Era duas vezes o Barão Lamberto Pt - Gianni Rodari / Javier Zabala

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CA P ÍT U L O P RIM E I RO

No meio da montanha fica o lago de Orta. No meio do lago de Orta, mas não exatamente no meio, fica a ilha de S. Giulio. Na ilha de S. Giulio fica o palacete do barão Lamberto, um senhor muito velho (tem noventa e três anos), muito rico (é dono de vinte e quatro bancos em Itália, Suíça, Hong Kong, Singapura, etc.) e que está sempre doente. Tem vinte e quatro doenças. Apenas Anselmo, o seu mordomo, consegue lembrar-se de todas elas. Estão por ordem alfabética num pequeno caderno: arteriosclerose, artrite, artrose, asma, bronquite crónica e por aí fora até à letra «z». Ao lado de cada doença, Anselmo tem tudo bem anotado: os remédios receitados e as horas a que tem de os tomar, os alimentos que pode e não pode comer, as recomendações dos médicos: «Cuidado com o sal, que aumenta a tensão arterial», «Cortar nos pastéis e nos queques, que não fazem bem à diabetes», «Evite emoções, as escadas, as correntes de ar, a chuva, o sol e o luar».

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Às vezes o barão Lamberto sente uma dor aqui, outra acolá, mas não a consegue associar a nenhuma das suas doenças em particular. Então pergunta ao mordomo: – Anselmo, uma dor aqui e outra ali? – Número vinte e dois, senhor barão, a úlcera duodenal. Ou: – Anselmo, sinto de novo aquelas tonturas. O que será? – Número oito, senhor barão, o fígado. Mas também pode ser a número vinte, a tiroide. O barão confunde os números. – Anselmo, hoje está-me a doer a nove. – Garganta? – Não, o pâncreas. – Desculpe, senhor barão, mas o pâncreas é a número dezoito. – O que é que está para aí a dizer, Anselmo? Então a número dezoito não era a vesícula biliar? – Vesícula biliar é a vinte e três, senhor barão. Ora veja. – Não faz mal, Anselmo, não faz mal. Como está o tempo?

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– Nevoeiro, senhor barão. A temperatura vai baixar. Neve nos Alpes. – Está na hora de ir para o Egito, não é? O barão Lamberto também possui uma mansão no Egito, a dois passos das pirâmides. Tem outra na Califórnia. E mais uma na Costa Brava, outra na Catalunha, e ainda outra na Costa Esmeralda, na Sardenha. Também é proprietário de apartamentos climatizados em Roma, Zurique e Copenhaga. Mas no inverno vai sobretudo para o Egito, pôr os velhos ossos ao sol, especialmente os mais compridos, cuja medula é tão importante, pois é a fábrica dos glóbulos vermelhos e dos glóbulos brancos. E, assim, viajaram de novo para o Egito, porém, desta vez não ficaram por muito tempo. Na verdade, durante um passeio à beira do Nilo, conheceram um curandeiro árabe e puseram-se a falar. A conversa não durou muito, mas logo a seguir o barão Lamberto e o mordomo Anselmo regressaram a Itália no primeiro voo que conseguiram apanhar e fecharam-se na sua mansão na ilha de S. Giulio para experimentar umas coisas. Passado algum tempo já não estavam sozinhos. No sótão da casa vivem agora mais seis pessoas que, durante todo o dia e toda a noite, repetem o nome do barão: – Lamberto, Lamberto, Lamberto... – Lamberto, Lamberto, Lamberto. Começa a menina Delfina, continua o senhor Armando. Termina o senhor Giacomini, retoma a senhora Zanzi.

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É então a vez do senhor Bergamini, depois a da senhora Merlo e calha de novo à menina Delfina. Fazem turnos de uma hora cada um, de duas horas durante a noite. – Lamberto, Lamberto, Lamberto... – Lamberto, Lamberto, Lamberto. A senhora Delfina dá por ela a rir de si própria. Antes de adormecer, pensa: «Que raio de emprego! Para que é que isto serve? Os ricos são mesmo doidos.» Os outros cinco não se riem nem fazem perguntas. São bem pagos, recebem um salário igual ao do presidente da República, para além de alimentação, alojamento e rebuçados, todos os que quiserem. Os rebuçados são para quando ficam com a língua seca. Para quê estarem a preocupar-se? – Lamberto, Lamberto, Lamberto... Até aos domingos. Até no dia de Natal. Até na noite da passagem de ano. Eles não sabem que em todos os cantos e esquinas do sótão estão escondidos minúsculos microfones e, espalhados por toda a mansão, outros tantos altifalantes minúsculos e invisíveis. Há um mesmo debaixo da almofada do barão e um dentro do piano no salão de festas. Dois na casa de banho principal: um dentro da torneira da água fria, outro na torneira da água quente. Em qualquer altura, quer esteja na cave ou na biblioteca, na sala de jantar ou na casa de banho, o barão Lamberto carrega num botão e ouve:

