Navegante da Luz

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Navegante

luz da


Realização

Este projeto foi contemplado pelo Ministério da Cultura e pela Fundação Nacional de Artes – FUNARTE no Edital Bolsa Funarte de Estímulo à Produção em Artes Visuais. Distribuição Gratuita - Proibida a Venda


Marisa Mokarzel

Navegante

luz da

Miguel Chikaoka e o navegar de uma produção experimental

1a Edição

Belém - PA Kamara Kó Fotografias

2014


Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) M716n

Mokarzel, Marisa. Navegante da luz: Miguel Chikaoka e o navegar de uma produção experimental / Marisa Mokarzel. - 1. ed. - Belém : Kamara Kó Fotografias, 2014. 120 p. : il. ; 24 cm Projeto contemplado pelo Edital Bolsa Funarte de Estímulo à Produção em Artes Visuais, 2013. ISBN 978-85-62035-03-6 1. Chikaoka, Miguel, 1950 - . 2. Arte e Fotografia. 3. Fotografia Brasil. I. Kamara Kó Fotografias. II. Título. CDD: 779.81


SUMÁRIO

Apresentação Mariano Klautau Filho ............................................................

07 11 13 25

Breve Abertura ............................................................................. 1. Entre o Rio e o Sol Nascente .................................................

2. Processos Ressonantes ...................................................... O Tecer de Galerias e Salões ....................................................... 26 Funarte: trajetos visuais e travessias fotográficas.................... 36

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3. Livres Tessituras: Imagens, Ações e Experimentos ....... Arte, Liberdade e Política: uma convivência possível ............. 48 Névoa de Luz: fotografias e ações em processo ....................... 68 Remates ................................................................................

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Sobre o artista ................................................................... Referências ............................................................................



“Um oriental na vastidão”1 Mariano Klautau Filho

Miguel Chikaoka chegou a Belém no início da década de 1980, vindo de uma temporada na França, lugar em que descobriu a fotografia. Com forte intuição, associada às leituras na área da filosofia e da educação, Chikaoka iniciava um interesse profundo pela fotografia como linguagem e compreensão do mundo. Havia o desejo de aproximação com a cidade, com as pessoas do lugar – e a fotografia passou a ser o componente principal do acercamento a um território cultural inteiramente novo. A partir daí, imprimiu uma atitude de educador experimental e propositor de vivências com a imagem fotográfica, que marcou de modo definitivo a cidade de Belém. O início dessa experimentação em Belém se dá pelo nome de Fotoficina, oficinas em que Chikaoka tomava a fotografia como elemento perceptivo importante, propondo exercícios de conhecimento sobre a origem da câmera e a construção da imagem. O envolvimento com as práticas sensoriais conduzia os participantes à consciência de que a vasta era pré-fotográfica tinha uma importância fundamental para a compreensão sobre o uso da fotografia no século XX. Além disso, Chikaoka envolveu-se completamente com a cidade: trabalhou com grupos de teatro de rua, participou de entidades comunitárias, documentou manifestações políticas e culturais, levou as exposições de fotografia para o espaço público, registrando um período extremamente rico no que se refere ao contexto de abertura política que o Brasil então vivenciava. A Fotoficina gerou a Fotoativa, em 1984, e criou uma agenda regular de oficinas, atividades e projetos diversos, com uma potência coletiva, que aos poucos foi formando gerações de fotógrafos interessados especialmente na expressão pessoal, que os conduziu inevitavelmente para o campo mais alargado da arte. As oficinas de Chikaoka não foram construídas como projeto artístico, e muito menos como um aprendizado técnico. Eram práticas artesanais, experimentações perceptivas e relações corporais, nas quais a fotografia era o meio, o condutor, uma espécie de bússola para compreender visualmente o mundo. A diferença é que 1 Um oriental na vastidão é o título de um conto de Milton Hatoum, do livro A cidade ilhada (Companhia das Letras). Foi tomado por empréstimo pelo caráter enigmático e sensorial observado na narrativa ficcional de Hatoum sobre o encontro do personagem japonês com o ambiente infinito de um rio amazônico.

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Chikaoka mostrava, em meio a essas experiências, uma disposição para promover coletivamente a discussão sobre imagem, além de apresentar um trabalho pessoal sofisticado, embora esse aspecto jamais tenha sido, para ele, o mais importante na sua trajetória. Chikaoka não é uma voz única nessa história da fotografia recente em Belém. Somaram-se a ele pessoas importantes no desenvolvimento de grupos no mesmo período, como por exemplo, Patrick Pardini e Luiz Braga, entre outros. No entanto, devemos considerar que Chikaoka ampliou e desenvolveu o alcance da fotografia no cotidiano cultural da cidade, de forma ímpar, que findou por aproximar gerações às questões da arte, o que veio a se transformar em um aspecto precioso na identificação de Belém como cena de intensa produção artística no campo da fotografia. As relações entre arte e fotografia foram se dando nos processos de troca ocorridos nas oficinas, na intensa discussão e leitura dos trabalhos dos participantes em projetos que tomavam a cidade como matéria primeira. Começava a surgir uma diversidade significativa de linguagens e experiências entre os fotógrafos, alunos, aprendizes e, principalmente, uma disposição para o reconhecimento das diferenças. Isso provavelmente já era um desprendimento na atitude dos participantes, que Chikaoka soube perceber e captar como força produtiva entre a sua vontade pelo trabalho em grupo e o desejo de expressão do outro. Não havia modo de fazer, e sim meios de experimentação com os materiais. Tampouco havia o interesse no aspecto ilustrativo da fotografia, e sim em exercícios para além da materialidade do suporte (fotográfico), em que a percepção e a consciência buscavam noções ampliadas sobre a imagem. É mérito de Chikaoka desenvolver esses aspectos em uma dimensão coletiva, em que não se perdesse o interesse por uma linguagem singular como fala artística. Essa dimensão possibilitou o surgimento de gerações de artistas cuja fotografia não reivindicava uma territorialidade regional, de identidade homogênea, nem pretensamente interessada em forjar uma representação amazônica. Os alunos que foram se tornando artistas buscaram uma identidade poética e não territorial. O único lugar de identificação, desde a década de 1980 até os dias atuais, tem sido a cidade de Belém, quando muito do Estado do Pará. A liberdade de experimentação, o interesse coletivo e o debate acerca da linguagem propostos por Chikaoka contribuíram fortemente para que os artistas exercessem seus trabalhos sem as limitações do discurso latifundiário de uma estética e de um imaginário amazônicos. A atuação se dava no ambiente de uma cidade de quase dois milhões de habitantes, com aspectos nítidos de uma capital cultural, um pequeno pedaço da região Norte brasileira, que em sua história civilizatória já dialogava com outras partes do mundo, nos séculos anteriores. 8


É necessário lembrar que esses diálogos têm se construído de formas variadas e em tempos distintos. A conformação de sua monumentalidade urbana está na arquitetura do bolonhês Giuseppe Antonio Landi, desde o século XVIII. O comércio global está no cotidiano da cidade desde a produção e exportação da borracha, que imprimiu à cidade um cosmopolitismo e uma imagem de modernidade na virada do XIX para o XX. Somada às raízes musicais mais interiorizadas, como lundu e carimbó, havia o gosto popular pelo merengue e os sons do Caribe, que comumente se ouvia nas rádios até os anos 1970. As rodas literárias dos anos 1950 e 1960, no Café Central, eram formadas por figuras como Benedito Nunes, Mário Faustino e Max Martins, que flertavam com a poesia norte-americana. Essas passagens históricas marcaram a cultura intelectual e artística de Belém com certo refinamento e independência, e promoveram na arte da cidade uma linguagem contaminada pelo mundo. A Belém dos anos 1980, que recebeu Chikaoka, vivia um processo de abertura política, como qualquer outra capital brasileira, e, de algum modo, mantinha essas heranças que desafiavam a necessidade do território como mecanismo de autoproteção. O campo da fotografia, por meio das experiências com a imagem propostas por Chikaoka, transformou-se em um lugar possível, não para projetar uma cerca regional, e sim para desejar a invenção de poéticas. Ao lidar com a materialidade fotográfica, Chikaoka estimulava em suas oficinas um movimento para dentro, numa dimensão perceptiva. Ao passo que essa prática se ampliava, gerações de artistas foram constituindo uma produção desatrelada das contingências de uma ilusória identidade local. Os aspectos dessa liberdade podem ser observados na trajetória de muitos artistas que avançaram pelos anos 1990 e 2000 ocupando espaços e circuitos brasileiros. O próprio Chikaoka, quando investe em seu trabalho particular, realiza experiências originadas de diversos pontos referenciais. Seu trabalho intitulado Hagakure (2008) é motivado pelas reminiscências culturais japonesas no interior de São Paulo, onde nasceu; sendo possível também pela filosofia dos samurais e pelos filmes de artes marciais vistos na infância. Portanto, trata-se de um trabalho mais próximo a um encontro entre um desenho de mangá e certa objetualidade pop, do que vinculado a uma cultura localizada na Amazônia. Primavera (1983), cuja imagem da ponta da canoa sobre fundo negro desenha rigorosamente um triângulo no quadro, foi realizada no interior do Pará, porém, está mais afinada com um interesse pictórico formal, misturado ao sotaque da fotografia alemã do final dos anos 1920. Outras imagens da mesma época, como Ilha de Mayandeua (1986) ou Outeiro, Belém (1987) são uma reordenação da paisagem. Acontecem fotograficamente em uma mesma geografia do norte brasileiro, e posteriormente ganham sentido na figuração econômica dos elementos, no apuro artificial do equilíbrio, numa espécie de contra-discurso à vegetação densa e exuberante, característica do “imaginário amazônico”. 9


Primavera, 1983

Mayandeua, 1986

Outeiro, Belém, 1987

A liberdade poética e desterritorializada de Miguel Chikaoka tem sido uma das maiores contribuições à produção da imagem em Belém. As gerações de artistas que atuam intensamente nos últimos anos, mesmo desligadas do campo específico da fotografia, sabem absorver a experiência fotográfica de Chikaoka, como atravessamento de seus processos. Muitos trabalhos das gerações atuais, cujos interesses estão dirigidos a outras áreas como a performance, o vídeo ou o desenho, encontram ecos conceituais em campos de discussão sobre a fotografia. Essa experimentação segue o seu curso, hoje, como um desprendimento do campo fotográfico, e como vontade para que as fronteiras continuem abertas. Chikaoka permanece atento. 10


Breve abertura

A ideia para se desenvolver uma pesquisa surge a partir de outras tantas; e se dá em um universo de incertezas, longe de previsões precisas, definidoras. Havia alguns percursos realizados, um processo e um pensamento em construção, sustentados por alguns dados levantados, orientações de trabalhos universitários, textos lidos e escritos, convivência com o fotógrafo e com a cena cultural e artística da cidade. Além da tese de doutorado, na qual pesquisei o circuito de arte em Belém, no período de 1980 a 1990. Os caminhos, no entanto, exigiam maturação, um tempo para a pesquisa criar forma, dar corpo a este ensaio. Mas, um fator que muito contribuiu para o ponto de vista adotado foi a curadoria de Mariano Klautau Filho, para a sala que homenageava Miguel Chikaoka, durante o III Prêmio Diário Contemporâneo de Fotografia. A sensibilidade do curador no processo de seleção de imagens evidenciou-se no resultado expositivo, que possibilitou ao visitante um novo olhar sobre as fotografias de Chikaoka. O primeiro capítulo, Entre o Rio e o Sol Nascente, faz referência à poesia de Max Martins, que originou o título dado à sala expositiva que homenageava o fotógrafo. Trata-se, também, de um texto elaborado durante o processo de pesquisa e destinado à publicação na revista Asas da Palavra, editada pelo curso de Letras da Universidade da Amazônia (UNAMA). No começo dos anos 2000, quando participei de um curso de curadoria no Instituto de Artes do Pará (IAP), ministrado por Rosely Nakagawa, pensei em pesquisar a produção de Chikaoka para realizar uma exposição que criasse um canal entre o seu processo fotográfico e a ação educativa por ele desenvolvida. A ideia não se concretizou, mas o fio que a teceu se manteve latente, à espera de um novo desvelar. Mesmo não enfatizando o fator educativo na pesquisa que aqui apresento, talvez, naquele momento, já estivesse o embrião deste texto, que prioriza a produção poética e experimental de Miguel Chikaoka. A prioridade dada ao experimental, todavia, não omite o segmento proveniente da educação, pois sei que o trabalho em processo, que caracteriza parte da sua produção, engloba as ações educativas, que são parte integrante do seu trabalho. Dentre os autores que contribuíram para eu pensar e analisar essa produção na qual me detive, destaco Nicolas Bourriaud, Maurice Merlau-Ponty e Cecília Almeida Salles. Entrevistas e anotações realizadas pelo artista, matérias de jornais, folders e, principalmente, o acesso ao acervo fotográfico de Chikaoka e Kamara Kó, foram 11


decisivos para a construção do pensamento e as reflexões geradas. De todos esses procedimentos, um se deu por acaso, e acabou se revelando como um grande auxiliar da pesquisa: o processo de seleção de imagens atreladas às perguntas. A “entrevistavisual” proporcionou a clareza contextual e a compreensão do processo criativo. Transitei por uma rede de informações visuais e verbais, que se deu na interconexão com o centro da pesquisa, pela qual procurei entender como se constrói o universo fotográfico de cunho poético e as propostas experimentais de Miguel Chikaoka. Sem apoio, a pesquisa não ganha corpo, e nem seus resultados podem ser difundidos. Agradeço, portanto, à Fundação Nacional de Artes (Funarte), que através da Bolsa Estímulo à Produção Crítica viabilizou a pesquisa e a publicação deste livro; ao Mariano Klautau Filho, que contribuiu com o tema abordado e com o texto de apresentação; à Makiko Akao, que desde os anos 1980 vem auxiliando no processo de documentação da fotografia contemporânea do Pará, e que facilitou o acesso a essa documentação; ao Miguel Chikaoka, por ser quem é, pela disponibilidade e disposição em dar entrevistas, e por permitir o acesso ao seu acervo de imagens e da Kamara Kó.

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Entre o rio e o sol nascente

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Nunca fui a Beirute, no entanto, parte de mim encontra-se lá, ou melhor, atravessou continentes, rompeu com a dicotomia Oriente-Ocidente e foi se formando sem pressa, no ritmo sinuoso das canções que ouvia na infância, sem entender uma palavra sequer. Ainda permanece na memória o som do long-play, a tábua corrida que me conduzia à sala dos retratos, dos rostos desconhecidos, das roupas agora em desuso. São imagens em preto e branco, que se fixaram em um álbum cujas páginas se movimentam, ignorando o tempo, a matéria, perdendo-se no turvo esquecimento, na incapacidade de reconstituir as cenas com fidelidade. A casa dos meus avós era o refúgio dos domingos, o conto de fadas em tempo real, que incluía doces armazenados no pote, guardados na cristaleira. O cardápio do almoço era escolhido com antecedência por um dos netos. Um de cada vez, um por semana. O meu prato preferido: o shisbarak – escolhia-o não somente pelo sabor, mas pelo branco leitoso, pelos chapéus de massa recheados de carne moída, que flutuavam na caudulenta coalhada. O quase azedo e o hortelã eram os ingredientes retirados da cartola, o truque mágico definitivo, responsável pela repetida escolha. Não cansava de retornar com o pedido, assim que chegava minha vez. Neste momento não há uma ponte, nem concreta nem aparente, interligando hábitos, costumes ou culturas. Há sensações, cheiros e imagens que percorrem o córtex cerebral e se fazem presentes. Todavia, a duração da lembrança é efêmera, e não se sustenta com o decorrer da narrativa real/ficcional que se constitui com as reminiscências, com os vestígios impalpáveis que rondam o pensamento, sem conseguir se fixar ou se encaixar em uma das camadas que emergem e submergem, sem que se tenha controle ou se possa fotografar. “Para ter de onde se ir” é a frase que evoca associações inimagináveis, desprovidas de lógica, e que se alojam em meu pensamento sem pedir licença. O tempo confuso funde personagens e, para minha alegria, traz o poeta de volta, as experiências vividas na Casa da Linguagem, quando o cercávamos, na companhia de Maria Lúcia Medeiros e Marton Maués, para folhearmos juntos os cadernos repletos de imagens e frases soltas, poemas por existir; sendo. Esses momentos compartilhados fizeram surgir um texto que dediquei a Max Martins, publicado em 1998, na revista Asas da Palavra2. A epígrafe, constituída com as palavras do próprio poeta, reafirmava um conselho chinês: Ir Ter onde Isto é aconselhável diz o Velho Rei e ri 2

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Revista publicada pelo curso de Letras da Universidade da Amazônia (UNAMA).


