Revista Literatas

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Maputo | Ano II | Nº 41 | Agosto de 2012

“A poesia pensa” Entrevista: Manuel Gusmão | Pág. 11 COMUNICADO IMPORTANTE

A revista Literatas passa a ser de periodicidade quinzenal, sendo assim, a próxima edição sairá a 17 de Agosto de 2012. a alteração da periodicidade visa incutir mais qualidade nas edições tornando a revista mais bem elaborada. Pelos transtornos que isso poderá causar, as nossas sinseras desculpas.


Cartas | Comentários | Opiniões | Reações

Literatas no face-

book - debatendo ideias e acontecimentos. http:// www.facebook.com/ pages/ Literatas/154478737895518

Miloca Boneca de Pano Quero ser poeta...quem sabe se os meus direitos como idoso possam ser reconhecidos e enaltecidos...quero ser poeta... Porque como os outros poetas precisam ser ouvidos, tambem preciso que ouçam e saibam da dor de querer e nao poder dormir e acordar com a minha família, porque sou idoso...idoso que nao mais traz benefícios a família mais sim despezas acompanhadas por uma boca sem voz activa, mas com dentes e língua pra triturar e saborear os alimentos... Alimentos que nao foram por mim postos à mesa, porque sou idoso...idoso que com as rugas bordadas em meu rosto e o fraco domínio da língua portuguesa envergonho a minha família, porque sou idoso.

Ah! noites de uma cidade africana descritas neste poema de Jessemusse Cacinda. Gostei e igualmente fico feliz por saber que a Literatas não só esta dar oportunidade a jovens escritores de Maputo, mas de Moçambique no seu geral. Bem haja Literatas. Daqui em breve estes escritores se chamarão geração Literatas, porque estão mesmo a e s c r e v e r . Paulo Bernardo - Sofala

Receba às sextas-feiras Literatas em PDF e comenta sobre os assuntos retratados através do e-mail: r.literatas@gmail.com

Valdeck Almeida De Jesus Lotado Parabens, Movimento Kuphaluxa... Força e garra, nossa língua portuguesa vai longe... 27 de Julho às 03:08 · CurtirCurtir (desfazer) · 2

Lopito Feijo GOSTEI DA ENTREVISTA DO ZÉ LUÍS TAVARES. CONTINUA IGUAL A SÍ MESMO COM ALGUMA ARROGÂNCIA QUE LHE É PRÓPRIA. ISSO NOS PERMITE DISCUTIR BEM SEMPRE QUE NOS ENCONTRAMOS. EU GOSTO! GOSTEI TAMBÉM DA REFERÊNCIA DO MEU ASSASSINADO AMIGO HELFER PROÊENÇA , SÓ QUE O ANO DO SEU NASCIMENTO DEVE SER CORRIGIDOPOIS NÃO PODE SER 2009. O LUÍS KANDJIMBO DIZ-ME QUE O ENSAIO DELE ESTÁ EXCESSIVAMENTE TRUNCADO. AGRADEÇO MAIS ATENÇÃO COM O PROCESSO DE EDIÇÃO DESTE NOSSO «VEÍCULO DE ESTIMAÇÃO». PRA FRENTE É O CAMINHO! CORAJEM! 27 de Julho às 09:29 · CurtirCurtir (desfazer) · 1

Lopito Feijo IGNOREM AS MINHAS GRALHAS ORTOGRAFICAS. ESTOU GRIPADO COM DOR DE CABEÇA E SEM LUZ EM CASA. DESGRAÇA TOTAL. SÓ A REVISTA ME CONSOLA..... 27 de Julho às 09:37 · CurtirCurtir (desfazer) · 1

Celso Nhampule Movimento kuphalusha! Parabens pela iniciativa, oha! As 9dades sao bem vindas, acredito que tdo peopple ta gramar. Mandar um hala ao Quive! 27 de Julho às 11:35 · CurtirCurtir (desfazer) · 1

Eduardo Quive Ilustres, honram-nos os comentarios. Mestre Lopito Feijo tem toda razão sobre o texto do mestre Kandjimbo que eu mesmo 'e que fui a busca, houve um "grave" erro por parte do maquetizador e como editor tomarei as devidas evidencias de modo a sanar esse erro. Mandarei um e-mail ao Luis Kandjimbo a pedir desculpas pelo facto, alem de que faremos uma nota editorial publicamente. Quanto aos restantes amigos, companheiros, colaboradores e leitores que aqui deixaram o seu comentário, os meus pessoal agradecimento e em nome da colectividade LITERATAS tenho a dizer, fiquem sempre connosco. 30 de Julho às 01:09 · CurtirCurtir (desfazer)

Eduardo Quive compartilhou um link via Literatas. há 19 horas

Ungulani Ba Ka Khosa: A África que o Brasil não conhece ~ Literatas revistaliteratas.blogspot.com Top of Form Curtir · · Compartilhar Lurdes Breda, Ines Thomas Almeida e outras 2 pessoas curtiram isso.

Victor Eustaquio Uma peça interessante; enferma, porém, da tentação do costume. «A Língua Portuguesa – a língua do invasor e do colonizador», lêse. E então o inglês? É a língua de quem? Esta retórica é reincidente e continua a dominar muitos discursos: enquanto estes fantasmas não forem domesticados, África continuará a ser objecto de aparições. E o pior é que são daquelas que insistem em dividir. há 9 horas · Curtir (desfazer) · 1

Anuncie aqui +258 82 35 63 201 | +258 84 07 46 603 r.literatas@gmail.com | kuphaluxa@gmail.com Vai também ao blog da Literatas e comenta todos os dias http://revistaliteratas.blogspot.com


Sumário Personagem

Editorial |

Notícias

pág. 4

pág. 5

Japone Arijuane

Não queremos agradar os gregos e muito menos os troianos!

J Maria Celestino escritora angolana

Entrevista

Escritor e celebridade Gore Vidal morre aos 86 anos

pág. 12 e 13

Ensaio

Uma Acta Rabiscada na Internet para os Internautas leitura de Net de Cláudio Portella Por: Amosse Mucavel

Manuel Gusmão: poeta portugues

Posia

pág.20 e 21

pág.14 e 15

Outras Artes

pág. 19

Vivaldo Terres– Brasil

Por esta e muitas outras razões achamos melhor prolongar para quinzenal edição da revista, para com isto trazer uma versão mais elaborada e trabalhada, com conteúdos cada vez mais e melhores. Pois, é assim que nós demonstramos o nosso crescimento. Uma sociedade deprimida ou psicopata?

Décio Bettencourt Mateus –Angola

Ficha técnica

á lá se foram e se vão os tempos, a tempos imprecisos; que a pureza e a ingenuidade meramente natural, habitava e caracterizava as nossas e as visões de outros. Lembramo-nos hoje com nostalgia, a interpretação e a concepção que outrora nós e outros carregávamos sobre o mundo. Mudam-se os tempos, realmente, as vontades provavelmente. É claro que, pelo imperativo social e por vezes paternal, muitas foram e continuam a ser, para alguns, vezes incontáveis que assumimos lutas sem causas; tornando-se assim militares fantoches, marionetas numa mão suja. Como já dizemos, - porque este ou aquele assim quer, e assim somos; feitos a vontades e interesses alheios. Entretanto, nesta fase, que não é definida pela idade, que impõem-nos dependências, tornamo-nos sempre crianças e eternos dorminhocos; tornamonos presos às ideologias que não reflectem as nossas ideias; o que não é mau, mas assim péssimo. É difícil (e sempre será difícil) agradar os gregos e troianos, mas nesta condição de exacerbada dependência, a que ousadamente chamamos de Cavernismo, é simplesmente possível agradar ambos. O que é ridículo! E é, realmente, um acto desprovido de rácio. Hoje, provavelmente, várias vontades alheias e interesses alheios, já tentaram sem sucesso passar por nós. Mas, como dissemos: – sem sucesso!, não pela atenção que, por nossa parte, estes fenómenos merecem, mas pela reflexão crítica e atenção minuciosa que qualquer fenómeno que passa por nós merece! Podemos, até certo ponto, não agradar nem os gregos e muito menos os troianos; pois, em tempos actuais, somos senhores das nossas vontades e amos dos nossos interesses; assim como também escravos da nossas palavra. Neste aprendizado (vida), nesta progressão que, por vezes são feitos de momentos esporádicos, na qual seguimos com todos os homens; somos dignos de alterar as opiniões e mudalas, se assim achamos que chegaremos a verdade, nunca influenciados pelos outros!, Alteramos as nossas opiniões não para chegar a verdade absoluta, pois essa, só as crianças a tem. E nós, não damos fronteiras à nossa curiosidade e nem territórios à nossa inteligência. Triste é, nisto tudo, ver e continuar a ver, várias crianças, com longa idade de vida, dormindo horas e horas eternas, sendo assim agradando gregos e troianos; se és um destes, - acorda e cresça!

Boa leitura!

Centro Cultural Brasil-Moçambique | Av. 25 de Setembro, Nº 1728 | Maputo | Caixa Postal | 1167 | Email: r.literatas@gmail.com | Tel. (+258): 84 57 78 117 | 82 35 63 201 | 84 07 46 603 Movimento Literário Kuphaluxa | http://kuphaluxa.blogspot.com | www.facebook.com/movimento.kuphaluxa

DIRECTOR GERAL Nelson Lineu | nelsonlineu@gmail.com Cel: +258 82 27 61 184 DIRECTOR COMERCIAL Japone Arijuane | jarijuane@gmail.com Cel: +258 82 35 63 201 | +258 84 67 29 929 EDITOR Eduardo Quive | eduardoquive@gmail.com Cel: +258 82 27 17 645| +258 84 57 78 117 CHEFE DA REDACÇÃO Amosse Mucavele | amosse1987@yahoo.com.br Cel: +258 82 57 03 750 | +225 84 07 46 603 CONSELHO EDITORIAL Eduardo Quive | Amosse Mucavele | Jorge Muianga| Japone Arijuane | REPRESENTANTES PROVINCIAS Dany Wambire - Sofala Lino Sousa Mucuruza - Niassa Jessemuce Cacinda - Nampula

COLABORADORES Angola: Lopito Feijóo João Tala Cabo Verde Filinto Elísio Moçambique: Juvenal Bucuane Izidro Dimande Brasil: Rosália Diogo Marcelo Soreano Pedro Du Bois Samuel Costa Portugal: Victor Eustaquio

COLABORAM NESTA EDIÇÃO Angola: Jorge Arrimar Decio B. Mateus Luis Kandjimbo Frederico Ningi Brasil: Silas Correia Leite Claudio Daniel Vivaldo Terres Ana Lucia Silva Neide Medeiros Santos Portugal: Fernando Aguiar Miguel Almeida Moçambique: Mbate Pedro Izidine Jaime

REVISÃO LINGUÍSTICA Jorge Muianga

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PAGINAÇÃO Japone Arijuane Eduardo Quive A revista Literatas é uma publicação electrónica idealizada pelo Movimento Literário Kuphaluxa para a divulgação da literatura moçambicana interagindo com as outras literatures dos paises da lusofonia. Permitida a reprodução parcial ou completa com a devida citação da fonte e do autor dos artigos.


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Personagem

Celestina Fernandes

M

aria Celestina Fernandes nasceu no Lubango, a 12 de Setembro de 1945. Fez os seus estudos primários e secundários em Luanda, tendo completado o ensino licial no liceu Salvador Correia. É Assistente Social, formada pelo Instituto de Serviço Social Pio XII e licenciada em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto. Ingressou em 1975 para o quadro do Banco Nacional de Angola, onde trabalhou por mais de duas décadas, inicialmente com a função de chefe do Departamento Social e depois como Subdirectora da Direcção Jurídica, categoria em que se reformou. Actualmente é consultora do Instituto de Formação BancáriaIFBA e Administradora de Empresa. Iniciou a carreira literária no início da década de oitenta, com a publicação de trabalhos no Jornal de Angola e Boletim da Organização da Mulher Angolana-OMA. Sua maior produção é dirigida à literatura infanto-juvenil. É membro da União dos Escritores Angolanos. Era uma vez um rapazinho que um dia desejou possuir o sol. Se alguma vez olharem para o céu, a hora do pôr do sol; se por acaso descobrirem qualquer coisa, lá em cima, que lembre um menino. Pois, não se esqueçam que esse menino pode bem ser um Hossi!... Extractos do conto "A Bola de Fogo" In: A Árvore do Gingongos, 1993,p.17.

Obras

Infanto-Juvenil

"De Maria Celestina tenho seguido, desde o inicio, o caminhar literário. Não sei quem lhe alvitrou que as historias de intuito educativo, diariamente inventadas para seus filhos crianças, as escrevesse. Talvez António Jacinto de boa memória, quiçá Uanhenga Xitu. O que sim, sei é que seguiu o alvitre, percebeu o dever, enfrentou a tarefa. E a medida que nossos filhos são todas as crianças do Mundo. De aí lançouse á escrita. Perante as criticas mais do que os aplausos inicias, Maria Celestina intuiu que só o trabalho, a perseverança, a humildade de ler e escrever e rescrever, voltar a escrever, lhe dariam suporte ao natural dom educativo."

A Borboleta Cor de Ouro (1990, UEA) Kalimba (1992, INALD) A Árvore dos Gingongos (1993, Edições Margem) A Rainha Tartaruga (1997 INALD) A filha do Soba (2001, Editorial Nzila) O Presente (2002, Edições Chá de Caxinde) A Estrela que Sorri (2005, UEA) É Preciso Prevenir (2006, UEA) As Três Aventureiras no Parque e a Joaninha (2006, UEA) União Arco Íris (2006, INALD) Colectânea de Contos (2006, INALD) Crónicas: Retalhos da Vida (1992, INALD) Poesia: Poemas (1995, UEA) O Meu Canto (2004, UEA) Romance: Os Panos Brancos (2004, UEA) A Muxiluanda (2008, Edições Chá de Caxinde)

Luandino Vieira

04 | 03 de Agosto de 2012


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Notícias Escritor e celebridade Gore Vidal morre aos 86 anos

M

orreu na noite de terça-feira última (31 de Julho de 2012) nos Estados Unidos o escritor e comentarista político americano Gore Vidal, aos 86 anos. De acordo com o sobrinho de Vidal, Burr Steers, ele já estava doente havia algum tempo e sofreu complicações decorrentes de uma pneumonia em sua casa em Los Angeles. Considerado um dos escritores americanos mais ilustres do século passado, ele produziu 25 livros, incluindo os best-sellers Lincoln eMyra Breckenridge, além de peças e roteiros para cinema - entre eles, o do filme Ben-Hur. Ao lado de Truman Capote e Norman Mailer, ele fez parte de uma geração de escritores que eram também celebridades. Seu comentários ácidos e espirituosos eram bastante apreciados; Vidal aparecia constantemente em talk shows na TV e em colunas sociais. Seu círculo de amigos incluiu Tennessee Williams, Orson Welles e Frank Sinatra. Ele também era próximo da família Kennedy, em especial de Jackie Kennedy, que era sua irmã de criação. Eugene Luther Gore Vidal nasceu no dia 3 de outubro de 1925 em um hospital militar em West Point, no estado de Nova York. Filho de um tenente da aeronáutica e uma socialite, ele era herdeiro de um tradicional clã do mundo da política americana. Vidal passou a infância em Washington, em contacto com o avô, o senador T.P. Gore, que teria sido uma grande influência sobre sua visão do mundo e posição política - ele sempre foi um ferrenho crítico do intervencionismo americano. Ele concorreu duas vezes ao Congresso pelo Partido Democrata, em 1960 e 1982, sem sucesso. Deu início à carreira literária aos 19 anos e continuou escrevendo por mais de 60 anos. Vidal não fugia de temas polémicos, como religião, política e sexualidade. No livro A Cidade e o Pilar, publicado em 1946, ele tocou no tema do homossexualismo. Foi uma das primeiras obras a apresentar personagens abertamente gays. Em 1950, conheceu Howard Austen, que foi seu parceiro por toda a vida e com quem morou boa parte da sua vida, na Itália. Em 2005, depois da morte de

Juvenal Bucuane volta a lançar em prosa

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eve lugar no dia 1 de Agosto em Maputo, o lançamento da obra ―Crendice ou Crenças‖ do escritor Juvenal Bucuane. Depois de se evidenciar na literatura moçambicana como poeta, Juvenal Bucuane vem desta vez a expressar-se através da prosa, num livro em que dentre vários assuntos reflecte a questão dos hábitos e costumes culturais dos moçambicanos e conflitos sociais que por essas crenças existem. A analisar pelo seu percurso na prosa, cujo primeiro salto deu-se em 1989 quando publicou ―Xefina‖ e ―O Segredo da Alma‖ pode-se esperar da nova obra do autor, uma exposição da maturidade e de certa forma, uma escrita carregada de responsabilidade e com uma criatividade aliada à experiência. Entretanto, Bucuane, estreou-se na com poesia: ―A Raiz e o Canto‖(1985) e ―Requiem-Com os Olhos Secos‖ (1987) e ―Limbo Verde‖ (1992) e depois, voltou a render-se do contador de estórias que é ao publicar, mais tarde, em 2009 três obras de prosa, nomeadamente ―Desabafo e Outras Estórias‖, ―Xefina‖ e ―Zevo, o Miliciano e Outros Contos‖. Juvenal Bucuane nasceu na cidade de Xai-Xai, em 1951, e licenciou-se em Linguística pela Universidade Eduardo Mondlane. Na literatura, para além do exercício da própria escrita, foi director e secretário administrativo da revista literária Charrua (1984) e é membro efectivo da Associação de Escritores Moçambicanos, onde já foi secretário-geral.

