Redobra 14

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sensualiza o samba de roda? As jovens iaôs que se deixam habitar por deuses e impressionam os negativos com pequenas teofanias? Rostos, membros, músculos nos inquirem no instante mesmo que se esvaem através da potência da vida, agora capturada e eternizada pelos clichés. Os habitantes da cidade deixam-se flagrar e reproduzir tecnicamente, duplicados na fixidez do que foi movimento e devir. Nem mesmo os manequins escapam ao impulso do fotógrafo-etnógrafo em registrar as cenas urbanas. Numa foto do Centro Histórico nesse período, três distintos manequins parecem trocar intimidades, misteriosos, frente ao parapeito de uma janela, contraponto corporal marcado pela rigidez cadavérica e pelo sonho dos autômatos. É o momento primevo, de visibilidade circunscrita aos círculos intelectuais soteropolitanos, do tempo quase mágico da reaparição das cenas nas revelações dos negativos e do acolhimento nos arquivos do fotógrafo. Similitudes insinuam-se entre os espaços reservados da vida urbana negro-mestiça, das práticas religiosas ainda restritas aos sacerdotes e iniciados (por isso postos na ordem do interdito) e às salas escuras dos laboratórios. É a plenitude emergencial do estado reprodutível das imagens urbanas enquanto segredo da cena em que a dubiedade do movimento de registro, reprodução e exponibilidade enquadram-se no espaço cênico e representacional. Imagem e cenário se alternam. O que não nos impede de indicar a imensa ambiguidade dessa relação entre imagem fotográfica e segredo. No conjunto, as cenas urbanas fotografadas invocam uma vida quase secreta, oposta aos surtos modernizantes, escapando aos olhos dos poderosos que ordenam a cidade. As fotos dos livros RB e CHS tratam dessa tessitura temporal, quando práticas e objetos de temporalidades diferentes dividem um mesmo presente condensado. Nelas, um comentário por vezes irônico, por vezes nostálgico, confere uma tragicidade nas relações espaço-temporais urbanas, pois as intervenções sucessivas que mexem na configuração urbana, no sentido de modernizá-la, contrapõem-se às persistências de práticas que performam um tempo em ruínas. O caráter efetivo dessas imagens fotogáficas amplia o campo representacional da cidade, reinventando uma cena urbana heterotópica de justaposições, contrastes e superposições. Ao mesmo tempo, promove a manutenção do jogo reversível das formas mesmo quando se instala, no cerne desse projeto, a transparância aflitiva da obscenidade midiática. As imagens do Centro de Salvador nas obras vergeanas afirmam formas e práticas culturais enraizadas, indiferentes aos fluxos modernos associados às elites brancas. As tensões que delineiam a nova configuração modernizante são amenizadas e, se não desaparecem das fotografias, limitam-se a uma visibilidade controlada, pois o foco da objetiva está centrado na cidade provinciana e negro-mestiça. No distanciamento do espetáculo citadino, algo do pacto representacional se quebra, fornecendo o palco para a floração de um corpo insubmisso no imaginário oficial da cidade.

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