciocı́nio.

Toda arte visa à geraçaõ e se ocupa em inventar e em considerar as maneiras de produzir alguma coisa que tanto pode ser como não ser, e cuja origem está no que produz, e não no que é produzido. Com efeito, a arte não se ocupa nem com as coisas que são ou que se geram por necessidade, nem com as que o fazem de acordo com a natureza (pois essas têm sua origem em si mesmas).

LIAN - Da Poesia à Poética Diferindo, pois, o produzir e o agir, a arte deve ser uma questão de produzir e nao de agir; e em certo sentido, o acaso e a arte versam sobre as mesmas coisas. ̃ Como diz Agataõ : "A arte ama o acaso, e o acaso ama a arte". Logo, como já dissemos, a arte é uma disposição que se ocupa de produzir, envolvendo o reto raciocı́nio; e a carência de arte, pelo contrário, é tal disposição acompanhada de falso raciocı́nio. E ambas dizem respeito às coisas que podem ser diferentemente (s.d./1991, Livro VI, caps. III e IV).

Aristóteles, ao propor uma nova distribuição das possibilidades de ordenação entre a vida biológica, a vida histórica e a vida ontológica, tal como defende Rancière (2000), inaugura um novo regime de ordenação do sensível da comunidade. Com esta nova ordem de distribuição dos lugares e das funções, tanto os cidadãos de “vida comum” como os cidadãos de “vidas excecionais” (políticos; artistas, etc.) adquirem novos modos de criar, de fazer, de dizer e de ser.

Nas palavras de A. Melo (2005): As artes e os ofícios (da ordem da “techne”) incidem precisamente sobre o que pode ser de outro modo, fazem “nascer uma obra” através de “meios técnicos e teóricos”; – criam enfim (e estamos agora na ordem da “poiesis”) uma coisa que pertence à “categoria dos possíveis” e cujo “princípio” reside “na pessoa que a executa”. De modo significativo, anota Aristóteles que a arte (por exemplo a do arquitecto) se baseia sempre numa “disposição” criativa do indivíduo que a realiza, mas essa disposição deve ser “acompanhada de razão” e “conforme à verdade” (a arte é uma das modalidades pelas quais “a alma exprime a verdade”)” (p.88).

Fica assim justificado, com base nos argumentos apresentados, a grande visibilidade e autonomia que Aristóteles deu às artes em geral, ainda que privilegiasse a ação trágica em relação às restantes modalidades da arte. A poesia, segundo Aristóteles, tem na sua origem duas causas naturais, a saber, a “congenialidade da imitação”, que classifica como uma causa intelectual – "o homem é o que tem mais capacidade de imitar e é pela imitação que adquire os seus primeiros conhecimentos; a outra é que todos sentem prazer nas imitações" (s.d./2008, 1448b, p. 42) – e a disposição psíquica natural do homem para a harmonia e o ritmo – "desde tempos remotos, aqueles que tinham já propensão para estas coisas, desenvolvendo pouco a pouco essa aptidão, criaram a poesia a partir de improvisos” (s.d./2008, 1448b, p. 43). Para além do argumento da origem natural da poesia, Aristóteles defendia que os distintos géneros ou estilos oratórios – a adequação dos conteúdos, da linguagem e dos assuntos ao público a que se destina – determinavam não só a dignidade dos temas como estabelecia, por analogia, a visão hierárquica da comunidade (Barbosa, M., 2013, p. 31). Cabe à arte desenvolver formas de normatividade ao definir as condições pelas quais as imitações podem ser reconhecidas como boas ou más, apropriadas ou não, etc. (Rancière, J., 2000, pp. 28-30). Nas palavras de Aristóteles: Parece ter havido para a poesia em geral duas causas, causas essas naturais.

Uma é que imitar é natural nos homens desde a infância e nisto diferem dos outros animais, pois o homem é o que tem mais capacidade de imitar e é pela imitação que adquire os seus primeiros conhecimentos; a outra é que todos sentem prazer nas imitações. Uma prova disto é o que acontece na realidade: as coisas que observamos ao natural e nos fazem pena agradam-nos quando as vemos representadas em imagens muito perfeitas como, por exemplo, as reproduções dos mais repugnantes animais e de cadáveres. A razão disto é também que aprender

LIAN - Da Poesia à Poética nao ̃ é só agradável para os filósofos mas é-o igualmente para os outros homens, embora estes participem dessa aprendizagem em menor escala. É que eles, quando vêem as imagens, gostam dessa imitação, pois acontece que, vendo, aprendem e deduzem o que representa cada uma, por exemplo, “este é aquele assim e assim”.

Quando, por acaso, não se viu anteriormente o objecto representado, não é a imitação que causa prazer, mas sim a execução, a cor ou qualquer outro motivo do género.

Estando, pois, de acordo com a nossa natureza a imitação, a harmonia e o ritmo (é evidente que os metros saõ partes do ritmo), desde tempos remotos, aqueles que tinham já propensão para estas coisas, desenvolvendo pouco a pouco essa aptidão, criaram a poesia a partir de improvisos. A poesia dividiu-se de acordo com o carácter de cada um: os mais nobres imitaram acções belas e acções de homens bons e os autores mais vulgares imitaram acções de homens vis, compondo primeiramente sátiras, enquanto os outros compunham hinos e encómios. (...)

Quando a tragédia e a comédia apareceram, dos que se dedicavam a cada uma destas espécies de poesia, de acordo com a sua propensão natural, uns tornaram-se poetas cómicos em vez de autores de iambos, e outros poetas trágicos, em vez de autores épicos, pois que estas formas eram melhores e de maior mérito do que as anteriores. Estudar se a tragédia já chegou ou não a formas suficientemente desenvolvidas, ajuizar isso por si próprio e em relação aos espetáculos, é outro assunto. Tendo surgido, portanto, no início, da improvisação – tanto a tragédia como a comédia, uma a partir dos autores de ditirambos, outra dos autores de cantos fálicos, cantos estes que têm aceitação, ainda hoje, em muitas cidades – a tragédia evoluiu pouco a pouco, ao mesmo tempo que se desenvolvia tudo o que lhe era inerente. (...)

A comédia é, como dissemos, uma imitação de carateres inferiores; não contudo em toda a sua vileza, mas apenas na parte do vício que é ridícula. O ridículo é um defeito e uma deformação nem dolorosa nem destruidora, tal como, por exemplo, a máscara cómica e feia e deformada mas não exprime dor. As transformações da tragédia e os autores dessas transformações não são desconhecidos, enquanto que a história da comédia nos escapa por esta não ter recebido, no princípio, muito atenção. (...)

A epopeia segue de perto a tragédia por ser também imitação, com palavras e ajuda de metro, de caracteres virtuosos. Todavia, difere desta por ter um metro uniforme e por ser uma narrativa. Diferem ainda quanto à extensão: uma esforçase o mais possível por durar uma só revolução do Sol ou demorar pouco mais, enquanto a epopeia, não tendo limite de tempo, é diferente neste aspecto (s.d./2008, 1448b-1449b, pp: 42-47).

Aristóteles, contrariamente a Sócrates e Platão, que expulsam os poetas da República, da cidade justa, elogia o valor ético e pedagógico da poesia, sob argumento de que o carácter de verossimilhança do mito poético se aproxima da verdade. Partindo deste princípio, Aristóteles desenvolve toda uma reflexão, sobretudo na Poética e na Política, do modo como o prazer favorece a educação e como as emoções purificam a alma. Assim, partindo das discussões platónicas, registadas na República, Aristóteles desenvolveu uma rica análise sobre os aspetos noéticos do mito, os estéticos do prazer e os patéticos das emoções, tal como acabámos de expor.

Considere-se que não é ainda possível falar de Estética em Platão ou em Aristóteles, como defende M. Greuel (1994), “e sim apenas de uma Teoria do Belo. A reflexão sobre a arte torna-se Estética propriamente dita a partir do momento em que o belo começa a ser relacionado com a perceção” (p.148). A teoria do belo artístico, a estética propriamente dita, aparece somente na

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filosófica moderna, nos escritos de I. Kant, que se preocupou com os juízos de valor e o belo sensível.

SÍ NTESE E ARTICULAÇÃ O DAS IDEIAS ENUNCIADAS: 1.

2.

3.

4.

Reconhecer a diferença entre o pensamento platónico e o aristotélico: a. Crítica à Teoria das Ideias ou das Formas puras de Platão.

Perceber alguns aspetos da ética aristotélica: a. Identificar as virtudes do intelecto – sabedoria teórica e sabedoria prática. Ética, teoria do conhecimento e teoria política: a. Associar a ideia de justiça à realização da virtude. i. Elogio do justo meio ii. Articulação entre o princípio racional e a sabedoria prática. iii. Reconhecimento da relação entre a virtude e a experiência – hábitos dignos de louvor. b. Compreender o projeto de educação como um projeto político: i. O bem supremo como realização do homem (animal político).

Teoria da arte: da verdade e da verosimilhança: a. Reconhecer a identidade didática da representação. b. Perceber a importância da arte mimética na investigação ética. c. Perceber as respostas de Aristóteles às acusações levantadas ao “miméticien”:

i. Acusação de caráter poético; ii. Acusação de caráter estético; iii. Acusação de caráter patético.

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IMMANUEL KANT Com a reflexão aristotélica findamos a nossa análise dos distintos períodos do pensamento sobre a arte na Filosofia Antiga, quer consideremos a divisão proposta por N. Abbagnano – cosmológico, antropológico, ontológico, ético, religioso (que não foi por nós abordado por representar o período do desaparecimento do pensamento da Grécia antiga) –, quer atentemos à leitura proposta por Rancière, segundo o qual o pensamento platónico compõe o regime ético das artes enquanto o aristotélico constitui o regime poético ou representativo das artes, e ambos o substrato do pensamento ocidental.

Após séculos de afastamento do mito poético, a tradição ocidental regressa à sua hospitalidade com o pensamento kantiano que inaugura, segundo Rancière, o regime estético das artes.

Não será possível apresentar, na atual edição, de forma exaustiva o pensamento de Kant, em virtude da complexidade do mesmo, da falta de recursos bibliográficos e, sobretudo, por este não pertencer ao cerne da nossa questão. Não deixamos, contudo, de apresentar um breve apontamento sobre o modo como o mesmo institui como objeto da Estética o estudo dos sentidos e da perceção, abandonando assim as questões inerentes à teoria clássica do Belo, que deve ser desenvolvida em futuras edições.

Para Kant, à semelhança de Aristóteles, a faculdade da imaginação fortalece o ânimo ao sentir-se livre, espontânea e independente das determinações da natureza. Não obstante à originalidade das ideias estéticas, estas contribuem para a (co)criação da própria natureza sempre que a liberdade da imaginação e a legalidade do entendimento entram em conformidade. À semelhança de Platão, Kant advoga um hiato intransponível entre a Coisa em si e as suas representações. É na Crítica da Razão Pura (1781/2001) que Kant apresenta a sua proposta de arquitetora do pensamento nos seguintes termos: Sejam quais forem o modo e os meios pelos quais um conhecimento se possa referir a objetos, é pela intuição que se relaciona imediatamente com estes e ela é o fim para o qual tende, como meio, todo o pensamento. Esta intuição, porém, apenas se verifica na medida em que o objeto nos for dado; o que, por sua vez, só é possível, [pelo menos para nós homens,] se o objeto afetar o espı́rito de certa maneira. A capacidade de receber representações (receptividade), graças à maneira como somos afetados pelos objetos, denomina-se sensibilidade. Por intermédio, pois, da sensibilidade são-nos dados objetos e só ela nos fornece intuições; mas é o entendimento que pensa esses objetos e é dele que provêm os conceitos. Contudo, o pensamento tem sempre que referir-se, finalmente, a intuições, quer diretamente (directe), quer por rodeios (indirecte) [mediante certos caracteres] e, por conseguinte, no que respeita a nós, por via da sensibilidade, porque de outro modo nenhum objeto nos pode ser dado.

O efeito de um objeto sobre a capacidade representativa, na medida em que por ele somos afetados, é a sensação. A intuição que se relaciona com o objeto, por meio de sensaç ã o, chama-se empı́ rica. O objeto indeterminado de uma intuição empı́rica chama- se fenô meno.

Dou o nome de maté ria ao que no fenômeno corresponde à sensaçaõ ; ao que, porém, possibilita que o diverso do fenômeno possa ser ordenado segundo determinadas relações dou o nome de forma do fenômeno. Uma vez que aquilo, no qual as sensações unicamente se podem ordenar e adquirir determinada forma, não pode, por sua vez, ser sensação, segue-se que, se a matéria de todos os

LIAN - Da Poesia à Poética fenômenos nos é dada somente a posteriori, a sua forma deve encontrar-se a priori no espı́rito, pronta a aplicar-se a ela e portanto tem que poder ser considerada independentemente de qualquer sensação.

Chamo puras (no sentido transcendental) todas as representações em que nada se encontra que pertença à sensação. Por conseqüência, deverá encontrar-se absolutamente a priori no espı́rito a forma pura das intuições sensı́veis em geral, na qual todo o diverso dos fenômenos se intui em determinadas condições. Essa forma pura da sensibilidade chamar-se-á também intuiç ã o pura. Assim, quando separo da representaçaõ de um corpo o que o entendimento pensa dele, como seja substância, força, divisibilidade, etc., e igualmente o que pertence à sensaçaõ , como seja impenetrabilidade, dureza, cor, etc., algo me resta ainda dessa intuiçaõ empı́rica: a extensão e a figura. Estas pertencem à intuição pura, que se verifica a priori no espı́rito, mesmo independentemente de um objeto real dos sentidos ou da sensação, como simples forma da sensibilidade.

Designo por esté tica transcendental uma ciência de todos os princı́pios da sensibilidade a priori. Tem que haver, pois, uma tal ciência, que constitui a primeira parte da teoria transcendental dos elementos, em contraposiçao ̃ à que contém os princı́pios do pensamento puro e que se denominará lógica transcendental.

Na estética transcendental, por conseguinte, isolaremos primeiramente a sensibilidade, abstraindo de tudo o que o entendimento pensa com os seus conceitos, para que apenas reste a intuição empı́rica. Em segundo lugar, apartaremos ainda desta intuição tudo o que pertence à sensação para restar somente a intuição pura e simples, forma dos fenômenos, que é a única que a sensibilidade a priori pode fornecer. Nesta investigação se apurará que há duas formas puras da intuiçaõ sensı́vel, como princı́pios do conhecimento a priori, a saber, o espaço e o tempo (...) (Secção I, Primeira Parte [§ 1]).

Kant divide a sensibilidade quanto ao seu sentido – faculdade de intuição (com as suas formas a priori de espaço e tempo) na presença de um objeto (capacidade de receber representações) – e imaginação – intuição sem a presença de um objeto (capacidade de criar representações), que se distancia do entendimento – faculdade que pensa nos objetos dados por via dos conceitos. Ao contrário das representações produzidas pelo entendimento, em vista do conhecimento, as representações da faculdade da imaginação não são lógicas, mas sim estéticas.

Como esclarece no início da Crítica da Faculdade de Juízo (1779/1995): Para distinguir se algo é belo ou não, referimos a representação, não pelo entendimento ao objeto em vista do conhecimento, mas pela faculdade de imaginação (talvez ligada ao entendimento) ao sujeito e ao seu sentimento de prazer ou desprazer. O juízo de gosto não é, pois, nenhum juízo de conhecimento, por conseguinte não é lógico e sim estético, pelo qual se entende aquilo cujo fundamento de determinação não pode ser senão subjetivo. Toda a referência das representações, mesmo a das sensações, pode, porém, ser objetiva (e ela significa então o real de uma representação empírica); somente não pode sê-lo a referência ao sentimento de prazer e desprazer, pelo qual não é designado absolutamente nada no objeto, mas no qual o sujeito sente-se a si próprio do modo como ele é afetado pela sensação (1779/1995, pp: 47-48).