Seguidora do Velho Rei, adoto o conselho, caminho, repouso os olhos sobre a paisagem e parto, nem que seja para depois retornar ou seguir indefinidamente à procura de algum lugar para cumprir a orientação do I Ching, e ter sempre aonde ir. Hexagramas, poesias, imagens e vida acompanham a tecelagem dos viajantes, recompondo imaginários, propondo novas narrativas para que a realidade se faça presente. De diferentes naturezas, ficção e realidade pertencem ao mesmo fio, abrigamse no mesmo bordado e seguem os movimentos das mãos que controlam o tracejar da linha, preenchem desenhos, permitem vazios e, em algum instante, podem cortar os filetes, interrompendo o contorno da cena que se configura sobre o frágil tecido. A ameaça do corte não interrompe o fluido caminhar, e as andanças, que incluem distintos personagens, prosseguem. O poeta, o fotógrafo e o narrador encontram-se mais adiante, na Cabana3 – um abrigo seguro que possui “força interior nas vigas do telhado”. Apesar de segura, a casa “não é lugar de ficar, mas de ter de onde se ir”. Estar em constante movimento, ter a possibilidade de sempre partir encontra eco nos inúmeros deslocamentos experimentados por Miguel Chikaoka que, em 1980, chega a Belém do Pará. Aproveito a orientação “de ter de onde se ir” e dou início ao encontro com o fotógrafo, provocado por um evento: III Prêmio Diário Contemporâneo de Fotografia, com curadoria de outro fotógrafo: Mariano Klautau Filho. Realizado em 2012, o evento tem Chikaoka como artista convidado, e as fotografias selecionadas para compor a exposição revelam o encontro sensível entre o curador e o fotógrafo ou entre os dois fotógrafos. O título “Para ter de onde se ir”, escolhido para a sala que recebe as imagens, interliga o curador, o fotógrafo e o poeta. As imagens expostas permitem ver Miguel Chikaoka de um ângulo diferente, evidenciando-se uma face que se encontrava guardada, comprometida com o silêncio, com a experiência na qual se destaca a poética da fotografia. Ao apresentar o fotógrafo, Klautau Filho conta-nos que ele se insere no mundo a partir de um diálogo sensorial com o outro; em que o processo, mais do que a materialização do ato fotográfico, adquire importância fundamental. Mas, chama atenção que “imbricado a isso, há um artista, um fotógrafo errante, meio como o personagem do filme O Passageiro, de Antonioni, a experimentar identidades, ou como a voz do poema A Cabana de Max Martins” (KLAUTAU FILHO, 2012, p.122). O contato com essas imagens errantes, articuladas a um universo ao mesmo tempo delicado e complexo, acionou um pensamento entrecruzado, movido por sensações e lembranças, que provocou o desejo da escrita, da pesquisa sobre Miguel Chikaoka.

3 Poema contido no livro Para ter onde ir, de Max Martins, publicado em 1992. Os textos citados entre aspas, que se encontram no mesmo parágrafo, também pertencem ao poema A Cabana.

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Por trás do desejo havia fragmentos de textos – escritos muito antes; uma vontade nascida há tempos... Talvez houvesse ainda a procedência oriental, a errância pelas cidades, a busca do pertencimento e as palavras do poeta a unir narrador e fotógrafo. Desde criança convivi com hábitos, costumes e a sonoridade da língua vinda do Líbano, mas nunca coloquei os pés no Oriente Médio. Na esperança de achar meu lado perdido, a lacuna eterna que, sem poder ser preenchida, locomove-se com os vazios, busquei a leitura de Edward W. Said, certa de que a lacuna seria amenizada, compreendida por outro viés, nas trocas acumuladas dos errantes, nos percursos e permanências permeados por permutas culturais. Ao ter contato com o pensamento de Said, referente ao Orientalismo, ao Oriente como invenção do Ocidente, tive conhecimento sobre um processo de dominação que não conhecia; encontrava-me distante. Sempre estive envolta com autores europeus e, portanto, possuía um conhecimento parcial da hegemonia ocidental, no que concerne ao Oriente. No processo de leitura, todavia, percebi os procedimentos que promoveram um “conhecimento do Oriente”, que estavam sob a égide das forças hegemônicas do Ocidente. Soube, então, que no final do século XVIII surgiram estudos na academia, exposições em museus, assim como teses antropológicas, biológicas, linguísticas e históricas que forneceram uma espécie de invenção do Oriente. Para Said (1990, p. 19), “[...] o exame imaginativo das coisas orientais estava baseado mais ou menos exclusivamente em uma consciência europeia soberana, de cuja inconteste centralidade surgiu um mundo oriental, primeiro de acordo com ideias gerais sobre quem e o que era oriental [...]”. Segundo o autor, houve também uma lógica proveniente “de desejos, repressões, investimentos e projeções”. A trama de invenções, que atribui/cria valores e significados a determinada cultura, momentaneamente ou sempre em desvantagem, pode afetar processos identitários e criar uma cadeia nebulosa de identificações. O tempo e os deslocamentos tendem a diluir os fios de pertencimento, e em seu lugar surge uma flutuação de si mesmo e do coletivo com o qual se une por diferentes traços, sejam étnicos, culturais ou ideológicos. Os traços biológicos e culturais de procedência paterna aproximaram-me do cedro do Líbano, dos rostos que conheci na sala de meus avós. No entanto, em meus inúmeros percursos fui atravessada por tantos outros traços, que estes esgarçaram e se perderam nos detalhes – frágeis em seu nascedouro –, transformando-se em uma flutuante imagem desfocada e instável. Mesmo pertencendo a Orientes distintos, histórias de vidas traçadas com outros fios, narrador e fotógrafo são atravessados pela arte, por deslocamentos e incertezas que os tornam quase nômades, em busca de outros rostos, com os quais compartilham algo em comum. Após ter concluído a graduação em Engenharia Elétrica na UNICAMP, Chikaoka segue para Nancy, na França, com o objetivo de cursar o 16


doutorado. Retorna para a sua cidade, Registro, São Paulo, em 1979. Em território francês, havia se aproximado da fotografia. Identificado muito mais com a imagem do que com as disciplinas acadêmicas, participou de fotoclube, saiu às ruas para registrar as manifestações políticas e culturais, envolveu-se definitivamente com a luz, com o processo fotográfico – percurso decisivo na sua trajetória. À fotografia aliou a decisão de conhecer o Brasil. Foi na França que percebeu que pouco conhecia do seu país e da condição de ser brasileiro. Com a experiência da Europa, concluiu que ao voltar para o Brasil deveria seguir em outra direção. Não tinha a clareza exata para onde iria. Havia somente a certeza de que não ficaria em São Paulo. O contexto constituído por múltiplos fatos, o entrelaçar do invisível acaso o conduziram a Belém: “Então eu vim pra cá mais por uma questão de oportunidade, de ir na direção em que o vento estava soprando.”4 Zéfiro, que sopra em direção do Ocidente, deixou-o mais distante de Registro, da comunidade rural e japonesa onde foi criado. Diante do que lhe estava reservado, o fotógrafo sentencia: “Eu vim de algum lugar, cheguei e tenho de fazer desse lugar onde cheguei, um lugar de onde partir”.5 A família de Miguel Chikaoka chegou do Japão no início do século passado. Trouxe junto com ela o rigor, a disciplina e o sentimento religioso, qualidades que adquiriram novo sentido, mas foram assimiladas, herdadas e transformadas no decorrer da vida do fotógrafo. Das lembranças de infância e adolescência, Miguel traz consigo as sessões de cinema vividas no cotidiano da comunidade, no barracão, onde toda a família se reunia, e junto aos compatriotas assistiam o drama e a saga dos samurais. Foram esses os seus primeiros heróis, apresentados em um projetor de 16mm. Mas, quando estava saindo de Registro para São Paulo, teve contato com uma narrativa mais complexa, que colocava em xeque o modelo de comportamento baseado em regras e disciplina. Tratava-se do filme Dodeskaden (O Caminho da Vida), de Akira Kurosawa, lançado no Brasil em 1970. O cineasta mostrava que a sociedade japonesa não produzia somente heróis, mas havia personagens que se constituíam à margem da sociedade. Chikaoka relata que esse foi o seu primeiro momento de questionamento em relação ao ponto de vista heróico, que não dava lugar a outras representações do povo do outro lado do continente6. Talvez, a partir daquele instante, as interrogações passaram a ser ininterruptas, dando início às perguntas sobre qual papel desempenhar, como buscar o seu próprio 4 Depoimento de Miguel Chikaoka, retirado de uma entrevista gravada no Museu da Universidade Federal do Pará (MUFPA), em 30 de março de 2012 (ver KLAUTAU FILHO, 2012. p. 126). 5

Idem,p.125.

6 Os dados biográficos sobre Miguel Chikaoka, contidos neste texto, advêm do depoimento concedido em 30 de março de 2012 no MUFPA, intitulado A luz da casa: uma entrevista com Miguel Chikaoka, publicada em Klautau Filho (2012).

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personagem? Ao deixar a sua cidade para cursar Engenharia na UNICAMP, não foram os livros técnicos que o acompanharam, mas aqueles que o conduziram à reflexão sobre a vida e o tempo, sobre o autoconhecimento. Sobressaía-se, agora, o ser crítico e questionador do mundo. Na França, aproximou-se de leituras relacionadas às questões sociais, como a psicologia social, quando teve contato com David Cooper e Ronald Laing, autores que propunham uma nova sociedade. O trançado Oriente-Ocidente não cessou. Os fios do autoconhecimento entrelaçaram-se ao discurso de autores ocidentais, tecendo o seu inquieto percurso. Cercado de inquietudes, ao chegar a Belém encontra um terreno fértil para continuar as suas buscas e satisfazer, em parte, o seu desejo de conhecer o país ao qual pertencia. Como a identidade social não diz respeito somente aos indivíduos, mas a todo o grupo, procurou os seus pares. Percebeu que “a identidade social é ao mesmo tempo inclusão e exclusão: ela identifica o grupo [...] e o distingue de outros grupos [...]” (CUCHE, 2002, p. 177). Identificado com o grupo Ajir e com o grupo que levava em frente o jornal Resistência, desde a sua chegada aliou o experimentalismo à postura política. A arte e as questões sociais formaram um tecido em que o individual imbricava-se ao coletivo. Jovem, deixou-se invadir pelo mundo. Participativo, integrou-se à cidade que acabara de conhecer – estava ali o seu universo não limitado por fronteiras, o rio no qual poderia navegar, mesmo que as águas nem sempre fossem tranquilas. O contato com o grupo Ajir foi o abrigo que não fornecia segurança, mas possibilidades de vislumbrar percursos por onde flutuar ou pousar os pés, e caminhar. O Ajir misturava processos educativos com ações artísticas, pois muitos atuavam com fotografia, faziam performances, assumiam papéis imaginários contracenando com o Teatro da Paz e interpretando personagens da noite, como os “Fantasmas”, que caminhavam entre o Bar do Parque e o prédio de arquitetura neoclássica, construído no período da borracha pelo engenheiro militar José Tiburcio de Magalhães, em projeto inspirado no Teatro Scalla de Milão. Os sonhos megalômanos de um período de grandes riquezas já não tinham vez nos anos 1980. Todavia, predominavam, naquele momento, naquele lugar, as heranças das ações irreverentes provenientes das décadas de 1960-1970. O Ajir trazia uma poética não acomodada, que tangenciava o lirismo. Antecipando as intervenções urbanas7 em Belém, o grupo grafitava nas paredes da cidade frases de um nonsense poético, como “na lata de sardinha penso em pássaros”8. O pensamento solto e criativo era o eixo que determinava as ações, direcionava as propostas críticas e poéticas que identificavam o grupo. 7

Ações artísticas que acontecem na cidade, e que no Brasil tiveram início nos anos 1970. O grafite é uma dessas ações.

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Informação proveniente da entrevista de Miguel Chikaoka, concedida à autora em 12 de setembro de 2013.

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O encontro de Miguel Chikaoka com o Ajir se deu de forma espontânea, por acaso, quando foi fotografar a cena cultural da cidade e deparou-se com um dos eventos do grupo, fruto do projeto Arte na Praça. As conversas e trocas de afetos geraram o convite de Jeanne Marie, uma das integrantes do grupo, para ministrar uma oficina. Lá se foi o fotógrafo cumprir os desígnios do poeta. Mais uma vez, encontrara um lugar para onde ir, por isso seguiu rumo à Rua Rui Barbosa, ao prédio que abrigava ideias e sonhos. O vôo foi alçado: tal qual uma figura de Marc Chagall, pairou sobre a cidade, plainou até sentir o chão e ali colocou os seus pés, entre tantos outros desconhecidos. Assim nasceu o Fotovaral – as imagens penduradas serpenteavam a praça, mostrando o olhar anônimo sobre coisas, pessoas e lugares que habitavam imaginários e estavam ao redor. A proposta do Fotovaral prescindia de galerias; permitia um compartilhar aberto, sem intermediações de portas ou paredes. Nicolas Borriaud considera que a arte é lugar de sociabilidade, representa um interstício social, espaço de relações humanas que viabilizam as trocas além das vigentes no sistema em que nos situamos. Para Bourriaud: A possibilidade de uma arte relacional (uma arte que toma como horizonte teórico a esfera das interações humanas e seu contexto social mais do que afirmação de um espaço simbólico autônomo e privado) atesta uma inversão radical dos objetivos estéticos, culturais e políticos postulados pela arte moderna (BOURRIAUD, 2009, p.19-20).

Os objetivos estéticos, culturais e políticos assumidos por Chikaoka não incluem a originalidade, a assinatura que estabelece a propriedade da obra. O artista parte, desde então, para um trabalho em que se evidenciam as interações humanas, o contexto em que o processo criativo ocorre, colocando em xeque a autoria. “Processo” é a palavra-chave. Mais do que a obra pronta, acabada, o que lhe interessa é o processo, a inserção de ideias, que promove as trocas de afetos, de conhecimento e de percepção. Esta atitude plural implica adotar a interseção de culturas. O autoconhecimento oriental e o vagar perceptivo que apreende, sem pressa, as coisas do mundo, conjugam-se à objetividade, à prática conceitual que exige definições e auxílios matemáticos e físicos para compreender os fenômenos. O Fotovaral e a máquina artesanal9 são duas práticas provenientes do início dos anos 1980, que se tornaram inseparáveis da trajetória de Miguel Chikaoka. Tratam-se, 9 Este tipo de equipamento tem custo baixíssimo e costuma receber o nome de pinhole. Pode ser confeccionado com caixas de papelão, latas ou qualquer recipiente que possa servir de câmera escura. A entrada de luz é conseguida com um pequeno furo que, quanto menor, proporciona melhor nitidez à imagem.

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na verdade, não apenas de ações que desembocam em eventos, mas de uma atitude perante o mundo, que envolve o autoconhecimento, o uso da física e postura política. De acordo com Chikaoka, “temos que fazer coisas que tenham sentido para além daquilo que é o objetivo primeiro. É uma busca de transcendência, [...]”10. A dedicação ao pinhole é a dedicação ao princípio da luz; é entendê-la como elemento primordial para a formação da imagem, para a realização da fotografia. Desta forma, considera que no pinhole: [...] existe um território, um manancial incrível de possibilidade de abordagem de qualquer termo, de qualquer disciplina, de qualquer área do conhecimento, exatamente porque é a luz. A luz que está aí é poderosa, representa também um campo simbólico. Tem gente comprando e pagando pela luz, para ter mais luz. O meu desafio agora é não pensar a fotografia como termo prático ou aplicado. Estou propondo o antes disso e o pós isso.11

A preocupação do fotógrafo não se concentra na máquina, no artefato, mas na luz, elemento essencial que possibilita a visão, permite ver, em seus diferentes sentidos, podendo remeter à claridade, à clareza dos caminhos. Andar e ter aonde ir pode conduzir ao cruzamento de tempos, levar ao preceito dos samurais, que alerta: “certa vez, disseram a um dos jovens senhores que ‘agora’ significa ‘aquele momento’ e ‘aquele momento’ significa ‘agora’”. Avisa, ainda, que “é prejudicial pensar nesses dois conceitos como coisas distintas” (YAMAMOTO, 2004, p. 95-96). O narrador controla, em parte, a sucessão dos fatos, o fluxo que antecede ou atualiza a história, priorizando o que surge, fazendo desaparecer o que não mais deseja em cena. Tudo depende da sua vontade. O retroceder ou avançar segue a lógica de Ariadne, que dispõe do novelo, reservando aos labirintos a condução dos fios. Aquele momento e o agora traspassam as margens do rio, chegam do outro lado sem o esforço natural da travessia. Guiado pela luz, o fotógrafo retoma de rio em rio a embarcação imaginária, construída antes de nascer. No longínquo sol nascente, ganhou do Velho Rei a cartografia por onde navegar. A bússola que o guiou desde 1950 e o fez navegante, levou-o até as folhas que encobriam a terra, tornando ainda mais forte os laços com o Oriente, a história familiar vinda do interior de São Paulo, e alcançou novos episódios no Norte do país.

10 Entrevista de Miguel Chikaoka já mencionada, que ocorreu no MUFPA – A Luz Da Casa: uma entrevista com Miguel Chikaoka. (KAUTAU FILHO, 2012, p.128)

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Idem, p.135


Este vaivém narrativo que a vida faz e desfaz, reaviva a imagem perdida, o sentimento que nunca deixou de existir. Não é por acaso que em 2003 Miguel Chikaoka cria Hagakure, um trabalho ímpar, que sintetiza a filosofia da luz, adotada na prática da fotografia e tecida com elementos identitários.

Hagakure, 2003. Objeto de Miguel Chikaoka.