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– Lamberto, Lamberto, Lamberto... O próprio mordomo Anselmo, pelo menos uma vez de meia em meia hora, verifica se o trabalho lá em cima no sótão continua ininterruptamente, se o nome está a ser pronunciado de forma correta, se todas as sílabas têm a devida entoação, se os seis empregados ganham honestamente o pão e os rebuçados. O barão, ao princípio, não estava completamente satisfeito. – Ouve o que te digo, Anselmo – queixava-se ele –, a maiúscula não se está a notar. – Infelizmente, senhor barão, não há como pronunciar as letras maiúsculas de maneira diferente das minúsculas. A língua falada tem destas falhas. – Eu sei, mas aborrece-me imenso. O «L» inicial do meu nome soa exatamente como o «l» de lesma, lagarto, lambidela. É deprimente. Eu pergunto-me: como é que o grande Napoleão pôde tolerar que o seu nome imperial tivesse o «N» com o mesmo som de navegante, nêspera, nádega? – Nariz, náusea, nictação – acrescenta Anselmo. – O que é que significa «nictação»? – É o ato de abrir e fechar os olhos rapidamente. O barão fica a pensar. – Pelo menos no momento de pronunciar o meu nome, eles deveriam esforçar-se a ver o «L» maiúsculo com os olhos da mente.

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– Isso pode-se fazer – diz Anselmo. – Em todas as paredes do sótão serão colocados cartazes com o seu nome escrito em letras maiúsculas, para que eles o leiam enquanto o pronunciam. – Boa ideia. Também deveria alertar-se a senhora Zanzi para não prolongar tanto a segunda sílaba de Lamberto e suavizar a terceira: dá uma certa ideia de balido – «bééé bééé» – que deve ser evitado a todo o custo. – Será feito, senhor barão. Se me dá licença, pedirei também ao senhor Bergamini para não separar tanto as três sílabas do nome. Parece que é, se me permite a expressão, um efeito tipo claque de futebol. Parece um daqueles adeptos fervorosos: Lam-ber-to, Lam-ber-to... – Veja lá isso, Anselmo, veja lá isso. E da parte deles há algum pedido? A senhora Merlo pediu autorização para tricotar durante o seu turno. – Autorizado, desde que não se lembre de contar em voz alta. – O senhor Giacomini gostaria de ter autorização para pescar da janela do sótão virada a norte, a que fica à beira do lago. – Mas não há peixes no lago de Orta... – Foi o que eu lhe disse. Expliquei-lhe que o Cusio é um lago morto. Ao que me respondeu que, para ele, o importante é o ato de pescar, mesmo que não apanhe

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peixes, e que o lago morto ou vivo, para um verdadeiro pescador não faz diferença nenhuma. – Força, então. O barão levanta-se, com a ajuda de duas bengalas com pegas em ouro maciço, dá três passos com dificuldade (n.º 6, claudicar) até ao sofá mais próximo e deixa-se cair. Carrega noutro botão e põe-se à escuta: – Lamberto, Lamberto, Lamberto... – Esta é a voz da menina Delfina. – Sim, senhor barão. – Que bela pronúncia. Destaca muito bem cada letra do nome que, como o Anselmo deve ter reparado, é todo composto por letras diferentes. – Também o meu, se o senhor barão me permite. – Exatamente. E também o da Delfina. São bonitos os nomes em que nenhuma letra aparece mais do que uma vez. Claro que às vezes também existem outros nomes bonitos. A minha querida mãe, coitada, por exemplo, chamava-se Otávia, um nome cujo «a» se repetia. No caso dela até soava bem. Porém, tenho pena que a minha irmã tenha batizado o seu único filho com o nome de Otávio. Otávio começa e termina com a mesma vogal. Os dois «o» é como se fossem dois parênteses. Um nome entre parênteses, que coisa... Deve ser por esse motivo que o Otávio é tão antipático. Acho que não lhe vou deixar toda a minha fortuna... Infelizmente não tenho outros familiares...