Kant, na Crítica da Faculdade de Juízo (1779/1995), aduz a existência de uma pré-harmonia, uma concordância, entre a natureza e o espírito, que visa assegurar a economia das faculdades (1988/1997, p. 140). Segundo o mesmo, os objetos podem ser apreendidos ora pela faculdade do entendimento – produção de uma representação do objeto, com recurso à lógica, com vista o

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conhecimento –, ora pela faculdade da imaginação (1988/1997, p. 48). As inclinações humanas ou, mais precisamente, os juízos de gosto (produzidos pela faculdade da imaginação) são explicados nos termos de um “diálogo” possível entre a natureza e o espírito.

Resulta, portanto, que a diferença entre as leis de uma natureza à qual está submetida a vontade e as de uma natureza que está submetida a uma vontade (em consideração ao que implica uma relação entre a vontade e suas livres ações), consiste em que, naquela, os objetos devem ser causa das representações que determinam a vontade, mas, nesta a vontade deve ser causa dos objetos, de tal modo que a causalidade tem o seu fundamento de determinação exclusivamente na faculdade racional pura, a qual, por isso, também pode ser chamada razão pura prática (Kant, I., 1788/1959, Livro I, Cap. I, I).

As faculdades e a natureza concordam entre si com vista a um fim último, a liberdade, como iremos ter oportunidade de comprovar ao longo da nossa análise. Dos modos possíveis de inclinação temos: O agradável e o bom têm ambos uma referência à faculdade da apetição e nesta medida trazem consigo, aquele uma complacência patologicamente condicionada (por estímulos), este uma complacência prática, a qual não é determinada simplesmente pela representação do objeto, mas ao mesmo tempo pela representada conexão do sujeito com a existência do mesmo. Não simplesmente o objeto apraz, mas também sua existência. Contrariamente, o juízo de gosto é meramente contemplativo, isto é, um juízo que, indiferente em relação à existência de um objeto, só considera sua natureza em comparação com o sentimento de prazer e desprazer. Mas esta própria contemplação é tampouco dirigida a conceitos; pois o juízo de gosto não é nenhum juízo de conhecimento (nem teórico nem prático), e por isso tampouco é fundado sobre conceitos e nem os tem por fim.

O agradável, o belo, o bom designam, portanto, três relações diversas das representações ao sentimento de prazer e desprazer, com referência ao qual distinguimos entre si objetos ou modos de representação. Também não são idênticas as expressões que convêm a cada um e com as quais se designa a complacência Komplazenz nos mesmos. Agradável chama-se para alguém aquilo que o deleita; o belo, aquilo que meramente o apraz, bom, aquilo que é estimado, aprovado, isto é, onde é posto por ele um valor objetivo. Amenidade vale também para animais irracionais; beleza somente para homens, isto é, entres animais mas contudo racionais, mas também não meramente enquanto tais (por exemplo, espíritos), porém ao mesmo tempo, enquanto animais, o bom, vale para todo ente racional em geral; uma proposição que somente no que se segue pode obter sua completa justificação e elucidação. Pode-se dizer que, entre todos estes modos de complacência, única e exclusivamente o do gosto pelo belo é uma complacência desinteressada e livre; pois nenhum interesse, quer o dos sentidos, quer a razão, arranca aplauso. Por isso, poder-se-ia dizer da complacência que ela, nos três casos mencionados, refere-se a inclinação ou favor ou respeito. Pois favor Gunst é a única complacência livre. Um objeto da inclinação e um que nos é imposto ao desejo mediante uma lei da razão não nos deixam nenhuma liberdade para fazer de qualquer coisa um objeto de prazer para nós mesmos. Todo interesse pressupõe necessidade ou a produz; e, enquanto fundamento determinante da aprovação, ele não deixa mais o juízo sobre o objeto ser livre.

No que concerne ao interesse da inclinação pelo agradável, qualquer um diz que a fome é o melhor cozinheiro e que pessoas de apetite saudável gostam de tudo, desde que se possa comê-lo; consequentemente, uma tal complacência não prova nenhuma escolha pelo gosto. Somente quando a necessidade está saciada pode-se distinguir quem entre muitos tem gosto ou não. Do mesmo modo há

LIAN - Da Poesia à Poética costumes (conduta) sem virtude, cortesia sem benevolência, decência sem honradez etc. pois onde a lei moral fala não há objetivamente mais nenhuma livre escolha com respeito ao que deva ser feito; e mostrar gosto em sua conduta (ou no ajuizamento sobre a de outros) é algo totalmente diverso do que externar sua maneira de pensar moral; pois esta contém um mandamento e produz uma necessidade, já que contrariamente o gosto moral somente joga com os objetos da complacência, sem se afeiçoar a um deles (Kant, I., 1988/1997, pp: 54-55).

Neste seguimento, Kant define o juízo de gosto nos seguintes termos: “Gosto é a faculdade de ajuizamento de um objeto ou de um modo de representação mediante uma complacência ou descomplacência independente de todo o interesse. O objeto de uma tal complacência chama-se belo” (1988/1997, p. 55).

Kant separa, assim, a imaginação empírica da imaginação poética ou produtiva, sendo esta última a que releva para o nosso trabalho. O belo, a representação da imaginação poética, distingue-se das representações da imaginação empírica – a representação do bom (o que agrada por meio da razão), a do agradável (o que exige a aceitação dos sentidos) e a do útil (circunscrito a uma situação particular e relativa). Ou seja, se o agradável obedece ao princípio cada um com o seu gosto, ou, o gosto não se discute, já o belo não é determinado por nenhuma predisposição particular do sujeito e refere-se a uma sensação subjetiva e desinteressada.

Apesar de todos os juízos de gosto serem juízos singulares, podemos converter num conceito o que se observa em todos os exemplares dados, como é exemplo a afirmação todas as rosas são belas, mas este é tão-somente um juízo lógico universal e não estético (1988/1997, p. 59). O carácter universal do belo não é postulado por Kant nem na forma do objeto, nem no prazer que este produz na sensibilidade nem na possibilidade de criar um conceito pela síntese empírica das formas, mas sim na capacidade de comunicar universalmente um estado de ânimo que, mesmo sem conceito ou objeto, se refere a uma representação dada ao conhecimento em geral (1988/1997, p. 61). Do princípio da “universal capacidade de comunicação do estado de ânimo na representação dada”, Kant entende o Belo como arquétipo instituído pela natureza. D. Huisman (1929/2013) explica a especificidade da estética de Kant nos seguintes termos: A verdadeira especificidade do kantismo, a grande descoberta da terceira crítica, está numa nova teoria do Gosto. Para Kant, o gosto não é somente um gefuhlsurtheil, um juízo do sentimento: é igualmente um sentimento do juízo (urtheilsgefuhl), o mesmo é dizer, um universal necessário afectivo. (...)

Pode considerar-se que o terceiro princípio de onde nasceu A Crítica do Juízo é a concepção de finalidade que rege o mundo da liberdade espiritual, mas que em Kant será elevada, na sequência dos trabalhos de Burke e Sulzer, até à harmonia universal. Essa harmonia constituirá o tema directivo da Estética kantiana: entre o mundo da natureza e o mundo do espírito, entre a imaginação e o entendimento, entre a afectividade e a vontade, a finalidade imporá sempre a sua valiosa mediação, eficaz e segura. A ideia de finalidade está na base de toda a teoria do juízo reflexivo, ponto de partida essencial para a compreensão da estética kantiana (pp: 36-37).

A faculdade da imaginação, segundo Kant, tem a função de criar a imagem protótipo dos objetos possíveis – ideia normal, que é uma representação composta a partir de um número

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indizível de objetos (ex. a forma bela de flor) que o ânimo adota para comparação – e de fazer cair uma imagem protótipo em função de uma outra que institui como um novo ideal – ideia estética.

Esta, ao dar a pensar, desenha uma nova ideia normal. Assim, a ideia normal resulta da sensação objetiva originada pela afetação (receção de dados da intuição empírica) do objeto externo.

Partindo da premissa de que a ideia estética dá a pensar, ou seja, suspende as categorias do que foi até então pensável, deduz-se que esta não será jamais totalmente compreensível, nem nenhuma linguagem a alcançará inteiramente. Esta (outra) dimensão da linguagem, que capta o caráter discursivo do conceito inalcançável ou irredutível à inteligibilidade, é acedida somente por via do génio, que Kant articula com a noção de “espírito”, de “princípio vivificante no ânimo” ou com a “faculdade da apresentação de ideias estéticas”. Nos seus termos: Espírito, em sentido estético, significa o princípio vivificante no ânimo.

Aquilo, porém, pelo qual este princípio vivifica a alma, o material que ele utiliza para isso, é o que, conformemente a fins, põe em movimento as forças do ânimo, isto é, em um jogo tal que se mantém por si mesmo e ainda fortalece as forças para ele.

Ora, eu afirmo que este princípio não é nada mais que a faculdade da apresentação de idéias estéticas; por uma idéia estética entendo, porém, aquela representação da faculdade da imaginação que dá muito a pensar, sem que contudo qualquer pensamento determinado, isto é, conceito, possa ser-lhe adequado, que consequentemente nenhuma linguagem alcança inteiramente nem pode tomar compreensível. Vê-se facilmente que ela é a contrapartida Pendant de uma idéia da razão, que inversamente é um conceito ao qual nenhuma intuição (representação da faculdade da imaginação) pode ser adequada (Kant, I., 1779/1995, p. 159).

O juízo estético é não só anterior ao prazer como também o condiciona. O ajuizamento subjetivo (estético) do objeto, na sua validade subjetiva universal da complacência, indica que o sujeito reconhece no objeto a imagem flutuante que é a ideia normal de beleza, possível somente pela harmonia das faculdades de conhecimento (1779/1995, p. 62). Assim, reiterando o já afirmado em trabalhos anteriores: As ideias normais são imagens flutuantes, formas de acordo com as quais julgamos as diferentes espécies da natureza. As ideias estéticas transcendem a possibilidade da experiência e têm como função atrair todas as representações nascentes a um ideal sumamente perfetı́vel. Esta ideia de um máximo, conceito da razão, não pode ser representada mediante conceitos, mas somente por um ideal.

Neste seguimento, por ideal entende-se a representação de um ente individual adequado a uma ideia. O juı́zo estético é anterior ao prazer e condiciona-o, no sentido em que o sujeito reconhece no objeto a imagem flutuante, a ideia normal de beleza (Barbosa, M., 2013, p. 84).

A obra de arte resulta da lei da sua própria produção, mas, paradoxalmente, a produção incondicionada da arte remete o sujeito para a absoluta passividade. O génio kantiano resume esta dualidade. Como nos informa: Disso se vê que o génio 1) é um talento para produzir aquilo para o qual não se pode fornecer nenhuma regra determinada, e não uma disposição de habilidade para o que possa ser aprendido segundo qualquer regra;

LIAN - Da Poesia à Poética consequentemente, originalidade tem de ser a sua própria propriedade; 2) que, visto que também pode haver uma extravagância original, seus produtos têm que ser ao mesmo tempo modelos, isto é, exemplares, por conseguinte, eles próprios não surgiram por imitação e, pois, têm de servir a outros como padrão de medida ou regra de ajuizamento; 3) que ele próprio não pode descrever ou indicar cientificamente como ele realiza sua produção, mas que ela como natureza fornece a regra; e por isso o próprio autor de um produto, que ele deve a seu gênio, não sabe como as idéias para tanto encontram-se nele e tampouco tem em seu poder imaginá-las arbitrária ou planejadamente e comunicá-las a outros em tais prescrições, que as ponham em condição de produzir produtos homogêneos. (Eis por que presumivelmente a palavra “gênio” foi derivada de genius, o espírito peculiar, protetor e guia, dado conjuntamente a um homem por ocasião do nascimento, e de cuja inspiração aquelas idéias originais procedem); 4) que a natureza através do gênio prescreve a regra não à ciência, mas à arte, e isto também somente na medida em que esta última deva ser arte bela (Kant, I., 1779/1995, pp: 153-154).

O génio kantiano, que é apresentado como o último talento (que é o espírito), é constituído pela reunião das faculdades do ânimo, que são as da imaginação e do entendimento, e surge com a missão de “expressar o inefável no estado de ânimo por ocasião de uma certa representação e torná-lo universalmente comunicável (1779/1995, p. 162). Kant não estabelece uma hierarquia entre o rigor lógico e a perfeição estética, considera apenas duas fontes distintas de produção de ideias com fins distintos. Citando o mesmo: Se depois destas análises lançamos um olhar retrospectivo sobre a explicação dada acima acerca do que se denomina gênio, encontramos: primeiro, que ele é um talento para a arte, não para a ciência, a qual tem de ser precedida por regras claramente conhecidas que têm de determinar o seu procedimento; segundo, que como talento artístico ele pressupõe um conceito determinado do produto como fim, por conseguinte entendimento, mas também uma representação (se bem que indeterminada) da matéria, isto é, da intuição, para a apresentação deste conceito, por conseguinte uma relação da faculdade da imaginação ao entendimento; terceiro, que ele se mostra não tanto na realização do fim proposto na exibição de um conceito determinado, quanto muito mais na exposição ou expressão de ideias estéticas, que contêm um rica matéria para aquele fim, por conseguinte ele representa a faculdade da imaginação em sua liberdade de toda a instrução das regras e no entanto como conforme a fins para a exibição do conceito dado; finalmente, quarto, que a subjetiva conformidade a fins espontânea e não intencional, na concordância livre da faculdade da imaginação com a legalidade do entendimento, pressupõe um tal proporção e disposição destas faculdades como nenhuma observância de regras, seja da ciência ou da imitação mecânica, pode efetuar, mas simplesmente a natureza do sujeito pode produzir.

De acordo com estes pressupostos, o gênio é a originalidade exemplar do dom natural de um sujeito no uso livre de suas faculdades de conhecimento. Deste modo, o produto de um gênio (de acordo com o que nele é atribuível ao gênio e não ao possível aprendizado ou à escola) é um exemplo não para a imitação (pois neste caso o que aí é gênio e constitui o espírito da obra perder-se-ia), mas para sucessão por outro gênio, que por este meio é despertado para o sentimento de sua própria originalidade, exercitando na arte uma tal liberdade da coerção de regras, que a própria arte obtém por este meio uma nova regra, pela qual o talento mostrase como exemplo. Mas, visto que o gênio é um favorito da natureza, que somente se pode presenciar como aparição rara, assim o seu exemplo produz para outros bons cérebros uma escola, isto é, um ensinamento metódico segundo regras, na medida em que se tenha podido extraí-lo daqueles produtos do espírito e de sua peculiaridade; e nesta medida a arte bela é para essas uma imitação para a qual a natureza deu através de um gênio a regra (Kant. I., 1779/1995, pp: 163-164).

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No curso de lógica ministrado no semestre do verão de 1792, no capítulo dedicado à história da filosofia, Kant, citado por Márcio Suzuki (1998), declara o seguinte: “Os primeiros filósofos foram poetas. É que foi preciso tempo até descobrir palavras para os conceitos abstratos; por isso, no início, os pensamentos supra-sensı́veis eram representados sobre imagens sensíveis. Em virtude da pobreza da linguagem, naquela época só se podia filosofar em poesia” (p. 55). Desta asserção, Márcio Suzuki defende que não é pretensão de Kant defender uma origem comum entre a filosofia e a poesia, mas afirmar que a razão recorre à linguagem poética na falta de conceitos abstratos para se exprimir (p. 55). Ao comparar o valor estético das belas entre si, Kant volta a reiterar a importância da linguagem poética para o entendimento. Nos seus termos: Entre todas as artes a poesia (que deve sua origem quase totalmente ao gênio e é a que menos quer ser guiada por prescrição ou exemplos) ocupa a posição mais alta. Ela alarga o ânimo pelo fato de ela pôr em liberdade a faculdade da imaginação e de oferecer, dentro dos limites de um conceito dado sob a multiplicidade ilimitada de formas possíveis concordantes com ele, aquela que conecta a sua apresentação com uma profusão de pensamentos, à qual nenhuma expressão linguística é inteiramente adequada, e, portanto elevar-se esteticamente a idéias. Ela fortalece o ânimo enquanto permite sentir sua faculdade livre, espontânea e independente da determinação da natureza, para contemplar e ajuizar a natureza como fenômeno segundo pontos de vista que ela não oferece por si na experiência nem ao sentido nem ao entendimento, e, portanto, para utilizá-la em vista e por assim dizer como esquema do supra-sensível. Ela joga com a aparência que ela produz à vontade, sem contudo enganar através disso; pois ela declara a sua própria ocupação como simples jogo, que, no entanto, pode ser utilizado conformemente a fins pelo entendimento e seu ofício (1779/1995, pp. 171-172).