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Oculto entre folhas é o significado de Hagakure12, o livro do Samurai, escrito por Yamamoto Tsunetomo, no século XVIII. Lido e relido, na busca do autoconhecimento e da postura de equilíbrio diante do mundo, Chikaoka toma o título emprestado para a sua obra, e propõe o amálgama de arte e vida, criando um objeto que contém os negativos fotográficos dos seus próprios olhos perfurados pelos espinhos do tucumã. Um jogo de experiências se faz presente, e uma identidade se sobressai entre as outras. Dela emergem os vestígios da história do homem e da máquina, que coadunam a passagem do tempo. O recurso analógico persiste na câmara artesanal, na foto tirada pelo outro: Alberto Bitar13, o fotógrafo, o amigo, o ex-aluno, que não impede que o mestre, simbolicamente, cegue os próprios olhos para que possa ver melhor. Atento ao que está diante de si, Chikaoka percebe o que está além. Viajante da luz, ele reconhece não as dicotomias entre Ocidente e Oriente, mas o compartilhar de culturas. Há anos mergulha nos rios barrentos, segue as trilhas das matas, nas quais é capaz de recolher os espinhos e perfurar a câmara artesanal para que a imagem surja e se faça presente nos infinitos varais armados nas ruas impregnadas de histórias. Paulista, cidadão de Belém. Quem é o fotógrafo que aqui chegou na incerteza, e sem saber para onde ir? Em qual lado da rua colocou os pés? Em qual margem do rio aportou, deixando-se ficar? O corpo do fotógrafo caminha, levando consigo o novelo. Prevalece o silêncio, o tempo expandido que se assemelha ao do caboclo, cujo olhar se perde no horizonte. Chikaoka conhece a Amazônia mais que muitos amazônidas, encontra-se atravessado pelo rio e permanece próximo ao sol nascente. Nada é definitivo, nem exatamente definido para que se possa fincar a bandeira e ter a clareza da cor. Enquanto o sol paira sobre o tecido branco, a estrela azul repousa entre triângulos, apenas o vermelho une o distante. Ir Ter onde Isto é aconselhável diz o Velho Rei e ri O Velho Rei novamente se faz ouvir. Para compreender a palavra do poeta é necessário seguir, ir, ter um lugar de onde partir, chegar ou retornar. Entre o rio e o sol nascente, Miguel Chikaoka preferiu a luz, que permite ver além do que está ao alcance dos olhos. 12 Em relação ao significado de Hagakure, Miguel Chikaoka esclarece, na estrutura da palavra: ha = folhas; e kure = escondido. Pode-se ler também: “oculto nas folhas”, “oculto pelas folhas” ou “na sombra das folhas”. 13 Alberto Bitar fotografou os olhos de Miguel Chikaoka para a obra Hagakure. Ele participa ativamente do FotoAtiva; estudou com Chikaoka e alcançou reconhecimento nacional. Integrou a Bienal de São Paulo de 2012, como convidado,

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Processos ressonantes

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O Tecer de galerias e sal천es


Para Miguel Chikaoka, a década de 1980 foi o começo de algo que já se manifestara na década anterior, como as proposições libertárias, o aflorar dos sentidos e o comprometimento com as questões sociais, que constituíram o princípio ético e estético, de natureza conceitual e comportamental, que torna mais claro o fio condutor da sua trajetória. Experimentar e seguir em frente, abraçar as palavras do poeta e adotar o conselho do Velho Rei reforçou a decisão de colocar-se diante do mundo, em uma entrega atravessada pelo aguçar da percepção, pelo desdobrar de descobertas e compartilhamentos. Havia o frescor de uma juventude e, mais que isso, configurava-se a confiança e a crença em atuar no mundo, mesmo que fosse inserido em um campo de incertezas. Pensamentos, ações e comprometimentos, com ou sem consciência, reverberavam em atitudes de cunho coletivo e demostravam ousadia. Nos ambientes pelos quais transitava ou dentro de si mesmo, existia algo propício ao um entremear de racionalismo e irracionalismo, que reconhecia em cada situação vivida “[...] a ambivalência que a compõe: a sombra e a luz entremeadas, assim como o corpo e o espírito, interpenetram-se numa organicidade fecunda” (MAFFESOLI,1998, p. 19). A sombra e a luz estariam presentes em uma forma de vida intensa, constituída por entradas e saídas, conectadas umas às outras, movimentando-se em fluxos contínuos. No princípio da fotografia e dos processos educacionais que iria adotar, também estavam presentes a luz e o seu quase contrário: a sombra. Chikaoka encontra em Belém um contexto efervescente, que se interligava ao contexto do país, no qual prevalecia o comprometimento com os acontecimentos políticos, com o caminho rumo às “Diretas Já”, com a possibilidade de construção de uma sociedade mais livre dos atos ditatoriais e da repressão. Paralelo à cena política, encontrava-se um processo cultural que emergia a partir de uma rede de acontecimentos e procedimentos que se entrelaçavam e forneciam diferentes segmentos para a arte e para a fotografia, entre outras manifestações culturais. No que concerne às atitudes provocadoras e de atravessamento de linguagens, pode-se perceber que Chikaoka, ainda na França, experimentava a constituição de um trabalho interceptado pela postura política, pela ação performática, pela fotomontagem, como é o caso do autorretrato produzido em 1978, para integrar a sua primeira mostra individual, “Temoignage en vrac”, realizada em 1979, na sede da Union Nationale des Étudiants de France (UNEF), em Nancy. Um ano depois, em 1980, esta mesma exposição foi montada em Belém, com o título “Subterrâneos do Paraíso”, no Salão Esmeralda do Novotel.

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O anúncio da exposição Temoignage en Vrac, realizada em 1979, sobre as fotos produzidas na França.

A ação performática na qual o artista sobrepõe o seu corpo nu, em pequena proporção, sobre a mesma imagem em escala maior, é de uma solução estética simples, mas de sentido ambíguo, pois, ao mesmo tempo em que o corpo despido apresentase em uma postura frontal, com os braços e pernas abertas, remetendo-nos a uma atitude livre, pode-se também pensar que o corpo foi ou vai ser submetido a uma sessão de tortura. O contexto expositivo e a articulação com as outras fotografias podem traduzir melhor o sentido, mas pode-se considerar que se trata de uma imagem experimental, associada a um processo perpassado pela política, pela arte, e pelo espírito libertário e questionador de Chikaoka. As experimentações de caráter performático também estavam aliadas à criação de uma espécie de personagem que o acompanhava em alguns momentos compartilhados com a fotografia. Na França, em 1978, Miguel Chikaoka pintou o rosto, vestiu-se de clown e saiu fotografando pelas ruas durante o Festival Mundial de Teatro de Nancy. O ato se repetiria com o grupo Ajir, no início dos anos 1980, mas, como se pôde perceber, as suas inserções performáticas antecedem as ações realizadas em Belém. O que fica evidente é o clima favorável ao encontro entre pessoas que 28


Autorretrato de Miguel Chikaoka, produzido em 1978. Performance/ fotomontagem.

Miguel Chikaoka, em 1978. Personagem criado para sair às ruas fotografando o Festival Mundial de Teatro de Nancy, na França.

Personagem e rosto pintado em função do Projeto Arte na Praça, em 1981. Como afirma Miguel Chikaoka, “no embalo das performances do Grupo Ajir”1, ao qual se integrava e entregava como fotógrafo.

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comungavam atitudes, pensamentos e estavam imbuídas de um processo coletivo orientado para ações experimentais. Ao vir para Belém, na década de 1980, como já mencionado, Chikaoka encontrou uma cena cultural propícia ao encontro dos seus sonhos e anseios. Era um período em que começava a se configurar um espaço favorável ao surgimento de uma arte mais sintonizada com as questões contemporâneas, apesar de que na década anterior já ser perceptível alguns indícios de um cenário artístico que ensaiava uma postura mais afinada com a contemporaneidade, desejosa de se libertar de um modernismo tardio. Mas foi nos anos 1980 que os valores e princípios artísticos ficaram mais próximos do que acontecia no mundo, colocando-se em um campo paralelo ao que vigorava na trajetória da arte, em termos nacionais e internacionais. Todavia, naquele cenário, em Belém, a fotografia e as artes plásticas ainda eram vistas de forma dicotômica, como áreas bem separadas, que funcionavam como territórios apartados, mesmo que algumas vezes houvesse uma convivência e participassem de eventos comuns. Por esta razão, em geral, as narrativas sobre o que ocorreu nos anos 1980 apresentam também uma dicotomia, pois são contadas separadamente, o que pode causar a sensação de que se trata de duas histórias que se constituíram independentes, em tempos desiguais, sem se entrecruzarem. Porém, muitos ambientes foram os mesmos e alguns incentivos que auxiliaram em seus desdobramentos tiveram a mesma fonte: a FUNARTE. Vale ressaltar, no entanto, que em um aspecto os dois segmentos tiveram caminhos distintos. Enquanto os artistas plásticos encontraram mais dificuldades de se manter coesos, no que concerne às propostas culturais conjuntas, os fotógrafos se pautaram por ações e decisões coletivas, e estiveram aglutinados em torno de eventos fotográficos nos quais sobressaíam os posicionamentos em grupo. Apesar das suas diferenças internas, os fotógrafos foram capazes de organizar ações com aderência de um número significativo de participantes, assim como de formular pensamentos que os fortaleceram enquanto categoria e os auxiliaram tanto nas questões estéticas quanto nas discussões específicas sobre a imagem. Eles conseguiram traçar uma trajetória contínua, na qual prevaleceram os posicionamentos coletivos. No caso dos artistas plásticos, as tentativas coletivas existiram, mas foram parcialmente bem sucedidas. No final dos anos 1970 e começo dos 1980, um grupo de jovens artistas tentou se agrupar criando A Casa dos Artistas, e, em seguida, a Cooperativa dos Artistas Plásticos Paraenses (COART). Entre eles encontrava-se Geraldo Teixeira, que mais tarde viria a ser o primeiro presidente da Associação dos Artistas Plásticos do Pará (APPA), criada em 1990. Ainda naquela época, existia a Galeria Um, que inicialmente teve como proprietários Osmar Pinheiro Júnior e José 30


Augusto Toscano Simões14. Para Osmar Pinheiro, a Galeria UM foi criada com a intenção de “ser um ponto de referência da produção de arte no Pará e, é claro, um experimento no meio da arte capaz de produzir pauta na vida da cidade”15. Essas tentativas de união dos artistas, de definir pautas, trabalhar em conjunto e fortalecer um circuito que pudesse difundir a arte e criar um possível mercado, mostrouse frágil. O gerenciamento ou a organização de ações conjuntas não conseguiu se manter por muito tempo, nem formar um fluxo contínuo gerenciado pelos próprios artistas. Neste sentido, os fotógrafos mostraram-se mais coesos, estruturaram-se coletivamente e souberam aproveitar as oportunidades para formar uma rede de ideias e práticas compartilhadas por outros fotógrafos e críticos; foram parceiros de importantes instituições que os ajudaram a difundir e discutir os seus trabalhos; e se inseriram no cenário político e cultural, tanto individual quanto coletivamente. Nos dois primeiros anos da década de 1980, outros acontecimentos apontaram para mudanças no cenário das artes: em 1981 surgiu a Galeria Elf, de propriedade de Gileno Müller Chaves, criada em uma casa residencial adaptada às condições específicas para exercer essa função. Este galerista foi um dos primeiros agentes culturais que procuraram incluir os artistas no circuito nacional de arte e investir em jovens que ainda não tinham os seus trabalhos reconhecidos. Müller procurou ainda promover uma aproximação com a arte que era realizada fora da cidade, e trouxe para Belém obras de artistas já legitimados pelo circuito nacional da arte. A primeira exposição da Galeria Elf foi composta exclusivamente por gravuras, e contava com artistas já consagrados, como: Alfredo Volpi, Maria Bonomi, Aldemir Martins, Renina Katz e o paraense Valdir Sarubbi. Apesar da predominância de pintura e gravura, os fotógrafos também expuseram em sua galeria. No mesmo ano em que surgiu a galeria de Müller Chaves, foi criada a Galeria Debret, que pertencia ao artista plástico Mário Pinto Guimarães, e funcionava como um local de encontro entre artistas, mas não possuía a mobilidade da Elf, nem a articulação artística impulsionada por Gileno Chaves. Ambas as galerias funcionam até hoje. Contudo, como os referidos galeristas já faleceram, quem coordena as galerias são os seus familiares. No caso da Debret, a irmã de Pinto Guimarães; e no caso da Elf, a esposa e os dois filhos de Gileno Müller Chaves. Entre as iniciativas locais para o fomento e divulgação das artes visuais, em suas múltiplas expressões, destaca-se o Salão Arte Pará, criado em 1982, integrando a cena artística que se iniciava em Belém. Em 2013, mais de 30 anos após a sua criação,

14 Osmar Pinheiro Júnior coordenou a pesquisa da Funarte. Ainda nos anos 1980, mudou-se para São Paulo. José Augusto Simões foi premiado no Arte Pará e no Salão de Pequenos Formatos. 15

Este depoimento integra a entrevista que Osmar Pinheiro Junior concedeu via e-mail à autora, em 8 de agosto de 2004.

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ainda se mantém como um dos eventos mais importantes da Região Norte, despertando o interesse de artistas não somente locais, mas de outras cidades brasileiras. Paulo Herkenhoff atua como curador do Arte Pará desde 1987, não de forma contínua, mas em intervalos de tempo. No ano da primeira edição do Salão Arte Pará, o júri foi formado pelo próprio Herkenhoff, Luiz Baravelli e Glauco Pinto de Moraes. Na categoria fotografia foi premiado o paraense Octávio Cardoso, e no ano seguinte, quem recebeu a premiação foi Luiz Braga. Em 2003, Miguel Chikaoka obteve o segundo prêmio, com Hagakure; Eduardo Kalif recebeu o primeiro prêmio com Bonequinhas de Cheiro. Dois anos depois, em 2005, não haveria mais a divisão de prêmios entre as duas categorias: artes plásticas e fotografia. Em 2006, Paulo Herkenhoff buscou imprimir um novo perfil ao evento, ampliando-o para além dos espaços institucionais, ocupando a cidade, principalmente em uma área considerada representativa da cultura paraense: o Ver-o-Peso. Outros salões e galerias foram criados nas décadas seguintes. Em 1992, a Associação dos Artistas Plásticos do Pará, em parceria com o Governo do Estado, promove o Salão Paraense de Arte Contemporânea (SPAC), que teve apenas três edições, apesar da grande repercussão junto ao meio artístico. Na primeira edição deste evento, Rosangela Rennó foi premiada; e outros artistas paraenses ganharam visibilidade, entre eles Armando Queiroz. Destaca-se, ainda, o coletivo Caixa de Pandora, criado em 1992, e constituído por Cláudia Leão, Flavya Mutran, Mariano Klautau Filho e Orlando Maneschy, que já trabalhavam com a fotografia classificada como expandida16 ou construída. Ao referir-se ao SPAC, Jorge Eiró, artista visual, pesquisador e um dos organizadores do evento, afirma que esse Salão foi um divisor de águas, pois a “fotografia construída, que na época ganhou um destaque especial, aponta pra isso. Com a Caixa de Pandora, viveram-se momentos singulares que pontuaram aquele Salão”17. Em meio à variedade de manifestações, o grupo Caixa de Pandora trouxe uma poética própria, proveniente de um tipo de experimentação que discute os espaços limítrofes da arte. Centrados na questão da imagem fotográfica, repensam-na no campo das artes visuais, o que significa pensá-la, ao mesmo tempo, enquanto mídia contemporânea, que não estabelece um divisor preciso entre as artes plásticas e a fotografia.

16 Com relação a esse termo, Rubens Fernandes Júnior afirma: “Denomino essa produção contemporânea mais arrojada, livre das amarras da fotografia convencional, de fotografia expandida, onde a ênfase está na importância do processo de criação e nos procedimentos utilizados pelo artista, [...]”. A afirmativa encontra-se no artigo Processo de Criação na Fotografia: apontamentos para o entendimento dos vetores e das variáveis da produção fotográfica (FERNANDES JÚNIOR, 2007, p. 45). 17 Jorge Eiró concedeu este depoimento para a autora em 5 de maio de 2004.

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Os quatro integrantes do grupo sobressaíam-se pelas experimentações, pela maneira inquieta e questionadora de se relacionar com a fotografia. Havia ali um fio matricial que passava por Miguel Chikaoka, com quem mantiveram contato, discutiram suas ideias e puderam formular um pensamento menos técnico e mais conceitual sobre o processo fotográfico. A formação dos quatros artistas perpassou pela FotoAtiva. Rubens Fernandes Júnior (2002, p. 33) considera que “[...] Chikaoka foi o agente detonador de um processo espiralado incontido, que provocou o aparecimento de algumas novas gerações de fotógrafos, com gosto tanto pela fotografia convencional quanto pela pesquisa e pela experimentação”. Mais adiante, o autor continua o comentário sobre a ressonância da FotoAtiva quanto à formação dos fotógrafos no Pará, lembrando o surgimento do grupo Caixa de Pandora e do Grupo Aluzinados18. Como pôde ser constatado, o SPAC contribuiu para que naquele momento uma nova geração tivesse visibilidade, como o caso do Caixa de Pandora; tornou possível também que várias mídias fossem apresentadas, como as vídeoinstalações, que até então não eram comuns na cidade, e apontou para outras vertentes, além das usuais que predominaram nos anos 1980. Em pouco tempo, somente por três anos, o SPAC conseguiu promover uma mobilidade que forneceu um novo cenário das artes visuais em Belém. Os outros dois salões que nasceram nos anos 1990, e ainda estão em funcionamento, são: Primeiros Passos e Pequenos Formatos, ambos provenientes de instituições educacionais: o primeiro foi lançado em 1992, sob a coordenação de Gileno Müller Chaves, promovido pelo Centro Cultural Brasil Estados Unidos (CBEU), que dispõe de uma galeria e um museu. Em 1995, este Centro promoveu o I Salão de Fotografias do CCBEU. O segundo foi criado em 1995, promovido pela Universidade da Amazônia (UNAMA), através da sua Galeria de Arte Graça Landeira, que surgiu dois anos antes, em 1993. Tanto a galeria quanto o Salão da UNAMA são coordenados pelo artista visual Emanuel Franco. A maioria das galerias ou salas expositivas que constituem o circuito artístico de Belém pertence aos museus do estado e do município. Durante décadas, muitas galerias privadas apareceram e logo desapareceram, principalmente, devido à falta de mercado. Em 2011, no entanto, surge uma galeria especializada em fotografia, a Kamara Kó Galeria, de propriedade de Makiko Akao. A galerista, que foi casada com Miguel Chikaoka, desde os anos 1980 vem participando das ações culturais na cidade. Talvez essa experiência junto aos artistas e ao circuito artístico tenham lhe permitido perceber que o campo da fotografia também se insere em um espaço mais aberto a experimentações. A convivência desde cedo com o contexto cultural 18 O grupo também procede da Fotoativa. O fotoclube Aluzinado foi fundado em 1994/1995, após seus integrantes participarem da oficina coordenada por Miguel Chikaoka. Entre os participantes estavam: Paulo Almeida, Danilo Bracchi, Fátima Silva, Lila Bermerguy e Sinval Garcia.