Guia de Salvador escrito por Jorge Amado será relançado em Agosto A reedição de 1986 de ‗Bahia de Todos-os-Santos — Guia de ruas e mistérios de Salvador' mostra as visões do escritor sobre a capital baiana

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lém dos famosos e populares romances, o escritor Jorge Amado também se dedicou a outros prazeres literários, entre eles está o ‗Bahia de Todosos-Santos — Guia de ruas e mistérios de Salvador', que como diz o título é um guia sobre a capital baiana. O livro será relançado no próximo mês, 26 anos depois da última edição. Publicado pela primeira vez em 1945, o guia ganhou revisões em 1960, 1966, nos anos 1970 e em 1986, sempre atualizando o leitor sobre a cidade e a vida cultural de Salvador. A última adaptação feita por Jorge Amado, de 1986, chega às livrarias pela Companhia das Letras em agosto, revelando o que o escritor destacava da cidade no período. De 1945 para 1986, muita coisa mudou, como o próprio Jorge dizia. Se em 45, ele considerava a cidade, com seus 300 mil habitantes, ―provinciana, descansada, tranquila, doce, bela e única‖, 21 anos depois, já com quase 2 milhões de habitantes, ele conta como Salvador havia se tornado uma metrópole ―ruidosa, movimentada, turbulenta, sua doçura fundamental entrecortada de violência‖. O retrato da Salvador dos anos 80 para os dias atuais mudou muito, aquelas características que ele destacou só aumentaram, assim como a população, que hoje gira em torno de 2,7 milhões moradores. Assim mesmo, muito de sua vida cultural, suas ruas, seus mistérios e seus personagens permanecem. O hábito de falar mal da cidade, e de suas opções culturais e de lazer, parece tão antigo quanto a própria cidade. Pelo menos nos anos 40 já era assim, quando Jorge Amado descreve Salvador como "uma cidade pobre de hotéis, paupérrima de restaurantes, sem teatros e com pequena vida noturna". Anos depois ele atualiza as reclamações, com as queixas também seguindo os avanços da capital. Em 1986, ele dizia no guia que ―falamos mal dos hotéis, dos restaurantes, dos cabarés. Falemos agora mal dos cinemas". E completava: "A Bahia ainda está à altura do cinema que merece‖. Talvez hoje, caso fosse

atualizar, a reclamação se voltasse para outros pontos, mas permaneceria. Igrejas - Entre os itens descritos pelo guia estão as igrejas, que ganham um capítulo exclusivo. Entre tantas, uma que ele ressalta é a famosa Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Negros, no Pelourinho, construída no século XVIII, e recentemente reaberta, após mais de um ano de obras de recuperação arquietetônica. ―Sempre cheia de gente, extremamente ligada aos ritos do candomblé‖, é como Amado a descreve. ―Diz a lenda que a cidade do Salvador conta com 365 igrejas, uma para cada dia do ano. Dizem os amigos dos números exatos que entre igrejas e capelas elas somam 76. Pouco importa‖, diz o escritor sobre a fama do número de igrejas na cidade. Trata ainda dos costumes do povo, seus mistérios, sua mestiçagem e seu sincretismo. Fala das igrejas, mas também das macumbas, dos terreiros, as comidas típicas, sa lavagem da igreja de Nosso Senhor do Bonfim, das homenagens a Iemanjá e a são João, entre outras festas populares. O autor descreve também os bairros proletários e os nobres, as feiras e os mercados, as inúmeras ladeiras e ruas da cidade, e apresenta as praias locais, como Itapuã, Amaralina, Pituba e o Farol da Barra. Personagens - Muitos dos personagens que destacava nas atualizações do guia ainda permaneciam na última edição de 1986 e ainda hoje se destacam no meio cultural baiano. ―Dos filhos de Caymmi, (João Gilberto é) o mais louco e o mais angelical. Dos segredos das camarinhas surgiu Gilberto Gil, acento negro na voz límpida, melodia que desce da senzala para conquistar a praça e o poder. Da festa de Nossa Senhora da Purificação em Santo Amaro, de comício impossível, proibido, desembocou Caetano Veloso, barco em mar de temporal‖. Entre outros nomes citados no guia estão o escultor Mário Cravo, a fotógrafa Arlete Soares e mãe Stella de Oxóssi, ialorixá do Ilê Axé Opô Afonjá. "O livro é um canto de amor à cidade, contando da história, da gente, do sentir, da beleza, dos grandes personagens ali nascidos e criados e, sobretudo, da maneira de ser única e original dos habitantes" — diz a filha do escritor, Paloma Amado, em entrevista ao Jornal O Globo sobre o livro. http://www.ibahia.com

05 | 03 de Agosto de 2012


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Leituras Leituras Leituras Leituras Leituras Leituras Leituras Leituras Leituras David Mestre: Uma Singela Homenagem Lopito Feijóo - Angola

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eria completos sessenta e quatro anos de idade aos três de Agosto deste ano, caso o cidadão angolano Luís Felipe estivesse ainda entre nós. Escrevo sobre um crítico, jornalista e «maldito marginal». Escrevo sobre o poeta David Mestre falecido em Lisboa há alguns anos. David foi enquanto vivo, e desde os idos de setenta, um crítico deveras demolidor e a ele se devem distintas propostas culturais e editoriais dentre brochuras, cadernos e suplementos literários marcantes no todo que é hoje a literatura angolana enquanto corpus afirmativamente balizado. Do seu legado consta um primeiro livro publicado ainda nos finais de sessenta. Um livro julgado incipiente e cuja paternidade foi atempadamente renunciada (pelo autor, claro!) em razão do seu faro crítico. Do conjunto da sua obra salientam-se: Crónicas do Guetto, poemas, Cadernos Capricórnio Lobito, 1973; O Pulmão (narrativa, colecção bantu), Luanda 1974; Do Canto à Idade, poemas, col. «Nosso tempo, ed. Centelha, Coimbra 1977; Nas Barbas do Bando, poemas, ed. Ulmeiro, Lisboa, 1985; O Relógio de Cafucôlo, conto, Cadernos Lavra & Oficina, Lisboa, 1987; Nem Tudo É Poesia, estudos, UEA, Luanda, 1987, 2ª ed. revista e aumentada, col. 2k, UEA, Luanda 1989; Obra Cega, poemas, ed. do autor, Luanda, 1991; Subscrito a Giz, 60 poemas escolhidos (1972 – 1974), Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1996; Lusografias Crioulas, ed. Pendor, Évora, 1997. David Mestre foi antologiado em: Angola – Poesia 71, 1972; Vector 3, 1972; Kitatu Mulungo (está aquí inserida a narrativa autogeográfica «O Plumão» escrita na prisão em 1971) , 1974; Dizer País, 1975; Poesia Angola de revolta, 1975; Antologia da Poesia Pré-Angolana, 1976; No Reino de Caliban, 1976; Poesia de Angola, 1976; Lugar-comum, 1976-1978; Os Meus Amigos, 1983; Antologia da Poesia Angolana (ed. russa), 1985; Sonha Mamana África, 1987; Os Anos da Guerra, 1988; Cinquenta Poetas Africanos, 1988; Poemas a La Madre África (português – castelhano), 1992; Floriam Cravos Vermelhos, 1993; World Poetry, 1993. Alguns dos seus textos foram também traduzidos e publicados em espanhol, francês, inglês e russo. Enquanto jornalista, conquistou o Prémio Nacional de reportagem instituído em 1985, pela União dos Jornalistas Angolanos e assinou de sua autoria algumas das mais saborosíssimas crónicas do jornalismo literário angolano. David foi filiado da Associação Internacional dos Escritor David Mestre Críticos Literários tendo nesta qualidade participado no IX Congresso da AICL, realizado em Alma-Ata, na República do Cazaquistão onde deixou marcas de grandes referencia segundo nos confidenciou o poeta, também crítico português, João Rui de Sousa. O «Mestre» e crítico David estudou e homenageou com os seus escritos vários autores das mais longínquas latitudes geo – literárias como: Luandino, Pepetela, António Jacinto, Uanhenga Xito, Agostinho Neto, Aires de Almeida Santos, Ernesto Lara Filho, António Cardoso, o próprio Mário António na veste de poeta, Sousa Jamba, Luís Carlos Patraquim, José Craveirinha Ruben Fonseca, Alberto da Costa e Silva bem como Jorge Amado sem esquecer o mestre António Cândido, dentre outros grandes. Neste domínio David Mestre revelou-se, cívica e politicamente um autor simultaneamente polido e mordaz. Nacionais e estrangeiros, vários foram os críticos que sobre a sua poesia meditaram. Dentre tantos com reputável afirmação contam-se um Mário António Fernandes de Oliveira, Pires Laranjeira, Eugénio Lisboa, Pedro Támen, Vieira de Freitas, Jacinto do Prado Coelho, Fernando Martinho, Luís de Miranda Rocha, Manuel Ferreira, Xosé Loís Garcia, Ana Mafalda Leite, Francisco Soares, João Maria Vilanova, Ana Maria Martinho, Jorge Macedo, E. Bonavena e entre outros (sem falsa modéstia), o autor que aqui escreve. Segundo Pedro Támen, em 1973 David revelava-se já, «Um autor angolano com uma inesperada capacidade de invenção verbal e criação poética», -valendo como tal-, muito acima de oitenta por cento dos «notáveis poetas metropolitanos», de então. Temos para nós como ponto mais alto dos seus escritos poéticos os textos que deram corpo ao mais (in)acabado dos livros do autor: Nas Barbas do Bando. Uma co-edição da União dos Escritores Angolanos e da

Ulmeiro editora (Portugal) sobre a qual aqui ficam alguns parágrafos que, certamente possibilitarão melhor e mais profunda penetração no universo cada vez mais obscuro, tecnicisado e de prazeirosa leitura da poesia deste que se revelou o maior dos intimistas no domínio, entre os Angolanos. Uma atenta leitura de Nas Barbas do Bando deixanos a ideia do rigor estrutural da criação/ produção dos textos e tão bem do próprio livro enquanto todo. Dele resulta a beleza, e a economia do palavreado poético, que se enleva a horizontes atmosféricos que nos lembram o total sentido plástico dos sinais de tipo geométrico gravados em perspectiva circunferencial, por exemplo, na estação arqueológica do Tchitundo-Hulo. Transporta a moderna linguagem poética marcada pelo ênfase clássico de alguma poesia oriental bem como pelo conjunto de traços, feições e qualidades que caracterizam a própria poesia africana, ao contrário do que nos faz crer a prefaciadora do livro, no texto intitulado ―uma poética da Dês (centração)‖, quando atribui ao autor da obra poética em questão, ―uma notável apropriação da modernidade poética ocidental‖. Condensa-se na obra a vasta cultura poética e literária do autor de Crónica do Ghetto (1973) e Do Canto à Idade (1977), que vai desde o perfeito conhecimento da língua, -factor que lhe permitiu a colocação exacta de uma dada categoria de palavras nos versos-, a um ambiente de vibração espiritual que pressupõe sensibilidade geométrica, cuja perspectiva espaço-temporal obriga-nos a considerar não só as relações e as posições dos elementos textuais e figurativos mas também os imagético-textuais de premissa mítica. Socorreu-se o autor, naturalmente, de motivos de grande intimismo assim como de conhecimentos e, sobretudo, experiencias poéticas aliadas a um alto sentido de relação intertextual da qual resultaram os textos componentes do livro constituído por três distintas partes, iniciando cada uma delas por um poema ―que serve de núcleo energético disciplinador e simultaneamente motivador dos títulos que se seguem‖. Entretanto, atente-se à título exemplificativo, Estrita Poesia Escrita (pág.33) texto que disciplina na segunda parte os nove outros que lhe seguem e aonde além da exactidão numérica da estrofes, (aliás a exactidão estrófico-extrutural caracteriza quase todos os textos do livro onde o atento leitor) encontrará no segundo quinteto, bem assente, a mestria do poeta David nos significantes intervalos artísticos-literários dos quais resultaram as decomposições/ descontracções de uma em duas palavras operando-se então uma transferência (bi)unívoca entre o campo semântico e o fonético. Atente-se igualmente a alternância ternária do verso primeiro nas estâncias de que se compõe: ―Estrita Poesia Escrita/com os dedos enlameados/da vida/vivida/de costas// Poesia escrita estrita/e única mente para/bólica/como um grito e/móvel//Escrita poesia estrita/aos círculos que fazem/as pedras/ao mergulhar/para sempre‖. Entretanto, conhecemos ainda na sequência desta a OBRA CEGA. Um caderno com apenas duas dezenas de páginas editadas pelo autor à margem das vias e processos editoriais habituais. Nela o poeta Vuelve a ser Eucalipto (O. Paz), e na linha do livro acima referenciado reafirma ser pouca a arte p’lo silêncio consentida quando à págs. 7, num poemeto, auto retrata-se quase mesmo em silêncio, dizendo: Nada sei/ e o que presumo/ emudeceu/ de perfeição. Até aqui o autor apresentava-se distinto, nas suas propostas, em cada um dos três livros anteriores. A diferenciação é agora pouco notória apesar de singulares referências locais como a Rua da Maianga, a Calçada dos Enforcados, as casas baixas no Bairro dos Coqueiros, a Fortaleza hoje feita museu e até mesmo o crepúsculo e grandes pássaros brancos. Deparámo-nos agora com motivos poéticos tocados e retocados por poetas luandenses de décadas anteriores a da geração que forjou o poeta David Mestre e cujo lastro vem certamente dos idos de quarenta. Finalmente diremos, nesta singela homenagem, que sobre este autor, indubitavelmente, muito mais poderíamos ter escrito, principalmente no domínio do simbólico e até mesmo sobre o conteúdo e estrutura artística dos textos pois, ―o texto artístico‖ – segundo Lotman – pode ser examinado enquanto texto várias vezes codificado. E é precisamente essa qualidade que consideramos quando falamos da polissemia da palavra literária e da impossibilidade de

06 | 03 de Agosto de 2012


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Croniconto

Antônio – o menino e o silêncio Neide Medeiros Santos - Brasil*

A

O negócio de morte

s palavras são portas e janelas. Se debruçamos e reparamos, nos inscrevemos na paisagem. Se destrancamos as portas, o enredo do universo nos visita. ( Bartolomeu Campos de Queirós) ―Heróis contra a parede – estudos de literatura infantil e juvenil‖ (Cultura Acadêmica, 2010), livro organizado por Vera Teixeira de Aguiar, João Luís Ceccantini e Alice Áurea Penteado Martha trata de assuntos delicados que costumam ser relegados pela crítica. No prefácio, Lígia Cadermatori afirma que os textos, compostos com diversidade de assuntos e falados por vozes autorais, não se esquivam de enfrentar temas árduos. ―É uma leitura provocativa de representações de crianças e jovens de nosso tempo, postos contra a parede pelas mais diversas e lancinantes razões, e o encontro com questões que hoje se impõem na pauta das discussões do gênero.‖ ( 2010:p.10) Preconceito racial, pedofilia, abuso sexual, violência, bullying, todos esses assuntos são tratados de forma muito séria por escritores e ensaístas. Nada é apresentado de forma velada. A realidade da ficção e da vida é mostrada sem subterfúgios. Os temas apresentados estão muito presentes na produção literária contemporânea e este livro procura oferecer uma ―contribuição significativa ― para todos aqueles que lidam com questões ligadas à infância e à juventude: professores, psicólogos, bibliotecários, educadores de um modo geral. ―Antônio‖ (Escrita Fina: 2012), de Hugo Monteiro Ferreira, escritor pernambucano, trata de um desses temas – o problema da pedofilia. De forma muito sutil e simbólica, o narrador introduz um personagem ( uma mão) que era grande, forte, que segurava em Antônio e o impedia de falar. De quem era essa mão tão possessiva? Como agia? Há apenas sugestões, o menino silenciava, não contava nada a ninguém, mas aquela mão o atormentava, ela sempre aparecia nas horas que os pais se ausentavam. Mesclando o medo de Antônio da mão, que era uma espécie de ―bruxa malvada‖, a narrativa segue outras direções: há histórias contadas por Olga, a babá que cuidava do menino com desvelos de mãe, e histórias contadas pela professora na escola. Interessante que essas histórias tinham sempre um desfecho trágico. Olga trazia o relato de ―A menina enterrada viva‖ e a professora ―O soldadinho de chumbo‖. Quando ouvia a triste história da menina que foi enterrada viva, ele pensava: será que a mão seria capaz de enterrá - lo debaixo da mangueira que havia no quintal? Depois que a professora contou a história do soldadinho de chumbo, pediu que as crianças falassem o que sentiram ao ouvir a história. A maioria falou que ficou triste com a morte da bailarina e do soldadinho e que o escritor não devia ter deixado o final assim tão triste. Antônio ficou calado, nada disse. A professora sentiu que havia algo mais no silêncio de Antônio. No término da aula, chamou o menino e perguntou: ― – Antônio, você quer me dizer algo?‖ (2012:41) E veio a revelação do menino: ― – Eu queria que o Tio não tivesse mão. Se ele fosse feito o Soldadinho, ele não fazia o que Le faz. Só que o soldadinho não tinha perna, mas o Tio é pra não ter mão.‖ (2012:41) Com esse diálogo entre a professora e Antônio, estava desvendado todo o medo e o silêncio contido do menino durante tanto tempo. A narrativa prossegue, a babá tomou conhecimento do poder nefasto da mão, os pais também, e todos reunidos encontram uma solução para o caso. Em entrevista concedida pelo autor, ele afirmou que escreveu este livro como alerta para as crianças aprenderem a se defender das mãos bobas que andam fazendo mal, muitas vezes disfarçadas no meio da família, nas escolas, em locais que não imaginamos que elas possam estar. Não poderia de deixar de fazer referências ao trabalho ilustrativo de Camila Carrosine – Antônio é retratado sempre com os olhos assustados e a mão é escura, tema a aparência de uma mão de fantasma, aparece como uma sombra nas paredes. Este livro de Hugo Monteiro Ferreira apresenta um ―herói contra a parede‖. Seria um livro meramente didático se não fosse o tratamento literário dado pelo escritor ao tema. As coisas vão se revelando lentamente, sem atropelos, sem causar impactos. As recorrências aos contos infantis – ‗ A menina enterrada viva‖ e ― O soldadinho de chumbo‖ foram elementos motivadores para o desvelamento do problema que tanto afligia o menino.

*Crítica literária FNLIJ/PB

Dany Wambire - Moçambique

E

ra noite de madrugada, janelas e portas bem trancadas, luz apagada cabalmente por toda habitação. Enorme escuridão visitava o espaço da palhota. Os petizes, assaltados pelo demorado sono, estavam exilados da vida. A casa tinha um silêncio do deserto. Mas não era deserto. Era, na verdade, aquela modesta casa que havia repousado das infinitas discussões do Tony e do Pery, por ínfimas horas mortas. A chuva caía torrencialmente, admoestando os filhos da Jesusalda a não viverem e a não assistirem àqueles tristes, abomináveis e assombrosos cenários: o seu marido que se assustara e tombara da cama. Queixava-se de dores de barriga, e, em concomitante, era agredido por pontadas nas costas. A cabeça avolumava-se, a própria voz se evadia. A Jesusalda, assustada ficou. Covarde esteve. Até a uma idiota pareceu. O marido, bastante formoso, agora doente, desaba do leito e perde os sentidos. A Jesusalda acorda os filhos e seu vizinho de lado, que há escassas horas discutira com Josefo, o seu marido, para ajudar-lhe no recém-chegado infortúnio. A Jesusalda vence desespero. Os seus filhos desatam a correr em direcção à casa da avó, a mãe de Josefo, que chegou cinco minutos antes de o filho resgatar os sentidos. E ela pega no filho, clama reiteradamente por ele. Ela vira e revira os olhos repletos de desconfiança para nora. Suspeitava que a nora tinha mão naquilo, que tinha encomendado feitiço a um desses nyangas de maldade, que se esquecem das curativas missões para se dedicarem à feitiçaria. E a Jesusalda sente-se insegura como alguém nu no meio da multidão. Cinco minutos depois, o Josefo resgatou os sentidos. Ele abriu a porta dos fundos com ajuda de nenhuma chave. A dezena dos dedos da mão é que cumpriu a tarefa de abertura da porta. Lá fora, o marido da Jesusalda foi agarrando o ar e consumindo-o. Todos imaginaram na possibilidade do Josefa transmutar-se num demente. Pois tudo assim indicava. Levaram o Josefo para um Nhamussoro, a medicina válida na região de Fim-de-Mundo. Pelo caminho, o triste sucedeu-se: o Josefo ficou imóvel, o coração de bater parou, o sangue ordenado a parar foi. Ele faleceu. Sobre a causa da morte, soube-se que um pequeno conflito de terra, mal ajuizado provocou a sua morte. Para mais, sabido ficou que o assassino mágico pediu uma quantia de dinheiro como forma de minimizar outras mortes, de outros familiares de Josefo. Quer dizer, se não pagassem o exigido mais mortes viriam aos legítimos e ilegítimos familiares do já falecido Josefo.