Assim, se na natureza encontramos a beleza, ou seja, as formas belas, na arte temos a representação, que somente o génio é capaz de executar, do belo em si mesmo (1779/1995, p. 157).

Para tal, e nas palavras de Kant, “para a arte bela seriam requeridas faculdades da imaginação, entendimento, espírito e gosto (1779/1995, p. 165).

Kant define o juízo do belo, em referência ao sentimento do sublime, por uma fórmula negativa, o que apraz de modo universalmente válido (quantidade), sem qualquer interesse (qualidade), em conformidade com fins subjetivos, ainda que de modo independente da representação de um fim (relação), cuja satisfação se apresenta necessária (modalidade) (1779/1995, p. 90).

O sublime, no que se distingue do belo, pode ser encontrado em objetos sem forma. Como podemos deduzir, não é o objeto que ajuizamos se é belo, mas a disposição do ânimo por efeito do mesmo na sensibilidade. À semelhança do belo, o sublime não pressupõe nenhum juízo dos sentidos nem é lógico-determinante, mas é sim um juízo de reflexão, que Kant define como um juízo singular que se anuncia como universalmente válido, reivindicando apenas o sentimento de prazer e não o conhecimento do objeto (1779/1995, p. 90). Lyotard aproxima-se do sublime kantiano nos seguintes termos: O sublime kantiano é o signo «estético» (negativo) de uma transcendência própria à ética, a da lei moral e da liberdade. (De qualquer maneira, o sublime não pode ser o facto de uma arte humana, nem mesmo de uma natureza que estaria

LIAN - Da Poesia à Poética «em inteligência» (pela sua «escrita cifrada» -, as belas formas que propõe ao espírito), com o nosso sentimento. Pelo contrário, no sublime, a natureza deixa de se dirigir a nós nessa linguagem de formas, nessas «paisagens» visuais ou sonoras provocadas pelo prazer puro do belo e que inspiram o comentário enquanto tentativa de decifração. A natureza é «utilizada», «explorada» pelo espírito de acordo com uma finalidade que não é a sua (a da natureza) e que nem sequer é a finalidade sem fim implicada no prazer do belo. (...)

Kant escreve que o sublime é um Geistesgefuhl, um sentimento do espírito, enquanto que o belo é um sentimento originado por uma «concordância» entre a natureza e o espírito, ou seja, transcrito na economia kantiana das faculdades, entre a imaginação e o entendimento. Este casamento ou, pelo menos, este noivado próprio do belo, é quebrado pelo sublime. A Ideia, nomeadamente a Ideia da razão pura e prática, a Lei e liberdade, assinala-se numa quase percepção no próprio interior do quebrar da imaginação, e, portanto em favor de uma falta ou até de um desaparecimento da natureza assim entendida. O Geistesgefuhl, o sentimento do espírito, significa que o espírito tem falta de natureza, que a natureza lhe faz falta.

Apenas se sente a si próprio. Assim, o sublime não é mais do que o anúncio sacrificial da ética no campo estético. Sacrifício porque a natureza imaginativa (no espírito e fora dele) deve ser sacrificada no interesse da razão prática (o que não acontece sem problemas específicos, no que diz respeito à avaliação ética do sentimento sublime). Anuncia-se, deste modo, o fim da estética, o fim do belo, em nome da destinação final do espírito, ou seja a liberdade (1988/1997, pp.140-141).

Quando a natureza deixa de comunicar na linguagem percetiva, produz o sentimento de inadequação, que é a impossibilidade de traduzir em palavras o que o espírito criou de afetos, um novo modo de sentir o mundo. Da crise da experiência, não resulta uma nova experiência, mas a impossibilidade de experienciar o mundo na mesma linguagem. Em resposta à falência da experiência, uma nova grelha do visível e do dizível impõe-se ao homem. Perante o irrepresentável, quando a imaginação se mostra impotente para formar os dados, esclarece-nos Lyotard, “uma Ideia da razão se revela” (1988/1997, p. 34). Como se afirma em trabalhos anteriores: Se a demora na contemplação do belo fortalece e aumenta a possibilidade de este se reproduzir em distintos momentos, por oposição, perante o sentimento de inadequação, isto é, quando algo acontece mas não se deixa figurar, a faculdade da imaginação, numa tentativa de estabelecer concordância entre a intuição e as ideias normais, estabelece como lei (regra) determinar como pequeno tudo aquilo que, por comparação àquela medida suprema que não se deixa figurar, não é equiparável. O esforço da faculdade da imaginação em submeter o que se impõe como sublime a um esquema de ideias, revela-se terrificante para a sensibilidade. (...) Pensar, escrever ou pintar é dispor o corpo numa espécie de vazio, é suspender os motivos usuais do espirito que se encontram associadas aos habitus, às disposições do corpo (Barbosa, M., 2013, p. 85).

À luz do pensamento kantiano, a natureza cria-se pela genialidade do sujeito, a quem transmite a regra da criação (1779/1995, p. 164). Citando Kant, “o génio é o talento (dom natural) que dá a regra à arte. (...) Gênio é a inata disposição de ânimo (ingenium) pela qual a natureza dá a regra à arte” (1779/1995, p. 153). Nesta passagem, podemos perceber que Kant relaciona a ideia kantiana de Génio com a de ingenium. A arte, segundo o mesmo, pode ser mecânica – quando se efetiva pelo uso de certos procedimentos – ou estética – quando produz representações que

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despertam prazer. A necessidade de engenho na arte é reiterada em vários momentos da Crítica da Faculdade de Juízo (1779/1995), como é exemplo esta passagem: Não é inoportuno lembrar que em todas as artes livres requer-se, todavia, algo coercitivo ou, como se diz, um mecanismo, sem o qual o espírito, que na arte tem de ser livre e que, unicamente, vivifica a obra, não teria nenhum corpo e volatilizar-se-ia integralmente (por exemplo, na poesia a correção e a riqueza de linguagem, igualmente a prosódia e a métrica), já que alguns mais recentes pedagogos crêem promover da melhor maneira uma arte livre quando eliminam dela toda coerção e convertem-na de trabalho e simples jogo (p. 153).

Para Kant, a arte bela (que é a arte do génio), ao contrário da arte mecânica, resulta de uma intuição associada à qual se encontra um sentimento de prazer. Este, o sentimento de prazer, não depende da representação pela qual o objeto é dado, mas do juízo de gosto de comunicabilidade universal. Como afirma: Logo, é a universal capacidade de comunicação do estado de ânimo na representação dada que, como condição subjetiva do juízo de gosto, tem de jazer como fundamento do mesmo e ter como consequência o prazer no objeto. Nada, porém, pode ser comunicado universalmente, a não ser conhecimento e representação, na medida que ela pertence ao conhecimento. Pois só e unicamente nesta medida a última é objetiva e só assim tem um ponto de referência universal, com o qual a faculdade de representação de todos é coagida a concordar. (...)

As faculdades de conhecimento, que através desta representação são postas em jogo, estão com isto em um livre jogo, porque nenhum conceito determinado limita-as a uma regra de conhecimento particular. Portanto, o estado de ânimo nesta representação tem que ser o de um sentimento de jogo livre das faculdades de representação em uma representação dada para um conhecimento em geral.

Ora, a uma representação pela qual o objeto é dado, para que disso resulte conhecimento, pertencem a faculdade de imaginação, para a composição do múltiplo da intuição, e o entendimento, para a unidade do conceito, que unifica as representações. Este estado de um jogo livre das faculdades de conhecimento em uma representação, pela qual um objeto é dado, tem que poder comunicar-se universalmente; porque o conhecimento como determinação do objeto, com o qual representações dadas (seja em que sujeito for) devem concordar, é o único modo de representação que vale para qualquer um.

A comunicabilidade universal subjetiva do modo de representação em um juízo de gosto, visto que ela deve ocorrer sem pressupor um conceito determinado, não pode ser outra coisa senão o estado de ânimo no jogo livre da faculdade da imaginação e do entendimento (na medida em que concordam entre si, como é requerido para um conhecimento em geral), enquanto somos conscientes de que esta relação subjetiva, conveniente ao conhecimento em geral, tem de valer também para todos e consequentemente ser universalmente comunicável, como o é cada conhecimento determinado, que, pois, sempre se baseia naquela relação como condição subjetiva (Kant, I., 1779/1995, pp. 61-62).

Assim, e como esclarece Rancière (2000), há um novo regime de visibilidade das artes em Kant, uma nova configuração entre as formas de vida. Institui-se com Kant a valorização da experiência estética, e não o artista. Por oposição ao regime aristotélico, que hierarquizou a sociedade entre aqueles que atuam e os que só vivem, Kant consagrou a comunidade de iguais com experiências distintas. Do desmoronar do ideal de sociedade fundada na oposição entre os

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que pensam e decidem e os que trabalham os materiais decorre uma mutação, a dissolução da oposição entre o entendimento ativo e a sensibilidade passiva, que acontece, em termos absolutos, somente em Schiller (Barbosa, M., 2013, p. 34).

SÍ NTESE E ARTICULAÇÃ O DAS IDEIAS ENUNCIADAS: 1.

Reconhecer a diferença entre o pensamento clássico e o moderno: a. Diferença entre a Teoria do Belo e a Estética.

2. Perceber alguns aspetos da arquitetura do pensamento kantiano: a. Identificar as distintas faculdades do homem – Sensação, Imaginação, Entendimento 3. Princípio do compromisso entre a Natureza e a Liberdade: a. Associar a ideia de Liberdade à de Necessidade. b. Compreender a relação do Belo com o Sublime. c. Ligação entre o juízo de gosto e a juízo teleológico.

4. Reconhecer a importância do génio Kantiano: a. O génio como cocriador da Natureza. b. Articular o conceito de génio com a de “espírito”, de “princípio vivificante no ânimo” ou com a “faculdade da apresentação de ideias estéticas”. c. Perceber o génio como inata disposição de ânimo (ingenium) pela qual a natureza dá a regra à arte. d. Determinar a capacidade do génio de expressar o inefável no estado de ânimo por ocasião de uma certa representação e torná-lo universalmente comunicável.

Com Immanuel Kant encerramos a nossa exposição e esperamos que o presente trabalho proporcione um maior entendimento, por parte de investigadores e estudantes, sobre as teorias que compõem o currículo da disciplina de Estética e que contribua, simultaneamente, para posteriores desenvolvimentos tanto do pensamento dos autores abordados como da singularidade da Estética timorense. Serve para o efeito, o registo que se segue, um conjunto de poemas sagrados timorenses, que poderão, em futuras pesquisas, servir de recurso a uma possível análise da poesia à poética em Timor-Leste.

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POESIA SAGRADA TIMORENSE

Fotos: Leitura do oráculo nas entranhas de animais sacrificados por um Lia-Na’in numa cerimónia de Tara Bandu.

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ULIK – UM POEMA DE GUERRA

Benjamim Corte-Real* Maria José Barbosa**

1’ 2’ 3’

Am suir bail ap, Am pei bail kuda, Kud tali ba toir eh,

4’

Ai para ba meléus,

5’

Hiut ha mor oh,

6’ 7’ 8’ 9’

Leol ha sae, Konta nor au ina he, Parte nor au ama, Her la lelo-dik-pu nou ...

10’ 11’ 12’ 13’

Her mor nor liku Au ama pe tad Her la rae-ri, Ri haldu au ama pe heot,

14’

Od má pal mlaai, mlaai heu Teha mlaai, mlaai

15’

“We made up the fire” “We took care of the horses” “The horse's rope won't break” “The holding sticks won't loose off” “The star is about to spark” “The sun is about to rise” “One counts on the mother” “It partakes the father” “Both at the peak and the base“ “In the entire generation” “The father is who knows” “At the end of earth” “End that father maybe the one who’ve seen” “To set law and order” “To honor law and order”

“Preparámos o fogo” “Cuidámos dos cavalos” “A corda do cavalo não vai quebrar” “As varas de prender não se vão soltar” “A estrela está prestes a brilhar” “O sol está prestes a subir “Conta com a mãe” “Já faz parte do pai” “Tanto no topo como na base” “Em toda a geração” “O pai é quem sabe” “Nos confins da terra” “Fim que talvez o pai é quem tenha visto” “Para estabelecer lei e ordem” “Para honrar lei e ordem”

Um texto de ULIK de guerra – exemplo do Mr. Loe-Bau of Nunu-Moge Coro: Oooho…oho…eheeee + buffalo-horn blowing (1) 16’ 17’ 18’ 19’ 20’ 21’ 22’

Ooooho….hooo…hoooh Ooo! Inkai ni tero he, Au ama kas-isi, Oh au Nai-Bere he, Os Lekteti pe ia Dadia, Oh sium la kdia ma sos oh, Teuh la maku,

23’

Au loh bail bit oh,

24’ 25’

Nap bal bor eh, Orde au sium oh tehe,

26’

Orluli Ainaro,

*

Ooooho….hooo…hoooh “The voice of the mother” “The word of the father” “My lord Bere” “From Lekteti and Dadia” “Hereby welcome”

Ooooho….hooo…hoooh “A voz da mãe” “A palavra do pai” “Meu senhor Bere” “De Lekteti e Dadia” “Eu te saúdo”

“One bears the responsibility” “For whom I unfold the mat”

“Toma-se a responsabilidade” “Para quem desdobro a esteira” “Disponho o tapete” “Eu aceito e assumo as ordens” “Bambu sagrado Ainaro”

“I display the carpet” “I hereby accept and bear the orders” “Sacred-bambu Ainaro”

Diretor-Geral do Instituto Nacional de Linguística, Professor da FEAH e da Faculade de Direito da Universidade Nacional Timor Lorosa’e (UNTL). ** Docente e Investigadora da Faculdade de Filosofia da Universidade Nacional Timor Lorosa’e – UNTL.

LIAN - Da Poesia à Poética 27’ 28’ 29’

Napai dai nei Lekteti pe ia Dadiar eh, Au sium os Sai-Bere-Kei he, Tera ai-lolo la…

“Lekteti Dadia is visited”

“Lekteti Dadia é visitado”

“On behalf of Sai-BereQuei” “Such as fulcral trunk”

“Estou por parte de SaiBere-Quei” “Como um tronco fulcral”

Oho…oho…eheeee “From Lekteti and Dadia” “It’s not new” “It’s not recent” “From the sun’s origins” “From the earth’s lava” “It was shown by the mother” “Pointed out by the father” “Father! The mat is unfolded for you” “So is the carpet” “This radiant morning” “Welcoming a rising sun”

Oho…oho…eheeee “De Lekteti e Dadia” “Não é novo” “Não é recente” “Das origens do sol” “Da lava da terra” “Foi mostrado pela mãe”

Oooho…hooo…oooh hee

Oooho…hooo…oooh hee

“From the three shining stars” “Not new, not recent” “Voice of the mother” “Word of the father” “Hereby one receives” “One bears the responsibility” “Assuming” “The mat is unfolded” “The carpet stretched” “Orluli has reached, Ainaro has arrived” “I have unfolded the mat” “The carpet is stretched” “Hereby I receive” “I bear the responsibility”

“Das três estrelas brilhantes”

(2) 30’ 31’ 32’ 33’ 34’ 35’ 36’

Oho…oho…eheeee Os Lekteti be Dadiar he, Ba hena heu he, Ba hena ha mori, Os bail eh lelo ni pu ne, Rae ni era, Inkai pe kok enene he,

37’ 38’

Au ama pe tabár, Ama! Au nap bail bit

39’ 40’ 41’

Loh bail bor, Oh napai lelo sae heu, Teha lelo sae….