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e artístico, e o contato com a cena instável da arte, criaram as condições propícias para ela enfrentar as dificuldades e procurar inserir os integrantes da galeria em um mercado mais amplo, no circuito nacional. Em 2013, a SP-Arte/Foto contou, pela primeira vez, com a participação de uma galeria do Norte do país, a Kamara Kó. É importante perceber que a Kamara Kó Galeria encontra-se interligada à agência fotográfica de mesmo nome, criada em 1991, e da qual Miguel Chikaoka foi um dos fundadores. Entre os seus sócios, estavam: Ana Catarina Brito, Patrick Pardini e Octávio Cardoso. Kamara Kó é uma palavra de origem Tupi, que significa “amigos verdadeiros”. Fazendo jus ao nome, a agência tem como princípio o compartilhamento de ideias, processos educacionais, projetos e afetos. Trata-se de um coletivo de fotógrafos que trabalha com conteúdos transversais, na intenção de dialogar com diferentes áreas do conhecimento. Há um espaço de convivência no qual predomina o interesse pela imagem, mais do que o processo de comercialização dos trabalhos, pela discussão e reflexão que encontra um lugar fértil entre aqueles que estão familiarizados com a luz, propondo a poética fotográfica.

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Funarte: trajetos visuais e travessias fotogrĂĄďŹ cas


Nas décadas de 1980 e 1990, a Fundação Nacional de Artes (Funarte) fomentou uma política de difusão das artes plásticas e da fotografia, manifestadas nas diferentes regiões brasileiras, visando criar canais de comunicação que não privilegiassem somente o sudeste do país. Nas ações propostas pela Funarte, pode-se perceber a intenção de quebrar o isolamento em que se encontravam os processos culturais constituídos de forma compartimentada. Por isso, buscava-se inserir os intelectuais, artistas e fotógrafos da Amazônia no circuito nacional de arte. No momento em que essas propostas associavam pesquisa, exposição, seminário e publicação, foi possível observar que existia também o desejo de proporcionar alicerces para que a arte da região pudesse se firmar e se difundir em todo o território nacional. A pesquisa promovida pelo Instituto Nacional de Artes Plásticas (INAP), da Funarte, estava associada ao Projeto Visualidade Brasileira, que visava estudar as “manifestações culturais do Brasil, tradicionalmente não tratadas como arte”, conforme Herkenhoff (1985, p. 4). No entanto, não se pode perder de vista que a Funarte foi criada em 1975, em pleno governo do general Ernesto Geisel (1974/1978), quando Ney Braga era Ministro de Educação e Cultura, e havia sido lançada a Política Nacional de Cultura (PNC). O historiador Alexandre Barbalho considera que “a razão do maior investimento na cultura a partir de 1975 está também no desgaste político da ditadura. O regime não pode manter-se no poder apenas com o apoio da força. Torna-se necessário alcançar algum tipo de hegemonia” (BARBALHO, 1998, p. 91). Então, essas iniciativas culturais poderiam significar estratégias de aproximação com a sociedade civil. Em 1984, quando foi realizado o 1º Seminário sobre as Artes Visuais na Amazônia, em Manaus (AM) – ou mesmo um pouco antes, quando Osmar Pinheiro elaborou o projeto As Fontes do Olhar, o Brasil passava por um processo de abertura política, marcado pela campanha pelas Diretas Já e pela promulgação da Lei de Anistia. Portanto, o momento histórico era outro, diferente dos anos 1970. Mas, de qualquer forma, ainda havia os resquícios estratégicos de manter o controle da situação nacional, substituindo a coerção militar pela força cultural, ao trabalhar a identidade nacional e valorizar a cultura popular. O projeto do INAP/Funarte pretendia abarcar todas as regiões brasileiras, promovendo um intercâmbio cultural, numa tentativa de interligar as regiões. Devido a esses procedimentos, naquele processo históricopolítico, pode-se notar as razões que levaram a Funarte a privilegiar a “arte popular” ou a “arte indígena” realizada por artistas identificados com a “arte erudita”. O fato é que o projeto do INAP, assim como outros projetos propostos pelo governo federal, não conseguiu seguir adiante, nem atender a outras regiões brasileiras, tampouco concretizar a integração planejada. Paulo Herkenhoff foi quem promoveu o 1º Seminário sobre as Artes Visuais na 37


Amazônia, antes de ser curador do Arte Pará, quando ainda era diretor do INAP. Esse evento aconteceu paralelamente ao 7º Salão Nacional de Artes Plásticas, que teve o apoio do Governo do Estado do Amazonas, do Governo do Estado do Pará e da Prefeitura Municipal de Belém. Como produto do seminário, em 1985 foi publicado o livro As artes visuais na Amazônia: reflexões sobre uma visualidade regional, organizado por Herkenhoff, em coedição da Funarte e Secretaria Municipal de Educação e Cultura de Belém (SEMEC). Na verdade, trata-se do primeiro volume de uma coleção denominada Contrastes e Confrontos, que pretendia criar um canal de debate das produções realizadas nas várias regiões brasileiras. Vale registrar que quando teve início o processo relacionado à visualidade amazônica, Herkenhoff ainda não estava à frente do INAP, e quem dirigia a instituição era Paulo Sérgio Duarte. Em 1982, antes da realização do referido Simpósio, Osmar Pinheiro elaborou e coordenou para a Funarte-INAP o já mencionado projeto Fontes do Olhar, que teve a participação do fotógrafo Luiz Braga. O título advém de um artigo de João de Jesus Paes Loureiro, que também foi convidado a participar desse projeto sobre a visualidade Amazônica, cujo objetivo era “mapear a produção da cultura material na Amazônia e tentar entender o contexto de um ponto de vista que escapasse das chaves da antropologia e do culturalismo” 19. Para isso, Osmar Pinheiro tenta estabelecer um olhar mais abrangente, não se restringindo apenas aos artistas visuais, mas dando voz também a poetas e escritores. Como resultado, constitui “um arquivo de 3000 imagens, fruto de viagens à região, na companhia do olho mais que atento do Luiz Braga” 20. A pesquisa elaborada por Pinheiro não ficou limitada ao Pará, estendendose para Manaus e São Luís, sendo esta última cidade considerada como a fronteira cultural da visualidade Amazônica. O tecer cultural proposto pela Funarte revela uma ação que se dava no bojo de um pensamento que envolvia não apenas o INAP, mas também o Instituto Nacional de Fotografia (INFoto)21. Os primeiros anos de Miguel Chikaoka em Belém coincidem com essa atuação realizada em duas frentes. E Chikaoka compartilhou essas ações num processo coletivo de formação de um cenário pulsante da fotografia em Belém. Ao fazer uma reflexão sobre os acontecimentos políticos e culturais de caráter nacional ocorridos nos anos 1980 e 1990, contrapondo-se ao autoritarismo que marcou os anos 1970, Fernandes Júnior chega à conclusão que:

19 Depoimento de Osmar Pinheiro, em entrevista à autora, em 8 de agosto de 2004. 20

Idem.

21 A atuação da Funarte no campo da fotografia teve início em 1979, com a criação do Núcleo de Fotografia, proposto por Zeka Araújo. Ao assumir a coordenação do Núcleo em 1982, Pedro Vasquez iniciou imediatamente o processo para transformá-lo no Instituto Nacional de Fotografia, o que se concretizou em 1984.

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Para a fotografia, o grande farol que nos guiou nesse período foi a criação do Núcleo de Fotografia [...], embrião do Instituto Nacional de Fotografia – INFOTO. Essa experiência foi a maior responsável por buscar informações, mapear e catalogar acervos históricos de fotografia brasileira, agregar profissionais, organizar encontros regionais, promover a troca efetiva de informações e tecnologias, resgatar fotógrafos e acervos esquecidos e/ou desconhecidos, enfim criar uma política cultural para a fotografia brasileira (FERNANDES JÚNIOR, 2002, p. 19).

Dando prosseguimento ao seu pensamento, Fernandes Júnior considera que o ápice desses acontecimentos estava representado pelas Semanas Nacionais de Fotografia – e foram justamente essas Semanas que possibilitaram ao movimento fotográfico de Belém ultrapassar as fronteiras locais, ganhando o reconhecimento nacional. A ebulição no campo da fotografia, provocada pela Funarte, teve ressonância no Pará, e isto ocorre porque havia um contexto local que estava em sintonia, e propício às propostas da Funarte. Havia um interesse comum, advindo de uma inquietação latente, de um pensamento questionador que estava presente nas organizações que surgiam em várias frentes: Fotoficina, FotoPará, Associação de Repórter Fotográficos e FotoAtiva. Para Fernandes Júnior, “[...] essas embrionárias organizações foram responsáveis diretas pela explosão de uma política cultural fotográfica, criativa e independente, que serviu de modelo para outros estados brasileiros” (Ibid., p.19). Em 1982, quando a Funarte promovia o projeto Fontes do Olhar, no mesmo período estavam acontecendo reuniões e debates entre os fotógrafos paraenses, que geraram a I Mostra Paraense de Fotografia – I FotoPará. Nessa mesma época já existia a Fotoficina, que se manteve até 1983, sob a coordenação de Miguel Chikaoka, e reunia fotógrafos que trocavam experiências, discutiam os processos fotográficos, além da realização das próprias oficinas. A partir dessas experiências, na passagem de 1983 para 1984, nasce a FotoAtiva. A “Fotoativa – Iniciação para crianças e adultos”, oficina ministrada por Chikaoka em 1983, em seu atelier-laboratório, foi o embrião do Projeto do Núcleo de Oficinas Permanentes do grupo Fotoficina. No que concerne a essa oficina, que contribuiu para a criação da FotoAtiva, Chikaoka esclarece que, no período em questão, a coexistência dos projetos Fotoficina, FotoPará e FotoAtiva gerou certa confusão: O projeto FotoPará - Mostra Paraense de Fotografias foi idealizado e realizado anualmente, de 1982 a 1984, pelo grupo Fotoficina. Durante o período da exposição, foram realizados 39


Foto realizada em 1983, no atelier-laboratório de Miguel Chikaoka, situado temporariamente à rua Aristides Lobo, nº 1280, onde ministrou a oficina “Fotoativa – Iniciação para crianças e adultos”.

encontros e debates temáticos entre os participantes e aberto ao público. Fruto desse processo surgiu uma articulação em prol da criação do Grupo FotoPará, fundado em 1985. Os principais atores desse processo eram os que faziam o Fotoficina, aos quais se juntaram outras pessoas, participantes das Mostras ou não. Nesse mesmo período foi elaborado, ainda pelo Fotoficina, o Projeto Fotoativa - Núcleo de Oficinas. Entretanto, para captar patrocínio, apoio junto à Funarte, era necessária uma representação jurídica. Como o Fotoficina, apesar de ter realizado ações e projetos, não existia juridicamente e o processo de criação/organização do grupo Fotopará estava na sua fase inicial, o projeto Fotoativa foi encaminhado pela Fadesp. Assim, o projeto Fotoativa - Núcleo de Oficinas do Fotoativa, passa a ser executado paralelamente à fundação do Grupo FotoPará. A regularidade e a estratégia mobilizadora desse projeto acabam transformando-o no embrião do que é hoje a Fotoativa. A confusão se produz, a meu ver, porque boa parte das pessoas participava, sem restrições, dos três movimentos.22 22

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O esclarecimento de Miguel Chikaoka foi apresentado por e-mail, em 2 de dezembro de 2013.


É importante reafirmar que a complexidade da cena da fotografia no Pará é fruto da junção de vários fotógrafos que comungavam ideias afins, mesmo que individualmente tivessem as suas diferenças. Em depoimento para o jornal Diário do Pará, referindo-se aos grupos Fotoficina e FotoPará, Chikaoka revela que eram “[...] todos pautados no mesmo ideal, de atuar juntos, solidariamente, visando a construção e afirmação da individualidade artística”23. Para que os projetos obtivessem sucesso, prevalecia a proposta coletiva, as decisões em conjunto. De 1982 a 1984 houve três edições da mostra FotoPará, e o Grupo FotoPará, criado a partir dessas mostras, teve como primeiro presidente Luiz Braga. Na elaboração de seu estatuto social contou com a participação de Miguel Chikaoka, Luiz Braga, Patrick Pardini, Ana Catarina e Anastácio Gomes. O grupo realizou projetos significativos, como a jornada 24 Horas Belém e Rio Abaixo Rio Acima, ambos em 1985. No período de 1986 a 1987, com o intuito de discutir o processo da linguagem fotográfica e refletir coletivamente sobre a obra ou trabalhos específicos de um fotógrafo, o grupo criou a série Autografias. Em 2013, o 9° Colóquio de Fotografia e Imagem: Autografias, promovido pela FotoAtiva, reedita e homenageia as proposições do Grupo FotoPará, em especial a Autografia, por considerá-la um fator importante na trajetória de artistas e pesquisadores que contribuem para a história da fotografia, não apenas local, mas nacional. Como se pode observar, a Funarte, ao chegar a Belém, com suas propostas para promover um pensamento sobre a fotografia e provocar uma interação entre os fotógrafos brasileiros, encontra um ambiente favorável às suas ações, que iam ao encontro de uma inquietação e mobilização já existente em torno da fotografia. As Semanas Nacionais criadas pela Funarte reforçam desejos e fornecem condições de crescimento a uma ação coletiva que aqui se estruturava. Na opinião do fotógrafo e pesquisador Mariano Klautau Filho: O trabalho da Infoto/Funarte sob o comando de Ângela Magalhães e Nadja Peregrino na realização das semanas nacionais foi fundamental para a difusão da fotografia no Brasil e especialmente importante para Belém em sua realização em 1985. A Semana Nacional de Fotografia em Belém adensou as experiências de produção e pensamento coletivo iniciados desde 82 na cidade. A partir daí começamos a construir uma identidade particular na produção brasileira de fotografia contemporânea.

23 Depoimento de Miguel Chikaoka ao jornal Diário do Pará, caderno Belém, na matéria intitulada “Registros singulares do Mundo”, em 29 de novembro de 2009, p.13.

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Em 1985, no atelier de Miguel Chikaoka, que também funcionava como sede do projeto Fotoativa, realiza-se o Projeto Autografias, do Grupo FOTOPARÁ. Patrick Pardini projeta imagens de Cartier-Bresson para discussão.

O período que compreende os anos 82 a 85 é o que define o potencial criativo e lança Belém no circuito nacional.24

Com a ressonância de pensamentos e objetivos comuns, a Funarte torna-se uma espécie de parceira, cúmplice de uma força coletiva tão presente em Belém. Os fotógrafos paraenses participaram das várias edições das Semanas de Fotografia. Em 1985, a IV Semana Nacional de Fotografia aconteceu em Belém e, como bem analisou Klautau Filho, foi fundamental para adensar a produção local e demarcar um processo de inserção na produção da fotografia contemporânea brasileira. Além das semanas de fotografias, a InFoto/Funarte também reforçou o seu propósito de difusão, com a publicação de dois catálogos: I Fotonorte, em 1986; e o II Fotonorte, em 1997. A Funarte, ao se dispor a descentralizar os investimentos culturais e artísticos que se concentravam no Sudeste do país, cumpre o seu papel de fomentadora da difusão 24 Este depoimento de Mariano Klautau Filho encontra-se na dissertação de Mestradode Luciana Loureiro Figueira Magno, orientada por Orlando Maneschy. O texto de Klautau Filho apresenta a publicação concernente ao primeiro Edital Prêmio de Fotografia/2009.

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Oficina “Vivendo as Imagens”, que foi conduzida por Cláudio Feijó (SP), Miguel Chikaoka (PA) e Rino Marconi (BA) e integrou a IV Semana Nacional de Fotografia, realizada em Belém, em 1985.

da produção de fotógrafos e artistas plásticos da região Norte, em especial de Belém. O INAP e o InFoto colaboraram, sem dúvida, com a cena artística local, mas houve uma diferença fundamental nas relações estabelecidas com os artistas plásticos e com os fotógrafos. Para os primeiros, as ações tiveram uma duração bem menor, e praticamente foram interrompidas. Deve-se isso tanto aos problemas da própria Funarte em gerenciar o projeto do INAP, quanto aos artistas, por não se unirem, não se fortalecem enquanto grupo. Um dado importante neste processo, apesar das dificuldades referentes ao trabalho coletivo, alguns artistas plásticos destacaram-se individualmente. Com os fotógrafos foi diferente, pois, mesmo que um ou outro tenha se sobressaído mais, muitos conseguiram difundir o seu trabalho e ganhar o reconhecimento nacional. A força do trabalho conjunto fez a diferença. Certamente houve conflitos, enfretamentos de várias ordens, mas o que prevaleceu foi o pensar e o agir coletivo. Por isso, o INfoto conseguiu realizar um trabalho contínuo e firmar uma parceria permeada por publicações, exposições e ações que atravessaram os anos 1980 e 1990. Em 2013, não há uma diferença tão demarcada entre fotógrafos e artistas plásticos. Ambos encontram-se inseridos na categoria de artes visuais, e muitos têm 43


os seus trabalhos desenvolvidos em um entrelaçar de linguagens, num campo mais aberto e híbrido. Nos últimos anos, um número razoável de artistas alcançou visibilidade na mídia, nos espaços museais, nas galerias, nas bienais e salões. Hoje, há um reconhecimento que implica a abertura de mercados fora das fronteiras de Belém. O que preocupa, no entanto, é que entre a efervescência da década de 1980 até 2013, já se passaram mais de 30 anos, e o fluxo das artes continua se processando em movimentos sinuosos, formados por altos e baixos, pela não existência de mercado interno, pela falta de políticas públicas em diferentes níveis. As sustentações talvez procedam das universidades e dos atos coletivos, que ainda se mantêm, porém mais esparsos. A cena se constitui em meio ao malabarismo, ao poético voo dos trapezistas, sempre por um triz, no limiar do perigo.