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– Não, senhor barão. – Já morreram todos, exceto o Otávio. E ele deve estar à espera do meu funeral, obviamente. A propósito, temos notícias do meu querido sobrinho? – Não, senhor barão, desde que pediu um empréstimo de vinte e cinco milhões para pagar uma dívida de jogo. Há já um ano. – Eu lembro-me, perdeu todo esse dinheiro a jogar bilhar, esse viciado. Enfim, Anselmo, prepare-me uma camomila. O barão Lamberto possui a mais rica coleção de chás de camomila do mundo. Tem camomilas dos Alpes e dos Apeninos, dos Pirenéus e do Cáucaso, das Serras e dos Andes, e até dos vales dos Himalaias. Cada tipo é catalogado em prateleiras especiais, com um cartãozinho no qual estão indicados o local, o ano e o dia da colheita. – Eu sugiro uma Campo Romano de 1945 – diz Anselmo. – Decide tu, Anselmo, decide tu. Uma vez por ano, a vila abre as portas para que os turistas possam visitar as coleções do barão Lamberto: a das camomilas, a dos guarda-chuvas, a dos pintores holandeses do século XVII... Vêm visitantes de todo o mundo, e os barqueiros de Orta a transportar os turistas até à ilha com os seus barcos a remo ou a motor fazem negócios da China.

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CA P ÍT U L O S EG U N D O

É o turno da senhora Zanzi. – Lamberto, Lamberto, Lamberto... Ela tem muito cuidado para não acentuar demasiado a segunda sílaba, para que não se ouça aquele «bééé bééé bééé» pelo qual foi repreendida. Ela, tal como a senhora Merlo, também costuma fazer tricô para se entreter e até gosta. Nem tem de contar os pontos, as suas mãos contam em vez dela. Noutra divisão do sótão, o jovem Armando escuta os desabafos da menina Delfina. – Este trabalho não me convence – diz ela. – Pois eu acho-o muito fácil – responde Armando. – Agora imagine se tivéssemos de repetir a palavra «pterossauro». – O que é que significa? – «Réptil voador da pré-história». Estava nas palavras cruzadas da semana passada. – O que é que isso tem a ver? Este trabalho continuaria cheio de mistérios mesmo que tivéssemos de repetir o dia todo a palavra «polenta» ou «panqueca».

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– Eu não vejo mistério nenhum: o barão paga-nos e nós fazemos o que ele nos pede para fazermos. Ponto final. Ele entra com o dinheiro, nós trabalhamos. Albarda-se o burro à vontade do dono. – E o produto? Eu trabalhei durante dez anos numa fábrica de meias. O patrão pagava (e mal, para dizer a verdade), eu trabalhava, e no final lá estavam as meias. O que é que nós produzimos? – Menina, não complique as coisas. Faça de conta que lhe estão a pagar para fazer publicidade ao sabão Pik Puk. A menina não precisava de fazer mesmo o sabão, só teria de dizer: Pik Puk, Pik Puk, Pik Puk. E as pessoas iriam a correr comprar o tal sabão porque, quando fossem lavar a cara, teriam a sensação de estar a ouvir a sua linda voz e de estar a ver o seu lindo nariz. – Mas, elogios à parte, nós não estamos a publicitar o barão Lamberto, ele não está à venda. Trabalhamos em segredo, como se houvesse algo de proibido. – Será um segredo militar. – Pois... – Um segredo atómico. – Pare lá com isso... – Menina, fiz as contas e, de cada vez que digo a palavra Lamberto, ganho quinhentas liras. Acha pouco? Para além disso, o serviço que temos é excelente. A cozinha, de primeira classe. Hoje, por exemplo, o senhor Anselmo