“Apontado pelo pai” “Pai! A esteira está estendida para ti” “Assim como o tapete” “Esta manhã radiante” “Saudando o sol nascente”

(3) 42’ 43’

Oooho…hooo…oooh hee Os hit tel ble tel

44’ 45’ 46’ 47’ 48’

Ba heu ba morin id, Inkai ni ter-hua he, Au ama Kas-isi, Sium la kdia he, The la maku,

49’ 50’ 51’ 52’

Oh sium nor the, Loh bail bit la, Nap bal bor eh, Orluli dai eh, Ainaro rat,

53’ 54’ 55’ 56’

Au loe bail bit sos oh, Nap bail bor, Sium la kdia eh, The la maku,

57’

Oh Napai lelo sae heu oh, “Today, a new rising day”

58’

Teha lelo sae.

“Welcoming a rising sun”

“Não é novo, nem recente” “Voz da mãe” “Palavra do pai” “Aqui se acolhe” “Assume-se a responsabilidade” “Assumindo “ “A esteira está estendida” “O tapete está esticado” “Orluli alcançou, chegou Ainaro” “Estendi a esteira” “O tapete está esticado” “Por este meio, eu recebo” “Eu assumo a responsabilidade” “Hoje, um novo dia nascente” “Saudando o sol nascente”

oho…oho…eheeee “Oh! Old mother” “Old man”

oho…oho…eheeee “Ah! Velha mãe” “Velho varão”

(4) 59’ 60’ 61’

oho…oho…eheeee Oh! In main he, Man main hidia,

LIAN - Da Poesia à Poética 62’ 63’

Du tel rae he, Sae tel lelo,

64’ 65’ 66’ 67’ 68’

72’ 73’ 74’

Bol bail kuku-lita he, Do bail lama-lau eh, Os Lakteti pe eh Dadiar, Oh sium nor teh eh, Her bail lao au ina, au ama, Oh korneul-korneul eh, Saiar-saiar, Napai ne au loh bail bit ta, Nap bail bor he, Sium la knia, The la maku eh,

75’ 76’

Napai lelo sae heu, Teha lelo sae.

69’ 70’ 71’

“We’re grounded” “Vanished into the air = vapoured” “Your recommendations” “Your legacies” “From Lekteti and Dadia” “Receive and abide by” “Resides with mother and father” “Chiefs (= Colonels)” “And messangers” “Now and here I unfold the mat for you” “Display the carpet” “I hereby receive” “I hereby bear the responsibility” “This new radiant day” “Welcoming a rising sun”

“Estamos prostrados” “Desaparecido no ar = evaporado” “Suas recomendações” “Seus legados” “De Lekteti e Dadia” “Acolhe e cumpre” “Está com a mãe e o pai”

Oho...oho...eheee “My father” “Orluli Ainaro has come with authority” “I have unfolded the mat” “I have stretched the carpet” “Hereby I receive” “Hereby I assume the responsibility” “I won't bend it down” “The voice of mother” “I don't dare step beyond it”

Oho...oho...eheee “Meu pai” “Orluli Ainaro veio com autoridade” “Já desdobrei a esteira” “Já estendi o tapete” “Eis que recebo” “Eis que assumo a responsabilidade” “Eu não vou curvá-la” “A voz da mãe” “Não ouso avançar para além dela” “A mensagem do pai”

“Chefes =Coronéis” “E mensageiros” “Eis que vos desdobro a esteira” “Estendo o tapete” “Eis que recebo” “Eis que assumo a responsabilidade” “Este novo dia radiante” “Saudando o sol nascente”

(5) 77’ 78’ 79’ 80’ 81’ 82’ 83’

Oho...oho...eheee Au ama, Ukun dai nei Orluli Ainaro má pe, Au loeh bail bit sos, Au nap bail bor eh, Au sium la knia Teh la au maku eh,

84’ 85’ 86’

Tet du se au ba tet idi, In mai ni ter-hua, Ai, au se ba pag-lau he,

87’

Man mai ni kas-isi,

88’ 89’ 90’

Bol bail kuku-lita, Do bail lama-lau ne, Oh napai lelo-sae heu

91’

Tehe lelo-sae.

“The speech-content of father” “His lips’ pronouncement” “Tongue out his legacy” “Today, this new radiant day” “Welcoming a rising sun”

“O desígnio de seus lábios” “Teça seu legado” “Hoje, este novo dia radiante” “Saudando um sol nascente”

(6) 92’ 93’ 94’ 95’

Oho... oho... eheeee Kala bail um-sua he, (Kala bail) um-tete, Kala bail Nai-Buti he,

96’

(Kala bail) Nai-Meta,

97’ 98’

Im ter-hua he, Im Kas-isi,

Oho... oho... eheeee “It's called the lower house” “It’s called the upper house” “It's called the Nai-Buti (lord of white house)” “It’s called Nai-Meta (lord of black house)” “Your voice's seed” “Your speech content”

Oho... oho... eheeee “É chamada a casa baixa” “É chamada a casa alta” “É chamado Nai-Buti (senhor da casa branca)” “É chamado Nai-Meta (senhor da casa preta)” “A semente da sua voz” “O conteúdo da sua fala”

LIAN - Da Poesia à Poética 99’

Im pe la teh ukun,

100’

Teh badu má pe,

101’

Im her bail um hae-pat he: An-hine pat, An-mane pat,

102’ 103’

“You’re invested with power” “Come with the commandments” “You’re at four branch houses” “The four daughters” “The four sons”

“Sois investido de poder” “Vindes com os mandamentos” “Estais nos quatro ramos de casa” “As quatro filhas” “Os quatro filhos”

Um texto de ULIK de guerra - exemplo extraído das notas do senhor João Nunes que recita a solo: (1) 104’ 105’ 106’ 107’ 108’ 109’

Lel-ble teul, Rae-tama pat, Hoh-bote teul, Rae-bou pat, Au troub nei es-nipa, Au koi nei tail-mata,

110’ 111’ 112’

Es-nipa limnairua, Tail-mata limnairua Hoho-ubu, rae-ubu,

113’

Suru-lau, Kak-knua

114’ 115’ 116’ 117’ 118’ 119’ 120’ 121’ 122’ 123’ 124’ 125’ 126’ 127’ 128’

Ablai, Kai-Kasa Berlaka, Taul-teul, Liuha-Lau, Kou-Hati Sirbiu, Maun-Mer, Ble-Hiut, Ble-LeoL Tun-Asu, Maun-Lor Hoho-Mai, Nam-Tu Purluli, Lau-Met Berbei oh Raem-lau Keilau Mau-UI-lau La nahai kidia, La lelo kidia Au tuk la im, Au kbin la im, Du nei au ulu-tutu,

129’ 130’ 131’

Sae nei au oe-lau, Ne blere ma Au ol,

“Three shining stars” “Four land marks” “Three big mountains” “Three small mountains” “I am trapped amidst thorns” “I am fallen into a rope ambush” “Seven thorns” “Seven rope traps” “Patrons of Mountains and of the land” Suru-lau, Kak-knua (Names of mountains (nm)) Ablai, Kai-Kasa (nm) Berlaka, Taul-teul, (nm) Liuha-Lau, Kou-Hati (nm) Sirbiu, Maun-Mer, (nm) Ble-Hiut, Ble-LeoL (nm) Tun-Asu, Maun-Lor (nm) Hoho-Mai, Nam-Tu (nm) Purluli, Lau-Met (nm) Berbei oh Raem-lau (nm) Keilau Mau-UI-lau (nm) “Today right here” “On this day” “I request you” “I beg you” “Come down on top of my head” “Rise up to my feet” “Provide me with the sharp” “I hold on my shoulders”

132’ 133’

Ne hatsi ma Au sid,

“Give me the cutting edge” “I’ll slide under my belt”

134’ 135’ 136’

Muin nei au ahe, Au ahe pun benu, Dud nei au hoho,

“Forestep me” “To crowden my forestep” “Follow me”

“Três estrelas brilhantes” “Quatro marcas da terra” “Três grandes montanhas” “Três pequenas montanhas” “Estou preso entre espinhos” “Caí numa emboscada de corda” “Sete espinhos” “Sete armadilhas de corda” “Patronos das montanhas e da terra” Suru-lau, Kak-knua (Nomes das montanhas (nm)) Ablai, Kai-Kasa (nm) Berlaka, Taul-teul, (nm) Liuha-Lau, Kou-Hati (nm) Sirbiu, Maun-Mer, (nm) Ble-Hiut, Ble-LeoL (nm) Tun-Asu, Maun-Lor (nm) Hoho-Mai, Nam-Tu (nm) Purluli, Lau-Met (nm) Berbei oh Raem-lau (nm) Keilau Mau-UI-lau (nm) “Hoje aqui mesmo” “Neste dia” “Eu te solicito” “Eu te implore” “Desça ao topo da minha cabeça” “Erga-se aos meus pés” “Provenha-me de lança” “Eu carrego nos meus ombros” “Dê-me o fio de navalha” “Deslizarei por debaixo do meu cinto” “Tome a dianteira” “Para ocupar o trilho” “Siga-me”

LIAN - Da Poesia à Poética 137’

Au hoho pun hogo,

“To thicken my backstep”

138’

Au oe oid lehe,

“To lighten my legs”

139’

Au lima oid blab,

“To flex my arms”

140’ 141’

Au oid fo haut-laun, Au oid sae rae-boun,

142’ 143’ 144’ 145’ 146’

Rae-bou pedu pe naru, Rae-bou rema, Haut-gua pedu pe lori, Haut-gua apo (/kafo), Au toi man mua,

147’

Au baus man teuha,

148’ 149’ 150’

Au sui ni gluta, Au sir ni lama, Oid buis au manu-hulu,

151’ 152’

Oid loeh au tad-bau, Oid sre lel-ble teul,

153’

Rae-tama pat.

“So I can burst the rocks” “So I can reach out the mountains” “Mountains however high” “Will be dashed flat” “Rocks however thick” “Will be cracked” “I burst him like a bananatree” “I crash him like a sugarcane” “I drain out his brain” “I tear off his tongue” “To decorate my feathercrown” “To loose my foot wear” “To honour the three shinning stars” “The four land marks”

“Para engrossar as minhas pegadas” “Para aliviar as minhas pernas” “Para flexionar os meus braços” “Para eu explodir as rochas” “Para eu poder alcançar as montanhas” “Montanhas, embora altas,” “Serão feitas planas” “Rochas, embora espessas,” “Serão quebradas” “Eu desfaço-o como uma bananeira” “Eu parto-o como uma canade-açucar” “Escoo-lhe o seu cérebro” “Despedaço-lhe a língua” “Para decorar a minha coroa de penas” “Para relaxar meu calçado” “Para honrar as três estrelas cintilantes” “As quatro marcas da terra”

O poema sagrado intitulado ULIK, original de Ainaro, evoca o que poeticamente habita o homem, a palavra sagrada. O lugar da existência do homem aparece, no poema, no intervalo de dois planos – o terreno e o celestial – cujas coordenadas terrestes são claramente definidas de acordo com a (real) topografia da região. A dimensão sagrada da palavra poética homenageia a hierarquia que fora pactuada por diversos sub-territórios para formar o pan-território de SuruAinaro, do qu al, doravante , surtiu o mito que ainda se vive.

A palavra humana, pela sua proximidade para com a natureza terrena, omnipresente, bela e poderosa, e para com o que o céu representa, confere a medida do habitar do homem na relação com o sagrado.

A descrição precisa do espaço geográfico, por oposição à alusão vaga dos astros que assinalam o dia e a noite, demonstra que o homem vive um só tempo e um só lugar. Não obstante, o espaço adquire primazia em relação ao tempo. O espaço é múltiplo, o tempo é o primordial. A palavra sagrada, que repõe o tempo primordial, unifica os elementos diferenciados que se encontram presentes sem eliminar a tensão existente entre eles. O nomear poeticamente de todos os elementos revela o carácter sagrado dos mesmos. Os nomes das montanhas e das casas reais, são nomes sagrados.

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O espaço do habitar humano, entre o céu e a terra, aparece como uma árdua conquista que marca o carácter trágico da existência humana. Não obstante, o homem apresenta a disposição de estar aberto, de olhar o céu e as montanhas, e de enfrentar o inesperado pela guerra ou por alianças.

Pese embora as casas reais e os restantes elementos do real sejam apresentadas como uma estrutura familiar, são contrários entre si e colocados em tensão, dando provas do carácter de alteridade dos elementos que compõem a unidade territorial. Os elementos da natureza,assim como as casas reais , são irredutíveis entre si. As próprias casas reais integram, na sua unidade, a dicotomia do feminino e o masculino. Tanto a aliança das casas reais como a do homem com o sagrado assegura m a unidade (e não uma singularidade) entre elementos, para sempre, irredutíveis e distintos entre si.

O poema é, em si mesmo, a expressão dessa unidade. Esta comporta uma orientação cosmológica que liga os três corpos brilhantes do céu e as quatro marcas da terra, que correspondem aos pontos cardiais: norte/ sul/ este e oeste.

A entidade materna / paterna contempla as relações de parentesco existentes na ordem dos elementos terrenos e na dos patronos espirituais ou elementos divinos, respetivamente, que foram plasmadas na ordenação do território, no momento do seu pacto fundador. A figura materna e a paterna destaca o estatuto sénior de certos territórios relativamente a outros. A consignação da composição familiar no pacto territorial tem como objetivo fazer plasmar na dimensão terrena e divina a medida humana, para assim garantir a hospitalidade e acolhimento do homem no mundo.

Esta configuração orientará, para sempre, as disposições das relações sociais e políticas. A linguagem acolhe e reflete uma ordem, que assegura a simbiose entre a organização humana, a divina e a terrena, que se plasma no território geográfico. Esta estrutura fundamental, ainda que de carácter antropológico, determina, simultaneamente, uma ordem ontológica, ou seja, a ordem das existências. A designação de um território (ou de um elemento)“mãe”(e não mulher, por exemplo) indica, necessariamente, a existência do território (ou de um elemento) “pai”assim como os territórios (ou de um elemento) descendentes (os filhos). O pacto territorial é renovado, indefinidamente, sob a égide dos laços de parentesco, que determina uma aliança irrevogável.

Todo e qualquer território é governado por um casal de casas reinantes. Esta ordem familiar imprime a sua configuração sintagmática na ordem temporal e na ordem divina, que se sobrepõem entre si.

Segundo os usos e costumes timorenses, as decisões de índole familiar são deliberadas na parte escura do dia, enquanto os assuntos de ordem política e social são desenvolvidos na parte iluminada do dia. As horas nocturas do dia estão consignadas às questões privadas ou familiares, enquanto as horas diurnas estão reservadas às questões comuns, isto é, da comunidade em geral.

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A governação pública originária, que corresponde à atual ação do Estado moderno, fica reservada às horas diurnas do dia. Foi a esta ordem hierárquica fundadora que se têm vindo a sobrepôr a ordem administrativa moderna (tanto portuguesa, como a indonésia e a timorense). No tempo colonial português e indonésio, consignava-se na administração do território a figura de Chefe de Suco ou Kepala Desa, respetivamente, baseada no que era a figura do Liura i, função que priorizava o desempenho por transmissão hereditária. Com o andar dos tempos, com a introdução dos mecanismos de eleição popular, essa transmissão tem vindo a ceder lugar a critérios diversos, mormente e cada vez mais, de alternância democrática. Surge premente a figura das pessoas cultas e velhas, detentoras de amplos conhecimentos sobre a história do seu território e d a sua gente, e, por isso, lhes é reconhecida a autoridade moral que, progressivamente, as converterá em anciãos conselheiros, mais do que em autoridade com poderes executivos. A completa transição destes trámites implicará, necessariamente, uma metamorfose político-ideológica, sócio-antropológica.