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Livres tessituras Imagens, Açþes e Experimentos

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Arte, liberdade e política: uma convivência possível


As cores do circo, a instabilidade dos números poéticos que ocorrem no picadeiro, arena de sonhos e tensões, servem de metáfora tanto para designar a instável situação do contexto em que se encontra a arte produzida em Belém, como para introduzir o ritmo quase mágico, entremeado de vivências intensas, que norteiam a cultura, a arte e a política nos anos 1980. Esse clima agitado e propenso à liberdade proporciona um trânsito de ideias e atitudes que tem o frescor do jovem que se lança, sem temer, em direção às experimentações. Nesse contexto, é possível identificar as matrizes que vão motivar e reafirmar os experimentos de Miguel Chikaoka. Dois segmentos iniciais se entrecruzam, reforçando um núcleo que constitui a espinha dorsal da liberdade e da postura política constantemente atrelada ao coletivo. Nesse começo, apesar da coexistência e de um segmento alimentar o outro, é importante notar que um se abriga na vivência criativa e provém das experiências vividas na França, que se identificam com as ações do grupo Ajir; e o outro, marcado pelo compromisso político, aloja-se na postura cidadã desse paulista recém-chegado a Amazônia, que encontra apoio ao compartilhar ideias e na atitude política do grupo do jornal Resistência. Este grupo o acolhe e o convida a integrar o jornal, fornecendolhe as condições necessárias para permanecer na cidade. Na junção do político e do experimental encontra-se o eixo que gera não somente os processos educacionais, sempre presentes, mas também a instância autoral voltada para os experimentos fotográficos. Vida, política e arte entretecem os fios, acompanham a irreverência e a mobilidade de uma trama que se forma com ações nas ruas, com reuniões de fotógrafos, com atos políticos e exposições. Como visto, a inquietação de Chikaoka já se manifestava no período em que viveu na França – e um pouco antes, quando ainda estudava em Campinas. Um dos exemplos da tessitura entre a vida, a política e a arte, que sempre o acompanhou, pode ser percebido na manifestação íntima, mas de caráter público, que invade o seu quarto, na casa onde nasceu, em Registro (SP). A pichação25 feita por ele entre 1976 e 1979, no intervalo das férias, toma conta das paredes e traz as palavras de ordem, nas quais podem ser lidos os três atos que o norteiam: o da arte, o do amor e o da política. Em maio de 1968, os muros de Paris foram pichados com frases de ordem política, convocando os operários a se unir aos estudantes de arte. Quase vinte anos depois, em 1985, a 18ª Bienal Internacional de São Paulo, sob a curadoria de Sheila Leirner, convida os pioneiros do grafite brasileiro a participar da exposição. Entre eles estava Alex Valluari, que mostrou a sua divertida personagem A Rainha do Frango Assado.

25 Arte de rua que algumas vezes pode ser confundida com o grafite. Neste último usam-se mais imagens ou desenhos do que palavras, e não tem o caráter transgressor da pichação.

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A parede do quarto de Miguel Chikaoka, pichada por ele no intervalo das férias, quando estudava em Campinas(SP); e depois, na França.

Valluari costumava deixar impressa nos muros a instigante bota preta, marca de sua produção, assim como desenhos acompanhados de palavras irônicas, como é ocaso da figura de um executivo que tem a sua cabeça substituída pela logomarca da Globo26, ao lado dos dizeres: “Não penso não existo, só assisto”. Tendo como suporte as ruas de São Paulo, desde os anos 1970, o artista disponibilizava ao público o seu humor, a sua alegria e ironia. Chikaoka talvez não tenha visto os grafites de Valluari, mas os dois tinham em comum uma produção fértil e, acima de tudo, uma inquietação que impedia qualquer acomodação. As pichações no reservado do quarto podiam representar as quatro paredes ganhando a dimensão do mundo, misturando os sonhos com o real, em um fluxo contínuo capaz de romper as fronteiras do dentro e do fora, atravessando portas e janelas. Ir e ter onde caminhar parecia alojar-se no íntimo espaço que abrigava o Velho Rei, companheiro de viagem do fotógrafo, muito antes da voz do poeta os aproximar. Sem lenço, mas com documento, quando Chikaoka aporta em Belém, sente que chega “no lugar certo na hora certa”27. Em menos de três meses estava na cena da 26 Logomarca muito difundida, principalmente nos canais da maior rede de televisão do país, fundada pelo jornalista Roberto Marinho, em 1965. 27 Esta afirmativa e outras informações aqui contidas foram fornecidas por Miguel Chikaoka, em entrevista concedida à autora em 12 de setembro de 2013.

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cidade, fotografando para o Jornal Resistência, cumprindo pautas de toda ordem, nos bairros do Jurunas e Terra Firme, e também viajando pelo interior do Pará. Havia solidariedade, sobressaíam-se as relações humanas, as relações de afeto. O contato com o grupo do Jornal Resistência se deu no I Ato Público pelo Direito de Morar, por intermédio da Sociedade Paraense de Direitos Humanos (SDDH)28, considerada por Chikaoka como “uma das frentes mais avançadas das organizações políticas, que lutava pelos direitos do cidadão na Amazônia”. O Jornal era o principal veículo de comunicação do SDDH, e surgiu para dar vez aos excluídos da mídia convencional. A atitude política estava associada a processos libertários capazes de realizar a difusão do jornal por meios não convencionais, pela pincelada nos muros, pelo divertido anúncio que convidava o passante a ler o Resistência.

Pichação realizada no bairro de São Braz, em 1980, pelo Núcleo de Imprensa da SDDH, em função da Campanha pelo Jornal Resistência. Miguel Chikaoka integrava o Núcleo.

Ir em zigue-zague, partir de um ponto e seguir em direção daquilo que perdeu sua materialidade e passou a ocupar a lembrança, é o propósito do narrador. As pontes são infindáveis e maleáveis, podendo atingir a terceira margem, os entre-lugares percorridos pela ambivalência: incerto porto que flutua com as águas. A vez é do olhar, 28 Entidade civil, sem fins lucrativos, criada em 8 de agosto de 1977, que tem por objetivo valorizar e defender os direitos humanos na perspectiva de uma sociedade justa e igualitária. Participa “da elaboração de políticas públicas, em especial nas áreas de justiça e segurança pública, e mais recentemente na área de educação em direitos humanos”. Disponível em: http://sddh.org.br/

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Em 1981, Ato Público do Movimento pelo Direito de Morar, realizado na Praça D. Pedro II, em frente ao Palácio Lauro Sodré (sede do Governo do Estado do Pará)

por isso opta-se pelos olhos do fotógrafo, que colocam à disposição do narrador a luz, a imaterialidade que toca o objeto e o transforma em imagem. Daí infiltrar-nos no cenário de política e arte, e seguirmos nesse processo, sendo, tecendo. O farol que apontará as trilhas advém das próprias fotografias de Chikaoka, do momento em que fotografou e viveu. E não poderia ser diferente: suas imagens, sua vida e suas ações educativas estão intrincadas, formam um único novelo a correr com os fios, e dispor de narrativas pretéritas, cujas sensações regressam com as imagens. As fotografias determinam o trajeto – são momentos dos quais foi testemunha – não passiva, mas atuante. O laboratório com pichações na parede, montado no porão da Escola de Arte Ajir, situada à Rua Rui Barbosa, onde ministrou a primeira oficina de Iniciação à Arte Fotográfica, em 1981, fornecia os indícios das atitudes libertárias, da proposta de seguir vivenciando o seu próprio tempo, posicionando-se, juntando-se à alegria do grupo Ajir, que invadia as ruas com as suas performances e levava a arte à praça, ocupando o anfiteatro da Praça da República. Chikaoka, além de cobrir com suas fotografias as propostas do grupo, participava das ações. 52


O grupo Ajir não cumpria apenas a agenda do Projeto Arte na Praça, mas irrompia o espaço público levando a sua alegria.

O Ajir também se infiltrava pelos lugares onde havia discussões culturais ou manifestações, solidarizando-se com as reivindicações e contribuindo com reflexões sobre arte e cultura. Em 1981, Jeanne Marie e Sonia Freitas, duas importantes representantes do grupo, estavam presentes com suas performances no Teatro Waldemar Henrique, durante a Coletiva de Teatro. Essas Coletivas, abertas ao público, eram constituídas de reuniões movidas à discussão e reflexão. O projeto pertencia à Secretaria de Cultura, Desportos e Turismo do Estado do Pará (SECDET), e foi conduzido pelo professor Marbo Gianacinni. Tinha como tema/pauta uma discussão ampla, interdisciplinar, envolvendo várias linguagens, entre elas: teatro, literatura, fotografia e dança. No que concerne aos protestos, nesse mesmo ano de 1981, o Grupo Ajir promoveu um ato performático no Campus da Universidade Federal do Pará (UFPA), com várias palavras de ordem. Em meio à manifestação dos estudantes referente à crise do ensino universitário, mantendo o foco no tema reivindicado, encenaram o enterro das instituições. Com personagens ironizando e deixando mais evidentes as palavras e ações de protesto, estavam: Babá, Wandeley Costa, Jeanne Marie e Cláudio Barros. 53


O Grupo Ajir na UFPA, juntando-se às reivindicações universitárias.

Com uma série de ações produzidas e realizadas pelo Grupo Fotoficina, nos moldes do Ajir, o Oficina Teatral apresentou-se na Praça da República em 1983, tendo ao fundo o Hotel Hilton, situado em frente à praça, onde se encontram o quiosque do Bar do Parque e o Teatro da Paz, construções do século XIX, que estavam em harmonia com a arquitetura eclética do antigo Grande Hotel, que hospedou Mario de Andrade, Bidu Sayão, Guiomar Novais. Este hotel foi inaugurado em 1913, e demolido nos anos 1970, para dar lugar ao novo empreendimento hoteleiro da cadeia de hotéis Hilton. Essas apresentações coordenadas pelo Fotoficina tinham um caráter interdisciplinar, pois não traziam apenas os fotovarais, mas agregavam diferentes linguagens ao evento, como teatro, cinema, música e literatura. A praça e arredores, palco das apresentações, trazem os vestígios da história da cidade, de um período associado às reformas urbanas de Antonio Lemos, à riqueza proveniente dos lucros da “economia da borracha”. O grupo Oficina Teatral encenou, nesse palimpsesto de histórias, fragmentos da peça de Bertold Brecht, “A importância de estar de acordo”. 54


Um ano antes, em 1982, a Belém que convivia com os saltimbancos da alegria, com as imagens expostas em varais, depara-se com a condenação dos padres Aristides Camio, Francisco Gouriu e de outros trabalhadores rurais. O Ato ecumênico de repúdio à condenação dos presos foi organizado pelo Movimento de Libertação dos Presos do Araguaia (MLPA), realizado na Praça da Trindade, mais precisamente na Igreja de mesmo nome. O cerco policial aos participantes do ato se deu de forma ostensiva, para inibir a manifestação. A trama sociopolítica e cultural do agitado cenário da cidade constitui as coordenadas que motivam artistas e agentes culturais. A segunda fase do cinema novo, na década de 1960, pode servir de referência às experiências cinematográficas que ocorreram em Belém no começo dos anos 1980. A popular frase de Glauber Rocha: “uma ideia na cabeça e uma câmara na mão” podia se encaixar como um estímulo às experiências da Filmoteca do Pará (1982-1983), comprometida com a educação visual, tendo à frente o cineasta Januário Guedes, que propunha atuar junto às escolas, indo além das projeções de filmes. A Filmoteca tinha como projeto “a confecção e o uso criativo da câmara fotográfica e do projetor de slides artesanais.” (PARDINI, 2002, p. 163-164). O Coletivo de Realizadores da Amazônia (CRAVA), que sucedeu as ações da Filmoteca, segundo Patrick Pardini, “aprofundou e estendeu

O Oficina Teatral: teatro e fotovaral, na Praça da República, em 1983.

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Cerco policial durante o Ato Ecumênico contra a condenação dos presos: padres Aristides Camio e Francisco Gouriu.

para a categoria dos produtores esse questionamento mais sistemático das linguagens audiovisuais” (PARDINI, 2002, p. 164). Em 1982, Miguel Chikaoka participou da equipe de filmagem do documentário “Caieira”, produzido por um grupo de alunos do Curso Modelo de Treinamento Cinematográfico, promovido pela Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Federal do Pará, em parceria com a Casa de Estudos Germânicos. Entre os alunos que realizaram o documentário estavam Sonia Freitas e Peter Roland. O documentário abordava uma comunidade de trabalhadores que produziam carvão, às margens da Avenida Perimetral, e que havia ocupado uma área junto à estação da Eletronorte em Belém. Um dos sets de filmagens foi a cobertura do Hotel Hilton, que ainda estava em construção. O set foi escolhido em função dos entulhos de madeira acumulados pelas construções, que eram despejados às margens da Avenida Perimetral, no exato local onde estavam as caieiras. As experiências audiovisuais aconteciam em diferentes instantes e apontavam para procedimentos de ordem experimental, como o documentário “Roda Peão”, realizado por Patrick Pardini e José Alberto Colares. Este foi apresentado em vários locais, como universidades, associações e centros comunitários, e alcançou o reconhecimento da crítica de cinema local devido a sua forma inovadora e alternativa 56


de realização. Pardini afirma que a ideia de realizar um documentário em forma de audiovisual surgiu no início de 1983, quando soube que a 35ª Reunião Geral da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) seria realizada em Belém, e tinha como tema “A Questão da Amazônia”. O Documentário adotava o ponto de vista dos trabalhadores, e centrava-se no impacto que a Albras-Alunorte provocou com a implantação do seu projeto industrial em uma área rural próxima a Belém.29

Peter Roland no set de filmagem do documentário “Caieiras”.

29

Patrick Pardini (ver FOTOGRAFIA CONTEMPORÂNEA..., 2002, p. 164).

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O teatro também se inseria no processo experimental. Um dos principais articuladores e pensadores da cena teatral foi Luiz Otávio Barata que, em 1983, em uma concepção coletiva orientada por ele e Zélia Amador, com participação do grupo Cena Aberta montam no Teatro Waldemar Henrique, o espetáculo Theastai Theatron (Lugar de onde se vê), causando um rebuliço entre os espectadores e provocando a ação da censura. Os atores apresentavam-se nus, mas a peça foi censurada e tiveram que usar tapa-sexo. O espetáculo teve a participação de Ailson Braga, André Genú, Henrique da Paz, Márcia Macedo, Marton Maués, Sávio Chaul, Sérgio Henriques e Zélia Amador. Chikaoka fotografou, testemunhou e se envolveu no contexto artístico e cultural da cidade, transitou livremente por todas as áreas. Seus olhos experienciaram cada ação, observando as estéticas e proposições que podiam ser transferidas para o universo das imagens fotográficas. A iluminação dos espetáculos e o enquadramento estavam à disposição do fotógrafo. Vinham da concepção do iluminador, mas também atravessavam as escolhas que se davam a partir da fotografia. O Teatro Waldemar Henrique recebia tanto peças de teatro quanto shows musicais, entre eles o de Walter Bandeira, fotografado por Miguel Chikaoka, o inquieto “samurai” que seguia no sinuoso caminho, em meio à luta, ao prazer da arte. No ano de 1984, no auge da campanha das Diretas Já, também encontrava tempo para criar um bottom político, manifestando seu desejo de cidadão, reivindicando o seu direito ao voto. Belém, como boa parte do país, tornara-se um território de manifestações políticas e culturais. Avivaram-se os discursos que devolviam a esperança de um convívio democrático, livre das censuras, dos silêncios impostos pela repressão. Havia festas na praça, uma eufórica crença no mundo que se traduzia no compartilhar de ideias, numa entrega não temerária, que possibilitava mostrar o rosto, reunir-se para reivindicar direitos, exibir processos criativos e amar sem medo – ou quase – aberto ao mágico toque dos sentidos, à liberação sexual. Uma pequena praça serviu de ponto de encontro, onde se reuniam arquitetos, fotógrafos e artistas plásticos em torno da alegria, dos debates, das mostras ao ar livre, realizadas à noite, quando a luz da lua confundia-se com a luz artificial que protegia os notívagos. O Bar 3x4, de propriedade de Makiko Akao, Peter Roland e Luiz Laguna foi inaugurado em 1985, à Praça Coaracy Nunes, conhecida pelo nome de Ferro de Engomar. Este local fez histórias nessa década, e testemunhou um fervilhar de manifestações. O fotógrafo paranaense Alberto Melo Viana, que naquele mesmo ano participara da IV Semana Nacional de Fotografia, em Belém, confirma a ebulição no entorno do “3x4”: “As reuniões noturnas em torno do projeto Fotoativa, na ‘Praça do Ferro de Engomar’ foram maravilhosas. A troca de informações, de experiências, 58


Cena da peรงa Theastai Theatron, antes da censura.

Depois da censura com os atores usando tapasexo. Na segunda montagem, em 1984, Theastai Theatron, recebe o nome de Trontea Staitea.

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Fotografia do show musical de Walter Badeira, realizada por Miguel Chikaoka em 1984.

Bottom criado por Miguel Chikaoka, para a campanha das Diretas Já.

Biratan Porto, André Penner, Abdias Pinheiro, Ana Catarina e Geraldo Ramos na inauguração do Bar 3x4.

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com os mais jovens e com os mais velhos foram muito enriquecedoras.”30 Confessa que voltou maravilhado ao Paraná, com muitas ideias fervilhando na cabeça, pensando como realizaria a nova Semana, que aconteceria em Curitiba, no ano seguinte. A sede da FotoAtiva também era na Praça Coaracy Nunes, vizinha ao Bar 3x4. Lá encontrava-se o laboratório-atelier de Chikaoka, que, em parceria com o bar, coordenava apresentações e promovia oficinas; tudo isso num ritmo frenético, na hibridez de quem se locomovia em diferentes espaços, mas sem perder o jeito zen do samurai e a noção prática do realizador. Na Praça do Ferro de Engomar surgiram as apresentações audiovisuais, os sons e imagens difusores de pensamentos, de irônicas e provocativas propostas. No folheto datilografado que fazia a divulgação do “Happening visual do Ferro de Engomar” havia a convocação para se desfrutar das instalações visuais, dos ambientes performáticos, como também para se divertir com a projeção do cromo clip de Miguel Chikaoka, além do “pseudo-cumentário” apresentado pelo grupo “Alternativas Locubrativas”, provenientes das oficinas experimentais da FotoAtiva.