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serviu-nos risoto com trufas e pato à Pequim. Trabalhei doze anos numa fábrica de frigoríficos, e todos os dias nos davam pão com mortadela. Aqui, pelo contrário, mal reparei que estava a engordar, pedi, em nome de todos, que uma parte do sótão fosse equipada com um ginásio, e fizeram-nos a vontade em menos de vinte e quatro horas. E que ginásio, coisa de ricos! A menina também gosta de ir ao ginásio, certo? De que se queixa? – Não me estou a queixar, mas gosto é de saber o porquê. – E se souber, o que é que vai fazer? Um cafezinho? A seguir, é a vez da senhora Merlo. Noutra divisão do sótão, descansam tranquilamente o senhor Bergamini e o senhor Giacomini que, como de costume, está a pescar. Lançou a linha pela janela fora e ali está ele, à espera. A principal atividade do verdadeiro pescador é esperar. Apanhar peixes qualquer um apanha. Esta, pelo menos, é a sua opinião. – É como nos Jogos Olímpicos – explica ele. – O importante é participar, não é ganhar. Atrás dele, o senhor Bergamini também está à espera. Um caso que mais parece um milagre, pois juntou-se um verdadeiro pescador a um autêntico observador de pescadores, daqueles que nunca perdem a paciência se o pescador não pesca nada e, enquanto isso, metem as mãos nos bolsos, fumam o seu cachimbo, observam-no e deixam o tempo passar sem nada dizer…

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Quando conversam, o pescador e o observador de pescadores relembram as pescarias de outros tempos, noutros lugares, ou falam de tudo e mais alguma coisa. – Você já reparou – diz o senhor Giacomini – que o senhor Anselmo está sempre com o seu guarda-chuva? – Na minha opinião até o leva quando vai tomar banho – responde o senhor Bergamini. Efetivamente, o senhor Anselmo está sempre com o seu guarda-chuva preto, de seda, pendurado no braço pelo cabo de madeira. – Mas é boa pessoa. – Nada a dizer. Quando é a vez do senhor Giacomini, ele deixa a cana presa à janela e pede a Bergamini para ir dando uma olhadela à boia. O senhor Bergamini é um verdadeiro observador de pescadores: continua a observar mesmo quando o pescador já lá não está. Entretanto, põe-se a ouvir a conversa das senhoras Zanzi e Merlo, ambas a tricotar na sala de estar. A senhora Merlo está preocupada. Tem um primo chamado Humberto e outro chamado Alberto. Quando é o seu turno, não lhe saem os dois nomes da cabeça, e já esteve imensas vezes quase, quase para dizer «Hum» ou «Al», em vez de «Lam». Depois fica mais fácil, porque a segunda e a terceira sílabas são iguais nos três nomes: Humberto, Alberto, Lamberto. Mas a primeira sílaba

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é sempre uma luta entre o cérebro e a língua a uma velocidade supersónica. De cada vez, tem de escolher cuidadosamente a sílaba certa entre «Lam», «Al» e «Hum». – Até agora, felizmente, nunca me enganei – diz ela. – Vai ver que acabará por se habituar. Mas, acredite, eu também tenho as minhas próprias dificuldades. Surgem-me todos os tipos de palavras que começam com «lam», como lampreia, lâmpada, lampião, lambão. A primeira sílaba sai fácil. As tentações chegam com a segunda. Sabe, é uma questão de consciência: sou paga para dizer Lamberto; se eu dissesse «lampejante», ia sentir-me como se estivesse a roubar o salário. De vez em quando, lá em baixo na cozinha, o mordomo Anselmo carrega no botão direito e ouve as conversas do sótão. Fazem-lhe companhia enquanto prepara a bola de carne ou as costeletas com natas. Não deseja espiar, mas aprender muitas outras coisas. É um verdadeiro estudioso. O senhor barão, pelo contrário, nunca ouviria uma conversa privada. A sua mãe, coitada, quando ele era pequeno ensinou-lhe que não se deve ouvir as conversas dos outros. Ele escuta apenas para confirmar se o trabalho está a ser feito corretamente: – Lamberto, Lamberto, Lamberto...

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Aquelas vozes dão-lhe uma sensação de segurança. É como se estivesse sempre ali uma sentinela a olhar por ele e a manter os inimigos bem longe. Ele sabe perfeitamente que os que estão lá em cima só repetem o seu nome

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porque são pagos para o fazer. Mas fazem-no com tanto escrúpulo e às vezes até de forma tão encantadora que o barão não consegue deixar de pensar: «Gostam mesmo de mim.»

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