Tal facto justifica o desejo e, simultaneamente, as apreensões face ao modus vivendi timorense da democracia, isto é, a interpolação dos laços de parentesco e alianças primordiais com os arranjos sócio-políticos da modernidade de um Estado de direito democrático. Compreende-se assim os moldes de concretização gradual, ou de experimentação, do recém-nado regime democrático no nosso país.

As crenças ancestrais das populações, face ao cenário de serem suplantadas por novas convicções, necessitam de uma moderação ágil e paciente, animando-as para as adaptações que se impõem ante as mudanças antropológicas e sociológicas que se lhes desfilam perante os olhos.

Os poemas de ULIK aqui apresentados são de dois tipos. Ambos cantados, cada tipo exerce sua própria função cultural: [i] o tipo que consiste em invocar a proteção espiritual em situação de guerra, dirigida a entidades sobrenaturais ou míticas para conceção de graça, de boa sorte e/ ou de proteção face a uma ameaça previsível ou a um desastre anunciado; e [ii] o tipo que serve de récita de receção de boas-vindas às visitas de figuras majestosas.

Os poemas tradicionais que versam temas sagrados são recitados sempre sob um rigoroso escrutínio dos anciãos. Os oradores, que não são necessariamente Lia-na’in (orador tradicional “dono da palavra”), só podem encenar o relato sagrado após acautelada e acompanhada iniciação à arte, precisando de muitos anos de aprendizagem, podendo alongar-se por uma geração (entre ascendentes e descendentes). Estes, antes da performance, devem reunir-se com os anciões que os ajuizarão e os legitimarão como oradores da tradição. Findo o processo, os iniciados sagram-se Poetas da Tradição.

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O poeta-artista (da cultura) Mambai é um fiel reprodutor dos valores predeterminados da sociedade de que ele é porta-voz. Os oradores devem ter somente uma habilidade reconhecida pelas autoridades tradicionais e, por tal, são frequentemente convidados para a encenação. Toda a performance se torna objeto de avaliação/apreciação dos anciãos – a boca da verdade da comunidade. O juiz de cada performance, em bom rigor, é a própria comunidade, que tem em si mesmo presente, de modo muito consciente, os valores representados. Com base nestes, a comunidade julga a veracidade e fidelidade da performance. Acredita-se que a censura assume sempre um carácter trágico. O artista só pode afirmar o que é requisito de todos, em sintonia com os parâmetros amplamente reconhecidos. Caso a performance seja reprovada, o artista pode ser ostracizado, que é uma condenação bastante dura. Caso ocorra um engano, um tropeço de linguagem, o artista não escapa censuras públicas pela comunidade dos Lia-na’in ia- ’ da comunidade em geral.

Encerra-se assim a quadratura que compõe o circuito sagrado, a saber,: homem, divino, terra e céu. Assim como no tempo primordial, a familiaridade e a estranheza são sensações recorrentes aos que oram e aos que julgam.

A palavra sagrada separa a essência do real do restante. À semelhante das casas reais, na palavra sagrada, a linguagem como casa do ser, na aceção heideggeriana, encontramos a dicotomia do feminino / masculino. A cultura Mambai parece parece sensível à distinçãoentre entreooplano planoda da voz voz sensível à distinção (feminino) e o da palavra (masculino), tão determinante à psicanálise lacaniana. Ao extrair o essencial, que corresponde ao sagrado, do transitório, a palavra revela o combate entre ambas. A palavra é a arma que inicia e propicia o combate. A natureza, cuja essência é sagrada, desperta pela palavra armada. A menção aos “Patronos das montanhas e da terra”, que compõe o vigésimo quinto verso, indica a precedência e regência da natureza. Tudo o que existe, até mesmo o divino, se subordina a ela. Cabe à natureza insuflar tudo o que existe de espirito, definindo cada coisa na sua singularidade e reunindo tudo numa unidade diferenciadora. O homem, que habita o espaço aberto onde a palavra divina atua, opera como um mediador. A poesia não sobrevoa nem se eleva aos céus. É a linguagem poética que traz o homem à terra para nela habitar. Na figura do poeta podemos perceber três contornos distintos: o poeta fundador do “reino” (hoje, Município) e anunciador de um destino histórico comum; o poeta recetáculo do sagrado que, nessa função, transmite as armas das divindades aos mortais, e, por fim, o poeta como extemporâneo, o que vem de fora para repor o tempo primordial.

No primeiro momento do poema, toda a estrutura tradicional de Ainaro, que resulta de um pacto entre pequenos reinados, está representada. Aquando à oração, que decorre sempre num registo cantado, a relação sacral entre os elementos do pacto é evocada. Este, o pacto, foi sagrado

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entre várias casas reais, sendo a mais velha designada de mãe e pai (PUKUL SARIN, DAR-HA AITUA). Sob a sua égide, estão as casas reais dos quatro reinos-filhos, que seguem uma ‘hierarquia familiar’, sendo BISIMAU-DASIKOLI o filho mais velho na sequência dos quatrofilhos, seguido do LEKITETI-DADIA, do qual se segue ALOKO MAU-SUR e, por fim, LAUBEI MAUTENI. Os quatro territórios-filhos integram, conjuntamente com o território mais sénior, In nor Am (pai e mãe) de Suru-Kraik, o elenco fundador do pactuado reinado de Suru-Ainaro.

O primeiro tipo de ULIK, ULIK por Loe-Bau, do território de Lekiteti Dadia , é uma evocação de reafirmação das ligações primordiais entre as forças sociais do suco reinante do orador com as restantes estruturas, desde o reino pai-mãe aos reinos-filhos, irmãos entre si.

No segundo tipo de ULIK, ULIK consoante o Mestre João Nunes, da casa de Mantilu, do suco de Manutaci e descendente de Lekiteti Dadia, se constata que a vila de Ainaro se encontra situada num meio-arco de montanhas, que se assemelha às mãos abertas de uma mãe em torno da vila, gesto acolhedor e protetor dos filhos que nela habitam e em direção ao mar, na parte sul.

O poema é igualmente uma exaltação e invocação aos patronos espirituais da comunidade de Ainaro, isto é, da terra e do povo, que são as montanhas.

A alusão à cana-de-açúcar e à planta de bananeira, insinua a fragilidade do inimigo, pois a cana parte-se e a planta de bananeira esmaga-se facilmente. O poema é expressão (metafórica) da heroicidade do povo que visualiza o inimigo como um elemento frágil que, tal como uma bananeira, não resiste à espada, ou à semelhança da cana-de-açúcar, não resiste à força dos músculos. O poema é, sobretudo, a via de eliminar o medo. O povo, protegido pelos espíritos guerreiros fundadores e, por tal, imbuído de uma confiança na vitória segura, enfrenta assim corajosamente as investidas inimigas.

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SETE POEMAS DEDICADOS À VIDA DOS AGRICULTORES TIMORENSES Vicente Paulino* A alma dos timorenses foi criada com o suor do corpo que se movimenta debaixo do sol ardente, a cavar a terra, sem descanso imediato, para a semear e plantar o arroz, milho, mandioca e outros produtos alimentícios. Essas almas, que são agora conhecidas como “almas dos agricultores”, sabem cultivar a terra em busca da prosperidade plena com consciência. Trabalhar na terra é um hábito dos timorenses que, na sua maioria, são agricultores por natureza, pois é a terra que sustenta a sua vida familiar. Segundo a cultura timorense, qualquer pessoa tem uma existência natural para além da ordem genética. Esta aproxima-se mais a uma genética cultural do que biológica.

Os agricultores timorenses têm uma forte ligação com o dualismo cosmogónico: o cosmo das divindades (ente supremo) e o cosmo dos espíritos dos antepassados. Do cosmo das divindades, temos o Ser supremo (Maromak) e os entes intermediários, que na sua maioria são entes da natureza (ex. montanha; rio, florestas, pedras, etc.). Estes, os entes intermediários obedecem à ordem divina do Ser Supremo. Já no cosmos dos espíritos dos antepassados, temos uma conetividade forte entre os vivos e os espíritos dos já estão em viajam para um outro mundo.

Também estes, os espíritos dos vivos e dos mortos, subjazem à ordem divina. Por esta razão, realiza-se sempre os ritos agrícolas, como o “ritual de preparar o terreno cultivo”, “ritual de chamar a chuva”, “ritual de semear o neli (arroz)”, “ritual de colheita do neli (arroz)” e “ritual de saubatar”. Estes rituais têm conexões entre si, tanto no aspecto de sua realização, como no conteúdo de anunciação das palavras. Nestes, todos as ordens cósmicas se articulam entre si pela palavra. A palavra é, neste sentido, um poder e um fazer acontecer.

Para recordar a memória dos agricultores timorenses (incluindo a dos meus pais, que me cuidaram com o suor derretido no seu corpo nas várzeas e nas hortas), apresento os meus versos, que dedico com um “sentimento de reconhecimento”. Estes simples poemas1,*escritos por mim na hora em que pensei no “suor incansável dos meus pais debaixo do sol ardente queimador”. Não sou um poeta conhecido dentre dos conhecidos, sou apenas filho de um agricultor que nasceu e

*Professor Auxiliar Convidado no Programa de Pós-Graduação e Pesquisa da Universidade Nacional Timor Lorosa’e.

Director da Unidade de Produção e Disseminação do Conhecimento do Programa de Pós-graduação e Pesquisa da UNTL. Editor-chefe da VERITAS – Revista Científica da Universidade Nacional de Timor Lorosa’e. *1 Poemas de Vicente Paulino, originalmente escritos em tétum e traduzidos para português pelo próprio autor.

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cresceu para testemunhar a vida daqueles que trabalham na terra, testemunho que deixo nos simples versos poéticos que apresento a seguir.

Ninguém pode sonhar com a vida luxuosa antes de ter mexido nas lamas da terra. É precisamente isso que acontece com o povo de Timor. Deve-se convidar todos os timorenses a pensar na sua própria história, a ver a primeira luz do mundo, como diz as “preces de um agricultor”: Hamulak agrikultór ida nian – Preces de um agricultor Loron ohin ne’e Loron ida ne’e Ami mai iha imi oin Hodi fó ai-han matak

Neste dia Nesta data Vimos ao vosso esplendor Para vos oferecer comidas frescas/verdes

Ai-han foun Simu bá no han bá Tamba imi mak ami iha Tamba imi, ami moris

Novas alimentações Recebei e comei Por causa de vocês nós existimos Por causa de vocês nós vivemos

Ami uma no ahi Ami avó sira Fó ba imi batar tuan Nu’udar fini ba imi

Nós de casa e do fogo Nós vossos avós Dais-vos este milho antigo Como sementeiras para vós

Kari ba iha imi to’os kuida bá ho di’ak fini foun sei mosu mai ami hein atu simu nia.

Plantais/semeais nas vossas hortas Cuidais bem Novas sementeiras aparecerão Nós esperamos para as receber

Hola bá ho fuan Kuda bá ho domin Haburas ho liman midar Keta laran taridu Ami ho imi

Recebeis com coração Plantais com amor Cuidais com mãos meigas Não ficar dúvida Nós estamos convosco

La husik imi mesak Hanoin bá Ida ne’e fini roman nian Fini lulik nian Haburas imi to’os.

Não vos deixamos sozinhos Lembrai/recordai Que esta são as sementeiras da claridade Sementeiras do sagrado Que fazem verdes as vossas hortas.

O mundo dos timorenses está associado à “ligação cósmica”. Os timorenses reconhecem a existência de um poder sobrenatural que opera à escala divina. A forma de invocá-lo é usando as letras para compor as palavras que irão ser pronunciadas numa cerimónia ritualística. Invocar os espíritos de natureza, desde a montanha, a terra, o ar, a água, as pedras e as árvores, é poder proteger e assegurar a vida humana na sua totalidade. Embora dificilmente seja possível dizer na

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totalidade, claro que não, a clamação do sagrado justifica-se apenas à escala humana, nem menos, nem mais. O sentido de “ligação cósmica” nesses versos é fundamentalmente associado à oração que um lia-na’in pronuncia no momento de realização de um qualquer ritual. Sendo assim, o sentido de “ligação cósmica” que se apresenta aqui não é propriamente uma invocação do liana’in, mas sobretudo, uma inspiração minha que produz um “sentido próprio” que se assemelha com a fala de um lia-na’in. Esta “ligação cósmica” também pode ser declamada por outras pessoas como uma “prece”, de uso pessoal e de uso colectivo, dependendo daquele que acredita no “poder cósmico relacional”.

Ligasau kosmika – Ligação cósmica Ha’u uma no ahi Ha’u foho no rai Ha’u fatuk no ai Ha’u anin no ween

Casa e fogo meus Montanhas e terra minhas Pedras e árvores minhas Ar e água meus

Ita mak boot Ita mak matak-malirin Ita mak ha’u ís Haburas ha’u isin

Sois vós Vós protector Vós, vida minha Refrescais o meu corpo

Ha’u foho no rai Ramelau-Cablaqui-Loelaco Matebian-Taroman-datoi Imi naran iha ha’u fuan

Montanhas e terra minha Ramelau-Cablaqui-Loelaco Matebian-Taroman-Datoi Vosso nome fica no meu coração

Ha’u fatuk no ai Fatuk lulik ha’u isin Ai lulik ha’u klamar Haburas há’u moris

Pedras e árvores minhas Pedras sagradas meus corpos Árvores sagradas almas minhas Refrescais vida minha

Ha’u anin no ween Anin ha’u ís Ween ha’u moris Haburas ha’u moris ho ween

Ar e água Ar sopra vida minha Água, vida minha Refrescais a vida minha com água

Sou aquilo que sou, e nada mais. Continuo a ajudar os meus pais na construção de “lutu ba to’os” (muros para proteger as hortas), mexer na terra, isso foi e é feito nos dias de férias. Sou assim, porque sou de origem da terra cultivada, onde a correria acontece com os búfalos domesticados e estimados nas várzeas cheias de lamas mexidas. Reconheço que sou apenas aquilo que sou, nada muda na minha cor de origem, porque negar é um pesado pecado que a própria natureza não perdoa. Reconheço a minha infância de vida enfeitada pelas lamas da terra mexida pelos búfalos corridos que, de seguida, se limpam pelo vento das águas caídas do céu. Por isso,

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esta “mensagem de um agricultor” tem utilidade para todos os filhos que vivem com lamas da terra, enxadas nas costas levadas na hora de visitar a horta e a várzea. É uma mensagem de um “pobre-poeta agricultor” (refere-se a um agricultor anónimo e sábio, não há dúvida nenhuma, senão o meu pai estimado, nascido em Tastil-Memo, casado com minha mãe nascida em OplegulHolsa – bela mulher de seu tempo e agora também) que queria deixar a sua “voz lembrada nos limitados versos”, o seu testemunho. Eis o poema por mim escrito para recordar as suas “memórias passadas” e “repassadas” pelo tempo presente e pelo tempo que há-de-vir. Por isso, surge nesta folha a “mensagem de um agricultor”: Mensagem de um agricultor Um dia estando na várzea Era da época da chuva Correndo atrás dos búfalos Pisando a terra para semear o neli Sementeiras dos meus ancestrais Debaixo da chuva torrencial Brincando com búfalos as lamas da terra Aclamando as letras poetizadas com lamas coladas no corpo Afinal, eram versos poéticos dos antigos agricultores Que eram dos meus antepassados Todo o corpo estava a tremer Molhados pelas águas torrenciais do céu Era a vida da minha família na várzea e na horta Que um dia ficará nos versos sem rimas Afinal, versos da vida de um agricultor.