O Bar 3x4, no contexto das festivas noites, das projeções visuais, em plena Praça Coaracy Nunes.

30 Este depoimento de Alberto Melo Viana se encontra na página “Depoimento de fotógrafos”, organizada por Pedro Vasques, no site da Funarte Memória das Artes. Disponível em: <http://www.funarte.gov.br/brasilmemoriadasartes/acervo/infoto/depoimentosde-fotografos/>. Acesso em: 20 set. 2013.

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Folheto de divulgação do evento “Happening visual do Ferro de Engomar”.

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Nos anos 1980, algumas praças de Belém exerceram muito bem a sua função pública de aglutinar pessoas, de servir como espaço de reunião e encontros culturais, funcionando como locais de passagem e lazer, sendo disponibilizadas tanto aos moradores do entorno quanto aos transeuntes, que podiam usá-la para sentar em um banco qualquer e namorar; ou apenas descansar, contemplar o entorno, até seguir em nova caminhada. A Praça do Carmo, no bairro da Cidade Velha, uniu música e fotografia no evento mensal conhecido por Seresta do Carmo. A FotoAtiva sempre esteve presente com os fotovarais, oficinas e “projetos próprios, geralmente associados à política de valorização do patrimônio histórico e artístico da cidade”(PARDINI, 2002, p. 161). Em 1985, na sede da FotoAtiva, na sala que abrigava o atelier de Chikaoka, no qual funcionava uma espécie de tubo de ensaio de experimentações, houve uma reunião com os representantes da equipe da Secretaria Municipal de Educação (SEMEC), que era responsável pela organização das Serestas do Carmo. A partir dessa reunião foi elaborado o projeto Fotoativa Cidade Velha, que se preocupava com a documentação do núcleo histórico de Belém.

Mariano Klautau Filho, com a palavra, em reunião com a equipe da SEMEC sobre a organização da Seresta do Carmo.

Octávio Cardoso, Mariano Klautau Filho e Eduardo Kalif durante a montagem do fotovaral na Seresta do Carmo, do projeto FotoAtiva Cidade Velha, em 1985.

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A paisagem cultural tecida no contexto dos anos 1980, associada às experiências da década anterior, na França, e com projeção para a década seguinte, tem grande importância em todo o processo que desencadeou a verve criativa de Miguel Chikaoka, estendendo-se, em especial, às suas experiências enquanto fotógrafo. Trata-se de um ambiente que revela a fonte motriz que permeia as ideias, os princípios estéticos e conceituais constituidores do processo experimental por ele desenvolvido. Houve um reforço do que já estava latente, e que ia ao encontro da sua postura irreverente, inquieta e paradoxalmente disciplinar, herdada dos finos fios da seda oriental: firmeza e delicadeza Zen que sempre estiveram presentes em meio ao aparente caos. Esse clima Zen e de inquietação o aproximou de um paraense de Bragança, que não morava mais na cidade, mas que vira e mexe visitava a sua terra. Não foi à toa que em muitas de suas anotações encontrei a palavra de ordem “Antes Arte do que Tarde”, dita por Bené Fonteles. Uma das anotações manuscritas estava acompanhada de uma reflexão sobre o Fotovaral, em que Chikaoka o definia como uma forma simples de mostrar fotografias e se contrapor à inércia da galeria de arte. Afirmava que o Fotovaral tinha vida própria, e possibilitava o deslocamento fácil, “abrindo uma nova perspectiva na criação, recuperação ou ocupação de espaços que permitiam maior liberdade de ação e interação entre o observador e a fotografia”.31 Suas palavras estavam acompanhadas do trecho de um depoimento de Fonteles, em que o artista afirmava: “Quero mostrar que tudo é arte. Que a arte profissional vai morrer e que em seu lugar vai surgir uma arte anônima, bruta, comunitária.” O seu pensamento continuava, e mais adiante dizia que a arte renasceria em meio às pequenas guerras internas e externas e seria “uma arte de resistência, de consciência participativa, fora de museus e galerias.” Chikaoka encontrou nessas palavras o eco dos seus próprios desejos, e do processo de arte e vida que adotara. Antes de conhecer pessoalmente Bené Fonteles, foi o contato com o seu trabalho que mais lhe chamou a atenção. As afinidades nasceram a partir da prática Zen que ambos admiravam, do envolvimento com a natureza e da preocupação com as questões ambientais. O primeiro contato surgiu por volta de 1982-1983, quando o Núcleo de Fotografia da Funarte organizava o projeto “Coletivas Temáticas”. Chikaoka também participou de duas ou três oficinas que Fonteles realizou em Belém, inclusive comprou uma xerox do artista, que foi um dos precursores dessa arte no Brasil, juntamente com Paulo Bruscky, que divulgou a sua pesquisa em copyart (arte xerox/eletrografia) desde 1970, quando expôs na Galeria Empetur, em 31 Esta anotação de Miguel Chikaoka não estava datada, mas no mesmo papel havia um trecho de um depoimento de Bené Fonteles, que no final estava anotado o nome do artista, o título da matéria “Em tempo de criação instantânea”, o nome do jornal O Liberal e a data 28 de junho de 1982.

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Recife. Uma das oficinas que Chikaoka participou, coordenada por Bené Fonteles, chamava-se Humanística, e aconteceu em 1988, no Museu da Universidade Federal do Pará (MUFPA). Chikaoka afirma: Depois das experiências nas oficinas “passo a experimentar a eletrografia nos meus processos.”32 Essas experiências de caráter autoral seriam incluídas em exposições organizadas por ele. A vivência nas oficinas serviria como uma das bases de referência no processo de criação da mostra “Olho”, realizada em 1989, para comemorar os 60 anos de imigração japonesa na Amazônia.

Processos criativos vivenciados em uma das oficinas coordenadas por Bené Fonteles.

Imagens resultantes da oficina ministrada por Bené Fonteles.

32 Este depoimento de Miguel Chikaoka surge a partir da “entrevista visual” realizada em novembro de 2013, a partir das fotografias constantes em seu acervo.

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Ao observar os processos que interligam o campo mais autoral e demarcam o espaço do fotógrafo mais do que o do educador, opto por iniciar a reflexão sobre o sentido poético da produção de Chikaoka pela sua experiência com a copyart, não por considerá-la mais importante ou introdutória de sua obra, mas porque permite a ponte entre o trânsito da estética referendada nos clássicos da fotografia e as experiências mais livres, sem compromissos rígidos com as normas teóricas, que se desdobram nas inúmeras brechas condutoras do processo de criação. A arte fotográfica existe e os seus fundamentais desafios são de ordem existenciais, estéticos e epistemológicos. O filósofo sente a necessidade de confrontar-se com ela. Os desafios da fotografia pertencem à esfera da filosofia em geral – são, por exemplo, o real e suas representações, o sujeito e o objeto, o ser e o tempo, a vida e a morte – e da estética em particular – por exemplo, a arte e o sem-arte, a criação e a técnica, o fragmento e a obra, a arte fotográfica e as outras artes. Tal reflexão fotográfica permite, assim, interrogar não só a fotografia e a arte, mas também as relações dos homens com o mundo, com as representações e consigo mesmos (SOULAGES, 2010, p. 14).

As interrogações advindas das relações dos homens com o mundo e consigo mesmos, encontram ressonâncias no processo fotográfico. Nas fotografias de Chikaoka é possível perceber esse artifício, na ordem das relações humanas. Para François Soulages (2010, p. 14), “a fotografia é uma oportunidade para o poeta, uma chance para o artista, um privilégio para o homem em geral”. As imagens produzidas por Miguel Chikaoka estão imbuídas de um caráter humanista e filosófico; representam uma oportunidade do espectador se identificar com o contexto histórico e humano em que está inserido. Em geral, a pesquisa desenvolvida por Chikaoka no âmbito estético e poético, principalmente as que partem do campo relacional, atrelam-se ao processo educativo. No entanto, os experimentos realizados nas oficinas de Bené Fonteles não tinham a intenção educativa, mas de experiências com a copyart, que introduzem a eletrografia em seus ensaios fotográficos. O preto e branco da cena captada pode ser duplamente reproduzido, primeiro pelo processo fotográfico, segundo pela xerox. O ambiente de onde surgem os personagens está envolto na precariedade tanto do contexto no qual se passa a cena quanto do material que serve de suporte para a imagem. Frágil, o que se vê não se destina à contemplação, na medida em que o papel pode se decompor a qualquer momento, tornando efêmera a reprodução. Trata-se de um processo de desprendimento, que prioriza a experimentação. Nas anotações manuscritas a 66


Em 1988, experiências com copyart, a partir das oficinas de Bené Fonteles.

que tive acesso, pude perceber igual procedimento experimental, que ocorre sem amarras no desencadear da vida. Miguel Chikaoka deixa a palavra solta, permite que o pensamento caminhe com o andar livre do fotógrafo – comumente identificado com o estado poético. Sua letra impressa sobre o papel amarelecido pelo tempo registra: “...é preciso partir para um dia voltar”33. E assim continua seguindo, sempre aconselhado pelo Velho Rei. 33

Anotação que faz parte do acervo pessoal de Miguel Chikaoka, cedido para esta pesquisa.

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Névoa de Luz: fotografias e ações em processo


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Corações e mentes desocupadas são sempre receptíveis e sensíveis à luz – uma onda eletromagnética que revela o existente, possibilitando-o ser visto. Dual e quase mágica, é sinal, energia e materialidade impalpável. Mas, vedada a luz, resta o tato, o percorrer com os dedos até descobrir a forma e imaginar o objeto, o ser. A luz é uma opção de vida que Miguel Chikaoka assumiu há anos, quer em suas oficinas, quer no ato de fotografar. Considera que precisamos de exercícios para aguçar a percepção e observar os fenômenos. Por esta razão, uma de suas propostas é vendar os olhos pra ver, perceber melhor. Luciana Magno (2009), artista visual que frequentou suas oficinas e elaborou uma pesquisa em função dessa experiência e da metodologia usada por Chikaoka, explica que este método “versa sobre um procedimento para ensinar a vida através da luz. Luz (trans)formadora de imagens e visões. Visões de vida sutilmente transformadas pela força da luz. Uma forma peculiar de ensinar fotografia (e não a fotografar)”34. Magno descreve o fotógrafo como um samurai que faz da luz a sua espada, um meio indissociável da vida. A relação tão estreita com a vida faz de Miguel Chikaoka uma espécie de “artista propositor”, que Hélio Oiticica definia como “[...] um ser social, criador não só de obras, mas modificador também de consciências [...].” (OITICICA, 1986, p. 95). Nesta pesquisa, privilegio não o viés das oficinas criadas por Chikaoka, mas a sua produção fotográfica, aquela em que mergulha no estado poético ou experimental. Desejo ver com os seus, os meus olhos; deter-me em suas experiências, as quais seguem as trajetórias dos raios de luz e evidenciam o ser social que nele predomina. Os indícios de sua sensibilidade, do olhar atento que vê o outro sem privilegiar a técnica, está presente na percepção do que ali se passa, e que ressoa em quem fotografa, traduzindo uma situação especial estabelecida a partir de uma relação de compreensão do mundo. François Soulages, ao analisar o problema da não neutralidade da perspectiva, apresentado por Erwin Panofsky, esclarece que não se trata simplesmente de um problema técnico, matemático, mas que se refere a uma filosofia particular do espaço “[...] e da relação entre o sujeito e o mundo. Com relação a essa falta de neutralidade da perspectiva, a fotografia não pode ser neutra: ela revela um ponto de vista particular sobre o mundo” (SOULAGES, 2010, p. 87). O ponto de vista de Miguel Chikaoka é variável, mas revela uma particularidade de sua percepção do mundo a partir de diferentes propostas fotográficas, que variam de acordo com as referências usadas, com a identificação com o assunto abordado, com envolvimento afetivo em relação a quem e ao quê está sendo fotografado, e que dependem também da intenção experimental. 34 Trecho do Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação de Luciana Loureiro Figueira Magno, apresentado em 2009, no Curso de Artes Visuais e Tecnologia da Imagem, da Universidade da Amazônia (UNAMA), sob minha orientação e que serviu de embrião para sua dissertação de mestrado.

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Algumas imagens de Chikaoka foram elaboradas dentro de uma perspectiva da fotografia clássica, que pode remeter às soluções advindas de Cartier-Bresson, como no caso da foto sem título realizada em 2000, na cidade do Porto, em Portugal. Nesta imagem o fotógrafo privilegia o instante que congela o movimento e utiliza a sombra como recurso estético, desenho que articula a cena e demarca o território da bola suspensa no tempo e no espaço. Soulages considera que “como todo artista, CartierBresson, pouco a pouco, construiu em torno de si uma fábula.” Com esta afirmativa, entende que o fotógrafo francês “construiu um discurso cuja coerência interna se fez cada vez maior ao longo do tempo e tornou possível sua prática”. Diz que esse procedimento não conduz à redução da obra, “[...] mas nos obriga a compreender que o artista é também habitado pelo quimérico, pelo fictício, pelo imaginário, pelo irreal, em resumo, pelo romanesco – e isto em sua obra, em seu dizer e em seu ser” (SOULAGES, 2010, p. 39). Fotografar para Cartier-Bresson consiste em captar o “acontecimento característico”, confessa que caminhava o dia inteiro em busca de “flagrantes delitos”, movido pelo desejo de captar em uma única imagem – o essencial da cena. Não percebo em Chikaoka um “caçador” de imagens que sai às ruas em busca de “flagrantes delitos”, mas o considero habitado pelo quimérico, pelo fictício, que parte da cena real para romanceá-la, tratá-la como uma narrativa que disponibiliza ao leitor inúmeras interpretações. Isto ocorre tanto na imagem realizada no Porto, como na que produziu ainda em 1978, quando estava em Nancy, na França. Adultos e crianças, pernas e braços presenciam algo que não fica ao alcance do espectador. A dubiedade prevalece e a narrativa de quem vê é composta a partir dos elementos que se tornaram imagens e que omitem a totalidade da cena presenciada pelo fotógrafo. A ficção ocorre na fronteira de dois olhares: daquele que vê a fotografia e daquele que fez a fotografia. Nesse clássico universo da imagem, a fotografia pode ser agrupada por instantes organizados de acordo com processos mentais que dispõem a cena como um desenho, no qual prevalece a linha horizontal, a frontalidade e o recurso da perspectiva que se faz em planos quase paralelos. Três fotografias de Miguel Chikaoka podem exemplificar esse tipo de recurso, que dispõe ao espectador uma organização equilibrada. Mas há um reverso nas suas imagens, que lança uma proposta atravessada por um dado desestabilizador, destoante da situação de equilíbrio e da visão passível advinda da linha horizontal. A negação do visível proporcionada pelos corpos virados de costas, impede qualquer possibilidade de identificá-los. Os personagens assumem a posição de recusa, ou melhor, o fotógrafo escolhe o ângulo, o exato momento em que os rostos encontram-se virados. No entanto, há uma exceção na primeira foto, quando um único menino mostra o seu rosto. 71


Fotografia realizada por Miguel Chikaoka, na cidade do Porto, em Portugal, em 2000.

Fotografia de Miguel Chikaoka realizada em 1978, em Nancy, Franรงa.

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Merlau-Ponty considera que o campo visual nos dá acesso e abertura a um sistema de seres: os seres visuais, que estão disponíveis ao nosso olhar, sem nenhum esforço de nossa parte. Argumenta que a visão é pré-pessoal e limitada, pois “[...] existe sempre em torno da minha visão atual um horizonte de coisas não-vistas ou mesmo não-visíveis” (MERLAU-PONTY, 2011, p. 292). No processo fotográfico, no ato da pintura, do desenho ou de qualquer categoria artística que se relacione com o campo visual para a construção da obra, sem dúvida, há um horizonte de coisas não vistas, não visíveis, não perceptíveis. Apesar de transitar nesse horizonte de coisas, no conjunto das três fotos mencionadas, Chikaoka nos propõe um jogo que contrasta com a forma equilibrada e nos lança em um movimento dinâmico entre o visível e o que se fez oculto.

Sem Título, Aeroporto de Brasília, 1991.

Sem Título, 1981, Marabá, Pará.

Fotografia de uma cena de rua, realizada em São Paulo, em 1982.

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O jogo dos vidros/espelhos com os quais nos deparamos nas caminhadas pelas ruas, amplia e distorce o nosso campo visual e pode servir de foco ao fotógrafo, que com suas lentes absorve a imagem que se multiplica e se assemelha à sequência cinematográfica. Há também informações imperceptíveis que podem revelar um contexto de reivindicações. Duas fotos urbanas realizadas na França, em tempos distintos, trazem a sensação de palimpsesto, a sobreposição de imagens que tira partido dos reflexos do vidro. Em 1979, quando ainda morava em Nancy, antes de retornar ao Brasil, Chikaoka fotografou a palavra “Não”, pichada sobre o vidro. As imagens sobrepostas tiram a nitidez do lugar, mas não apagam a força da palavra, que revela o ato de protesto contra a discriminação e a perseguição aos estrangeiros na França, em geral trabalhadores árabes e norte-africanos, legais ou clandestinos. A fotografia tirada em 1996, em Paris, apesar do problema imigratório ainda existir, conduz a outra abordagem, mais comprometida não com a estética social, mas com uma estética específica da fotografia, que pode advir de uma linguagem cinematográfica, de uma sobreposição de tempo e imagem.

O NO que significa a recusa à perseguição aos estrangeiros, em 1979, Nancy/França.