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Ideias

Africanidades

O passo certo no caminho errado

Escritores lusófonos africanos:

Cabritei, por isso testemunho.

o dilema do passado Victor Eustáquio– Portugal

E

Nelson Lineu - Maputo

C

m Portugal, na categoria de autores lusófonos de origem africana, a FNAC lista apenas dois nomes:

Mia Couto e Pepetela. Com pesquisa, chega-se a mais dois: Ondjaki e José Eduardo Agualusa. Na Bertrand o mesmo, e é necessário vasculhar nome a nome:

omo latas tocadas ao meu ouvido/ oiço falar-se ou dos próprios heróis/ que eu duvido que se achem tal /dizerem ter perdido a sua juventude. / Heróis, lutar jovem pela independência do seu país é perder a juventude? / Corrompendome como nunca fiz, / admito que perderam a juventude. /Agora é para ganhar a velhice a qualquer custo? (Nelson Lineu, extraído da Revista Literatas) Nessa onda de passagem de testemunhos dos mais velhos aos mais novos, partilhando experiências, exemplos e vivências a partir de livros ou mesmo oralmente. Aleixo Vinha que, pelo seu apelido os mais próximos em gozo, diziam que era o feminino de vinho por consequência tinha efeitos ao contrário, chamou os netos para falar das suas pisadas, servindo-se de inspiração nessa luta que eu me confundo contra quê, são tantos slogans, aliás, neles somos ricos absolutos. Num condomínio, montou uma fogueira - ela própria sentia-se perdida - como fazia-se nos seus tempos de casa de caniço. Antes pensou em fazer em casa de um dos seus conhecidos, num local apropriado para tal mas já não tinha um amigo que vivia lá e os que ainda viviam há muito que saíram da sua lista de amigos. Aleixo tinha porque tinha que fazer, detestava estar fora da moda tinha que tirar do escuro e pôr em claro o seu contributo para o estado do nosso capim hoje. Foi a garagem, pegou no carro mais antigo. Eram vinte horas e trinta minutos e com a fogueira no meio, ouvia-se murmúrios dos putos: O Madala está ficar mesmo velho, a labareda está destruir o trabalho feito pelos cremes, o cheiro do fumo ofusca o perfume e era hora da telenovela. Com a voz cheia de orgulho pelos feitos alcançados, ele que antes de assumir-se como o Cabrito que come onde está amarrado, já estava nessa mata. Trabalhava numa loja, era guarda. Ouviu rumores de ataque dos que eram chamados por bandidos armados, era o único que estava na loja, pilhou tudo que estava lá, entre mercadoria e dinheiro. Quando chegaram os abençoados bandidos, segundo o seu ponto de vista, já estava longe dali. Mudou-se de bairro, as mercadorias estavam repousando numa cova e aos poucos ia levando com ajuda da sua mulher. Montou a sua própria loja e tornou-se num empresário como ele mesmo se intitulava de sucesso. Melhorou a escola da comunidade e ofereceu material escolar. Aí, começou a ser favorecido nas disputas a nível do bairro, muito rapidamente no distrito. Onde passou a trabalhar, nesse momento foi oficializado o Cabrito come onde está amarrado. Aleixo, era o único do distrito que estava a protestar para isso acontecer e por isso cresceu, foi trabalhar no governo provincial. Com ar heróico mostrou aos netos fotografias dos bens que ganhou.

José Eduardo Agualusa e Pepetela. A Wook vai um pouco mais longe, mas obriga

Não pagava aos fiscais; não praticava o ritual das bichas, seja onde for; sem mexer nenhum pau, o apelido fazia os netos serem inteligentes, passavam de ano em ano; as queixas contra ele não tinham efeito, pois a sua voz era mais alta que a das autoridades; ele e os seus desejos eram prioridades; falar dele fazia os jornais esgotarem-se; conhecia o cheiro dos podres, dos outros cabritos - o que lhe acrescentava mais poderes. Quando ia naquilo que chamou de segunda parte, onde contaria com mais detalhes os seus ganhos, o fumo da fogueira espalhava-se e os vizinhos iam reclamando, outros pelo insólito, sem saberem a quem chamar; mais viu-se chegar homens dos órgãos de comunicação social, bombeiros e polícias que o interromperam mas houve tempo para o Aleixo dizer: - Cabritei, por isso testemunho.

de expressão portuguesa.

igualmente a uma pesquisa e com muitos filtros: além dos já citados, Henrique Abranches, Dulce Braga, Teobaldo Virgínio, Gabriel Mariano, António Aurélio Gonçalves, Arménio Vieira, Nelson Saúte, Arlindo Barbeitos e Manuel Lopes. Até é curioso, porque deixa de fora alguns autores com uma certa notoriedade em Portugal, mas recupera outros que são perfeitos desconhecidos no País. Sabe a pouco e evidentemente está longe de representar a literatura africana escrita por africanos. Todavia, reflecte uma realidade; é certo que não passa de um indicador de popularidade, isto é, dos autores africanos de língua portuguesa que mais vendem – as regras comerciais e as estratégias dos livreiros portugueses assim o ditam – mas serve para arriscar algumas observações. Dir-se-ia que para um País que quer assumir a liderança na promoção da lusofonia e na gestão dos activos culturais no contexto dos PALOP, a cultura em sentido lado não parece ser, afinal, uma grande prioridade para Portugal. Pelo menos no que diz respeito à literatura. Pela simples razão de que a deixou entregue à lógica do mercado. Faz sentido, embora careça de medidas complementares, e esse é o papel do Estado, de qualquer um, se ambiciona promover, quando reconhece valor, tudo aquilo que não seduz tão facilmente. O discurso é antigo e não vale a pena insistir,

sobretudo

quando

esta

retórica

faz

parte

de

um

quadro

de

constrangimentos com outras urgências. Contudo, a questão levanta também vários desafios para os próprios autores africanos, dentro dos quais avulta a capacidade de gerar atracção naquilo que produzem. Não é que isso deva condicionar a natureza do que escrevem, mas obriga a ter em mente uma regra de ouro: a diferença entre o livro como obra e manifestação artística e o livro como produto comercial e, regra geral, um bem fungível, que se gasta com o tempo. O que quer dizer que é evidente a necessidade de um compromisso e de uma clarividência sem afectos exacerbados. Defender com orgulho que os escritores africanos dos PALOP no activo tendem a combater o exótico (recuperando as narrativas tradicionais e afastando o homem não africano do centro do universo para nele colocar o homem africano) para proceder a uma ruptura com o passado histórico e com os denominadores comuns etnocêntricos presentes nas ficções localizadas em África da maioria dos autores não africanos, espelha a vontade legítima da afirmação da nova literatura africana O que parece ser perigoso é que esses mesmos escritores se deixem sitiar pela tentação do afrocentrismo, produzindo narrativas exactamente iguais, embora com os termos invertidos, às que tanto criticam, as do passado colonial e imperialista, às do ―homem branco no centro do universo‖. É perigoso, embora compreensível. Porém, com o preço de que é exemplo a listagem redutora acima indicada dos autores lusófonos africanos com notoriedade em Portugal. Em poucas palavras, é sempre bom lembrar: o passado não seduz, o passado não vende. Porque não traz nada de novo.

08 | 03 de Agosto de 2012


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Ideias| ESCREVILENDO

Frederico Ningi - Angola

Luís Vaz de Camões Endechas a Bárbara Escrava Aquela cativa Que me tem cativo, Porque nela vivo, Já não quer' que viva. Eu nunca vi rosa Em suaves molhos, Que para meus olhos Fôsse mais formosa. Nem no campo flores, Nem no céu estrêlas Me parecem belas Como os meus amores. Rosto singular, Olhos sossegados, Pretos e cansados, Mas não de matar. Uma graça viva, Que nêles lhe mora, Para ser senhora De quem é cativa. Pretos os cabelos, Onde o povo vão Perde opinião Que os louros são belos. Pretidão de Amor, Tão doce a figura, Que a neve lhe jura Que trocara a côr. Leda mansidão, Que o siso acompanha; Bem parece estranha, Mas bárbara não. Presença serena, Que a tormenta amansa; Nela, enfim, descansa Tôda minha pena. Esta é a cativa Que me tem cativo E, pois nela vivo, É força que viva. Luís de Camões, 1946, Obras Completas, com prefácio e notas do Prof. Hernâni Cidade, Lisboa, Livraria Sá da Costa Editora, Volume I, p. 92 - 94 José Mucangana, 16 de Dezembro de 2011 Notas de Leitura (*) Contrariamente às especulações de alguns biógrafos e professores de literatura portuguesa, menos conhecedores das Áfricas do que Camões, a bárbara escrava, não era uma mulata de Goa chamada Luísa (Wilhelm Stork, 1897, Vida e Obras de Luís de Camões, traduzido do original alemão de 1890 e anotado por Carolina Michaelis de Vasconcelos, 637 p., Lisboa, terceira edição, 2011, Bonecos Rebeldes, Unipessoal, Lda.). Ela era certamente uma Preta da costa oriental de África, mais precisamente e com toda a certeza de Moçambique. O Poeta não o esconde, quando canta a "Pretidão de Amor", maneira delicada de se referir à pretidão da nudez da sua esposa, nem quando evoca as qualidades de Bárbara. O "rosto singular", os "olhos sossegados, pretos e cansados, mas não de matar" são de uma Preta de África, o cansaço que aparentam é quiçá a mornaça da monção tropical, anunciando a trovoada, mais do que isso, porém, é uma maneira muito africana de exprimir a plenitude e gratidão dos sentidos ao seu esposo amado e amante, porque aqueles olhos não estavam cansados de matar, como tem o cuidado de nos esclarecer o poeta. "Uma graça viva", que nesses olhos sorridentes morava, é a arma de sedução sem rodeios duma Preta de África, "para ser senhora" de quem ama, que nem de outra maneira menos material se concebe o amor em África. "Leda mansidão, que o siso acompanha", "presença serena, que a tormenta amansa" são descrições realistas do porte e maneira de estar típicos duma mulher Preta de África, que essencialmente é boa de coração, bárbara não e

generosa, maldosa não. Camões começa por confessar que morre de amores por Bárbara, cativo pelo amor de Bárbara e porque nela vive, a Bárbara mata-o com seu o grande amor. Serão estas rimas, só por isto, endechas, em sentido figurado? Luís de Camões viveu dois anos na Ilha de Moçambique, vindo de Goa, entre 1567 e 1569, antes de regressar ao Reino. Foi em Moçambique que deu os últimos retoques nos Lusíadas, antes de retornar a Lisboa, onde os mandou editar. Foi em Moçambique que compôs e compilou o seu Parnaso Lusitano, que se perdeu em parte ou em todo, por ter sido furtado ao Poeta, em Lisboa ou durante a viagem de regresso. Também furtaram a Camões os dois últimos cantos dos Lusíadas, que ele teve de recompor de memória e segunda inspiração. Em que data escreveu ele estas endechas? Não se sabe, Camões não data o poema, que intitula ―endechas‖, ou canções tristes ou fúnebres (Cândido de Figueiredo, 1949, Dicionário da Língua Portuguesa, décima edição, Lisboa, Livraria Bertrand), mas estas endechas não são tristes antes denotam o seu espírito forte inspirado por Bárbara: ―E, pois nela vivo, é força que viva.‖ Têlas-ia escrito, na hora da despedida, antes de voltar para o Reino com os seus manuscritos e sem Bárbara, que ficava entristecida na Ilha, ou já em Lisboa, quando lhe faltava a companhia de Bárbara e vivia das saudades de Bárbara. ―Aquela cativa‖, ausente, já não queria que ele vivesse, ou ele já não podia continuar a viver sem ela, tão afastada dele, em Moçambique? Ora as endechas estão escritas no indicativo presente, foram portanto compostas em Moçambique junto de Bárbara e, certamente, ela não desejava que ele deixasse Moçambique. Bárbada encorajou-o, deu-lhe força, para terminar a sua obra, em Moçambique, mas não queria que ele realizasse a sua vida, em Lisboa, tão longe e, naqueles tempos, sem esperança de regresso: ele vivia nela em Moçambique, onde completou as suas obras, mas ela já não queria que ele vivesse em Lisboa, partisse para Lisboa, onde estavam as tipografias. Talvez fossem estas as endechas da hora da partida… e da decisão de viver com Bárbara enquanto houvesse língua portuguesa escrita e lida. Tudo indica que foram. As endechas começam por descrever o drama da decisão de partir com a oposição de Bárbara, nos quatro primeiros versos, e acabam, nos dois últimos versos, por justificar esta decisão. Entre aquela introdução e esta conclusão, Camões descreveu magistralmente a mulher preta de África, o seu grande amor por Bárbara e tudo o que lhe ficou a dever. Nunca, até aos dias de hoje, a mulher negra de África foi cantada com tão grande amor, arte e engenho, nem em português, nem em francês, nem em inglês. O famoso poema em francês de Lépold Sédar Senghor ―Femme nue, femme noire (mulher nua, mulher negra)‖ e os poemas sobre a mãe negra escritos em português não devem colocar-se ao lado deste, por não parecerem obras de diletantes ou principiantes desajeitados. Nas suas endechas, Camões diz de forma poética muitas coisas, que não vêm da sua pura imaginação e estão certamente relacionadas com situações reais e vividas. Sobre a cor da tez de Bárbara e seu arrebatado amor por ela escreve sem rodeios e não nos deixa dúvidas. Os biógrafos atribuem ao seu ―espírito forte‖ o facto de ter permanecido dois anos, sem recursos, isolado em Moçambique, num clima ―hostil‖, sem amigos, até que Diogo do Couto por lá passasse e reunisse dinheiro para lhe pagar a viagem para Lisboa (M. Lourenço Mano, 1963, Entre Gente Remota: Crónicas e Memórias Históricas de Moçambique, Lourenço Marques, Minerva Central). Diogo do Couto encontrou Camões ―tão pobre, que comia de amigos‖. Não temos dúvida sobre o espírito muito forte de Camões. Só perguntamos, como o teria apoiado a presença serena de Bárbara? E Bárbara apoiou-o a tal ponto, que ―nela enfim descansava toda a sua pena‖ e o levava a ter força para viver e não abandonar os seus projectos: ―E, pois nela vivo, é força que viva‖ . Continua na próxima edição

09 | 03 de Agosto de 2012


Você tem uma opinião sobre este assunto? Envie-nos os comentários por e-mail: r.literatas@gmail.com Luis Kandjimbo-Angola

VARIAÇÕES E TENDÊNCIAS DOS DISCURSOS CRITICOS AFRICANOS

E

INTRODUÇÃO

m 1989 realizou-se em Dakar e pela primeira vez em África, o Congresso anual de uma das mais prestigiadas associações americanas de investigadores, críticos e professores universitários especialistas de literaturas africanas.Participei desse evento e acompanhei com particular interesse os grandes debates sobre as literaturas do continente, que ali tinham sido concentrados por um período curto de três dias. No último dia ouvi uma sintética retrospectiva na alocução proferida pelo decano dos criticos africanos, o professor Eldred Jones da Serra Leoa, que num tom alegórico fazia a apologia da inserção de África no espectro semântico da crítica sobre as respectivas literaturas. Durante as sessões de trabalho várias intervenções faziam apelo a critérios que fossem os mais pertinentes para a análise dos textos literários africanos. Por outro lado, na década passada participei com alguma frequência em actividades organizadas por uma associação sediada em Paris, igualmente de investigadores e criticos das literaturas africanas. E a conclusão a que fui chegando resume-se nisto: o exercício efectivo do discurso crítico sobre as literaturas africanas vai gerando abordagens e problemáticas novas. Os debates sobre essa matéria vão-se multiplicando. E do mesmo modo as publicações, algumas das quais resultantes de trabalhos académicos. Com efeito, o ponto de referência e, ao mesmo tempo, o limiar desse processo de reflexão remonta aos fins dos anos 40, com a criação da revista Présence Africaine animada pelo senegalês Alioune Diop e publicada em Paris. Seguir-se-iam outras revistas que, por serem de âmbito geral, desempenharam um papel menor na história da crítica africana . Publicaram-se também um bom número de antologias. Igual destaque deve ser dado aos dois congressos de escritores negros realizados em Paris e em Roma, respectivamente em 1956 e 1959, que ajudaram de certo modo a sacudir a mornez ocidental na sua relação com a África. As décadas de 60 e 70 são marcadas por importantes factos políticos e culturais, nomeadamente as independências das antigas colonias britânicas, francesas e belgas; e a institucionalização dos estudos universitários. O ensino e a pesquisa das literaturas africanas são introduzidas nas Universidades de alguns países africanos, designadamente na Faculdade de Letras da Lovanium de Kinshasa; Faculdade de Letras e Ciências Humanas da Universidade de Dakar; Universidade de Yaoundé; Universidade de Nsukka e Ibadan na Nigéria; Universidade do Ghana que cria o primeiro instituto de estudos africanos; Universidade de Makerere, no Uganda. Neste período surgiram revistas especializadas que veiculavam alguns resultados de pesquisa e sustentavam a actividade daquelas instituições do ensino superior. Por exemplo: Transition, Okike, African Literature Today, Drum. Realizam-se vários colóquios no quadro das actividades de algumas universidades. Assim, o colóquio de Dakar(1963), Freetown(1963),

Abidjan(1969, 1970), Makerere(1962), Yaoundé(1973), Lumbumbashi (1975) , Lagos(1977)no âmbito do FESTAC, que no dizer de L.Mateso foi a consagração das teses de Yaoundé; Brazzaville(1981). A década que se segue aponta alguns sinais de ruptura, quer sob o ângulo historiográfico, quer sob o ângulo teórico e crítico. A tirania das metodologias ocidentais começam a ser objecto de dúvida epistemológica. Já em 1968, Thomas Melone, num seminal artigo lançava o repto. No seu entender, "a tarefa do critico, por se pretender técnica e criativa situa-se a um outro nível. Tal é imposto ou sugerido pela problemática da linguagem, quer dizer da estrutura profunda da obra" . Em termos metodológicos considera que "o objectivo(...) é apresentar ao público mundial as obras mais significativas da nossa literatura assente na nossa própria sensibilidade estética, da nossa própria avaliação das civilizações negro-africanas, da nossa própria visão do devir africano" . Foi no Colóquio de Lumbumbashi que se constituiu a Associação de Críticos Literários Africanos, realizado de 24 a 27 de Março. Mas esta Associação teve vida efémera. Thomas Melone, "La critique littéraire et les problémes du langage: point de vue d'un Africain", Présence Africaine nº73, 1º trimeste 1970,pp.3-19.