Está na hora de dizer a verdade A verdade é que estive a pedir um poema às lamas mexidas Para não espantar a gente intelectualizada Mostrar aqui os versos desenhados com búfalos corridos na várzea Não, não pode ficar admirado!

Que a vida de um agricultor está nos versos bem poetizados Digo com verdade que sou um pobre agricultor Poeta-agricultor analfabeto Que ninguém reconhece Mas, alguém reconhece-me com todo o seu ser E certamente o meu filho que não deita de fora os meus provérbios Sou um pobre agricultor do nosso tempo Sou um agricultor honesto e trabalhador Declaro-vos com verdade Que sou herói do vosso futuro que há-de-vir Deixo a minha voz esquecida nestes limitados versos.

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O trabalho de um agricultor associa-se a um nome, os “to’os lulik”, que é usado como um meio para identificar e reconhecer a imagem dos “antigos agricultores”. Estes são designados como sendo “badain to’os nain”, ou, por outras palavras, os agricultores dignos que são aqueles que trabalham arduamente sem ter tempo para descansar. Mesmo quando a luz eléctrica do sol queima o seu corpo, a sua alma permanece no labor da acção para fortificar o sentido de “kolen” (trad. cansaço) no mundo de vida. Por causa desse “kolen” que, em algumas ocasiões de descanso, um agricultor começa a contar história dos avôs que outrora cavaram a terra para lhes dar alimento.

Ha’u kolen – Estou cansado Ha’u kolen, Ain moras, isin todan Fuan nakdedar Ai-han la to’o

Estou cansado Doem-me os pés, corpo abafado Coração amassado Comida não chega

Ha’u kolen, Maske nune’e Ha’u buka atu hetan Ai-han diak iha ha’u to’os

Estou cansado Mesmo assim Procuro para encontrar Boa comida na horta minha

Kosar sulin iha ha’u isin Ha’u oan dehan, apa deskansa it’uan Ha’u hatan, oan labele tamba kosar ne’e energia ha’u neon

Suor derretido no corpo meu O meu filho disse, pai descansa um pouco Respondo eu: filho não posso Porque este suor é a energia da minha mente

kosar sulin iha ha’u isin domin ba moris di’ak emar seluk gosa ho na’ok estadu lakon, povu ki’ik terus bebeik

O suor derretido no corpo meu É amor de boa vida Outra gente goza com o roubo Estado perde, pequeno povo continua a sofrer

ha’u kolen, maske nune’e halimar ho du’ut iha ha’u to’os laran buka ai-han matak ba ha’u isin

Estou cansado Mesmo assim Brinco com ervas nas hortas minhas procuro a comida fresca para o meu corpo

ha’u kolen sae foho no tun foho dignidade ha’u neon.

Kosar sulin iha ha’u isin Hanesan ween di’ak ba ha’u fuan

Estou cansado de subir e descer a montanha Dignidade da minha mente Suor derretido no corpo meu Como água saudável do meu coração

Emar balun na’ok la kolen Semo ba mai, gasta riku-soin estadu Buka di’ak, kaer ida ne’e no kaer ida ne’ebá halakon aifunan balun ninian furak.

Outras pessoas não se cansam de roubar Viajam ida e volta, gastam a riqueza do estado Procuram o bem, pegam nestas e naquelas Destroem a beleza dalgumas flores encantadas

Oh… natereza timor, Foho-lulik, rai-lulik sira Tau matan mai ha’u kolen Hiki’is kosar iha ha’u isin

Oh … natureza de Timor Montanhas e terras sagradas Olham para o meu cansaço Afastam o suor no corpo meu.

LIAN - Da Poesia à Poética

Um agricultor analfabeto não descansa, nem um minuto que seja. Este trabalha arduamente para melhorar a vida familiar e para sustentar o futuro de seus filhos. Muitas vezes os filhos não valorizam o sacrifício de seus pais, por os considerar analfabetos e “beik-ten – ignorantes”. Mas, um filho que nega a existência profissional dos seus pais, que o sustenta e o educa, é um filho que goza a vida acima do suor e sofrimento dos seus pais, e, por tal razão, um pai-agricultor analfabeto faz uma vénia de “lamentações” em palavras e versos.

Triste ha’u neon – Triste mente minha Oan ha’u isin Triste ha’u neon Sulin ha’u kosar Halo dalan ba ó lao

Filho da minha carne Triste mente minha Suor meu derretido Faz estrada para te guiar

Kosar ha’u isin Haluha tiha ida ne’e Ha’u beik Maibe, ha’u la’os beik hanesan ó hanoin

Suor do meu corpo que te guia Já esqueceste disso, Sou um analfabeto Mas, não sou burro como tu pensas

Fos, batar, aifarina Foti husi to’os no natar Fa’an iha bazar hodi buka aitahan Dalan ba ó nia diak

Arroz, milho, mandioca Colhidos nas hortas e várzeas Vendidos no bazar em busca das notas Caminhos para o teu bem

Oan la hanoin ami kosar Hanoin goza, hakarak ida ne’e no ida ne’e ba La badinas hili aitahan furak Triste ha’u neon, klamar ha’u tanis

Filho não pensa do nosso suor Pensa em gozar, quer isto e aquilo Preguiça na recolha das belas folhas Triste minha mente, chora alma minha

Triste liu tan kuandu dehan Ha’u beik, lahatene buat ida ita ha’u oan nafatin maske kanek ha’u fuan

Triste ainda mais quando disse Sou analfabeto, não sabe nada Continuas a ser filho meu Embora doe este coração

Pai, ha’u mak ne’e Hakneak ha’u iha ita oin no husu Ha’u halo sala ona Husu ita haklaken ha’u neon

Pai, este seu filho Ajoelho-me diante de si Já fiz pecado Peço-lhe para abrir coração meu

Oan ha’u isin Oan ha’u neon ita ha’u oan nafatin maske kanek ha’u fuan

Filho da minha carne Filho da minha mente Continuas a ser filho meu Embora doe este coração

As lamentações declamadas por um poeta-agricultor analfabeto em seus versos são, de facto, uma das formas possíveis de “criticar” aqueles que não valorizam as “lamas da terra” – doadoras de alimentos para os homens, razão pela qual esse agricultor analfabeto convida a que todos nós

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reconheceçamos a importância das “lamas da terra” para a nossa vida. Por isso, declama-se as “lamas da terra” em versos que estão na nossa mente: Tahu rai – Lamas da terra Rai-rahun semo Anin mak lori Monu iha rai Sai fali tahu

Pó que sobrevoa O vento que leva Cai sobre terra Torna-se em lamas

Tahu rai nian Rai-rahun isin kaluak Hamoris emar tomak Ho fuan domin

Lamas da terra Pó da carne do universo Faz viver a gente Com coração amável

Rai-rahun isin kaluak Ne’ebé habelit an iha anin no sira seluk Haburas moris emar tomak Fó ai-han ba emar tomak

Pó da carne do universo Que está colocado nos ventos e noutros Faz crescer a vida da gente Dá alimentação para toda gente

Moris aban nian tahu rai mak lori Habokon an husi ween lalehan Belun emar nian no to’os nain sira nian Nune’e, laiha emar ida moris lá ho tahu rai nian

A vida do futuro levado pelas lamas Molhadas pelas águas do céu Amigo dos homens e dos agricultores Pois, ninguém vive sem lamas da terra.

Assim que chega a época da chuva, os agricultores ficam alegres, pois vão com os seus búfalos para as várzeas, correndo com eles, pisando a terra molhada pela água doce do céu infinito.

As lamas surgem de imediato e aguardam as sementeiras do neli coladas no seu corpo. Lamas criadas pelas corridas dos búfalos do poeta-agricultor, conhecidos por búfalos de Timor, que assim se designam: Karau Timor – Búfalos de Timor Karau Timor Belun agrikultór sira Gosta halimar ho tahu rai iha udan monu Mina-morin nia isin

Búfalos de Timor Amigos dos agricultores Gostam de brincar com as lamas das chuvas caídas Perfume refrescante do seu corpo

Ha’u nian nain bolu ha’u Mai ba, ha’u karau estimadu sira Ita la’o ba natar Hodi sama rai bokon

O meu dono me chama Venham cá, meus estimados búfalos Vamos às várzeas Pr’a pisar a terra molhada

Agradese wain ha’u, ha’u karau sira Imi ain ne’ebé halo tahu rai Natar sira ne’ebé hili tiha ona Hahu kari fini

Agradeço eu, búfalos meus Os vossos pés fazem lamas Várzeas escolhidas No início de semear

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Ha’u karau sira Makina ha’u ain Sama fatuk-to’os Hamosu tahu mamar iha rai-to’os

Búfalos meus Máquina dos meus pés Pisam pedras duras Fazem aparecer as lamas moles da terra seca

Habelar fini sira iha tahu mamar Weem monu husi lalehan hakiak Ha’u karau sira deskansa Biban ne’e, ha’u hein fini foun sei mosu mai

Semear as sementeiras nas lamas moles Águas caídas que no céu asseguram Meus búfalos descansam Agora, aguardo a nova semente que há-de-vir

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POEMA DE CONSAGRAÇÃO DO CASAMENTO TRADICIONAL Xisto Viana* A eme uta moree A eme waliku moree Ena nunu pata wa’awa’ane

Ó subar ida-ne’e Ó hasees ida-ne’e Ne’e hanesan ai-hun boot ida

Se esconderes isto Se ocultares isto Isto seria uma árvore gigante

Ene hulha wahi-wahime Ene moimoicu wahime

Ne’e hatohar ó-nia tutun Ne’e hatohar ó-nia aas

Isto pode quebrar seu cume Isto pode quebrar o seu crescimento

Ene japuna wahime

Ne’e hatohar ó-nia ain-kloor

Ene tanapuna wahime

Ne’e hatohar ó-nia liman

Isto pode quebrar as suas pernas Isto pode quebrar as suas mãos

O poema de consagração do casamento tradicional da cultura fataluku, declamado unicamente pelo Lia-na’in (orador tradicional), sagra a ligação, por via do casamento tradicional, entre duas famílias da comunidade de Painara. Ao evocar “isto”, o Lia-na’in institui a insolúvel ligação matrimonial e, simultaneamente, inscreve-a no plano sagrado. A união é indissolúvel.

A poesia sagrada testemunha o acontecer, em diálogo, do mito como meio de infundir na comunidade o valor legislativo da própria cultura. As palavras míticas, ao integrar, de modo compreensivo, a realidade de dois jovens na verdade do mito, lembra que a vida de cada indivíduo não é um destino solitário. O caráter normativo do mito assegura a perpetuação da estrutura e equilíbrio da cultura fataluku.

Ao envolver, pela palavra sagrada, o laço matrimonial, o Lia-na’in faz ecoar o juramento prestado entre os fundadores da comunidade que lhe dá origem. A cultura é o maior espólio que cada geração herda dos antepassados fundadores. Pela voz do Lia-na’in, os jovens adquirem consciência (coletiva) que a cultura cresce a cada geração, e por via dela vive. Simultaneamente, aos jovens é-lhes imputado a dívida da tradição herdada. A poesia celebra e sagra, a cada geração, a superioridade da cultura em detrimento da vida individual. Na origem da tradição do barlake (dote) encontra-se o juramento que fundou a cultura e se edificou como um mecanismo de decisão.

Toda a comunidade de Painara tem a consciência que infringir “isto” constitui uma ameaça grave para os que sagraram o acordo fundador. A instabilidade e a infelicidade marcarão, para sempre,

*

Docente de Literatura da Faculdade de Educação, Artes e Humanidades (FEAH), Departamento de Língua Tétum (Dalen Tetun), da Universidade Nacional Timor Lorosa’e (UNTL).

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a vida dos jovens infratores. A tradição tem a convenção do sistema normativo e o de valores que vigoram na comunidade desde a sua génese. A perda ou a diminuição da força vital da tradição, segundo os Lia-na’in, ocorre quando a origem se perde. Da extinção da tradição decorre o desaparecimento das gerações futuras. Cabe ao mito-poema munir o contexto circundante e o quotidiano do jovem casal de significação própria. Permitir a dissolução dos laços que unem os antepassados fundadores às jovens gerações, significa perder o passado e condenar o futuro. Para a comunidade de fataluku, se a tradição do barlaque for silenciada, a geração que acolhe a tradição extinguir-se-á, o que expressa o desejo de morte de quem não a cumpre. Assim, a tradição subsiste porque a vida existe, e a vida continua somente se a tradição perdurar. Justifica-se assim a perpetuação da tradição do barlaque na comunidade de fataluku, fundamento de toda a ação e da tradição. Neste modo de fazer acontecer a própria vida, sendo este um modo de ser mais do que de um fazer, a cada geração é imputada uma dívida para com a tradição. Nenhum jovem desafia, por temor, a tradição do barlaque, direito consuetudinário consignado atualmente no Código Civil1.*Quem pertence à tradição, não tem coragem de a desrespeitar, de não agir em sua conformidade, por medo de causar o desaparecimento da sua própria comunidade e, consequentemente, perecer. Afinal, atentar contra a tradição significa condenar ao desaparecimento da vida das pessoas que a tradição agrega.

*1 No Código Civil da República de Timor-Leste, podemos ler: Artigo 1475º (Casamento civil, católico e barlaqueado monogâmico) - 1. O casamento é civil, católico ou barlaqueado monogâmico. 2. A lei civil reconhece valor e eficácia de casamento ao matrimónio católico e ao matrimónio barlaqueado monogâmico, nos termos das disposições seguintes.

Artigo 1476º (Efeitos do casamento católico) - O casamento católico rege-se, quantos aos efeitos civis, pelas normas comuns deste código, salvo disposição em contrário. Artigo 1477º (Dualidade de casamentos) - 1. O casamento católico contraído por pessoas já ligadas entre si por casamento civil não dissolvido é averbado ao assento, independentemente do processo preliminar de publicações. 2. Não é permitido o casamento civil de duas pessoas unidas por matrimónio católico anterior. Artigo 1478º (Casamento barlaqueado monogâmico) - 1. O casamento barlaqueado monogâmico é aquele que é celebrado entre duas pessoas de sexo diferente e segundo os usos e costumes de uma determinada região.