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De acordo com seu ponto de vista e sensibilidade, o fotógrafo tanto pode realizar e apresentar suas fotos individualmente, como pode construir um ensaio fotográfico a partir de um discurso proferido segundo a formulação de um conceito que segue um encadeamento visual, constituidor de sentido. Miguel Chikaoka cria, em 1990, um belo ensaio, permeado por afeto, cerzido por uma estética que privilegia a leveza e o lirismo. O cenário são as dunas de Algodoal, Ilha de Maiandeua, no Pará. Este ensaio não tem título e nem precisaria. O conjunto de imagens se impõe pelo viés poético que se concretiza no olho amoroso que observa a cena e dela participa, introduzindo-se no sinuoso movimento da areia, que, instável, modifica-se com o vento, no ritmo da brincadeira infantil que ocorre entre nuvens e dunas, onde o branco impera, preenchendo de luz o espaço moldado de acordo com a voluntariosa natureza. Merlau-Ponty (2011, p.290) acredita que “toda percepção acontece em uma atmosfera de generalidade e se dá a nós como anônima”. Considera que a percepção exprime uma situação dada, de forma que, se “quisesse traduzir exatamente a experiência perceptiva, deveria dizer que se percebe em mim e não que percebo”.

Os reflexos de uma mesma cena na fachada do prédio, em Paris, 1996.

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Para o autor, toda sensação traz um germe de sonho ou despersonalização, e acredita que ela não aconteceria sem a adaptação do próprio corpo. E afirma: Nem meu nascimento nem minha morte podem aparecer-me como experiências minhas, já que, se eu os pensasse assim, eu me suporia como preexistente ou sobrevivente a mim mesmo para poder experimentá-los e portanto não pensaria seriamente meu nascimento ou minha morte. Portanto, só posso apreender-me como “já nascido” e “ainda vivo”, apreender meu nascimento e minha morte como horizontes pré-pessoais: sei que se nasce e se morre, mas não posso conhecer meu nascimento e minha morte. Cada sensação, sendo rigorosamente a primeira, a última e a única de sua espécie, é um nascimento e uma morte. O sujeito que tem a sua experiência começa e termina com ela, e, como ele não pode preceder-se nem sobreviver a si, a sensação necessariamente se manifesta a si mesma em um meio de generalidade, ela provém de aquém de mim mesmo, ela depende de uma sensibilidade que a precedeu e que sobreviverá a ela, assim como meu nascimento e minha morte pertencema uma natalidade e a uma mortalidade anônimas. (MERLAU-PONTY, 2011, p. 290-291).

De acordo com Merlau-Ponty (2011, p.291), experimenta-se a sensação como modalidade de uma experiência geral “já consagrada a um mundo físico”, que soa através de nós mesmos, sem que sejamos o seu autor. O mundo visível e o mundo tangível não são o mundo por inteiro; a sensação e a percepção que temos do mundo são sempre parciais. O fotógrafo particulariza ainda mais o limite da visão, apreende o que já está posto em um diminuto enquadramento, mas com a sua sensibilidade e razão pode ressignificar esta sensação, repassando-a ao apreendedor de suas imagens, de forma mais moldável e fluida. Ver crianças brincando nas dunas pode levar à sensação de flutuar ao som de uma música quase inaudível que nos faz desaparecer no branco, e experimentar o voo além das nuvens.

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Dunas de Algodal, Ilha de Maiandeua, PA. 1996.

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O branco em meio aos leves tons de cinza reveste a cena de claridade, remete à infinita pintura que se deixa abraçar pelas cores comumente omitidas do vocabulário leigo. Branco é cor preto também. O fotógrafo pode intervir no preto e branco e manipular a cena, transformando-a na ficção da ficção primeira. Chikaoka assim o fez em 1979, quando fotografou as vitrines de Paris. Não satisfeito – ou atiçado pelo senso experimental – escaneia o negativo preto e branco em RGB, usa a coloração incidental, mergulhando a cena em azul. A personagem exibe-se em curvas, esquece que é feita de material duro, que não tem o cheiro da pele, nem a sensação tátil da carne. Mas, mesmo na condição de manequim, adquire alma e imbui-se do ser diva, para, etérea e distante, cultivar suspiros e permanecer no cenário indescritível que conduz ao enigma, condição apropriada para mantê-la em evidência, e jamais ser esquecida.

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Foto sem tĂ­tulo, realizada em 1979, em Paris.

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Mulheres, personagens, manequins percorrem a narrativa visual contida em um único quadro, que é capaz de se espalhar por infindos trajetos e constituir enredos multiplicáveis a cada sobreposição de imagem. Em duas fotografias realizadas em Belém, em 1991, Chikaoka trabalha com a fusão de imagens, deixando transparecer o misterioso ambiente, no qual podemos nos locomover e desaparecer em meio às frestas. Na imagem em que se sobressai uma mulher com rosto de cigana é possível caminhar errante junto a sonhos ou realidades sobrepostas, tecidas em tempos, indefinidas em templos; arcaicas lembranças que não encontram o seu dono e se perdem no olhar do fotógrafo, no fortuito narrador ou na própria personagem, cujo olhar disperso é afetado pelo incerto destino; um caminho suspenso que não define rotas e pode emigrar para outra imagem habitada por manequins e por um rosto incrustado na parede, na disforme massa preta. O que se sobressai é o tronco representativo de um corpo qualquer, ajustável à indumentária não mais existente. Emerge, então, o ambiente assolado por íntimas ruínas, depósitos de lembranças que não mais conseguem percorrer os espaços em busca das histórias vividas. Os processos experimentais que podem advir do escaneamento de negativos ou das fusões de imagens, constituem um trajeto que passo a passo vai formatando a produção artística de Miguel Chikaoka, que não se forma de maneira linear, classificada em blocos facilmente identificáveis. Essa produção se dá em meio ao caos, ao pulsante estado criativo que emerge e se dispõe em uma teia de segmentos. Um deles ocupa um lugar especial. Trata-se do trabalho que se apresenta não como algo acabado, finalizado, para depois ser mostrado, mas que se realiza enquanto processo. Para Nicolas Bourdiaud (2009b, p. 16), “[...] a obra de arte contemporânea não se coloca como término do ‘processo criativo’ (um ‘produto acabado’, pronto para ser contemplado), mas como um local de manobras, um portal, um gerador de atividades”. A obra de Chikaoka também se coloca como local gerador de atividades, que não busca chegar a um resultado. Em uma entrevista concedida ao jornal Diário do Pará, em 2010, o artista reconhece esse tipo de procedimento; e comenta: Nos últimos anos, tenho trabalhado muito mais com processos, que resultam também em exposições, mas considero isso um momento de socializar, de refletir sobre a proposta e o processo. O foco não é chegar a um resultado, mas buscar além. É o que cada um leva da vivência, que é única.35

35 Entrevista concedida por Miguel Chicaoka, que consta da matéria Mestre do Desenho com a Luz, publicada no jornal Diário do Pará, Caderno Você, em 7 de março de 2010.

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O “buscar além” é uma condição que Chikaoka se coloca desde que iniciou a sua trajetória. Costuma fazer da vida um desafio, seguir os preceitos do samurai, da determinação japonesa que lhe acompanha. O trabalhar com processos procede do constante compromisso com o que é coletivo. Como ele mesmo diz: “meu trabalho não é uma imagem congelada, uma obra pendurada na parede. Meu trabalho é um processo.”36 Um processo que ocorre no espaço de sociabilidade, das redes de relações. Bourriaud (2009, p. 19) define a arte relacional como a arte que “[...] toma como horizonte teórico a esfera das interações humanas e seu contexto social [...]”. O autor confirma que atualmente as práticas artísticas surgem como “um campo fértil de experimentações sociais”, sendo poupado da uniformização de comportamentos. A maioria das produções artísticas de Miguel Chikaoka provém das interações humanas e se insere no contexto social e cultural em que vive. É nesse universo que concretiza os princípios norteadores da sua própria vida e da arte.

Sem Título, fotografia de 1991, realizada em Belém.

Foto com manequins, usando a fusão de imagens, realizada em 1991, em Belém.

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Ibidem.

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As obras que o artista cria sem visar um resultado final, mas o processo, a ação coletiva, que implica em trocas de afeto e experiências, traça o seu próprio perfil de navegante da luz. E a luz, condição da fotografia, é o conceito que atravessa e motiva a exposição Loading...Brincando com a Luz III, que é pensada a partir das oficinas que Miguel Chikaoka costuma realizar. Ele explica que o título da exposição surgiu no decorrer do processo, e a palavra Loading foi escolhida para o título em função de um dos seus significados, que é carregando, ou seja, trata-se de um processo.

Momento inicial da exposição Loading... Brincando com a Luz III, com televisores antigos e o andaime que se encontrava na sala expositiva e foi incorporado ao processo.

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A obra de Armando Queiroz em dois momentos: como era e depois de transformada em “Máquina de Desclonar Olhos”, durante a exposição Loading... Brincando com a Luz III A primeira foto é de Armando Queiroz e a segunda do Acervo Miguel Chikaoka/Kamarakó

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Uma visão panorâmica da exposição Loading... Brincando com a Luz III, em uma das fases da montagem “em processo”.

A experiência com a câmera de cuia.

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Imagens vistas a partir da câmera de cuia.

O Laboratório das Artes37, constantemente recarregado, funcionaria como tubo de ensaio de um processo expositivo no qual se discutia tecnologia e, principalmente, brincava-se com a luz. Para Chikaoka, “a ideia era que a exposição começasse com oficinas e se estendesse não como resultado, mas como uma ocupação”.38 E assim ocorreu. A sala do Laboratório foi sendo ocupada, e cada dia era uma exposição diferente. A ideia era terminar a exposição com o vazio. A exposição aconteceu em 2003, e se caracterizou por uma mobilidade constante, como já mencionado. O seu ponto de partida foram as experiências das oficinas ministradas por Chikaoka e, em particular, a da mostra. Originou-se na experiência com a câmera artesanal feita com cuia. A exposição foi sendo montada/transformada com a contribuição de vários participantes, ao longo do período em que ficou em cartaz. Entre os artistas convidados para atuar junto estava Cláudia Leão, que, em parceria com Chikaoka, desenvolveu um trabalho com pés e mãos, como referência ao Círio. Ele conta que essa artista não podia faltar, pois quando passou pela FotoAtiva fazia fotos experimentais em laboratório – já começou transgredindo. Outro artista que ocupou o espaço foi Armando Queiroz, e sua obra entrou na dinâmica da proposta: foi apropriada e transformada em “Máquina de desclonar olhos”. Nessa exposição percebe-se a prática coletiva que acompanha as experiências de Chikaoka, como ele mesmo afirma: “na história da FotoAtiva, o aprendizado e exercício coletivo do fazer fotográfico firmaram-se como elementos de coesão entre pessoas, na construção da identidade e pensa37

Uma das salas expositivas do Espaço Cultural Casa das Onze Janelas, em Belém-PA.

38 Depoimento concedido à autora, em 12 de setembro de 2013.

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mento, atuando como força propulsora de reflexões, aspirações e preservação das conquistas.”39 A proposta expositiva de finalizar a exposição com o vazio concretizou-se em um processo de construção do pensamento propulsor de reflexões, uma vez que o vazio funcionava como um convite a novos processos, sempre recarregáveis, em Loading... As propostas de Chikaoka, como Loading...Brincando com a Luz III, que envolvem ações coletivas, geram exposições e trazem em seu bojo as oficinas, estão também presentes em Urublues, realizada em 2004, no Memorial dos Povos, em Belém, em torno de uma proposta relacionada à questão patrimonial e, principalmente, à memória. Em Urublues Raiték, painel montado no SESC Pompéia, em São Paulo, em 2009, num espaço destinado a intervenções, a proposta é promover uma reflexão artística referente ao ambiente urbano. No caso do Urublues, o painel concentra o trabalho de 120 fotógrafos e usuários do Ver-o-Peso que usam a técnica artesanal que Chikaoka tanto se identifica: o pinhole. Entre os olhares que retiram uma imagem particular desse complexo comercial e turístico de Belém para formar o grande mosaico, encontram-se os fotógrafos Alberto Bitar, que fez a foto para o Hagakure; e Patrick Pardini, que escreveu um significativo texto sobre o painel: Mosaico Fotográfico Urublues: as múltiplas dimensões de um gesto artístico. O Urublues teve origem no convite que Chikaoka recebeu da Fundação Cultural do Município de Belém (FUMBEL) para fazer um painel autoral. Porém, acostumado a desenvolver um trabalho coletivo, considerou que uma proposta de cunho individual não faria sentido. Então, resolveu reverter a situação: organizou uma megajornada fotográfica, no lugar que elegeu como tema. A partir da seleção de uma de suas imagens do Ver-o-Peso, mais precisamente do Mercado de Ferro, Chikaoka forma a base do painel que será construído por fotos menores, advindas de diferentes olhares sobre esse ícone da cidade. Para que houvesse uma ampla participação, ele fez um convite aberto à população, visando que as pessoas participassem do projeto. Assim, feirantes, fotógrafos e pessoas anônimas se prontificaram e contribuíram para a criação de um painel, que já traz em si o princípio palimpsesto, de sobrepor tempos distintos e autorias diversas. A imagem base, feita por Miguel, é o espaço maior, que contém em si os outros espaços de um mesmo lugar, vistos por ângulos diferentes. Trata-se também do tempo matriz, gerador de outros que a ele se sobrepõem. Minúsculas fotos de 4x4 cm, copiadas de várias maneiras, em variações de cinza, formam o painel de 5x2,5 m. Na opinião de Chikaoka, nesse procedimento:

39 Esta afirmativa encontra-se no folder da exposição da 7ª edição do Pinholeday, ocorrida em 2008, no mezanino do Café da Sol Informática.

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[...] tinha toda uma relação com o propósito do painel, que era mostrar essas pessoas que formam a cidade e que às vezes a gente não percebe, mas que estão lá, cada uma com sua identidade. E também tem a ver com o próprio processo de formação da fotografia e com o processo de formação da cidade. Nem todas essas imagens são perfeitas. Assim como em uma cidade, as coisas não estão sempre prontas.40

Momento da montagem do painel Urublues no Memorial dos Povos, em Belém.

Detalhe do Urublues, das inúmeras fotos que formam a imagem do Mercado de Ferro. Pag 90 e 91

40 Esta afirmativa de Miguel Chikaoka, encontra-se na matéria “Multiplos Olhares”, publicada no jornal O Liberal, Caderno Cartaz, em 28 de dezembro de 2004.

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Painel Urublues Raitek, montado no Sesc Pompéia de São Paulo, e o detalhe do painel composto por milhares de “fotospixels”.

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Oficina no Museu de Arte de Belém (MABE), com crianças e jovens do Beco do Carmo. Construção de imagens para compor o Urubu Raitek.

Oficina no Sesc Pompéia de São Paulo, feita com jovens do projeto Alta Voltagem, buscando imagens para compor o Urubu Raitek.

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Importante perceber que semelhante ao processo que adota em suas oficinas, o mais significativo para Miguel não é a técnica. Neste caso, é formular um pensamento coerente com os princípios geradores do trabalho: memória, identidade e cidade. A meu ver, para ele, propositor do mural, esse núcleo é responsável pela feitura, articulação e representação dos povos que fizeram e fazem a cidade. O condutor do processo é o coletivo que produz o simbólico e, ao mesmo tempo, está no cerne daquilo que constitui a cidade. O painel Urublues Raiték apresentado em São Paulo é um desdobramento daquele realizado em Belém, e que, de certa forma, deriva de outra experiência que teve lugar no Rio de Janeiro, em 2005, cujo ponto de partida foi uma foto do Pão de Açúcar, tirada por Chikaoka, do aterro do Flamengo. O trabalho no Sesc de São Paulo foi gerado por um convite de Simone Wicca. A primeira ideia foi levar o painel Urublues, que seria montado em um imenso mural de 12 x 5 m. Porém, com a costumeira inquietação de Chikaoka, seria difícil apenas transferir um trabalho de um lugar para outro. Então, a ideia sofreu algumas transformações – o tema foi alterado, assim como a técnica. As imagens foram montadas com o auxílio de um programa digital. O artista recorreu a um hibridismo técnico, e o painel foi composto por imagens produzidas em pinhole e transformadas em “foto-pixels”. Agora, não se tratava mais do Mercado de Ferro, mas da imagem do urubu. Para Miguel Chikaoka, essas duas imagens são indissociáveis. Na construção da obra apresentada em São Paulo, houve uma diferença nos princípios básicos geradores do painel. Destacaram-se, dessa vez, a inter-relação de cidades e a mobilidade identitária que uniu São Paulo a Belém – ou Belém a São Paulo. Esse processo móvel, relacional, centrado na imagem de um pássaro negro, também lançou mão das oficinas e de outros olhares que se sobrepuseram à imagem-base para constituir a ponte entre as duas cidades e estabelecer a troca cultural. A ação educativa do painel Raitek, realizada em 2009, integrou o Projeto FotoAtiva Pará – Cartografias Contemporâneas e o projeto Alta Voltagem do Sesc Pompéia de São Paulo, ambos envolvendo crianças e jovens. Em Belém, a oficina Brincando com a Luz foi realizada pela Ação Educativa do Museu de Arte de Belém (MABE), com crianças e jovens do Beco do Carmo, que compunham o público-alvo do projeto Pontearte. Enquanto que no Sesc Pompeia, foi realizada uma oficina de mesmo nome, voltada aos jovens do projeto Alta Voltagem. As obras de Chikaoka, de autoria coletiva, sempre interligadas às oficinas, fornecem a dimensão de um trabalho em rede, que marca as produções mais recentes do artista. O seu processo de criação não tem hierarquia, não possui linearidade, estabelece nexos e é delineado por características como simultaneidade de ações. Essas características usadas por Cecília Almeida Salles (2006), ao se 94


referir ao conceito de rede, encaixam-se muito bem na análise sobre o processo criativo de Miguel Chikaoka. Em todos esses processos é visível a cadeia de ideias que gera ações simultâneas. A obra, por si só, não é suficiente. Precisa envolver outros participantes e estar atrelada a um processo educativo. E o artista age e produz com ausência de hierarquia – trata-se de um fazer compartilhado. Os procedimentos não acontecem de forma linear, apesar da lógica, das ações e do sentido que provocam. A não linearidade, que sabe conjugar os modos de proceder, traz as heranças orientais, o estado zen acompanhado da disciplina. É um deixar-se levar, que flutua em águas de luz, conduzidas pela claridade da percepção. Em toda essa mobilidade em torno do que é proposto, Chikaoka estabelece nexos, produz articulação e é capaz de transitar com fluidez entre as ações simultâneas. Navegante que tem aonde ir e lugar para voltar, Miguel Chikaoka insere-se no mundo pela liquidez da água, aberto ao ciclo das marés, à convivência com as correntezas. Faz-se timoneiro apenas quando é necessário, pois habita um mundo que nasce de um feixe de relações, e vê com o seu os outros olhos. Bourriaud (2009a, p. 31) comenta que “cada obra de arte particular seria a proposta de habitar um mundo em comum, enquanto o trabalho de cada artista comporia um feixe de relações com o mundo, que geraria outras relações, e assim por diante, até o infinito.” Neste infindável navegar, em que se pode encontrar águas e peixes, Chikaoka também desenvolve um trabalho no qual sobressaem o feixe de relações e os procedimentos não lineares, conjugados ao processo educativo. Em alguns dos seus trabalhos de cunho coletivo pode-se perceber a recorrência ao tema da água, que parte de um terreno aquoso, próximo ao rio ou ao olho d’água. Este é o caso Das Águas, os Peixes, experiência que integrou o Arte Pará em 2006, a convite de Paulo Herkenhoff. Trata-se de um importante momento curatorial, quando o conceito que rege o evento prevê a ampliação dos espaços expositivos, assumindo a cidade como lugar de arte, de acordo com uma linha de pensamento que vai ao encontro da “urbanização crescente da experiência artística” (BOURRIAUD, op. cit., p. 20) aberta à discussão. Grandes áreas do complexo do Ver-o-Peso foram ocupadas, envolvendo não apenas os artistas, mas também os usuários dessa área tão representativa de Belém. Chikaoka encontrava-se à vontade para propor o seu trabalho, uma vez que ali já havia desenvolvido oficinas, ações patrimoniais, e tinha feito amigos. Estava em um território familiar, próximo à FotoAtiva, que sempre se faz presente em ações compartilhadas com os feirantes, erveiros e açougueiros que diariamente transitam por esse complexo comercial, turístico e cultural. 95


As oficinas ministradas por Miguel Chikaoka, por ocasiรฃo do Arte Parรก 2006.