No entanto, quando se aborda hoje o discurso crítico sobre as literaturas africanas, o problema releva da demarcação dos seus limites e finalidades perante o fascínio subjacente à adesão aos métodos ocidentais. Por conseguinte, engendram-se imediatamente questões de ordem epistemológica. De acordo com P. Ngandu Nkashama, "o que é urgente neste momento tanto em crítica literária como em todos os discursos africanos, é a necessidade essencial de determinar os fundamentos e os postulados teóricos que satisfaçam qualquer exigência crítica. Sem estes aspectos preliminares, a crítica não pode operar senão como um mimetismo da palavra, sem influência real, quer sobre o texto, quer sobre o contexto que lhe subjaz" . Com este texto pretendo apontar algumas linhas que evidenciam a vitalidade das reflexões africanas e referir as formas típicas que caracterizam os diferentes pontos de vista dos críticos perante as literaturas dos seus países. Procuro igualmente detectar, algumas tendências que pela sua originalidade são susceptíveis de representar alguma ruptura. Além disso, pretendo despertar o público leitor angolano para a existência de um interessante debate envolvendo problemas associados aos critérios de apreciação estética e crítica de um modo geral. Eis os desenvolvimento que está exposta na parte introdutória : Continua na próxima edição

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10 | 03 Agosto de Agosto de


Às quartas-feiras a entrevista da semana em: http://revistaliteratas.blogspot.com Envie-nos os seus comentários sobre o entrevistado da semana por e-mail: r.literatas@gmail.com

Entrevista |

Por Marleide Anchieta | FONTE: ABRIL – Revista do Núcleo de Estudos de Literatura Portuguesa e Africana da UFF / Abril de 2010

“Roubo o que me interessa para um determinado poema”*

M

arleide Anchieta: O que o move a escrever e em que condições escreve? Manuel Gusmão: Quando ainda era estudante na faculdade, eu era movido pelas discussões que tinha com meus colegas. A partir do segundo ano, encontrei-me com dois colegas – ficamos amigos – que eram também poetas e publicaram, aliás, antes de mim. São o Joaquim Manuel Magalhães e João Miguel Fernandes Jorge. Muitas vezes os poemas tinham relação com o que líamos e com o diálogo que nós mantínhamos sobre livros que estávamos a ler; outros eram mais nitidamente a nossa procura já de um caminho próprio. Depois continuei a escrever e publicava esparsamente em revistas, mas só editei o primeiro livro já muito tarde, em 1990. Esse foi uma luta para sair, e é talvez isso que me levou a ter a fama de crítico que passa a poeta. De fato, esses meus amigos, o João Miguel, por exemplo, publicou o primeiro livro em 1972, e o Joaquim Manuel Magalhães, em 1974. E eu, quando chegou o 25 de Abril, tinha um livro praticamente feito e organizado para a edição. Simplesmente pareceu-me uma coisa desinteressante publicá-lo naquele momento, porque era um momento em Portugal bastante intenso para algumas pessoas como eu e o livro que tinha para publicar não me parecia ter a força necessária. Fui guardando, estudando e trabalhando, entregando-me ao mesmo tempo a uma intensa militância política. Por isso só em 1990 é que publiquei. MA: Poderia falar sobre a relação da sua poesia com as outras artes (o cinema, o teatro, a dança, a música e a pintura)? MG: Uma das mais fortes será talvez o cinema, sobretudo em Teatros do tempo e Migrações do fogo. Eu sempre fui fascinado por cinema, ainda estudante, havia filmes que me fascinaram e foram ficando comigo até vá-se lá saber quando. O que é que o cinema tem de fascinante? É uma arte narrativa. É uma arte narrativa que vive da luz e das sombras, da imagem e que sugere muito mais, por vezes, do que conta. É uma arte narrativa relativamente independente de um olhar subjectivo fundante, de uma figuração específica do narrador. Há filmes, por exemplo, O esplendor dos Ambersons, traduzido em Portugal, por O Quarto Mandamento, do Orson Welles, em que a voz do próprio Orson Welles conta em off a história que as imagens contam, mas isso é raro. É uma arte narrativa, que é uma coisa que a poesia também foi em seus inícios, na Grécia antiga, nos poemas homéricos e não só. Interessa-me bastante a função narrativa da linguagem poética. Hoje, não podemos conceber a narrativa na poesia da mesma maneira que ela foi entendida no passado, porque a própria narrativa literária em prosa e a narrativa cinematográfica desenvolveram e agilizaram imenso os seus procedimentos. Essa dimensão narrativa tem a ver com o tempo e com a escansão do tempo, com os fluxos de imagens e a possibilidade de

neles isolar uma. Nós podemos ficar, guardar connosco uma imagem cinematográfica para sempre. Durante anos e anos, essa imagem, em determinadas circunstâncias, reaparece. Ou seja, o fato de essa imagem ser uma pura projecção, jogar com as luzes e as sombras numa sala às escuras, tem um carácter alucinatório, mesmo que seja a imagem mais simples e mais comezinha do quotidiano. Em minha poesia, essa capacidade das palavras suscitarem imagens é uma coisa que me interessa em particular. Basicamente, em relação ao cinema, é isso: por um lado, a técnica alucinatória da imagem e, por outro lado, o tempo e a narração. O que me interessa nas outras artes é, no fundo, em geral, ampliar aquilo que a poesia pode fazer com as palavras apenas, ou seja, levar a poesia a representar não apenas coisas que eu vejo na pintura ou nas imagens cinematográficas, mas a fazer como essas artes fazem, portanto, tentar que a poesia faça o que o cinema faz, ou o que a dança faz, ou a pintura, etc. E, por outro lado, marcar a posição do espectador em relação a essas artes. Há um poema em Mapas, em que eu faço uma descrição (mas isso é raro em mim) de uma pintura de Magritte chamada ―Plaisir‖/‖Pleasure‖. É uma pintura de 1928, em que uma menina está a comer um pássaro e tem sangue na boca, sangue que lhe cai nos punhos do vestido. A partir daí eu imagino um espectador que está a ver aquela imagem e de repente há um raccord, como se fosse um raccord. Como se alguém estivesse vendo e descrevendo aquele quadro e dissesse: ―Este quadro é para ti‖, oferecendo a outra pessoa uma reprodução do quadro e aquela tentativa de descrição dele. De fato, nunca se trata de apenas descrever uma imagem cinematográfica ou pictórica ou da dança, mas de tentar fazer do modo como elas são feitas, por um lado; e, por outro lado, integrar isso numa narrativa que é minha, ou seja, eu começo a contar uma história e, de repente, meto nessa história um elemento da imagem do cinema ou da dança, etc. Com essas imagens, eu construo uma narrativa ou um poema que não está nelas, mas que se utiliza delas. Nesse sentido, eu não faço exactamente aquilo que chamamos ecfrasis, mas utilizo a inserção dessas imagens para contar outras histórias, reinventar uma história em que aquilo entre também como se fosse eu que o tivesse feito. Há muitos poemas meus onde se vêem referências a essas artes várias, mas há também referências a outros discursos não só literários, mas a outros discursos que podemos chamar de material autobiográfico, por exemplo. Há poemas que vêm de cartas que me escreveram, outras que eu escrevi, ou de conversas em que eu participei. Há ali frases que são de outros, que são ditas por outros e que eu importo para minha poesia como uma maneira ainda de estar com eles ou de saudá-los, de dizer ―adeus‖ ou de despedir-me, etc. Por outro lado, a importância dessas várias artes tem a ver com meu interesse com a arte em geral e com a ideia de que as artes servem, entre outras

Ela vai para um lado e ele vai para o outro. Depois, misturei com imagens desse filme, imagens de um outro, agora japonês, em que há um casal que se reencontra depois de anos e anos de terem se conhecido.

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Entrevista coisas, para trabalhar os nossos sentidos, a nossa compreensão e apreciação do mundo que se faz através dos cinco sentidos físicos – o olhar, o olfacto, o gosto, o ouvido, o tacto – e dos outros. As artes modificam as maneiras dos sentidos funcionarem e, para além disso, modificam os sentidos espirituais, digamos assim, a noção disto e daquilo, do amor, da vida, etc. Nesse sentido, as artes são uma espécie de construtor do humano. Nós somos construções antropológicas em muito moldadas pelas artes e por aquilo que nós usamos delas e com elas fazemos. MA: Em Migrações do fogo, observam-se referências a obras cinematográficas e pictóricas. O que o motivou a seleccionar determinadas cenas ou pinturas? MG: Eu roubo o que me interessa para um determinado poema, para o tema ou o clima verbal de um determinado poema... E essas imagens, tenho-as na memória. Posso ter imagens que ainda não utilizei, mas quando num poema vou buscar certas imagens, essas são as que batem certo com o que estou a fazer naquele momento. Por exemplo, há um filme do Wong-Kar Wai, que é o Disponível para amar [no Brasil, Amor à flor da pele], que me vinha pela lentidão com que nesse filme se filma o andar, assim como pelo fato de o homem e a mulher se cruzarem sem se encontrarem. Ela vai para um lado e ele vai para o outro. Depois, misturei com imagens desse filme, imagens de um outro, agora japonês, em que há um casal que se reencontra depois de anos e anos de terem se conhecido. Não me lembro do nome... é a história de um homem e de uma mulher que se reencontram muito tempo depois de se terem encontrado uma primeira vez. Neste reencontro, a certa altura está cada um no seu quarto de hotel, numa cidade toda construída em altura, torres e mais torres. Num determinado momento, tudo desaparece numa teia de sobre impressões e de luzes: a iluminação interior dos quartos prolonga-se nos inúmeros focos exteriores de luz; e a certa altura a presença da mulher, de pé no meio do quarto, percebe-se apenas pela presença de uma sombra mais negra e mais opaca. Há um outro também que é o YiYi. Em Yi-Yi, há uma criança que anda todo filme a fazer fotografias. Ele fotografa as personagens de costas, fotografa-lhes a nuca, e só percebemos isso no fim quando vemos as fotografias que ele vai dando às pessoas fotografadas. E é um dom, uma dádiva que ela lhes dá, porque isso é justamente o que as pessoas não podem habitualmente ver de si próprias. Só um terceiro as pode olhar e ver pelas costas. Isso na minha cabeça fez raccord com uma afirmação de Mikhail Bakhtin, em que ele diz que quem quer compreender um texto tem de o tomar, na sua alteridade, como a coisa de um outro. A compreensão ativa (e não há outra) estabelece-se num processo em que experimentamos a exotopia, no tempo, na cultura e na língua. E isso se vê muito simplesmente na fotografia, em que para fazermos um plano a toda a nossa volta, é preciso sempre um outro, o lugar e o olhar de um outro que vai manejando uma máquina e vai filmando. MA: Assim como a dança, em que o outro compartilha espaços... MG: O que me fascina na dança é que todo nosso corpo está ali em jogo, e não só o nosso, mas o corpo de outros e, ao mesmo tempo a relação que estabelecemos com a terra sobre a qual dançamos e o espaço que nos cobre e ultrapassa. De certa forma, as posições e os movimentos do nosso corpo estabelecem uma ligação móvel com a terra e os astros. Interessa-me muito a possibilidade de pensar as artes como ―técnicas do corpo‖ (Marcel Mauss). De certa forma, toda arte tem a ver com uma parte ou uma parcela ou uma agência do nosso corpo. A pintura tem a ver com o olhar, a mão e a lateralidade e a profundidade de campo, a escultura tem a ver com o corpo do escultor, o corpo a corpo com a massa que ele está a moldar, com as mãos, etc. MA: Em sua poesia, as imagens da pedra, do mar, do fogo, da rosa e dos mapas aparecem como cronótopos, ou seja, sugerem a espacialização do tempo e, concomitantemente, a temporalização do espaço. Poderia nos falar sobre essa relação espaço, tempo e história presente em sua obra? MG: A relação com essas palavras tem a ver em parte com o fascínio pelos elementos da matéria, água, fogo, ar, terra, etc. O tema da rosa é um caso particular. O que eu tentei em Dois sóis e a rosa foi chamar ―rosa‖ a ―coisas‖ muito diferentes. Porque a rosa tem sido um símbolo da efemeridade da vida e da beleza: é alguma coisa que morre vinte quatro horas após o seu nascimento. Mas o fato de não ter deixado de ser motivo para a poesia do ocidente ao longo dos séculos dá-lhe um outro tipo de duração. Por outro lado, a rosa é quase como uma cebola, tem camadas, ou pétalas e dentro dela está um oco, um pequeno vazio. Agora, o que isso tem a ver com o espaço e com o tempo? Uma das minhas paixões para além da poesia e das artes é a história. A história, não enquanto escrita dela, mas como fazer da história e, por isso, a questão do tempo é, para mim, uma questão fulcral. Nós temos vários modelos de entendimento do tempo. Por exemplo, o rio e o passar das estações dão-nos imagens diferentes do tempo. O rio parece sempre irreversivelmente ir numa certa direcção, tal como a flecha que se atira e que voa em direcção a um alvo. O rio e a flecha dão-nos um tempo irreversível, contínuo. O tempo que fatalmente vai dar à morte (ou ao alvo, no caso da seta). É sempre um sítio que nós sabemos que é a morte, ou o mar onde desagua o rio, etc. Mas, por outro lado, o passar das estações, ou uma árvore daquelas que perdem as folhas no inverno ou no Outono e renascem na primavera dão-nos uma imagem perceptiva do tempo cíclico. O tempo cíclico foi sempre utilizado pelas sociedades humanas como uma maneira de esconjurar ou de conter o medo da morte, porque o ciclo promete não apenas a passagem dos tempos, mas também a esperança, a promessa de um renascimento constante. Por outro lado, há ainda uma figura do tempo que é a do instante em que se corta ou dá um nó na linha do tempo e isso pode introduzir uma outra temporalidade. Portanto, nós temos uma diversa concepção do tempo a partir de diferentes experiências sensíveis. Isso me interessa. Por outro lado, a temporalidade histórica acrescenta mais outras figuras a estas. A temporalidade histórica, para mim, é muito pensada na base de Walter Benjamin, como algo que implica o corte do tempo uniforme, contínuo, homogénea, e esse corte é a possibilidade de um tempo messiânico, embora sem Messias. O que se diz para o messianismo vale também para o materialismo histórico? O que é a revolução? A paragem do tempo e o fato de ficar no limiar do tempo, como se o tempo

recomeçasse. O tempo vai (re)começar outra vez. Ora, nessas minhas ideias, a temporalização do espaço é fato fundamental para responder à espacialização do tempo, porque a espacialização do tempo, digamos, espalma e reduz a espessura temporal e a distribui por um espaço. As cidades contemporâneas, por exemplo, uma cidade que tem um certo passado dá muito exemplo disso. Nós vamos a um espaço, a uma rua e temos edifícios que vêm de períodos diferentes e que se dispõem num mesmo plano espacial. Em Lisboa, podemos ver isso, podemos ver o tempo espacializado. Por exemplo, pensar em certo tipo de construções arquitectónicas. Podemos ver um edifício todo em vidro ou em metal, mas que tem bocadinhos de parede antiga, que pode ser medieval, incrustados ainda. Ora, o que isso significa? Temos aí uma espécie de objectos que marcam diferentes tempos e, quando eu vejo o tempo espacializado na rua, posso em qualquer momento isolar um edifício e dizer: ―Este edifício foi construído em 1940 e este edifício, ao lado, foi em 2000”. O que é que os diferencia? O tempo pode introduzir-se no espaço e mostrar que o espaço está disposto segundo um tempo. São figurações que restaram do tempo passado. Por exemplo, há ruas de Lisboa de onde desapareceram os prédios que eu conheci quando era jovem. Eu sei que estava lá outra coisa e dessa coisa não ficou nada, mas, se eu for trabalhar com documentos sobre aquela rua, encontrarei a prova disso, de que ali estava um edifício que lá já não está. Tudo isso é tempo. Portanto, o tempo, para mim, é, também e ainda, a promessa de sua interrupção, enquanto história já contada, e de começo de uma outra história ou de um outro tempo. MA: No livro A terceira mão, o senhor fala das mãos que escrevem, inscrevem e reescrevem, mobilizando tempos e espaços. De certa forma, o livro parece destacar as mãos de Carlos de Oliveira, Herberto Helder, Fiama e outras. Como esses poetas tão diferentes entre si se harmonizam (se encontram) em sua escrita? MG: A ideia da terceira mão é a ideia de que no fundamental minha mão, ou maneira, é uma terceira mão, que não é nem a de Carlos de Oliveira, nem a de Herberto Helder (basicamente são esses dois que me fascinam). São os dois pólos, os dois ímãs mais fortes. Essa é uma ideia que eu já expus uma vez oralmente numa conferência. São poetas muitíssimo diferentes. O Carlos de Oliveira vem do neo-realismo e o Herberto vem do surrealismo, mas é um surrealismo muito particular, muito sui generis. São dois poetas que formam duas polaridades entre as quais se distribui o resto da poesia portuguesa. Eu tendo a pensar que os dois ocupam lugares opostos, mas, como uma força magnética, atraem-se um ao outro. Carlos de Oliveira, na obra final, naquele livro magnífico, um dos mais belos livros de poemetos da poesia portuguesa, que é Pastoral, seu último livro de poemas, consegue aquele estado de contenção, de elipse, de construção gráfica das imagens, de despedida e de agonia perante a fatalidade da morte. É tão forte que só é comparável com o êxtase enérgico, com a exuberância discursiva de Herberto Helder. De fato, neste meu livro A terceira mão, há poemas que exploram motivos do Carlos de Oliveira, mas para fazer algo de diferente. Há aqui um poema que fala de alguém que passa por um posto de gasolina e isso é uma situação que eu vou buscar a um poema do Carlos de Oliveira que se chama ―Posto de gasolina‖ (de Sobre o lado esquerdo), em que o moço empregado do posto se interroga: ―Quem sou eu, no entanto, que balança tenho para pesar sem erro a minha vida e os sonhos de quem passa?‖. Ora, o que eu faço com isso é uma variação a que acrescento uma dimensão ou um tom de conversa ou de relato e um ethos emocional que o poema de Carlos de Oliveira não tem. Do mesmo modo, este poema em prosa, ―Dunas‖, que se desdobra em quatro, parte de um poema, com o mesmo título de Sobre o lado esquerdo, de Carlos de Oliveira. Aqui, começo por alterar a referência da palavra que passa a ser o aspecto de dunas que têm, por exemplo, as circunvoluções cerebrais; depois transponho essa palavra para um outro tipo de discurso, conto uma história inventada, uma ficção que tem de qualquer modo a ver com uma intervenção cirúrgica a que fui submetido. Logo, a coisa pode ser lida nessa clave ou com essa chave, e o poema liga, então, um gesto de poética e um gesto autobiográfico; ou então o leitor ignora esse lado autobiográfico e procura apenas o confronto poético e retórico entre os dois poemas. Quanto ao Herberto Helder, não me atrevo a fazer sequer coisas parecidas com o uso do pastiche. Um poema em que eu fico mais próximo dele é um em que utilizo, pondo entre aspas ou em itálico, versos dele, mas também de outros como a Luiza [Neto Jorge] ou o [Mário] Cesariny: é um poema meu, mas apenas na medida em que como que sobro dos outros. Neste poema,

A relação com essas palavras tem a ver em parte com o fascínio pelos elementos da matéria, água, fogo, ar, terra, etc. O tema da rosa é um caso particular. O que eu tentei em Dois sóis e a rosa foi chamar “rosa” a “coisas” muito diferentes.