2. O casamento barlaqueado monogâmico rege-se, quantos aos efeitos, pelas normas comuns deste código, salvo disposição em contrário. Artigo 1503º (Publicidade e solenidade) - 1. A celebração do casamento é pública e está sujeita às solenidades fixadas nas leis do registo civil. 2. A celebração do casamento barlaqueado monogâmico é pública e feita da seguinte forma: a) Proclamação oral de que vai celebrar-se o casamento, feita pelos Lia-Na’in de ambos os nubentes; b) Declaração expressa ou tácita de cada um dos nubentes; c) Redacção da acta do casamento em papel comum. Para saber mais, consultar: https://www.tribunais.tl/files/Codigo_Civil_20120430.pdf

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AU NOR IT NA I NOR BA NA I TAN LA URA EU E VOCÊ ESTAMOS LÁ E NÃO PARA ELE Duarte da Costa Barreto*

*

URA o ni Maraomak au ni Maraomak URA fe Alfa no Omega URA fe muin no tom it ni morin URA fe it ni morin ni lelon fnorin URA fe rai Laon Sion id befe it hi la URA fe na hatin bail id befe it la

Ele é seu Deus e meu Deus Ele é nosso Alfa e Omega Ele é o começo e o fim de nossa vida Ele é o propósito e o fim da nossa vida Ele é o Monte Sião para que estamos indo Ele é a eternidade para a qual vamos

Ooo…Maromak aim ni Nai Ma fil It ni domin id tun It lui bail aim ni rai id dia It li bail au nor au krai kidia Fun serbisu fut ni mundu kiddia Nor hae domin id befe it ne ma

Oooh... Deus, Nosso Deus Partindo da vontade do seu amor Você nos apresenta este mundo mortal Você me colocou e ao meu irmão Vivemos juntos, vivemos no meio deste universo Compartilhe o amor que você tem connosco

La It aim fiar tama dlo La It aim fiar beun dlo La It aim domin tu dlo Fut sium it ni misaun santo Sai krain servisu Itin Sai krain fun sau heun

Em você, sua fé é firme Em você, nossas expetativas estão cheias Em você, nosso amor é puro Juntos recebem a sua nobre missão Seja seu parceiro Seja seu Criador

Na hai kiddia au kdei mesa Fut nor nam did lo no ba notar dlo Fut nor huan no lalan mo Oid ko bail artauba id fe moir munan nor fnorin Notar no hae teor huan akin Au nor ura, au nor kaka alin

Atualmente estou murmurando sozinho Com o silêncio da natureza e o silêncio da mente Com sinceridade e resignação Vendo o começo e o fim da vida humana Lembre-se da história da palavra dividida Entre mim e ele, entre mim e meu irmão

Au tuk la nam din Ba dloka au nor ura Nai te sis tan la Ura Oid hae domin fut nor Ura Nor lolai fut no tom Ura ni karak Nota leleo fnorin id befe ma

Pergunto-me com este silêncio Não era eu e ele Já está junto de você Para partilhar o seu amor com você Para caminhar juntos na sua vontade Tricotar o trono do dia no seu dia

Notar kau mesan bail Notar flair makas no mesa lia Notar ba neot dlo it her id bae Klae URA selun ba los Au Oid ne hail smakan la mait i dia Lolai fut rat tonan atus id tan

Eu quero gritar sozinho Quer que faça o meu melhor Quer cortar isso de você Procurando por você além de você Para retornar o espírito a este corpo Caminhamos juntos por mais mil anos

Tan la ………

Hlail e au ne la it tun liman lalan Notar nor book la ma ba kode

No entanto ...................

Na impotência e fragilidade deste corpo Devo voltar para você novamente

Docente da Faculdade de Filosofia da Universidade Nacional Timor Lorosa’e (UNTL).

LIAN - Da Poesia à Poética Tan la it fe Alfa nor Omega It fe rai laun Sion It fe Au ni Kanaan It fe hi nahatin

Porque você é meu Alfa e Omega Você é o meu monte Sião, Você é meu Kanaan Você é meu imortal

Ida sai fe au tuk la IT fe, Tun Muir nor kontenti la ura, au kaka alin Muir nor kode au kaka alin her rai suan Nor It ni anjo no ataub santo Nor saun mret-mret her leol laon Fut nor it nahati ni it fadan

Apenas um comando, você Deus Felicidade eterna para ele, meu irmão Paz de alma para ele, meus desejos Estar com os anjos e os santos Estar com todo o céu Esteja com você na eternidade do seu palácio

Nor … lolai ko dalolon au kaka koden Huan tama nor oien forte la lolai la Tamla nor but URA id befe Maraomak nor it ni nain URAtauk bail hir munan anenen Id fe au ne tuk la it Sai man ausilun nor reza ma aim.

E ... o meu irmão é Deus Seja firme em seu coração e seja forte nos seus passos Entre e derrame com Aquele que é Deus e nosso Senhor Ele esperou desde a Sua imortalidade ...

Um é o que espero para você Seja nosso intermediário na oração

MAROMAK FE IT NI FUN MORIN Deus é a fonte da minha vida Au ko mundu no saun mret-mret ni lalan Rai laun nor rai udun kode ba halimar Rai mon nor ai lalan koden ba halimar Nama nor natar isin ne bel isin Taisa nor samudra ni laloran daima bokan bahalimar It ni liman kidbe mlain en au etan

Eu assisto ao mundo e tudo nele As montanhas e as colinas são lindas A floresta escura está em festa Campos de arroz são belos campos Ondas e oceanos de ondas são fortes

Flik lian id ma hase au Flik kau id ma tula au Obriga tlo au la hakneak Dad au ni smakan tu mloi lia It fe fun morin

Um sussurro veio falar Uma chamada veio chamar Exortando o corpo prostrado Convite à alma para dizer com admiração Você é a fonte da minha vida

Ni bus loin tun leol matan fun au ble Ba senti leol matan lako Ba senti au kde mesa lia Kde mesa nor nam ba di Entrga lolo no notar ba neot Tauk nor sium IT ma nor kiula id be mlain

Quando o sol da manhã acordou o corpo Quando o sol se for Seja absorvido Silêncio do corpo e da alma por um momento Esgotado no desespero Acolho Você como uma brisa

Oooo…..au ni nain It fe fun au ni morin Mundu nor saun mret-mret It fun kode lia It lui ni au serin Uidla sai la morin lelo fnorin

Oooo ... .. Meu Senhor Você é a fonte da minha vida O mundo e tudo nele Você criou-o bem Você colocou-o ao meu lado Para ser uma garantia da minha vida

Na hai kidia…..her au ahen

Atualmente ... e contigo ...

Seus dedos tocaram-me suavemente

LIAN - Da Poesia à Poética Au neot saun sir befe ma dar artauba ni servisu Saun mu kid befe klen ma dar nama nor natar Tan la rai metan It ni Kanaan Au fiar no lalan tama Au fiar sai benu Au domin sai tu IT fe fun au ni morin

Eu testemunho os resultados do esforço humano Abundância de arrozais e de campos A fertilidade da sua terra Kanaan Minha fé fica mais forte Espero que esteja cheio Meu amor se torna cada vez mais limpo Você é a fonte da minha vida

Nor… tuk la it na hati IT ni domin bela flair la kokar IT ni tulun bela lolai selu IT ni liman kait au na hati IT oid au rat hatin kid befe It tu Bela ko au ni sala no fraku

E... o meu amor será sempre para você ...

Seu amor não deve desaparecer Sua fidelidade não passa Não toque os dedos Que as suas garantias não fiquem furiosas Você não pode ver a fragilidade deste corpo

Lop la aim bo ni it lila kidbe mamun Lop la aimher IT ni domin Lop la aim noto her rai Kanaa Tan la IT fe aim ni fun morin IT fe aim ni Alfa no Omega IT fe munan nor ain ni morin

Vamo-nos abrigar sob as asas do seu poder Deixe-nos estar na dobra do seu amor Permaneçamos na terra dos seus Kanaaneus Porque você é a fonte da nossa vida Você é nosso Alfa e Omega Você é nosso começo e nossa vida

Os dois poemas apresentados, originários da comunidade Turiskai, do Suco de Mindelo, compõem uma oração fúnebre em língua Mambai. Somente na voz de um Lia-Na’in esta oração pode ser declamada. Este, o Lia-Na’in, na condição de portador da voz divina, presta homenagem à pessoa falecida, no primeiro poema, e realiza uma exaltação ao poder de Deus, no segundo. Após três dias de vigília fúnebre, no momento de o corpo ser levado para o túmulo, estas são as palavras poéticas que abrem o caminho para o início da passagem deste mundo para um outro. Também por meio delas, toda a família se despede do falecido. Assim, se num primeiro momento a família expressa a sua estima pelo falecido, já no segundo, manifesta a sua esperança de que a sua alma encontre felicidade no outro mundo. Todas as pessoas recebem, com as mesmas palavras, a homenagem fúnebre, num sinal claro que, na morte, somos todos iguais.

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BUNEH AS’IR – Poesia da cerimónia Hamulak Buneh

Maria José Barbosa* Domingos Marques**

O presente artigo visa, com base nos dados recolhidos pelo aluno de licenciatura da UNTL, Domingos Marques (2015), realizar uma análise ao mito da origem do milho e do arroz do Suco de Luro, Posto Administrativo de Luro do Município de Lautém. Este, o mito, encontra-se na origem do rito hamulak buneh. O mito de hamulak, enquanto modelo que estrutura1*um sistema de referências que estabelece e legitima as relações sociais, é composto por uma lenda mítica, que está na sua origem, e um rito que assegura a sua perpetuação.

O momento da realização da cerimónia hamulak buneh não é aleatório. Antecedendo em duas semanas à colheita do grão de arroz (aproximadamente), o poema orienta a natureza na formação das ramificações da planta e a diferenciação da lema e da pálea, que marca o início do desenvolvimento e a diferenciação da panícula e a formação do colar da folha-bandeira, processos da etapa reprodutiva (e já não vegetativa) do arroz. Esta precisão coloca em evidência o conhecimento das caraterísticas morfologias da planta do arroz e das suas fases de desenvolvimento que se encontram contidos no poema da cerimónia hamulak buneh.2† Assim, para lograr o objetivo a que nos propusemos, apresentaremos inicialmente a lenda fundadora do mito de hamulak e o poema do rito corresponde.

Resi-Raku e Noko-Raku – A lenda do mito de Hamulak Era uma vez dois irmãos que moravam com a sua mãe num planalto perto da floresta. O mais velho chamava-se Resi-Raku e o mais novo Noko-Raku. O seu pai tinha falecido há pouco tempo, por motivo desconhecido de ambos.

* Docente e Investigadora da Faculdade de Filosofia da Universidade Nacional Timor Lorosa’e – UNTL. ** Docente do Ensino Básico na Escola de Referência de Lospalos. *1 O conceito de «estrutura» remete-nos para o universo de Lévi-Strauss, autor que reconhece a precedência da forma ou a estrutura mítica sobre o conteúdo de uma narrativa, cuja importância prevalece sobre a própria linguagem. (LéviStrauss, (1985 [1958]) †2 Terminologia usada de acordo com a informação disponibilizada em: Pinheiro, B. S., Heinemann, A. B. Árvore do Conhecimento do Arroz, A Agência Embrapa de Informação Tecnológica, Parque Estação Biológica, Brasília, Brasil, [acedido em 22 de setembro de 2015]. Disponível no seguinte endereço eletrónico: http://www.agencia.cnptia.embrapa.br/gestor/arroz/arvore/CONT000fe75wint02wx5eo07qw4xeclygdut.html#

LIAN - Da Poesia à Poética

Todos os dias, os irmãos, Resi-Raku e Noko-Raku, iam à floresta sem informar a sua mãe do que iam lá fazer. Até que um dia a sua mãe decidiu ir à floresta para ver o que é que os seus filhos lá faziam. Quando lá chegou, observou que os seus filhos faziam uma horta, a maior do que o seu pai fazia. A mãe alertou os seus filhos que não iriam ter comida para comer, eles não iriam conseguir milho para plantar em tão grande horta. O Resi-Raku e o Noko-Raku também estavam muito preocupados, questionavam-se como podiam conseguir o milho para plantar antes de a chuva cair.

Inesperadamente, numa noite, um velho todo vestido de branco veio ao sonho do Noko-Raku e disse-lhe que se eles quisessem a sua horta totalmente plantada com milho, ele (Noko-Raku) teria de pedir ao seu irmão, Resi-Raku, para colocar a corda no seu pescoço e puxá-lo por toda a horta. Ao fazê-lo, eles iriam ter milho a crescer em toda a sua horta.

Quando acordou, contou de imediato o sonho ao seu irmão que logo aceitou fazer aquilo que Resi-Raku havia sonhado. Assim, Resi-Raku começou por colocar a corda no pescoço do seu irmão e puxou-o, percorrendo cada espaço da horta. Ao chegar ao fim, Resi-Raku percebeu que Noko-Raku se perdeu. Resi-Raku procurou o seu irmão em todo o lado da horta, mas não o encontrou. Então, começou a chamar pelo seu nome num dos lados da horta, Noko-Raku respondeu, mas do lado oposto. Quando o irmão se aproximou do sítio de onde o Noko-Raku respondeu, voltou a chamá-lo, mas o irmão respondeu-lhe já do outro lado da horta, de onde tinha vindo. Mas, quando se voltou não o viu. Continuou assim sucessivamente até Resi-Raku, cansado, decidir voltar para casa. Resi-Raku, já de regresso a casa, intui que, assim que a chuva cair, as várias plantas prometidas pelo velho do sonho do Noko-Raku crescerão na sua horta.

Um dia, quando Resi-Raku dormia, o seu irmão Noko-Raku veio ao seu sonho e diz-lhe que o seu corpo se transformou em milho, que o seu sangue se transformou em lago e que continua no meio da horta, onde agora cresce o arroz. A alma do Noko-Raku pede então ao seu irmão, ResiRaku, para dar o nome de Noko-Raku ao milho e de Wei-Raku ao arroz. Desde esse momento, Resi-Raku passou a chamar o milho pelo nome de Noko-Raku e o arroz pelo nome de Wei-Raku.

Noko-Raku é o nome do seu irmão e o Wei-Raku é o sangue do seu irmão porque Wai designa o sangue de Raku, nome de família de Resi-Raku e de Noko-Raku.

Por tal, ainda hoje, conhecemos o referido grão por “Milho”, termo Português, por “Batar”, termo tétum, e por “Teli”, termo sa’ani, mas, nas cerimónias sagradas da colheita do milho e do arroz, a comunidade Makasae (Saani), especialmente os anciões, mencionam o nome Noko-Raku para o milho e Wei-Raku para o arroz, até que o tempo das suas colheitas chegue.

LIAN - Da Poesia à Poética

Buneh Sa’ir – Poesia do rito Hamulak Buneh Sa’ir Ei asu ki tu’il hai kafu mau Kipasun hai kafu mauini ei tui ei tal

Buneh Sa’ir Lori ona ó-nia tukir mai lori ona ó-nia saboko mai ba ónia jerasaun

Buneh Sa’ir Trouxe já o teu tukir para cá, trouxe já o teu saboko para cá para a tua geração.

Niasu isarau isaarehini Ti’amei ti’a daneini

Laran-di’ak laran-moos Simu bá foti bá

Generoso e honesto, recebe e ergue!

Nuaini foritini Liu pere mutue’e Tana pere mutue’e

Han bá atu forte hodi Hela iha bee-lihun boot ne’e Hela iha kabubu boot ne’e

Come para ser forte e habita neste grande lago, habita neste grande camalhão.

E’ini Kokodere Mamia Isu Buti Isu Imi Kirai kiwatuini maufata

Iha ne’e para Kokodere Mamia Musan-Mutin Musan-Mean Nia tempu nia oras to’o karik

Reside aqui para Kokodere-Mamia, Musan-Mutin Musan-Mean, se chegar o seu tempo e a sua hora.

Kipeh loloini waita peh

Ko’alia metin nian para nia metin Ko’alia barak nian para nia barak Ko’alia nakali nian para nakali Ko’alia aumenta nian para nia aumenta Atu nune’e metin iha lali’an leten ahi leten Metin iha ai leten metin iha uma leten Metin barak

Falar firme para ficar firme,

Kilaran loloini waita lararn Kiulut loloini wait a ulut Kifesek loloini waita fesek Waita li’anua peh atawua peh Le’unua peh patanua peh Peh laran

falar do muito para ficar em abundância, falar do fervor para ferver, falar do aumento para aumentar.

Assim, fica firme encima da lareira e encima da brasa, firme encima da brasa e encima da casa, firme em abundância.

O Lia-Na’in (dono da palavra), depois de dar de comer à pedra sagrada, levanta-se e pega no tukir para dar de comer aos arrozais no arrozal e recita: Ere Isu Buti Isu Imi Kokodere Mamia Ekau i surae masan labae masan Oloboko saralai masan Butinasa alenasa masanini Pelipeli waliwalir wedi’ar mara fata Ei asu kihau bi’ike haimara Kihau saule hai mara Bo la’aini niraku nibada

Ne’e Musan-Mutin MusanMean Kokodere Mamia Karik imi ta’uk laho ta’uk barata

Kohoruini tabatibatiini nua

Ta’uk lakateu Ta’uk manu-liin Subar no tuur iha kabubu ninin bá karik Imi-nia fahen bá ona Imi-nia soen bá ona Maibé bá ho imi-nia belun iminia maluk Hodi fahe malu hamutuk han

Ta teketekenini nuaini Muni mau nifun katae’e Niara katae’e bini mauini

Sukat ba malu han Mai fali iha imi-nia hun Imi-nia klibur hodi ami mai

Este [tukir], Musan-Mutin, Musan-Mean, Kokodere-Mamia, se vocês têm medo do rato e medo da barata, têm medo da rola, têm medo dos pardais, talvez possam se esconder e sentar ao lado do camalhão.