Banners resultantes das oficinas ministradas no Arte Parรก 2006.

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Das Águas, os Peixes, ocupação no Ver-o-Peso. Peixeiros e usuários do Mercado convivendo com os peixes que são vendidos nas bancas, e aqueles (suspensos) que foram criados na oficina de pincel de luz, ministrada por Chikaoka.

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Para desenvolver o seu trabalho, Miguel escolhe a área do Mercado de Peixe. Consequentemente, os peixeiros e os usuários do mercado tornam-se seus parceiros. O produto gerado, uma espécie de banner, advém da oficina de pincel de luz, ministrada por Chikaoka. A intenção era contribuir para que os resultados do conhecimento fotográfico, aliados aos processos de impressão de baixo custo, pudessem gerar, além do material para exposição, produtos como sacolas e embalagens adornadas com os desenhos dos peixes e outros elementos criados na oficina. Sem dúvida, o trabalho em si não se dá somente quando os banners estão espalhados entre os peixeiros e aqueles que transitam pelo mercado. Ele se constitui ao longo do processo, junto com os que participaram da oficina, da montagem e das discussões. Chikaoka é um artista “propositor”, no sentido concebido por Oiticica. A tarefa do artista é mudar o valor das coisas41; e esta tarefa Chikaoka desempenha muito bem, pois desde 1980 vem contribuindo com mudanças no campo da fotografia, atuando nas questões patrimoniais e ambientais. Em 2005, a convite do Départament du Val de Marne, França, participa do projeto Olhos d’Água em uma ação em Colares/PA que se desdobra também em outros munícipios. O objetivo era trabalhar ações educativas envolvendo fotografia e meio ambiente, tendo como tema a água, associada às nascentes dos rios da Amazônia. A exposição H2Olhos, realizada em São Paulo, no Itaú Cultural, em 2008, faz uma ponte com esse projeto e tem curadoria de Miguel Chikaoka, que propõe um passeio pelas águas do rio Tietê, da sua nascente ao leito. A exposição é organizada em três partes: H2Olhos no Olho, formada por um jardim com olhos d´água e espelhos; H2Olhos no Leito, na qual o visitante tem a sensação de mergulhar nas águas ao caminhar entre tecidos translúcidos com peixes desenhados com pincel de luz; e H2Olhos nas Nuvens, que é um convite à interação. O enfoque temático vem pela contramão. Chikaoka, ao invés de enfatizar a poluição, caminha pelo sentido da preservação das águas que ainda não estão poluídas, inicia sua curadoria na cidade de Salesópolis, ainda em São Paulo, onde se encontra a nascente do rio. A intenção é navegar com um olhar fotográfico que mostre que o rio Tietê, tão poluído na capital, é limpo em outras cidades. As oficinas partem dessa perspectiva e utilizam as técnicas do pincel de luz e da fotografia pinhole para oferecer parte da matéria que constitui a exposição. O visitante pode então navegar por florestas, nascentes, afluentes e peixes. Em H2Olhos estão presentes os elementos da natureza, a partir de uma reflexão sobre os recursos naturais. Em meio a esse ambiente “natural” transitam recursos de ordem tecnológica, como vídeo e a internet. Em seus trabalhos, Chikaoka não prioriza a técnica, mas é ciente e participa dos processos contemporâneos que exigem 41

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Esta afirmativa é baseada em Helio Oiticica, no seu texto Experimentar o Experimental (OITICICA, 1981).


o uso dos instrumentos facilitadores da comunicação. Por isso, em meio à poética das florestas e peixes, introduz os artifícios provenientes da informática e do vídeo. Na opinião de Bourriaud, há um “[...] paradoxo fundamental que liga a arte e a tecnologia: se a técnica é por definição aperfeiçoável, a obra de arte não o é.” No cruzamento dos vários procedimentos que Chikaoka propõe no campo da arte, destacam-se aqueles que ficam muito próximos dos enfrentamentos da vida cotidiana. Tudo é muito simples, corriqueiro. Todavia, nada do que realiza pode ser aperfeiçoado; tudo é o que é, mesmo quando o precário se apresenta, ele vem aliado a uma intenção. Suas propostas são carregadas de afeto, mergulhadas em relações tecidas na convivência, originadas na inquietude de quem percebe o mundo, sua poética e seus problemas. Os seus trabalhos mais experimentais são dotados de força, assimilados e usufruídos durante e após o processo de feitura. O processo educativo integra-se e torna-se arte; faz parte do processo. O trabalho surge não apenas de um segmento, mas da confluência de segmentos formados de ideias e ações. E assim surge a Floresta das Nascentes, o transparente leito do rio onde navegam os peixes da bacia do Tietê, onde o turvo da poluição sucumbe no discurso trabalhado antes, na experiência do navegar no barco Almirante. Ver e sentir o límpido olho d’água é saber do nascedouro, sem esquecer o mal da mancha que traz o odor que entranha e não deixa esquecer o rio. Seguir na imagem que abraça, no ambiente que convida ao mergulho, na floresta que se dá na luz, no reflexo da quase água, talvez seja a proposta do poeta, do fotógrafo que sempre tem aonde ir. O seu corpo, o meu, misturam-se a outros corpos. É “ao mesmo tempo vidente e visível. Ele que olha todas as coisas, pode também se olhar, e reconhecer no que vê então o ‘outro lado’ de seu poder de vidente” (MERLAUPONTY, 2004, p.17). A luz permite o visível, e em sua imaterialidade permite a imagem. Basta um pequeno furo para que o raio atravesse o espaço e se veja o que estava oculto. “Visível e móvel, meu corpo conta-se entre as coisas, é uma delas, está preso no tecido do mundo [...]”(Ibid., p.17). Na condição de prisioneiro do mundo, Chikaoka não destece o tecido e nem perde a condição de navegante – deixa-se envolver pela trilha de luz.

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Oficina no Rio Tietê, a bordo do barco Almirante do Lago.

Oficina na sede do Itaú Cultural, na Av. Paulista, em São Paulo.

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Floresta das Nascentes. Exposição H2Olhos, no Itaú Cultural, 2008.

O mergulho na transparência do rio, junto aos peixes de luz.

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Remates

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O contador de histórias sempre teve um lugar especial na compreensão e identificação de um mundo povoado de personagens, nos quais o ouvinte/leitor percebe os seus próprios sentimentos e reconhece os seus medos e os seus sonhos. Parte de sua vida encontra-se na narrativa, que é emprestada da ficção. Não é à toa que Sherazade escapa da morte narrando as suas infindáveis histórias. Escrever sobre Miguel Chikaoka me fez contar uma história pra mim mesma, e seguir em um enredo que não partia da ficção, mas era entremeado de descobertas, de cenas não mais existentes, que fluíam em meu imaginário e ganhavam cor. Eu não me sentia à parte, ao contrário, percorria a trama, inseria-me nos fios de histórias, mesmo naquelas que não vivi. No entretecer de enredos, tempo e espaço muitas vezes ficam suspensos; e o que é real pode se contaminar com a ficção, juntando momentaneamente tramas distintas. Desta maneira, foi ativado o poeta e o narrador: do primeiro veio o fio que sutilmente ocupou percursos, seguindo como uma marca d’água quase invisível, mas presente; do segundo partiram os fios que se originaram no Oriente, e se uniram por ínfimos instantes. Ali nascia o despertar atemporal, a identificação primeira, a ancestralidade que se atualizava no contemporâneo, provocando o cruzamento de rios e a mobilidade líquida que podia unir fotógrafo e narrador. Do navegar mútuo surgiu o ensaio sobre Miguel Chikaoka, enquanto autor de imagens e de propostas experimentais e existenciais, que ocupam o lugar da arte em um espaço aglutinador de diferentes segmentos. No desencadear, e durante o processo, encontra-se esse lugar tomado pela fotografia, pela ação performática e pela ação educativa. Um pensamento atravessado pela luz impregna todos os segmentos – é a sua razão de ser. Se na história aqui contada, o olho d’água fez o rio de imagens nascer em Nancy, foi o leito do Amazonas que permitiu a permanência da luz, o fluir do fotógrafo. Os agitados anos 1980 em Belém, com o entrecruzar de ações locais de ordem cultural, institucional, pessoal e coletiva, no campo da política e da arte, somadas às atuações da Funarte (INAP e INFoto), desembocaram na criação da FotoAtiva, que teve em Chikaoka o seu idealizador, sempre atuante, aquele que lhe imprimiu o caráter coletivo, tanto diante das questões políticas, patrimoniais, ambientais, quanto à frente das discussões concernentes à fotografia, à imagem, ao fazer fotográfico. Sem distinção de papéis, o experimentador, o educador, o artista e o fotógrafo surgiram ainda na França e, anos depois, em Belém, tornam-se muito evidentes. O Cromo Clip TVQTV, criado por Miguel Chikaoka em 1987, exemplifica o momento propício para vivenciar as experimentações, deixar fluir os processos contemporâneos de apropriação, de mistura de linguagens. O clip foi apresentado na efervescência da Praça do Ferro de Engomar, que abrigava a FotoAtiva e o Bar 3x4, e traduzia a inquietação, irreverência e humor, alguns dos atributos com os quais 104


Miguel Chikaoka conduz o seu processo criativo. Num ato coletivo em plena praça, projetava o seu clip, composto por slides com imagens da televisão e de trechos do Mangá “Lobo Solitário”, em colagens de sons e imagens, com trilha sonora do filme Cidade Oculta, de Arrigo Barnabé. Chikaoka participou de todas as etapas de produção deste audiovisual: fez o roteiro, gravou o bip na fita cassete e controlava a sincronização da imagem e do som. A projeção era feita em um anteparo, mas também corria pelas pessoas. Ali estava a alegria e a força dos anos 1980. Ali estava uma das matrizes que impulsionaram e forneceram o material que ainda se desdobra e reverbera nas novas gerações. Miguel Chikaoka é um caminhante, um navegante da luz, que sempre teve aonde ir. O amigo do Velho Rei foi, vai e segue; abriga-se na arte de forma mais ampla, estando ao mesmo tempo com ela e com o que pertence a outro domínio; tudo ao mesmo tempo, sem cessar. Chikaoka sabe que “se a arte não for constantemente ameaçada estimulada por coisas que estão fora de seu domínio, ela se esgota.”42 A ameaça, a si mesmo se traduz no ato simbólico de furar os olhos, havia chegado à conclusão que não precisava de tanta luz. E confessa: “Quando eu furei o olho com o Hagakure, a ideia é que eu precisava furar o olho para poder enxergar através de um furinho, não preciso do olho inteiro.”43 Hagakure, o trabalho com o qual Miguel foi premiado, também foi apresentado em várias cidades brasileiras. Esta obra sintetiza o rigor, o desprendimento, a sensibilidade e o estímulo sensorial, qualidades que o acompanham em seus processos educativos e de criação. A obra literária homônima, concernente ao código de ética dos samurais, também foi fundamental para Yukio Mishima. O escritor considera que o significado de Hagakure está na visão de um mundo passado, e que os preceitos nele contidos tornaram a sua vida excepcionalmente difícil. Mas, ao mesmo tempo, o livro é o ventre de onde nasceu a sua obra. E afirma: “é a eterna fonte de minha vitalidade – graças ao seu chicote incansável, ao seu comando, à sua crítica feroz, à sua beleza, que é a beleza do gelo.” (MISHIMA,1987, p. 21). E a beleza do gelo é fria e efêmera, mas o importante é o que fica na retina, o translúcido brilho derretido com a luz, com o calor. Ao chegar à conclusão de que não precisa do olho inteiro, e que furar o olho significa ver melhor, Chikaoka segue o comando de Hagakure – vê-se diante do código e também de Mishima, o escritor atormentado que viveu intensamente, questionando o Japão, seus costumes, sua cultura. Em Miguel Chikaoka houve dois importantes construtos: o Oriente, que lhe deu o norte; e a Amazônia, que lhe ofereceu o desafio

42 Esta afirmativa é do escritor japonês Yukio Mishima, lido e admirado por Miguel Chikaoka. O texto consta do livro O Hagakure: Ética dos Samurais e o Japão Moderno (MISHIMA, 1987, p. 21). 43

Trecho da entrevista concedida a Mariano Klautau Filho (KLAUTAU FILHO, 2012, p. 140).

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da imensidão, da diversidade. O caminho não finda; o rosto revela-se em sua inteireza. Oriente-Ocidente se afinam pela luz, que possui a mesma fonte, independente de lugar. Ainda como uma ideia criando forma no pensamento, os princípios que regem o pinhole, equipamento que sempre o acompanha, começam a gerar um novo Hagakure. De acordo com Chikaoka, a imagem se constitui independente do ambiente estar fechado ou não. A câmera é dispensável para que a imagem ocorra, pois a imagem está lá, mesmo que não se perceba. Precisa-se unicamente do furo, não do ambiente escuro. Onde está a essência de tudo? Trata-se do “suicídio da luz”.44 Talvez como o haraquiri praticado pelos guerreiros: vida e morte encontram-se na presença do fenômeno, da imagem. A prática experimental consiste no uso de placas negras com um furo, intercaladas por placas de espelhos. O fenômeno não é conceitual; é físico, existe. A imagem está lá; e não se vê porque não foi criada a condição necessária para a sua visualização. O processo é silencioso e invisível. Ninguém vê a imagem, mas ela se encontra naquele espaço da experiência – não materializada, não tangível. O delicado processo diz do caminho percorrido e do que ainda irá percorrer. Sabe-se que a ordem é “ir ter onde”. O caminho de volta pra casa pode ser feito a qualquer momento. Mas, qual casa? Se esta se tornou o mundo.

44 Esta afirmativa e todo processo de pensamento constituído neste parágrafo pertence a Miguel Chikaoka e foi apresentado durante a entrevista concedida à autora em 12 de setembro de 2013. Trata-se de uma nova experiência que se encontra em processo, na qual não mais precisa da caixa preta, apenas da luz e das placas negras e de espelhos.

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Marudรก, outubro 2006. Pag 110 e 111

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Sobre o artista


Miguel Chikaoka Nasceu em 1950, em Registro (SP). Engenheiro elétrico graduado pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), vive e trabalha em Belém desde 1980, onde idealizou os projetos de criação da Associação Fotoativa e da Agência Kamara Kó. Suas obras transitam entre imagens, instalações e objetos de caráter conceitual, pautados na experiência de religação dos sentidos. Participou de exposições individuais e coletivas, dentre elas, Modern photographic expression of Brazil, Zaim (Yokohama, 2008); 29º Panorama da Arte Brasileira, MAM-SP (São Paulo, 2005); Une certaine Amazonie, Salon du Livre et de la Presse Jeunesse (Paris, 2005); entre outras. Possui obras nos acervos da Coleção Pirellli/MASP de Fotografia (São Paulo), da Fundação Biblioteca Nacional (Rio de Janeiro) e do AMA (Washington). Recebeu, em 2012, o Prêmio Brasil Fotografia e a Comenda da Ordem do Mérito Cultural - Minc por sua contribuição à fotografia brasileira.

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Coordenação Editorial

Marisa Morkazel Coordenação de Produção

Makiko Akao Pesquisa

Marisa Mokarzel Texto

Mariano Klautau Filho, Marisa Mokarzel. Fotografias

Miguel Chikaoka/Kamara Kó , Armando Queiroz. Projeto gráfico

Márcio Alvarenga Tratamento de imagens

Alberto Bitar Revisão geral

Iraneide Silva






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