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Entrevista

―música da mão esquerda‖, é uma expressão do Herberto; ―deslocando na arquitectura do silêncio, os blocos e as linhas do som/ o gesto de uma antropologia augural”, isto é um comentário sobre um poema do Herberto; “os dedos negros” já é verso do Herberto; ―ouvem o grito dos mortos de um lado ao outro/ do mundo‖ é de um poema em que o Herberto, por sua vez, utiliza material verbal do Húmus do Raul Brandão. ―Florestas de Pedra e púrpura‖ é de Carlos de Oliveira; ―escrevem o poeta ‗nos recessos mais baixos‖, Herberto; ―nos cornos que ele traz à cintura com a elegância selvagem/ e inata do leopardo‖, estas são imagens do Herberto; ―caligrafia sumptuosa – punti luminosi‖, Herberto, que está a citar Ezra Pound; ―energicamente as capitais do corpo‖, “as capitais do corpo” é Luiza. ―Era depois da morte, “Redivivo”, Herberto e Ruy Belo, citando-o. Quanto à Fiama, dedico-lhe um poema na 1ª sequência do livro que responde a um poema dela dedicado a Carlos de Oliveira e a Luiza Neto Jorge, com base numa coincidência nas nossas histórias de vida.

MA: Em Portugal, sua poesia demonstra boa recepção por parte da crítica literária. Os prémios que recebeu confirmam isso. Há algum aspecto mencionado pela crítica que o senhor não reconheça em sua obra? E, inversamente, há algo que julgue relevante e que a crítica ainda não tenha apontado? MG: Por um lado, eu penso que alguns críticos, que têm lido mais a sério minha obra, têm visto coisas pertinentes, embora por vezes custa-me entender algumas coisas que dizem. Por exemplo, não estou muito de acordo com alguém que, aliás, respeito muito e que diz que a minha poesia é, sobretudo, intelectualizada, é fortemente intelectual, racional. Eu penso que isso tem a ver com o facto de haver determinados posicionamentos filosóficos, históricos ou políticos, que transparecem. Há versos meus que são quase suposições de natureza teórica, mas que são para obter um efeito, e um efeito que é da ordem do emocional, do afectivo e não do puramente intelectual. Por outro lado, eu também afirmo que a poesia pensa, não é só a filosofia que pensa. E no que o pensamento da poesia se diferencia do pensamento da filosofia? A poesia está amarrada à linguagem comum, à língua que todos falamos e, portanto, ela se faz do jogo com essa linguagem, ela é o prazer com essa materialidade sonora e gráfica que é a da língua. Há uma cantiga de amigo famosíssima, de D. Dinis, em que o refrão diz: ―Ai, Deus e u é?‖ Ora, isto para mim é lindíssimo e é puramente oral, auditivo – ―Ai, Deus e u é?‖. ―Ai, flores, ai, flores do verde pino/ se sabedes novas do meu amigo?/ Ai, Deus e u é?‖. A poesia aceita isso, aceita ficar presa, jogar e gozar com a materialidade gráfica e sonora da língua. Aceita, no fundo, a prisão na linguagem. Enquanto a filosofia tenta sublimar isso, superar e afastar-se disso. Há uma longa história da filosofia, desde Platão, a dizer que os poetas são gente efeminada, gente que gosta demasiado da retórica, e a criticar a ficção porque é mentirosa. Há um texto de John Locke, em que ele diz que o que é necessário é a linguagem como uma espécie de canalização que levasse a água directamente ao espírito dos leitores, mantendo-a pura, ou seja, não pondo em causa a univocidade do sentido das palavras, abolindo completamente as imagens e as metáforas. Ele não se dá conta de que a proposta da linguagem como uma canalização é já metáfora. Kant e outros filósofos estão cheios de metáforas fundacionais que se ignoram. A poesia, por seu turno, prefere entregar-se a essa proliferação do sentido. A poesia pensa, mas apaixonadamente imersa na linguagem. Na minha poesia, há um pensamento que se exprime poeticamente, penso eu, e não apenas intelectualmente. Nesse sentido, eu poderia dizer que a poesia é uma razão, mas uma razão de outro tipo. Perder o contacto com a poesia é um risco de perder não apenas algo dos afectos e das emoções, mas de perder uma outra maneira de pensar. Depois, eu diria que a poesia é uma espécie de razão apaixonada, razão ardente. O próprio Apollinaire tem um verso em que o diz: ―raison ardente‖, razão ardente. E há um poeta sobre o qual fiz minha tese de doutoramento, um poeta francês, Francis Ponge, que, jogando com as letras e com as palavras, diz que a poesia é un réson e depois explica: “une raison qui résonne”, uma razão que ressoa. É isso que me interessa. Depois há valorizações excessivas do fato de a minha poesia citar outros livros, outros autores, outros trechos da poesia, da filosofia... Minha poesia não pretende ser uma poesia culturalista; essas citações não são para eu exibir cultura; fazem parte da coralidade que eu gostaria de introduzir no que parece ser uma fala individual, de tal modo que essa pluralidade de vozes tece a intimidade do meu ser.

E no que o pensamento da poesia se diferencia do pensamento da filosofia? A poesia está amarrada à linguagem comum, à língua que todos falamos e, portanto, ela se faz do jogo com essa linguagem, ela é o prazer com essa materialidade sonora e gráfica que é a da língua. Há uma cantiga de amigo famosíssima, de D. Dinis, em que o refrão diz: “Ai, Deus e u é?”

MA: Em A terceira mão, o senhor visita obras de Carlos de Oliveira. Há, inclusive, uma citação a “Soneto”, poema presente no livro Cantata. Pensando nos versos que cita, pergunto como pode o poema “recriar o mundo pedra a pedra”? MG: Carlos de Oliveira usa essa expressão ―pedra a pedra‖ e num outro poema diz ―chama a chama‖. O Herberto Helder junta as duas expressões ―pedra a pedra, chama a chama‖, num outro poema. Isso é muito curioso, dois poetas que são completamente diferentes e passam pelas mesmas imagens. ―Pedra a pedra‖ é uma metáfora, ―pedra a pedra‖ ou ―chama a chama‖ significa palavra a palavra e, nesse sentido ―recria‖ como quem suscita ou convoca o mundo a ser. Mas o que eu sugiro que se veja neste poema é também uma importação de um dos poetas de que mais gosto, de Rimbaud. Eu uso o Carlos de Oliveira para ler em ―levantar a torre do meu canto/ e recriar o mundo pedra a pedra/ uma espécie de eco tão próximo, tão estranho/ e tão íntimo, o eco só que fosse daquela Canção da mais alta torre‖. Ora, Chanson de la plus haute tour é o título de um poema de Rimbaud, cuja 1ª estrofe é assim: “Oisive jeunesse/ À tout asservie,/ Par délicatesse/ J‘ai perdu ma vie./ Ah! Que le temps vienne/ Où les coeurs s‘éprennent‖. Portanto, construir o mundo pedra a pedra é a ideia de que as palavras que vão se construindo e construindo o poema, têm o poder de suscitar nos outros e em nós, como vemos em outros poetas, imagens do mundo. Portanto, é como se nós estivéssemos a construir o mundo quando lemos a poesia ou um romance, quando ouvimos música, etc. Mundo material a alterar o mundo tal como o conhecíamos. Fazemos nossos próprios sentidos. Há coisas do mundo para as quais minha percepção está intimamente ligada a palavras. Por exemplo, a aurora. A aurora eu nunca dissociei ou serei capaz de dissociar de certos poemas de Rimbaud. Como não sou capaz de dissociar certos versos de Rimbaud de imagens de filme de Nicholas Ray, creio que se chama Wings Across the Everglades, em que há uns pássaros, uma espécie de flamingos cor-de-rosa que estão nos arbustos num campo. Nós não os vemos, só vemos galhos de formas confusas, verde-escuro. De repente, eles levantam voo em conjunto, quase num só movimento, em uníssono. Isso é, para mim, a imagem visual que corresponde ao verso do bateau ivre, de Rimbaud : ―L‘Aube exaltée ainsi qu‘un peuple de colombes‖. Portanto, construir o mundo é isso. Nós temos uma palavra e essa palavra podemos dar-lhe um efeito de suscitação augural sobre o mundo. Em última instância, isto vem da ideia de que o poeta foi no passado (já não é, não pode ser, ou é-o de outra maneira) uma espécie de mago: ―Faça-se água‖ e a rocha começa a deitar água.

MA: O que o senhor pensa a respeito da recente poesia que circula no mercado editorial português? MG: Há poetas interessantes nessas últimas décadas, mas ultimamente o que tem dominado a atenção é um conjunto de poetas que tem uma poética muito afirmativa, dizendo que não pode haver mais metáforas e imagens em poesia. A poesia tem que ser a linguagem mais chã possível. Há um ou outro que não é mau, porque um poeta com talento aguenta qualquer tipo de poética, mesmo que equivocada. Agora, em muitos casos, aquela poesia não consegue me convencer. E eu não tenho a ideia de que no meu tempo é que era bom. Mas eu penso que há um equívoco em relação a alguns desses poetas. Eles acham que aquilo é que está no ar do tempo, que é aquilo que o tempo espera dos poetas conscientes. Ora, eu acho que não. Eu acho que, se eu não gosto dos tempos que estamos a viver na contemporaneidade, tenho de arranjar maneira de falar contra o tempo, contra o contemporâneo. Eu falo agora contra o agora, espero ser intempestivo e não um acomodado. Estou fora do tempo e julgo este tempo, dizendo que isso tudo é lixo. Eu posso fazer isso. Agora, vou repetir a ideia de que este tempo é um tempo medíocre, em que o espectáculo e o mercado dominam tudo, mas imitar isso, aí é que eu não vejo qual o interesse. Isto não esconde que haja condições para haver outros poetas. Por exemplo, nos anos 80 e 90, apareceram em livro poetas que têm uma força inegável, que é a força que a poesia pode ter. Por exemplo, Fátima Maldonado, Luís Miguel Nava ou o Fernando Guerreiro, que é um poeta obscuro, hermético, difícil, mas interessantíssimo. Depois, há o Daniel Faria, que já morreu, morreu muito novo, muito bom, um poeta com uma capacidade de imaginação verbal muito forte. Ora, um dos poetas que eu, apesar de tudo, respeito e parece-me o mais interessante desses mais recentes, é um poeta onde, nos últimos livros que li dele, acontece uma coisa interessante. Ele publica quase todos os anos um livro (às vezes dois, são como plaquetes, são livros muito curtos com muito poucos poemas e colados a uma experiência do real). Portanto, dá a sensação de que está criando uma espécie de diário, que ele faz em pequenos ciclos, como, por exemplo, ―Eu fui à Noruega‖, então faz uma série de poemas sobre a Noruega. Ele vai a uma taberna e recorda-se de outras aonde ia e faz um poema sobre tabernas. E, em quase todos eles, os últimos versos têm a ver com a morte. É Manuel de Freitas. * Título da nossa autoria

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Poesia | A noite branca

Nada existe

Fora de Serviço

Vivaldo Terres– Brasil

Izidine Jaime-Moçambique

Mbate Pedro – Moçambique

o que farei quando da inquietação dos dedos extinguir-se a comichão do papel nu e da palavra a beira do cio?

Por que dizes que me amas? Se na pratica nada existe

o que farei quando

Isso só serve para me humilhar.

as portas do palco

Deixando-me o coração amargo e triste.

cair-me a noite branca?

SOBRE O PRANTO

Por que não dizes a verdade. Será bem melhor, Pois vivendo sem amor não é viver. E pode se encadear... Um mal maior. Já estou decidido a mudanças.

Dias anoitecidos de qualquer mês Sobre a algibeira dos bolsos carentes Metódicas Taxas nos caem Virgens de salários afogados Não é apenas a desgraça dos porcentos Que ofusca-nos na perversidade dos impressos Mas os mutilados fainas desses lugares Formados para dilatar divisas E nessa mesma estrada do nada O que me doe os ossos vasqueiros É a frugalidade de mil pés perfilados Rumo há três ATM‘s Duas fora de serviço.

Mudanças essas que já tem sentido Saindo daqui serei feliz Em outro lugar mesmo sabendo Pedro Du Bois– Brasil

Sobre o pranto derramado na inutilidade do ato ouso o desconsolo no fato não abortado quando necessário na escolha negada ao corpo escravizado na pobreza retida em inconsequências

Esta minha indecisão

Que não é o paraíso.

No Mundo dos son(h)os Fernando Aguiar-Portugal

Miguel Almeida – Portugal

choro a amoralidade do agente avesso em ensinamentos. ( inédito)

Ana Lucia Silva –Brasil

Olhava para ela e o desejo escondido. O corpo silenciado, quieto. Não sabia, não sabia por onde andava a gana que sentia por aquela mulher. Parecia morto agora. O próximo gesto, ela ia tocar os cabelos, a palavra, qualquer palavra, não importava, o gesto era o mesmo. Olhava para cima, tocava os cabelos, sempre, todos os dias, infinitamente, tocava os cabelos, olhava para cima e falava tentando convencê-lo, convencê-lo a acordar aquele desejo. Aquele desejo antes seu e agora escondido, quieto e morto. Morto como ver sua imagem em um espelho que refletia nos cabelos, nos olhos que olhavam pra cima e via a si mesmo e nas palavras silenciadas que eram ele mesmo e do tempo infinito que tornara aquela mulher, ele mesmo. Morto, ele mesmo, no desejo daquela mulher.

Irra, Bolas, porra Este verso, será de Homero Píndaro, Anacreonte ou Horácio, Este verso, dizia eu Esta obsessão, Esta teimosia, que teima Contra a minha vontade e razão, Hoje não me sai da puta da cabeça. Apre, Catano, carago Mas o que posso eu fazer então, Com esta terrível e diabólica intromissão? Se o uso, acusam-me de ser plagiador Mas se não, aí sou eu Que ainda acabo por perder a razão. Mas vá lá, vá lá… O que posso eu fazer então, Perante esta minha trágica situação? Uso, não uso Eis a minha saekesperiana questão; Se o uso… Mas se não… Como seria bom poder escrever, Mas para o poder fazer, Ainda tenho que vencer esta minha indecisão. 14 | 03 de Agosto de 2012


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Poesia | UM AVOLTA AO PASSADO

MORNA

POEGRAFIAS O PARADIGMA DO AMARELO PODRE Amosse Mucavele - Moçambique

Carlota de Barros –Cabo Verde Décio Bettencourt Mateus –Angola

Às vezes dou comigo a rever páginas amareladas empoeiradas dum passado distante um passado antigamente há muito deixado de viver. Às vezes dou comigo a folhear páginas desbotadas amarfanhadas de nossas conversas ao luar nossas conversas sonhos despertos a delirar caminhos incertos. Outras vezes dou comigo a escrever palavras encanto que lançaste ao vento na doçura tua voz melodiosa palavras que lançaste a prometer num passado sabor rosa. E dou comigo distraído navegando o passado há muito ido nas ondas bravias adormecidas nos dias dou-me perdido enluarado nenhures no passado amarfanhado. Depois deixo as páginas empoeiradas amarfanhadas nosso passado amarelado do passado e redescubro-te algures no horizonte redescubro-te no passado do presente!

(à memória de Ildo Lobo) Morna encanto de um povo brando sensual melodia suave chuva miudinha na telha ressonância do sopro das ilhas na nudez dos montes sequiosos eco silencioso da nostalgia de um povo pobre caminheiro solitário no mundo Morna melodia de amor esperança e saudade de um povo simples náufrago nas ilhas que Deus sonhou e povoou Morna doce canto do ilhéu na valsa lenta das ondas voz de um povo de poetas a namorar o mar Morna carícia nua no coração da nossa terra pobre e desflorida (in “Sonho Sonhado”)

LETRA NEGRA

Frederico Ningi - Angola

Claudio Daniel-Brasil

I escuto escuro — sombras surdas — no espaço espesso lodo torvo de um tempo esquivo em que começo e recomeço o pugilato comigo mesmo luta ou luto que me cega e segue como treva ou trava ao vento curvo. (inédito)

(O esplendor da tela enxuga as cores que lacrimejam no pincel) e o mar que nasce da boca do poço reclama a paternidade das cores que desfilam no céu. (mar morto estremece as plantações do girassol. E sobretudo o cinzento caminha em direcção as nuvens. E é aqui que o branco fica isento da podridão alimentícia dos animais ferozes onde tigres cancelam a sua nocturna caça furtiva, em detrimento da urgência de pintar as madrugadas com as ondas magnéticas das suas garras. azulmarinho-cavalo-marinho- cavam sulcos de fome em solos temperados de esperança para semear o sol.) onde a enxada mata o brilho das cores espalhadas na lavoura das teias penduradas ao relento da chuva ácida. (que inunda os terrenos baldios de alegria na primavera da tristeza para projectar o crescimento eléctrico das uvas que desaguam nos pedregosos ramos das acácias que

acariciam a isolada lata de tinta. (Ao amanhecer o papel e o fósforo queimam o silêncio das casas aninhadas pela cor amarela (ou a navalha corta os infrutíferos sonhos de um velho pincel sem dentes (e prudente na sua afamada incompetência de fazer tocar relâmpagos nos dias em riste sem recorrer ao amplifica-dor do vaivém do conflito homem-animal (e a dor das estrelas tem as faixas vermelhas cor de sangue como a matriz da sua vida- sempre por cima da linha divisória: aqui onde ancora-se naufrágios do olhar mortífero da trégua e nos remos do EQUADOR ecoa a dor na trilha da velocidade cósmica da Égua. e por fim o amarelo podre galga ao som do vento ao encontro do raiar do sol.