A vossa pertença já foi, a vossa parte já foi, mas, ide com os vossos amigos e vossos colegas, para entre vós, distribuírem e comerem juntos.

Partilhem entre vós e comam para voltar para o vosso colmo, o vosso caule, para nós virmos

LIAN - Da Poesia à Poética I me fulidane I me fuli teterini I me duou la’a omarou la’a

Kaer hamutuk imi ko’a hamutuk imi Lori imi bá fatin lori imi bá uma

pegar-vos juntos e cortar-vos juntos.

I me kolu ou la’a laleou la’a po I asu due hairau omare hai rau Kolue hairau lalee hai rau

Lori imi bá bote-boot bote-ki’ik tanba Imi-nia fatin di’ak ona imi-nia uma di’ak ona Imi-nia bote-boot di’ak ona bote-ki’ik di’ak ona

Levar-vos para o lugar, levar-vos para a casa, levar-vos para o cesto grande, levar-vos para o cesto pequeno porque o vosso lugar já está bom, a vossa casa já está boa, o vosso cesto grande já está bom, o vosso cesto pequeno já está bom.

I asu kihau pi’ikini haimara were Kihau saulini hai mara were

Imi-nia fahen mak bá ona ne’e

A vossa pertença é esta que já foi,

Imi-nia soen mak bá ona ne’e

a vossa parte é esta que já foi.

Ta teketekenini nu Tabatibatiini nua

Sukat ba malu hodi han Fahe ba malu hodi han

Partilhem entre vós para comer, distribuam entre vós para comer.

Wuar mana mutudiar mara Muatahal mutudiar mara

Tuur iha fatuk-ko’ak laran Tuur iha rai-ko’ak laran

Sentem-se dentro no buraco da pedra, sentem-se dentro no buraco da terra.

Taasu loloini ninunu fala nia’a falaini Nuaini niasu nidu isi la’a niomar isi la’a Nilale kou la’a ni kolu kou la’a

Fó-hatene malu atu loke ibun Han bá para bá imi-nia fatin bá imi-nia uma Bá imi-nia bote-boot bá imi nia bote kiik

Avisem uns aos outros para abrirem a boca, comam e ide para o vosso lugar e vossa casa, para o vosso cesto grande e vosso cesto pequeno.

Kirai kitada te’eisi tone mau bo I ulut lolo I fesek lolo kasue Hai lolo hai ta’alisi

Tempu to’o oras to’o lai mak mai maibé Ko’alia imi-nia nakakli nian Ko’alia ona tau ona

No seu tempo e nas suas horas regressamos, mas fala acerca do vosso fervor já falado, já pousado.

I wa ira napir miwerou di’ar mara Muatahal mutu di’ar Iliheke mana mutu di’ara Iasu kihaupi’ikini haimara were Kihau saulini haimara were

Imi sira tuur iha kabubu ninin

Vocês, os sentados ao lado do camalhão,

Tuur iha rai-ko’ak laran Tuur iha fatuk-ko’ak laran Imi-nia fahen mak bá ona ne’e

os sentados dentro do buraco da terra, os sentados dentro do buraco da pedra, a vossa pertença é esta que já foi,

Imi-nia soen mak bá ona ne’e

a vossa parte é esta que já foi.

Ninunu fala niha’a falaini nuaini Niduu isila’a niomar isila’a Nikolu koula’a nilale koula’a

Loke imi-nia ibun no han bá para Bá imi-nia fatin rasik uma rasik Bá imi-nia bote-boot rasik boteki’ik rasik

Abram a vossa boca e comam, para irem ao vosso lugar próprio, casa própria, irem ao vosso cesto grande próprio, cesto pequeno próprio

A poesia do rito hamulak buneh é apresentada na língua sa’ani com tradução em tétum e português. A análise desta poesia é feita com base no relato na voz de Sr. Mateus Moreira, gravado em suporte vídeo e gravação de voz. A tradução do poema da língua sa’ani para tétum é da

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responsabilidade do aluno Domingos Marques e do tétum para o português é da responsabilidade do mesmo e do Professor Xisto Viana. A cerimónia de hamulak buneh, que se realiza sempre dois ou três dias antes da colheita do arroz, tal como afirmado anteriormente, visa solicitar, humildemente, aos espíritos divinos que os produtos cresçam em abundância, que o resultado da colheira seja melhor do que é esperado. A realização do rito carece da presença da pedra sagrada (totem), da areca (vegetal misturado com betel (fruta) e cal (mineral)) e do tukir (arroz e galo) e, obviamente, do Lia-Na’in (ancestral que é dono da Palavra). Dos elementos necessários à realização do rito, a pedra sagrada – buneh – é uma entidade divina, o Homem uma entidade ordenadora e os alimentos (areca e tukir) os meios e os fins do rito. Os rituais timorenses, segundo David Hicks (2006/7), têm como propósito conquistar ou ativar a fertilidade dos seus ancestrais1, *

tanto para si como para os seus animais domésticos ou plantações. O galo, elemento necessário à

realização do rito em análise, está revestido de um valor cultural significativo enquanto símbolo de coragem, perseverança, virilidade e fertilidade. Em última instância, de acordo com o exposto, a finalidade do rito expressa a incapacidade do homem de realizar os seus desejos sem intervenção dos espíritos divinos (espírito dos ancestrais), entidades responsáveis pela sua concretização. A cada geração este mesmo princípio é reiterado, o da necessidade de veneração dos espíritos dos anciões por assunção da incapacidade da atual geração de realizar os seus desejos.

Pedra Sagrada – Totem do mito Hamulak A pedra sagrada – totem – é a pedra fundadora de um arrozal da comunidade Makasae. A seleção do elemento «pedra» para fundar o arrozal justifica-se por ser Figura 1 – Imagem do Lia-Na’in a realizar os preparativos do rito de hamulak junto à pedra sagrada.

o elemento mais resistente da terra. Por sua natureza, a forma da pedra perdura e resiste ao tempo e à transição das

gerações. A conversão de uma pedra normal em pedra sagrada decorre pela declamação do poema fundador do arrozal – ao sagrar a pedra sagrada consagra o território de cultivo – cujo conhecimento encontra-se somente na posse do proprietário do arrozal. A titularidade do arrozal depende da capacidade do fundador (proprietário) de proferir o poema. Se o dono do arrozal não *1

Se a mulher é por natureza fértil, já o homem tem de solicitar a «ativação» da sua potencialidade reprodutiva aos seus antepassados. A luta de galo é o ritual que viabiliza a aquisição desse mesmo poder. Se o casamento legitima o ato reprodutivo, a morte e o derramamento de sangue do galo, animal que é oferecido aos jovens do sexo masculino, assegura a ativação da potência sexual e a sua conversão em potencialidade social. Para saber mais ver: Hicks, D., (2006/7) Blood, violence and gender, Blood, violence and gender alignment: cockfighting and kickfighting in East Timor. Cambridge Anthropology, 26(3): 1–20, [acedido em 18 agosto de 2015]. Disponível em: http://cultura.gov.tl/sites/default/files/DHicks_Blood_violence_and_gender_2006_2007.pdf

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souber «com-sagrar» o arrozal, pode recorrer a um ancião – Lia-Na’in (Dono da Palavra) – que deve procurar uma pedra e «pousá-la» no arrozal por via da declamação de um poema fundador.

O poema criado pelo ancião é transmitido somente ao dono do arrozal, o único com o poder e o dever de realizar a cerimónia hamulak anualmente e assegurar a correta transmissão ao seu sucessor. O poema do rito deve ser transmitido oralmente de pais para filhos, de geração para geração, na casa sagrada – Uma lulik –, e nunca por escrito. Este princípio espelha o respeito que a atual geração nutre pelos seus antepassados, que eram analfabetos. Tanto o Lia-Na’in, o único detentor do conhecimento de todos os poemas fundadores dos arrozais da comunidade, como os respetivos proprietários dos arrozais, promovem somente o que os seus antepassados transmitiram.

Não obstante, a geração atual, movida pela vontade de preservar a cultura tradicional, deu início a um processo de transformação da prática do registo de memória pela redação das literaturas orais.

Os tabus (proibições) associados ao rito de Hamulak O mito é uma narrativa sagrada cuja origem remete para o início dos tempos (da ordem) de uma comunidade. Associada à «coisa sagrada» existem regras interditivas que, pese embora o sentido não sejam totalmente claros, são respeitadas por todos os membros da comunidade a que pertencem, sob pena de enfrentarem inúmeras e trágicas consequências. Assim, associado à cerimónia hamulak Makasae temos as seguintes proibições: 1)

As mulheres não podem tocar a pedra sagrada (buneh), deliberadamente ou não;

2)

As mulheres não podem participar na cerimónia do hamulak buneh;

3)

As mulheres não podem comer os restos da comida da cerimónia;

As interdições são dirigidas somente às mulheres da comunidade. No caso de alguma mulher violar as regras acima mencionadas, para que sobre ela não recaia as tragédias profetizadas, deve comunicar o sucedido ao Lia-Na’in que, por sua vez, deve oferendar um galo, presenteado pela mulher infratora, ao buneh. O Lia-Na’in deve fazer tukir (com o galo e arroz) e alimentar a pedra sagrada, pedindo-lhe desculpa em nome da mulher infratora. Caso a mulher que violou as regras do buneh decida ocultar a sua transgressão, será punida com a perda total ou parcial do seu cabelo.

A incidência punitiva sobre os elementos femininos da comunidade, uma tal força de coação sobre quem não detém nenhum poder de participação no rito, pode parecer exacerbado. Todavia, se considerarmos que os mitos e ritos tradicionais timorenses operam sempre em torno do dualismo fertilidade/vida e/ou esterilidade/morte, como sugere David Hicks, o rito Hamulak, ritual que sagra o poder de fertilidade da natureza, comporta em si mesmo a dualidade masculino (homem) e feminino (natureza). O elemento feminino está representado por toda a simbologia feminina – o útero (alusão à mãe dos irmãos e à cavidade onde a pedra sagrada está alojada), a terra-mãe, a

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união (a unidade primordial do arroz) e a importância da casa sagrada ancestral e do lugar próprio (cestos). Alguns estudos antropológicos sobre as crenças tradicionais timorenses, nomeadamente os desenvolvidos por David Hicks (2004) e pela Elizabeth Traube (1986), evidenciam a posição de destaque das mulheres nos ritos associados à fertilidade e a simbologia feminina. A interdição dos elementos do sexo feminino pode ser assim explicada nos termos de uma união plena entre o carácter andrógeno do homem e o caráter feminino da natureza2.*Segundo Vítor J. C. Barbosa (2004: 62), a unidade simbólica timorense obedece sempre a um esquema conceptual tripartido – corpo/casa/universo – que coneta o mundo subterrâneo, associado à fertilidade feminina, ao mundo celeste, conotado como universo masculino. Segundo o mesmo autor, o imaginário timorense espelhado nas expressões artísticas e literárias espelha o confronto entre animus e o anima, característica que se verifica no mito em análise.

*2

Para saber mais ver: Hicks, D., (2004) Tetum Ghosts & Kin – Fertility and Gender in East Timor. 2nd edition. USA: Waveland Press, Inc e Traube, E., (1986) Cosmology and Social Life: Ritual Exchange among the Mambai of East Timor. Chicago: University of Chicago Press.

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D’ARTE

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ARTE COMO MEIO DE CONEXÃO

Alessandro Boarccaech*

Toda manifestação artística inicia por um desejo. A arte é um exercício dialógico onde a obra, enquanto intenção materializada pelo seu autor, é sistematicamente semantizada a cada contato com o observador. A tríade autor-obra-observador é interativa, fluida, plural, não-linear, pouco afeita a hierarquias rígidas e funções fixas. Estas idiossincrasias contribuem para que a arte tenha a capacidade de ser revolucionária. Porém, a arte em si mesma não transforma, mas configura-se em uma porta para a transformação. A mudança por meio da arte exige a conexão, o diálogo, a desconstrução de verdades absolutas e uma abertura ao outro. A manifestação artística é paradigmática, nos convida a mergulhar em nossas próprias experiências, a compartilharmos, a imaginarmos novos mundos e realidades. Parafraseando Deleuze e Guattari, a arte pode ser entendida como um rizoma aberto e receptivo. A arte instiga a comunhão entre diferentes que não se tornam iguais, mas compartilham o desejo de ser algo mais.

Mas como podemos reconhecer uma obra de arte? Há alguns caminhos. Podemos analisar a técnica, o estilo, o género, os materiais, se está associada a algum movimento/escola, a sua utilidade e impacto social, o valor de mercado, compará-la com outras obras, compreender a história pessoal do autor, a clareza da mensagem transmitida, a sua finalidade, objetivo, o número de pessoas que a reconhece, entre outros. No entanto, todos estes critérios são arbitrários, formais, por vezes normativos, e estão contextualizados no espaço-tempo. A obra de arte é um meio de comunicação com múltiplos significados. O observador diante do estímulo artístico interage a partir da sua própria vivência selecionando, rejeitando ou acrescentando significados. A arte desperta os sentidos proporcionando experiências estéticas, socioculturais, emocionais e psicológicas. O artista pode ser entendido como um provocador, e a sua obra como um convite à reflexão, à elaboração de memórias, que leva-nos a sair da zona de conforto, a fazermos escolhas e a conectarmos com algo. Com a arte podemos exercitar a imaginação, a nossa capacidade de empatia e as nossas sensibilidades. Para reconhecer uma obra de arte é preciso abrir-se para o desconhecido, para as diferenças, ouvir a si mesmo e permitir-se ser surpreendido.

*

Docente e Investigador da Faculdade de Filosofia da Universidade Nacional Timor Lorosa’e – UNTL.

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A arte não possui donos ou espaços específicos, ela está em todos os lugares. Nas ruas, nos muros, nas casas, sobre uma mesa, na cidade, nos museus, nas bibliotecas, no campo, no sagrado, no profano, na política, na religião, em mim próprio e no outro. Significantes e significados conectam-se, alteram-se mutuamente e (re)inventam sentidos a todo instante. A arte desconstrói a rotina ao nublar as bordas de contato. O vulgar, o belo, o clássico, o exagero, o meu e o teu misturam-se. A arte subverte a própria noção do tempo, pois sua temporalidade não é cronológica, mas difusa, imprecisa, marcada por cumplicidades, vivências e subjetividades que incidem sobre ela. Experiências, visões de mundo, dramas, tragédias, ironias, pedidos de socorro, declarações de amor, desabafos, manifestos, rotinas, desejos e tudo o que a imaginação possa expressar resiste ao esquecimento à espera do contato e assume outros contornos pelos olhos de quem a vê. A cada olhar surgem novas relações, diferentes emoções, significados inesperados.

A arte é transição, um Devir. O estático é uma ilusão. O traçado, a perspectiva, os rabiscos sem sentido próprio codificados em letras, o contraste de cores, a narrativa, o movimento dos corpos, a fala, o som, a textura e a dimensionalidade confundem a percepção. O artista desafia a nossa capacidade de estabelecer limites entre a representação e o objeto. A mente tenta identificar símbolos, ícones e índices. Forma signos na ânsia de organizar, nominar e classificar. A familiaridade pode ser uma camuflagem para a agitação e a complexidade inconsciente dos nossos sentimentos, memórias, lógicas, pensamentos e certezas sobre o que entendemos como realidade.

A manifestação artística é um caminho, um encontro, um jogo de suspense e expectativas, um desafio ao nosso ponto de saturação, aos nossos limites e potencialidades.