O silêncio dos inocentes Mucurruza - Moçambique

I Refaço os passos desfeitos nas fantasias das jóias inexistentes, que nos inventam, dançando estes passos desleixados de ekuetthe do povo, afirmando pelas malditas danças que nas grandes terras distantes ressoam lá no norte. II Refaço alegria, a vida, a inteligência, como também refaço a urgência da mão gigante da educação. Por fim, refaço o desfeito pão do silêncio. 15 | 03 de Agosto de 2012


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Conto Moçambique em Agosto Jorge Arrimar - Angola

C

hegámos a Maputo na madrugada do dia 10 de Agosto. A cidade revelava-se devagar, capulanas resistentes ao nosso olhar estrangeiro. A urbe era tanto o que os antigos legaram como o que os contemporâneos fizeram, lado a lado umas coisas, justapostas outras, misturadas ainda outras, como se ela estivesse, desde sempre, ―na varanda do tempo […] onde o mundo mais namora com a nação moçmbicana‖, como nos diz Mia Couto, referindo-se à variedade de povos e de culturas que o Índico trouxera até ali. Na Maputo de hoje descobre-se muito da Lourenço Marques de ontem, sobretudo no casario (muitos dos seus exemplares evidenciam o arrojo e modernidade com que foram desenhados), na forma simétrica em como foi construída ao longo de ruas largas e arborizadas, de avenidas amplas e rectas. Cidade de acácias vermelhas que, apesar de não serem bem acácias, ganharam o direito de serem conhecidas assim por se transformarem em árvores de fogo e deixarem no ar o cheiro das suas flores cor de chama. Cidade de ruas e largos com tapetes entretecidos das pétalas lilases que os velhos jacarandás deixam cair numa benesse florida aos seus habitantes. Infelizmente, nem todos aprenderam a cuidar da sua cidade e descobre-se, mais vezes do que se desejaria, uma cidade de ruas esburacadas e sujas, de prédios por reparar, de jardins por limpar. Mas acreditamos que seja uma questão de tempo e de aprendizagem e que esta cidade poderá continuar a ser uma das mais bonitas e tranquilas de África. Lembrei-me, então, que, uma amiga minha, moçambicana, me tinha dito uma vez que, em qualquer língua, bantu ou outra, para ela esta cidade ―merecia mais ser a Baía da Lagoa […] pelo formato, doçura e cor do mar que a rodeia‖. Confesso que, na altura, não percebi muito bem e até achava um tanto infeliz este nome, em que se misturava lagoa e baía. Mas hoje concordo com ela. Há cinco séculos atrás, navegadores que por ali passaram no rasto do Gama, levaram até longe notícias dessa baía, a ponto de, logo em 1502, aparecer referenciada no célebre mapa de Cantino. Estar neste planisfério é, por si só, uma certidão de maioridade, um sinal de notoriedade. Se a isto somarmos o peso da lenda que suporta este nome, então Baía da Lagoa não tem rival. Acreditavam os antigos que aquela magnífica baía se enchia das águas que os rios, que ali desaguam, iam beber a uma grande lagoa que existia no interior do continente. Bela esta imagem de uma lagoa que se transforma em baía… Mas como diabo surge então esse nome que se grudou à cidade até à independência de Moçambique? As crónicas antigas revelam que o reconhecimento geográfico desta baía só acontece a partir de 1544, por via de um obscuro navegador, chamado Lourenço Marques, que seria um piloto das naus da Índia e negociante ao serviço do capitão português de Sofala e Moçambique. Pois foi a esse senhor que, decorrido muito tempo, foram buscar o nome que pespegaram à povoação que se desenvolvera naquele local. Esse Lourenço não imaginava, sequer, que iria ser aquela baía a imortalizar-lhe o nome. Ainda hoje não é uma questão encerrada a do nome autóctone que foi escolhido para substituir o do obscuro navegador. Cheguei a ouvir sussurrar, enquanto andei por Moçambique, que Kampfumo ou Xilunguíne são ainda candidatas à designação desta cidade. Nisso Luanda teve sorte. Ninguém sentiu necessidade de alguma vez lhe trocar o nome. E, felizmente, a minha terra resistiu sempre às tentativas que houve, ao longo dos tempos, de lhe mudarem o nome, de S. Pedro da Chibia para Vila João de Almeida. Nunca ninguém usou este nome com que o Estado Novo tentou cobrir o original. É que é sempre complicado mudar o nome de uma cidade, de uma pessoa, até de uma coisa. Com o nome vai muito mais que a simples sonoridade dele. Ao nome vão-se agregando muitas coisas, muitas referências, muitas histórias, muitas vidas... Mesmo no dia da chegada, ao raiar da aurora, aproveitámos para iniciar o nosso passeio. O dia estava cinzento e frio, fazendo-se sentir, desagradavelmente, em fortes e repentinas rajadas. Alguém me disse, depois, que Agosto é o mês dos ventos. De bons ventos, espero, pensei eu. A primeira paragem foi no Jardim dos Namorados, recentemente recuperado. Ao fundo, junto ao paredão que dava para a baía, viam-se duas filas paralelas de colunas, nuas, como se estivessem ali apenas para sustentar o céu. Era o que restava de um magnífico caramanchão de buganvílias que emprestara frescura às pessoas nos dias de maior calor. Perscrutando o horizonte, achava que, a qualquer momento, o tempo iria mudar e que, talvez, fosse um bom prenúncio começar a minha visita por ali… no namoro que eu pretendia iniciar com aquela cidade que ainda não vira, mas que sabia ser uma das mais encantadoras da África Austral. Pela primeira vez deixei o meu olhar demorar-se na baía. Depois de um pequeno-almoço tomado no bar do jardim, resolvemos continuar a visita. Nas curvas do Caracol ―ia com os olhos cheios de mar. Quem olha para trás com uma baía assim? Quem consegue desprender os olhos dos minúsculos barcos de pescadores concentrados na pequena praia da Catembe, fugidos de um mar como aquele que hoje faz?‖. Fiz minhas as palavras do narrador de ―O olho de Hertzog‖, belíssimo livro do moçambicano Borges Coelho, que nos transporta a este mesmo local… só que h| quase um século atrás. Proferidas há tanto tempo, não deixavam de manter o mesmo sabor. Fui interrompido nas minhas cogitações pelo taxista que nos levava (coincidência: também a personagem do romance ia de táxi): Se quiser, pode apanhar um barco lá em baixo e ir até Catembe e depois à Ponta do Sol, vale a pena. Respondi-lhe que ainda era cedo para esse passeio; queria ver Maputo em primeiro lugar. Catembe ficaria para mais tarde, se houvesse tempo.

Iniciámos a nossa visita à urbe, primeiro pela marginal de uma baía de águas um tanto escuras, disseram-nos depois, devido aos lodos e sedimentos transportados pelos rios que ali desaguam, sobretudo do Umbelúzi. Seguiu-se a Fortaleza, onde se encontram guardados alguns dos símbolos da época colonial, nomeadamente a estátua equestre de Mouzinho de Albuquerque e o painel de bronze que representa o momento da vitória em Chaimite sobre o último rei ngúni de Gaza. Chaimite, não a capital de Gungunhana, que era Manjacaze, mas a que fora de Muzila, seu pai. Lembrei -me dum livro de Guilherme de Melo, que li há já bastante tempo, ―Os leões não dormem esta noite‖, construído na base da hipotética conversa entre o rei vencido, o ―leão de Gaza‖, e o oficial vencedor, o ―leão português‖, antes de, a ferros, o soberano ngúni ter abandonado a sua terra definitivamente, para ir morrer bem longe, no forte de S. João Baptista da cidade de Angra do Heroísmo, no arquipélago dos Açores. Fiquei encantado com a Estação Central dos Caminhos de Ferro de Moçambique. Mais tarde li, numa qualquer publicação de divulgação turística, que a revista Newsweek a tinha considerado como a mais bela estação de caminhos de ferro de África e uma das sete mais belas do mundo. Fora desenhada por Gustave Eiffel e inaugurada em 1910, partindo o seu autor da ideia de que se devia assemelhar a um palácio com pilares de mármore e enfeites em ferro fundido. Uma placa de latão polido, cravada numa das paredes, dava-nos conta das comemorações, este ano, do seu centenário. Seguir-se-iam três dias de passeios pela cidade. Não me admirei que as elites, as de ontem como as de hoje, tenham escolhido os bairros Sommerschield e da Polana para residir. Dentro da igreja de St.º António, rendido ao suave brilho dos vitrais, vi uma laranja de luz a ser espremida lá no alto, no lugar das estrelas. Num dos outros dias em que estivemos em Maputo, a caminho dos muitos sítios, edifícios e monumentos que queria conhecer, passámos pelo Alto Maé e eu tentei ver se adivinhava o vulto de algumas pessoas que eu conheci longe daqui, deste lugar que me haviam dito ter sido deles. Voltaríamos alguns dias depois, quando uns amigos nos quiseram mostrar Maputo ―by night‖, após um jantar de iguarias moçambicanas que a mãe de um amigo, Sérgio Sousa, simpaticamente nos ofereceu. Um ponto alto deste jantar e do serão que se lhe seguiu, foi termos tido a oportunidade de falar com D. Teresa, sua avó, e que conta com a belíssima idade de 105 anos. Senhora de uma vivacidade pouco vulgar em alguém com tantos anos percorridos, encantou-nos com as suas histórias, quase sempre filtradas de fino humor. Já com a capital bastante percorrida, com os seus emblemáticos locais e principais monumentos visitados, quisemos ver o que havia para lá dos seus limites. Resolvemos, então, ir até Inhambane e depois até mais longe, a Vilanculos, terra vizinha do célebre arquipélago do Bazaruto, quase a 800 km de Maputo. Alugámos um carro com tracção às quatro rodas que nos levou, de forma mais segura, à descoberta do asfalto esburacado, do sem asfalto, da terra batida e da picada. Maputo, Marracuene, Maluana, Manhiça, Taninga, Magul, Macia, Xai-Xai, Chongoene, Boane, Chidenguele, Zandamela, Quissico, Zavala, Inharrime, Maxixe e Inhambane; quilómetros e quilómetros por terras de paisagem variada, florestas de cajueiros, machambas de amendoim, palmares de coco e sura, pomares de mangueiras e tangerineiras... e mulheres de capulanas a drapejar ao vento, à cabeça bacias com frutos, camarão, água, molhos lenha, tudo. As bermas das estradas são a montra deste país. Em Zavala quis ver e ouvir os marimbeiros, os tocadores de marimba, os mágicos da timbila. Infelizmente não foi possível, pois só se faziam ouvir em festas, cerimónias ou ocasiões especiais. Tive pena. Chegámos a Inhambane já a noite escondia quase tudo. Ficámos hospedados na Casa do Capitão, residencial construída a partir do que restava da velha casa do capitão do porto desta cidade. No outro dia, quando o sol começou a levantar-se, a baía de Inhambane foi saindo da sombra, primeiro envolta numa suave neblina, depois coada nas malhas de luz de um sol cada vez mais forte. Um navio encalhado pelo recuo nocturno da maré ia ganhando vida à medida que a madrugada lhe devolvia o mar. A baía de Inhambane foi um deslumbramento. Lindíssima! Aqui bebi um refrescante e doce sumo de tangerina, um sabor que me transportou à infância e às tangerinas da minha terra natal, no sudoeste angolano. Como as de Inhambane, ainda acho que as tangerinas da Chibia são das melhores do mundo. Junto a minha voz à do poeta da Mafalala e confesso que ―adoro morder voluptuosamente os sumarentos gomos / das magníficas tanjarinas d'Inhambane. Adoro mesmo!‖ A caminho do Miramar, mirando o mar deixei-me ir com os repuxos do respirar das baleias, parentes, talvez, daquelas que eu vi mergulhar no mar dos Açores, naquele Atlântico agitado e profundo que separa as remotas ilhas das Flores e Corvo. Se nestas estivemos nas terras mais ocidentais da Europa, agora estávamos onde o Oriente começa. Esta é a costa africana banhada pelas índicas vagas, as mesmas que, devagar, muito devagar, conduziram o Gama até ao Samorim de Calicute, na eterna Índia das especiarias. Pois, fui encontrá-lo, triste e esquecido, num quintal desta centenária cidade, refém infeliz de um conturbado tempo nosso (não o dele!), e hoje náufrago de um outro oceano que, em vida, não imaginara vir a enfrentar.

16 | 03 de Agosto de 2012


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Conto | Segundo rezam antigas crónicas, o velho almirante aparecera na protectora baía, vai para mais de 500 anos, para fazer aguada e, bem impressionado pela terra que seus olhos descobriam, resolveu entrar e ver como era mais de perto. Depois seguiria o seu destino, bem mais longínquo e apelativo, na outra margem daquele mesmo oceano que o refrescava, ele que, afinal, não se prendera ao gosto da doce tangerina, antes se mantivera fiel ao cheiro da canela e da noz-moscada. Mas gostou da baía e ainda se diz hoje que foi o navegador português a propalar que aquelas eram terras de boa gente. Mais do que tudo, foram essas palavras que ligaram o Gama a este lugar. E por que razão fora tão simpático, logo ele que, segundo consta, não era muito dado a palavras doces ou a simpatias vãs? Contaram-me que o velho almirante, vindo do mar em terra se encharcara de copiosa chuva, e que, precisando de um tecto para se recolher e de uma fogueira para se secar, teria sido abrigado por um local em sua própria casa, que ao recém-chegado se dirigiu em bitonga, convidando-o a entrar, bela gu nhumbale. O Gama, de regresso ao navio e satisfeito com a hospitalidade, teria dito, então, que estava numa terra de boa gente. Gente que, em jeito de despedida lhe teria gritado ambane. Mais nesta última palavra, a da despedida, do que nas primeiras, as do convite, parece espreitar o nome desta cidade. O toponímico Inhambane terá origem nesta palavra, a mesma que foi pronunciada para despedir o visitante? Voltei a olhar para a estátua ali esquecida a um canto e questionei-me se não continuariam a dizer ambane ao Gama. Ele, que, há mais de trinta anos aguarda, naquele cais improvisado, por uma outra nau, que o leve de regresso à terra natal. Ou então, de tanto esperar e de por tanto tempo o deixarem ficar… talvez a boa gente de Inhambane lhe volte, um dia, a dizer, bela gu nhumbale. Quem sabe? E a viagem continuou, mais umas três centenas de quilómetros, mais Moçambique a desfilar nas bermas das estradas, Inhambane, Maxixe, Mocoduene, Morrumbene, Massinga, Unguana, Vilanculos. Para mim, nada como a Baía de Inhambane. Não é fácil encontrar uma natureza tão rica, tão pujante de beleza como a(s) Baía(s) de Inhambane. Os nossos olhos ainda estavam cheios da Praia da Barra, da Baía dos Flamingos, do Miramar, das Praias do Tofo e do Tofinho. Em Vilanculos ficámos na Casa Rex. O nosso quarto abria-se para o mar e para as ilhas do Bazaruto. Lá, diziam-nos, naquelas ilhas é que está uma beleza sem igual. Nós acreditámos, mas os dias estavam cinzentos, chegou mesmo a chover, e achámos que não valia a pena arriscar. Passeámo-nos por ali, vimos praias de areais a perder de vista e coqueiros a dançar marrabentas de vento… mas continuávamos com a Baía de Inhambane no olhar. Quando iniciámos o regresso a Maputo, quisemos voltar a Inhambane. No Tofo encontrei (Que surpresa!) amigos antigos de Angola e de Macau que haviam escolhido aquele lugar para sua residência. Com eles almoçámos matapa de caranguejo e só saímos de lá quando, ao desmaiar do sol, a mosquitaria ganhou coragem e invadiu tudo. A viagem até Chidenguele foi nocturna e de cacimbosos calafrios, sobretudo quando nos cruzávamos com outros carros, todos a fugirem dos mesmo buracos e a cegarem-se dos mesmos faróis. Nas margens do lago com o mesmo nome desembocámos em adiantada hora. Só os pássaros, as rãs e as estrelas se ouviam. Lindo! E o mar a bater em frente mostrava-se invejoso daquele lago que nos atraía mais do que ele. Em Nhambavale, mesmo juntinho à água doce do lago, foi um delírio. Seria ali o paraíso? Seguiu-se Xai-Xai onde o ocaso não foi um acaso de beleza e o horizonte festejou-nos com tons de manga madura. O que veio depois é que foi! Chegámos ao Bilene já a noite nos brindava com as primeiras sombras que uma lua cheia teimava em afastar. Deixaram-nos num cais destruído e disseram-nos que esperássemos pelo barco. Havia de chegar, mas como não tinha luz, seriamos avisados pelo roçar do casco dele nas ondas mansas da lagoa. E assim foi. Quando se acercou de nós, arregaçámos as calças, mergulhámos os pés na água morna e fomos até ele. Seguiu-se a viagem num barco sem luz em que o farol era o luar… Deixaram-nos na encosta arborizada das grandes dunas que não deixavam ver o mar. O cen|rio era soberbo { luz da lua… o cenário continuou soberbo com a manhã a chegar…

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Conto contigo Na casa da vizinha Japone Arijuane- Moçambique

N

ós éramos dois; dois inquilinos, cuja casa era pertence individual duma solteira, aliás divorciada, na verdade nunca chegou a casar-se, mas vivia, segundo ela, maritalmente. A casa era modesta, grande para uma só pessoa, pior quando se trata de uma mulher; a grandeza das coisas é testemunhada pelo vazio de outras. Ela herdara dos pais ainda vivos; vinha dividida em três compartimentos; dois quartos e uma sala, ladeada de portas, uma típica casa suburbana. A ideia de arrendar parte da casa, surgiu como salva-vidas na herdeira, que se via afogada no mar injusto do quotidiano suburbano, -miséria, pagava caro as custas da vida, isto quando separou-se do marido -máquina de trazer pão á mesa. Nós aparecemos como resgate, teríamos de ficar com um quarto da casa e um quarto da sala, teríamos de dividi-la ao meio, enquanto esperávamos um pedreiro para a reforma, porém alojamo-nos mesmo assim, apenas uma cortina separávamos. Eu era nocturno caseiro, meu companheiro nem por isso, vezes eram duas por semana que dormia no seu local de trabalho. A vizinha, como meu companheiro a chamava, era um furacão, sempre em erupção, cujo fogo queimávamos ambos adentro; cautelosa vigiava-me o rosto, com dotes de fisionomista, como quem controla uma fruta prestes a amadurecer. Vinha cheia dela como uma serpente, contemplava-me primeiro e desenhava no ar com a sua voz suave a palavra – olá; eu, firme retribuía-a com um aceno, por vezes de braço, sem encara-la frontalmente, gesto de como quem nada quer. Mas via-lhe nos olhos o veneno da sedução, pronto para atirar como legítima defesa. Um dia desses, ouvi batidas carinhosas a porta; ouvi na mesma voz que ouvia entre cortinas; não descortinando o real motivo, esbocei a básica questão: quem é? A mesma voz se fez firme. - Eu - Eu quem?! Como se pelo timbre da voz não reconhecesse a portadora. - Eu vizinha… Chamou-se. Quando fui abrir, lá estava ela desprotegida exibindo pouco tecido na epiderme, antes mesmo que abrisse a matraca, - disse eu: - Pois, não! - Não… É que esquece-me as chaves da minha porta… posso entrar daqui? - Pode! Fica a vontade. Tirou os chinelos sacudiu os pés, num saco que ali estava desempenhando função de tapete. Ao mergulhar seu tronco semi-nu na claridade a sala tornou-se mais iluminada; fingi não olhar, pois as mulheres interessam-se em homens que elas não vêem interesse deles nelas. Mas para chamar-me atenção, parou e assobio, um atrevimento pouco comum nas mulheres, - pensei eu! Quando a olhei acenou o rosto e cuspiu a mais bela frase de agradecimento que jamais ouvi em toda minha vida. - Obrigada… Mantive-me na compostura machista, levantei a mão e nenhuma palavra. Ela manteve-se ali olhando-me de soslaio, eu que propositadamente estava quase de tronco nu; lancei a camiseta que vestia na cadeira ao lado; dandolhe as costas em direcção ao quarto, senti que alguém me contempla, aliás, eu até que sabia mas fingia. Quando virei a surpreende atónita, fitava-me feito um provinciano que chega pela primeira vez na cidade grande; contemplava-me como se eu não estivesse ali. - Algum problema? Continuo ali fixa e cabisbaixa, sem A nem B, muito menos C! Ganhou fôlego, como quem descansa de uma longa caminhada e disse: - Você é a solução… - Algum problema? Continuei, como quem não ouviu. - Não! Alguém é a solução! - Não entendi?! - Não vais entender, não é para entender, nem eu entendo! Aproximou-se, bem perto olhou-me nos olhos, senti o fogo a queimar-me todo. Seus lábios prontificaram-se com tudo; quando trilharam em mim, o fogo virou uma onda no mar, calma e traiçoeira, quando molhou-me todo, já estava eu a navegar mares e mares, sem medo de nada, muito menos do fogo do mar. Eu disse para mim mesmo, - deixe que tome dianteira. Mergulhei o rosto no decote, como se de um remo se tratasse, agarrei-lhe a cintura com as duas mãos. Colidimos na mesma primeira cadeira onde a minha camiseta estava pendurada. Ia eu fervendo, o furacão transformando-se em tsunami, quando a metade da sala enchia-se de esforços, as posições desfilando num cortejo de deuses. Um barulho fez sentir, quando nos demos do barulho, meu companheiro gemia, lá do lado do quarto. Olhei para o único buraco do quarto não vi, mas via-se a luz acesa reflectindo por cima da porta.

17 | 03 de Agosto 2012


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Ideias| Debates e Reflexões A Prosa Cáustica de Antonio Cabrita no Romance “A Maldição de Ondina”

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Silas Correia Leite - Brasil

“... A minha principal certeza é o chão em que se machucam os meus joelhos doloridos/Mas todos os que vierem me encontrarão agitando a minha lanterna de todas as cores/Na linha de todas as batalhas...” Deslumbramento – Manoel Lopes

Como quem não quer nada, de forma cáustica, irônica ou circunstancialmente poética, aqui e ali navalha no palavrear-carne humana (relações e escombros), o autor lusoafricano ANTONIO CABRITA no romance “A Maldição de Ondina” vai levantando lebres/corvos/ rinocerontes (acontecências...), apontados trilhas escamosas, como se num desdizer todo próprio e único que abrisse em lascas, repentes nem tão repentes assim, achacadouros – tiradas como se falastirinhas de histórias em quadrinhos permeadas no contexto – e vai levantando os panos, os bichos (as lebres...), de seu narrar atrevido, ousado, parecendo como se descompromissado, aqui e ali, variando, mas a pegar o leitor pelo sem-pulo de parágrafos imbuídos no texto que são jóias preciosas, e, às vezes, por que não, atiçadas pérolas aos porcos dos contextos, mesmo ainda assim, ele mesmo, como se com a tal da própria “maldição de Ondina”: subindo à tona do charco humano. Para respirar a luz do que cria;cria no oxigênio do dizer e desdizer atrevido, quase claustrofóbico, a contar e assim se fazer também periscópio de seu tempo-lugar, ele mesmo um “Ondina” submarinado de ser um golfinho-escritor no mar de sargaços da vida muito além da imaginação... E a realidade ainda dói, moendas e engenhos de seus prismas... -Roteiro de entrelinhas, desapegos de fogo, aforismos homeopáticos a sangue frio, e, afinal, janelas-paredes, colônias-nósmesmos, lusoafricanos, marfins e estrumes, párias e sombras, ombros e desordens íntimas, travessias e fronteiras malditas como legados campos minados de domínios amorais. A áfrica somos todos nós, a espécie humana/desumana? Maldição adâmica numa áfrica ancestral perdida nos tempos da história incabida de sofrências? -Maldição de Ondina destrincha (esparrama) o amor-açougue de almas. “Perfídias?” - “É um conto largo espalhando as suas metástases”, teria dito o autor sobre o romance. Quixotescamente os sobreviventes que nunca acabam sãos, contam as contendas de proprio coldre. Vários pontos de fuga inrompem no romancear, novelar, vinagres de almas brutas, perdidinhas, como ovelhas desgarradas no redil das aparências. De novo a tal da maldição de ondina impregnada no escrever/criar/sentir do autor? Moçambique sangra por seus horizontes e seres atiçados. Que bicho-deprata morde as missangas de quem escreve nesses cantões, carunchando ideias, reativando outras, pondo olhares desesperados em situações irreconhecivelmente humanas? Ah o caos se acostumando ao delirio de fazer parte dele, nem ócio de oficio, nem inutensilio desvairado... O império, o colonialismo, soslaios de ressentimentos, polos-rancores, porosexpressões de sequelas... -Alta sensibilidade (fio de navalha) turbina o tresloucamento literário que vanguardeia de ser vivíssimo de dar dó, de dar susto, de ler e ficar com medo da próxima página de enfabulação e retórica estridente. É o artista que migrou de Portual pra África, e dessa áfrica que agoniza a derrama do pósimpério... A miséria e a violência estetizadas... Ainda range a áfrica... Miseris Nobilis rogai por nós! -Nada é perfeito e acabado, e tudo está podre, penso, ao ler “A Maldição de Ondina” de Antonio Cabrita, paradoxalmente parafraseando o poetadramaturgo Bertold Brecht. Vidas desterradas que se cruzam. Palavras cruzadas em disparidades de coexistências sofridas, incompletas; fugas íntimas e externas. E as estórias em linhas paralelas, um crime, os estranhos jos ninhos. Um professor (Cesar) escritor de romances policiais. Moçambicano. Raul, um amigo, policial com faro fino.

Beatriz, mulher-vitima de Cesar, nas incompletudes das lidas acadêmicas. Argentina, amante de Cesar, pavio curto. Aurora – a metáfora da obra a clarificar relações? - antiga ama-seca com sua dor (aleijamento), e outros desperdícios de vidas entre seres entrevados vão semeando vacâncias existenciais no romance. -A oralidade mapada da obra, datada na narrativa, intercalada de pensagens (pensamentos-mensagens) que mais são ironias e sacadas – as tirinhas de histórias em quadrinhos de jornais – mais as ratazanas de dentro e de fora do poder. Que meia mentira é meia vardede? Os miseráveis de sempre à míngua. Os flashs se intercalando a desditas, sonhos, ilações, memorias desterradas, chagas e cegueiras, emendas e reconstruções de. Tudo é exilio de. A áfrica toda não é um exilio continental? E há a diáspora intima de cada um. A consciência africana pesada na balança da historia é achada em falta. Mágoas ressentidas dão o que criar. A mão que balança o berço da ciivilização é salmoura pura? Fica a imagem-ideia. Ah mares de um período colonial... quanto de teu sal... são lágrimas de remorso de um antigo Portugal?... Toda colonizador ficou rico impunemente. E as colônias ainda (bem que) sangram artes pelo ladrão... -Mas as cicatrizes ainda purgam... São tantos os fantasmas. E os fósforos das criações iluminando cada recanto-divisa/fronteira do mundão africano para o mundão sem porteira todo, amoral globalizado. Salvos pela arte historial, desde as escritas das cavernas aos escritores que destravam caverna de olhares estrambólicos, lúcidos, portentosos? Que honra há, em partilhar o inferno – com seus traficantes de sombras – o que afinal soçobra? – A ressaca e a paranóias aos quatro ventos, condimentando infernos infinitos e particulares. O jogo de bisonhos biombos da vida? Mundo cão. -―Dá medo fechar os olhos num mundo em que as gotas de chuva não são inocentes‖ – Pg. 237. -Rita Hayworth dança um fado no limbo. A lua universal da mama áfrica sangra. Feridas acesas. A escrita de Antonio Cabrita desengarrafou a alma da África na literatura que vingou muito além de flagelos. -Por isso o romance A MALDIÇÃO DE ONDINA é, por assim dizer, de domínio público desde sempre. E a obra fez-se carne. E a carne ainda ramifica os veios de contações da terra-mãe. E dos filhos deste solo. A fava-rica é para quem surta?. “Estamos juntos!”

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Outras artes | Teatro

Uma sociedade deprimida ou psicopata? Eduardo Quive - Moçambique

de depressão, de amor por dar, de alguma carência em termos de afecto, o que não signi­fica que todos os nosso dias sejam cheios de problemas e/ou de sucessos‖. Um encontro com a Psicose

S

e por um lado, nas sociedades contemporâneas, pessoas de diversas origens e orientações alegram-se, gritam, celebram, por outro, algumas são açoitadas por inúmeras crises: uivam, lamentam, clamam por apoio mas infelizmente ninguém lhes ouve. Por isso, na sua solidão, engendram grandíloquas revoltas. É a par desta realidade que se edifica uma sociedade deprimida e psicopata. Psicose 4:48, a obra teatral encenada por Maria Atália, pode ser um ponto de vista (válido) sobre o modus vivendi dos moçambicanos. A obra que foi apresentada nos dias 26 e 27 de Junho e é inspirada no monólogo com o mesmo título escrito por Sarah Kane, a dramaturga inglesa, a qual se adaptou para a realidade moçambicana. Verdadeira manifestação de arte que é, em Psicose 4: 48 encontram-se inúmeras crises vividas por uma mulher que é interpretada pela jovem actriz moçambicana Violeta Mbilale. A personagem, uma representação social da vida real e da irreal, encarna um conjunto de transformações que a colocam nos interstícios da sanidade mental e da demência. Diante das cenas da peça, imediatamente recordamo-nos da realidade urbana narrada pelo célebre escritor moçambicano, Marcelo Panguana, na sua obra Como Um Louco ao Fim da Tarde. A prevalência de pessoas humanas num espaço social, como Moçambique, em que a busca desenfreada pelo dinheiro debilitou os demais valores morais e sociais a favor de intrigas, contendas, criminalidade e inveja: ―como garantir a sobrevivência? Onde e como adquirir víveres?‖, duas questões cuja sua (re) formulação é constantemente premente. A escassez de víveres, a crise alimentar, além de um clima de insatisfação social, de revolta, de perseguições, fecundou uma série de psicopatias e vícios no espaço social: há demasiada criminalidade, as pessoas prostituem- se para garantir o pão de cada dia, o desespero glori-ficou o consumo de drogas como um método de aliviar a pressão do custo de vista. Quantas vezes a intolerância dos Homens entre si – como, por exemplo, o caso dos transportadores públicos em Maputo – não resulta em incidentes? Diariamente, os cidadãos maputenses fazem-se à rua com alguma preocupação na mente – escassez do tempo para as suas actividades, falta de emprego e bens materiais, por exemplo –, o que faz com que muitos deles, se não contratam os serviços de alguns médicos tradicionais a - fim de garantirem algum sucesso nas suas buscas, associam-se às diversas formações religiosas que modi-ficaram completamente o cenário da capital. O que se pretende considerar é que, quer Marcelo Panguane, quer Maria Atália – nas suas obras, apesar de diferentes – falam sobre Moçambique. Um aspecto peculiar é que em relação à actriz Atália, a obra Psicose 4: 48 assinala a sua aprendizagem na sua formação teatral, ao mesmo tempo que lhe confere a primeira aparição pública no -fim do curso. De uma ou de outra forma, se tomarmos em consideração que Psicose 4: 48 é uma obra que originariamente aborda a sociedade ocidental, é natural que se questione a relação que existe entre a mesma e Moçambique. ―O ocidente, como espaço social, percorre-me a mente já há bastante tempo. Residiu em mim até que surgiu esta vontade de partilhar a minha experiência com os outros. Capitalizei os fragmentos da vida europeia com os quais me identi-fiquei como moçambicana‖, diz ao mesmo tempo que adverte: ―não estou a retratar a vida de todos os moçambicanos. Qualquer pessoa que vir a peça certamente que se identi-ficará com alguma passagem. Além do mais todos nós temos um pouco

De acordo com a encenadora, a sua relação com a obra Psicose 4: 48 existe há mais de um ano. No entanto, a sua encenação ocorreu em apenas duas semanas, o que em grande parte só foi possível como resultado da ‑ exibilidade da actriz Violeta Mbilale. De uma ou de outra forma, se considerarmos que a personagem que interpreta a Psicose 4: 48 é quase louca, também é natural que se questione a reacção de Violeta quando soube que se tinha que tornar numa demente. É que ela, a actriz, devia rapar o cabelo – o que logo à partida era impensável –, segundo, conviver com pessoas com distúrbios mentais, por exemplo, condições perante as quais Violeta não se mostrou favorável a adoptá-las. Aliás, não lhe faltaram argumentos: ―temo pela minha saúde mental depois de realizar esta obra‖, disse Mbilale. Para convencer a artista de que era capaz de interpretar a obra Psicose – nas condições predefinidas – Maria Atália explica o ritual por si inventado: ―tivemos inúmeras sessões de leitura do texto; visitámos os locais frequentados por pessoas que padecem de psicoses; paulatinamente, além de enraizar em si as regras do jogo deu-se conta de que era capaz levá-la a cabo‖. Há quem acredita que encenar a peça de Sarah Kane, por Maria Atália, é como se fosse um encontrou com ambas as artistas. A par disso, Maria Atália recorda-se de que durante a sua formação em Teatro, um dos seus professores considerava que ela uma tinha uma peculiar forma de percepção teatral que lhe recordava Sarah Kane, o que ―o moveu a aconselhar-me a ler as suas obras‖. Afinal, de facto, ―existia algo em comum entre nós. Cada vez que eu lesse um texto da sua autoria, ia-me identificando cada vez mais com a dramaturga‖, realça Atália. Refira-se que Sarah Kane, que encontrou a morte em 1999, com apenas 28 anos, por enforcamento – sofreu de depressão tendo sido internada por duas vezes em hospitais psiquiátricos até que tentou suicidar-se – é considerada a mãe do caos, ao mesmo tempo que, geralmente, as personagens das suas obras são caracterizadas como psicologicamente profundas com imagens agressivas e chocantes, o que em último grau valeu-lhe o título de maior dramaturga inglesa do século XX. Foi desse modo que a relação entre a Sarah e Atália foi construída de modo que, na altura de realizar a sua monografia, Teatralização do Ritual, Maria Atália, com uma enorme base teórica, se questionou: ―porque não trabalhar com a obra de Sarah Kane se ela possui uma série de criações com profundas semelhanças em relação ao meu universo ritualístico?‖ Com a decisão tomada, a encenadora colocou as mãos à obra: no interior da província de Maputo, escolheu o distrito de Marracuene, onde procurou essencialmente compreender os rituais das povoações locais com particular destaque para as pessoas que padecem de psicose. ―Os resultados eram animadores e satisfatórios. De cada vez que eu falasse com alguém ou visse uma pessoa com uma manifestação de psicose, a minha vontade de perceber a manifestação evoluía continuamente‖, comenta. Relativamente à Psicose 4: 48, a produção explica que ―a fala seca, precisa, por vezes gutural, funciona como extensão deste ´corpo` cuja voz e discurso são explorados até à

exaustão. As identidades desfeitas ou não fixas também são características presentes neste espectáculo, em que o lugar donde a voz fala é constantemente desestabilizado‖, ao passo que ―o tempo (...) é tratado ora de modo impreciso, ora obedecendo a um ritmo rigoroso, é desconstruído por elementos diversos como a repetição, a desarticulação da fala, as respirações pontuadas, os gritos quase demoníacos, etc. O espaço também instável é igualmente violentado e ganha mobilidade‖. Na cena da obra, o problema da mulher que padece de psicose é que ela carece de afecto, precisa de alguém que se aproxime de si e, pior ainda, possui uma dupla personalidade. Vezes sem conta, ela discute com uma figura masculina que se apossou do seu corpo dirigindo o seu comportamento. ―Nós, em Moçambique, temos pessoas com essas dificuldades‖, comenta Atália acrescentando que o lamentável é que nem sempre a psicose é percebida. No entanto, ao abrigo do trabalho que realizou no contexto da sua pesquisa em Marracuene, Maria Atália introduz um novo aporte sobre a psicose: há um fenómeno chamado Ku Tsameliwa que se manifesta sempre que uma mulher é dominada por espíritos demoníacos os quais repelem os homens que se aproximam de si para manterem relações eróticas. ―Muitos desses casos têm motivado os homens a abandonar as mulheres‖, considera Atália.

19 | 03 de Agosto de 2012


Às Sextas-feiras o ensaio da semana em: http://revistaliteratas.blogspot.com Envie-nos os seus comentários sobre ensaio da semana por e-mail: r.literatas@gmail.com

Ensaio

TEXTO: Amosse Mucavele - Moçambique |

Uma Acta Rabiscada na Internet para os Internautas leitura de Net de Cláudio Portella I “Não se trata de perguntar o que a INTERNET pode fazer por nós, mas sim o que nós podemos fazer pela INTERNET.”

John Fitzgerald Kennedy

A

epígrafe do texto já levanta o direito do não questionamento do próprio do título do livro e alerta-nos para juntos entraremos nesta reflexão sobre o poder, as vantagens e desvantagens da NET. Ao falarmos da NET tal como o poeta nos sugere ou INTERNET como é chamado por todos nós, esta revolução virtual dos meios de comunicação, a mais complexa invenção tecnológica de todos os tempos, sem se esquecer da imprensa, do telefone, da televisão, do avião, do satélite, etc. Complexa porque a Internet incorpora todas estas criações humanas no seu corpo, até o próprio relacionamento, os passeios pelo mundo sem necessitar de vistos e outras regras politicamente estabelecidas. O que mais me emocionou quando recebi os três exemplares deste livro foi o feitio do mesmo, porque é que o feitio do livro me emocionou? É que já vinha deste a muito resmungando dentro mim, sobre os parâmetros que definem a qualidade de uma obra, e com esta descobri que não é o volume ou número de páginas que simboliza uma escrita madura aos olhos dos leitores atentos, e digo, existem livros maiores pelo tamanho de páginas a dizer quase nada ou pouco, e também existem livros pequenos e outros muito pequenos que dizem muito. Ao ler este projecto artístico-criativo do poeta, escritor, critico, literário, jornalista cultural Brasileiro Cláudio Portella, composto por uma miscelânea de poemas e contos, algo de pouco culto no nosso meio. Contudo, o que mais me interessa neste meu exercício de leitura atenta não é queimar a folha que juntos olhamo-la neste instante nem falar da composição fisiológica da obra, mas sim debruçar-se acerca da riqueza morfológica e tão bem feita a navegação no reino da língua, da palavra com os remos da língua bem lapidados pelo saber e maturidade artística. O titulo do livro já per si é sintomático –NET. O que é que vem a priori no leitor quando encara-se com o livro que na capa vê, teclados de computador e um site com do autor? Um manual de informática? A resposta não tarda a chegar. Será que ainda me acompanhas caro leitor? Ora vejamos a sua chegada no poema: Byte Tambor As caravelas nem sonhavam que um dia no mar novas naves singrariam hoje parece que nem existe mar

de tão pequena que é a tecla de um computador(…) Não há mais caravelas a navegar O sonho de Pessoa: Navegar é preciso, viver não! findou-se em kilobytes, Megabytes, Gigabytes e Terabytes (…) Une o menino da cidade com a mocinha da fazenda E entre Brasil e Portugal parece não haver mais oceano (…) Assim, o poeta encontra na NET razões mais do que suficiente para conhecer o mundo e as suas gentes, chega a qualquer destino pelo voo da tecla do computador sem atravessar fronteiras, mares, sentado na sua casa, na cidade, fazenda, na rua, etc., ele ‗‘encurta caminhos‖socorrendo-se do Email. Pois é a „‟Internet tem a força de constituir uma comunidade livre, igualitária, e fraternal. (…), A internet é para todos.‟‟ (…) Onde o “espaço físico” será irrelevante e “o tempo” terá outro papel. (David Turner e Jesus Munõz in- Para os filhos de nossos filhos: Uma visão da sociedade internet: Plexus Editora 1999-SP-Brasil). Ao falar da INTERNET-NET, deixem-me afirmar categoricamente que este livro é a guisa dos nossos tempos de esferas apertadas pela conexão de um fio, mas do que uma colectânea de poemas, este constitui a exaltação das nossas amizades, relações, afectos, diga-se ― virtuais‖ que compartilhamos com uma infinitude incontável, tal como diria Arthur C.Clarke- Memória racial - nossa profunda memória do futuro? Talvez seja este espaço para a emancipação do futuro de um dia estarmos juntos de corpo e alma, curvando a estrada do ‗‘VIRTUAL‖como sempre, pois esta, é e foi o nosso ponto de partida. Cláudio Portella revisita e define todas as ferramentas fundamentais e usuais da INTERNET e os lugares. No poema Morte no Cybercafé o poeta faz um levantamento historiográfico deste espaço de navegabilidades intensas, fala dos porquês da cronometração e limitação do tempo no Cybercafé algo novo no meu pobre conhecimento, sendo uma vez que a vida é de aprendizados constantes, e a razão vai tomar de assalto o poema Morte no Cybercafé: Um cafezinho cibernético. E foi assim que de cafezinho em cafezinho um chineszinho de trinta aninhos não parou de jogar por trinta horas e seu coração parou bem na hora de gol. (…). O Governo chinês entrou na lan e tomou o pulso do jogador viciado que já não pulsava (…). Um dispositivo dispara quando chega o tempo limite. (…). Interessante esta história e triste por o chinês ter morrido, que tal não tivesse morrido? O que seria do cybercafé? Será que os viciados viveriam no cybercafé? e qual seria a solução? E o poeta responde- (…) ―Será preciso desligar o

20 | 03 de Agosto de 2012


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Ensaio computador‖. e vai mais longe quando fala das redes sociais como FACEBOOK, onde nos conhecemos, onde fomos e somos felizes, e na qualidade de ―Rebeldes Competentes‖ discutimos ideias, e traçamos novos panoramas para a cultura dos povos da língua portuguesa, mas este Facebook nem sempre é um mar de águas profundas de saber, tem uma outra face de espelhar e de ser quartel de promiscuidades, cobardia, show off, calÚnias, e outras peripécias pouco abonatórias , portanto tenho a sorte de não fazer parte deste tipos de fóruns, e ele diz-nos no poema FACEBOOK: Mark Zuckerberg é déspota da cidade de um bilhão de habitantes! Onde cada habitante sonha em aparecer mais que o outro. Esta relação ou comparação de um ditador ao criador do FACEBOOK, creio que seja muito valioso que uma mera metáfora, é simplesmente um despertar de consciências aos desavisados, que no Facebook ou em outras ferramentas da Internet tem sempre um ditador que dita as regras e controla cada passo de cada um de nós. O FACEBOOK é um mundo com as suas divisões onde cada habitante hasteia a bandeira do seu País, no seu quintal publica o que mais lhe interessa ou que entende, visita os amigos, conversa, comenta as publicações, e até quando lhe da prazer invade o mural do amigo escrevendo alguma coisa. Contudo, parece-me que, o Mark Zuckerberg, é um déspota que conhece todos os residentes da sua Cidade, desde as suas biografias, projectos, datas de aniversários e mais. Em Orkut o poeta faz referência aos amores fantasmas aqui nos debruçamos a cultivar os dias todos com gentes distantes e amáveis virtualmente: Encotrei meu grIande amor no Orkut e passamos a beber iogurtes estragados juntos. O amor existe? Só no Orkut! Fora dele é fantasia. (…) No poema Twitter, o poeta assume a intensidade e universalidade do voo das suas palavras e diz-nos: Sou um passarinho dizendo palavrão. É sem dúvidas uma definição pormenorizada das ferramentas cibernéticas que todo mundo usa, indo para o Email, o poeta transcreve a difícil missão de viver sem esta mulher que lhe facilita e lhe dá o amor interfronteiriço, transnacional, a mesma mulher que ele ama todos os dias, lhe informa sobre as mensagens dos seus patrícios, faz chegar os convites e até pedidos do além mar: Minha metade chata! Depois de ouvir e ver esta declaração do poeta a sua cara-metade, o Email, logo lembrei de um sábio que disse: A internet é como a própria liberdade uma vez que a gente prova e quer mais. E no poema Google o poeta diz: Estou viciado! Não consigo parar de buscar por meu nome Quem sou eu? Um fantasma de plasma? Nesta composição confusa e perpendicular do Portella com soluções lineares e ajustadas á nossa realidade cosmopolita já que este, é o sinónimo do futuro da humanidade que quer ser mestiça. Todavia, todos nós não conseguimos dar tréguas ao Google, será que podemo-nos assumir como viciados tal como o poeta se assume? Ou somos simples acompanhantes dos viciados desta droga chamada Google, que tem tudo e todos sabores do mundo, a mais repleta colecção das beldades que a vida nos oferece. Portella, vai mais longe nos contos que compõem este livro, onde logo nas páginas iniciais chama-nos atenção quando diz: ―Todas as personagens, independentemente dos nomes, são fictícios.‖ Com toda a razão, pois a ficção é que faz a literatura ou a literatura é feita de ficção. Tanto faz, pois o objectivo primordial é criar e retratar verdades e relatar realidades que não conseguem aconchego nas conversas das esquinas. Aqui encontramos um escritor diferente do poeta, que internauta, tanto no plano de abordagem das questões como na procura das soluções. Estamos perante um contador de estórias, cheias de humor com ares suburbanos e asas urbanas dos socialites das grandes cidades Brasileiras, conforme os mídias nos vendem estas imagens, estamos perante as

duas faces do Brasil. A difícil solidão da vida de Clarissa, de ser mãe dos filhos dos irmãos que o narrador não diz para onde foram, mas revela-nos o quão sofre no conto ―A LATA DE LEITE‖ : ―Clarissa não esta mais aqui e a casa esta cheia de sobrinhos. Na verdade sobrinhas. Sobras de uma vida sem somatórias. Não é assim a vida?‖ Poucas latas de leite para tantas crianças, é a pobre que Clarissa divide o pouco amor com os sobrinhos, que sobraram dos amores mal feitos da vida madrasta que corrói muitos corações, não só no Brasil, como no mundo todo. E que no final subtraem as despesas com as tantas Clarissas que não conhecem e nunca provaram o suco do tal amor. No conto CORSÁRIO, encontramos exposta a problemática das relações amorosas actuais de pouca duração e muita das vezes materiais, de traições constantes e de amantes e isentos de escrúpulos e respeito mútuo: ―Nos conhecemos na quinta e hoje, domingo, depois jantarmos, selávamos nosso namoro no motel‖ pág. 23. Este depoimento por si só, já demonstra a própria promiscuidade do amor na concepção actual, e esta relação surge como refúgio ou como vitória da derrota que o narrador levou com a Laura: Parecia impossível ter um novo relacionamento depois que eu flagrei Laura, no mar, com meu irmão mais velho.‖ Pág. 23. São estes os traços da desumanização da humanidade e dos conceitos que regem uma traição conjugal, que tem como ponto fulcral, o legítimo irmão do narrador. No virar da moeda destes contos, Portella relata um episódio belíssimo na primeira pessoa sobre a questão do meio onde vivemos e a provável influência que dele podemos sofrer, o cenário acontece no morro de Vidigal, no Rio de Janeiro, numa comunidade pobre típica daquelas a que estamos habituados a ver na televisão com muito samba nos pés, crença em Deus, e muita injustiçada pela polícia: ―Nasci incolor e cheirando a samba, a bala perdida, a pó. Hoje, se tenho diploma e um anel e por conta da reza forte de minha mãezinha, Dona Zina. Parteira do Vidigal, do morro de Vidigal.‖pág 27, in Pequeno Burguês. A bala perdida, a mesma matou o seu pai, o pó que dá-lhe a posição de extraficante, e que lhe deu a oportunidade de se formar na UFRJ, bem que precisava de estudar para mudar o rumo dos acontecimentos, pois o samba nunca comprou sapatos e outros bens materiais, somente dava prestígio tal como o seu pai que morreu pobre mas afamado: Sou antropólogo, ex-traficante e volto a perguntar: de quem e o Rio afinal? (…) De quem e o Rio afinal? Creio que o Rio e um pais sem dono, uma terra de ninguém, uma cidade tombada pertencente ao património mundial. Tanto e do pequeno burguês viciado (…) como do poeta Drummond (…) e desse negro que vos fala, que graças ter nascido juntinho, ali pertinho do Redentor, não nasceu um pequeno burguês. Fim da acta

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21 | 03 de Agostoo de 2012


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Conto

Retalhos

Confissão de Ignorância

Apocalipse Eduardo Quive - Moçambique

Cesar Barroso - Miami*

R

ecebi um gentil convite do nosso cônsul, Emb. Hélio Ramos, que me surpreendeu: participar de uma palestra do escritor brasileiro Milton Hatoum. Corri ao Google para, quem sabe, reavivar a minha memória, mas concluí que jamais ouvira falar de Milton Hatoum. Total ignorância. Culpa minha, conforme explicarei abaixo. Antes permitam-me informar que esse editor não é novato nem leigo nessa área. Formado em Literatura Brasileira, fui aluno do Prof. Domício Proença Filho, membro da Academia Brasileira de Letras por mérito próprio. Li todo o Machado de Assis e todo o José de Alencar. Li o Padre Antônio Vieira, Gregório de Matos Guerra(como eu gostava do "Boca de Inferno"!), Frei Manuel de Santa Maria Itaparica. Depois li literatura brasileira barroca, parnasiana, romântica, simbolista, pré-mo derna, moderna... Cultuei através da leitura Guimarães Rosa, Mário Palmério e Euclídes da Cunha por muitos anos. Eu era um verdadeiro rato da biblioteca municipal da Avenida 13 de Maio, no Centro do meu querido Rio de Janeiro. E não fiquei só na literatura brasileira: li muito Balzac, Flaubert, Thomas Mann, Dostoiévski, os grande escritores portugueses - Luiz de Camões("Lusíadas" e "Sonetos"), Camilo Castelo Branco, Miguel Torga, Eça de Queirós, apenas para citar alguns Cervantes e Camilo José Cela do lado espanhol. Deixem-me incluir ainda alguns latino-americanos, como Gabriel Garcia Marques, Gabriela Mistral, Pablo Neruda. Acrescento ainda que estudei literatura inglesa e americana com o a Prfa. Letícia Cavalcanti Niederauer, que tinha doutorado pela Universidade da Pennsylvania. E li muitas das principais obras das literaturas inglesa e americana. E por que não conhecia Milton Hatoum? Bem, não conhecia Milton Hatoum porque desde o início dos anos 80 deixei de acompanhar o movimento literário brasileiro. Depois de breve passagem pelo magistério e pelo jornalismo, ainda no Brasil, me entreguei a outras atividades, muito ligadas aos Estados Unidos, para onde posteriormente me mudei, e praticamente deixei de ler literatura brasileira e os suplementos literários. Culpa minha, exclusivamente minha. Hoje em dia leio muito sobre minha arte, a fotografia, o budismo, a filosofia, e um romance estrangeiro de vez em quando(nesse momento leio " Purge", da finlandesa Sofi Oksanen). Acabei, depois da surpresa do convite, tendo outra surpresa, a de ter encontrado um escritor brasileiro que conseguiu no convívio de apenas duas horas, convencer-me de que devo voltar a ler literatura brasileira. E prometi a mim mesmo que oportunamente recomeçarei, justamente por "Dois Irmãos", de cuja leitura passarei minhas impressões aos leitores dessas linhas. Do encontro, lamentei apenas a sua brevidade. Milton Hatoum levantou algumas questões ali que mereciam debate demorado. Uma delas a do nosso relacionamento com os outros países latino-americanos. Realmente, como foi dito, o relacionamento não é melhor, como merecia, por culpa mútua. Visito esses países desde 1966, quando fui ao Chile com uma bolsa de estudos, e desde então lamento que a gente brasileira conheça tão pouco a cultura de nossos hermanos, e que eles não façam esforço pa ra compreender e falar a nossa língua. Como disse Milton, o comércio agora faz essa aproximação, e espero que se estenda às culturas e artes dessas nações tão ricas culturalmente como a nossa. Hoje, com uma namorada peruana, vivendo em Miami Lakes, a poucos passos de Cuba(Hialeah), e tendo feito uma viagem recente à Guatemala, mais do que nunca estou convencido de que o enriquecimento que essas culturas podem nos trazer é enorme. Uma declaração do Milton merecia mais explicações - "A literatura é transcendência da vida, quanto mais longe da vida, mais perto da vida" para o público presente à palestra. Para mim, a literatura transcende à vida mas só consegue isso ficando o mais perto possível da vida. De qualquer forma, não houve tempo para se desenvolver esse debate. Como também não me ocorreu pedir o e-mail do escritor para poder inquirí-lo eletronicamente a respeito. Outra questão que poderia ter sido aprofundada foi se há algum paralelismo entre "Dois Irmãos" e "Isaú e Jacó", de Machado de Assis. Como ainda não li o livro de Milton, não posso dar uma opinião a respeito, mas gostaria de tê-la ouvido da boca do autor. Foi uma linda tarde que nos proporcionou o consulado brasileiro. Estamos seguros que haverá muitas outras, em vista do apoio que o Emb. Helio Ramos vem dando à cultura e às artes brasileiras em Miami.

“Os mochos teimaram em serendar sobre as casas, chorando a toda hora e trazendo os espíritos há muito adormecidos que perturbaram as nossas mentes e deram a morte a alguns” Ungulani Ba Ka Khosa Ualalapi

M

uitos adivinhos já não sabiam nada do que acontecia em Deus me Livre! Nenhum adivinho podia adivinhar tudo que se passava em volta do apocalíptico momento que pusera em apuros a antiga terra sagrada. Podia espaçarse muito no meio daquele nhima-nhima, que se instalou nas terras dos deuses, sem se quer distribuir minutos de tolerância. Os sacerdotes ainda tentavam dizer alguma coisa. - Mãe de misericórdia, mãe do Salvador, assista-nos nesta última agonia que se aproxima. – E ainda apelavam as multidões que fizessem qualquer reza. - Orai irmãos, ao Deus nosso senhor. Por outro lado ouviam-se gritos de socorros e nhandayeyos. Ninguém podia rezar, no lugar de agir com própria confiança e esperteza. - Já o demos oportunidade de fazer alguma coisa e nada fez. Deus que mata nunca dera vida! - Quantas vezes os nossos filhos, pais, irmãos, tios e sobrinhos, gritaram o nome desse Deus tal, antes que estas terras os levasse para as profundezas do além? - Orai vocês mesmos pelas vossas próprias vidas e aproveitem para dizer a Ele para se preparar, porque daqui a pouco estas terras que criou com a própria mão, vão me levar para junto dele e vou o matar pela segunda vez e será para sempre…sem ressurreições. O antigo sacerdote exigia do seu próprio criador que dissesse a verdade às massas – ―morrereis pelos vossos pecados‖ - E assim parecia ser. Os homens que antes confiavam nas suas mãos para fazer alguma coisa já o faziam com os pés. Corriam como se fossem aves…velocidade por demasia desespero. Tudo acontecia em jeito de “nunca vi”. Crianças que nasciam em cima de árvores. Ndambini que o diga: nascera por baixo do céu, onde todos homens se escondem quando estão nus. A sua mãe esquecera no meio da correnteza das águas assassinas, toda esperança: casa, roupa, comida, patos e etc. Esquecera também das dívidas e da pobreza. Subiu na árvore com a barriga de que dependia sua filha antes de sair. Todos ficaram a conhecer o Deus me livre que se passava do tempo. Os Cabrais deixavam também de baixo do solo que engoliu as nossas vidas: dinheiro e herança, fortunas e projectos de lucros fartos. Mas levaram consigo os terrores do seu racismo que sempre se fez presente na pele dos pretos que os serviam. Em troca de quê? Em troca de torturas. E o rei Ngonyama, ainda não tinha partido para seu eterno destino. Feiticeiros, curandeiros e adivinhos o protegiam. Na altura, pairavam dizeres sobre leões que habitavam as florestas das redondezas e que pertenciam a sua dinastia. Todos eles eram parte do seu corpo e cada homem que matavam, a ele fortaleciam. Não eram apenas falácias. Muitos foram os que confirmaram. Malaquias, fora exemplo dos que com a sua carne, os leões deram vida ao rei. Viu a sua nádica espetada aos caninos dos indomáveis. Também ficou ferra, mas ferra de ferido. Morreu. Depois de ter passado setenta e duas horas em delírios de dor. Dormia de barriga. Nem podia se alimentar. Não podia. Porque ele é que era o alimento. Comida do Rei Ngonyama. Dizia-se também que a vila do Leproso era outra parte da sua vida, enraizada nas terras mais selvagens do continente, até o Nwamulambo se rendia ao temido homem com curvas dos diabos. Todos os feiticeiros, curandeiros e adivinhos o protegiam. Até os sacerdotes invocavam o seu nome na hora das bênçãos. Todos viventes sabiam porque tinha que desaparecer mensalmente do seu lar, alguns bois e donzelas. Eram para seus Nyamussoros. Os seus Nyamussokwanes. E cada vez mais se engolia a terra que antes fora sagrada. Ninguém estava para justificar alguns acontecimentos que registavam-se em jeito de Swo Suketana swiku… Tudo tal como diziam as lendas. De repente… Do Deus me livre, tal como os deuses se livraram, os homens também se iam na maior estranheza. Cada segundo uma vida entregava-se ao inferno. Pouco a pouco Deus me livre livrava-se de gente. Ficava terra do Nada. Ninguém já habitava o lugar.

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*Editor do http://www.miamihoje.com Membro da Society of Professional Journalists

22 | 03 de Agosto de 2012


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