56 Edição

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JUNHO 2023 56º Edição

Indíce

JUNHO 2023

CAPA....... Fernando Corrêa dos Santos

04 ....... Você corta a etiqueta | Margarida de Mello Moser

06 ....... Pano para Mangas | Margarida Vargues

08....... Cantinho do João | João Correia

10 ....... Quem tem medo de Jordan Peterson | Cid Orlando Geraldo

12....... Um desenho animado | Lícinia Quiterio

14....... Entrevista | João Barreto

22....... Direitos dos refugiados | Ana Rita Gil

24 ....... O Mar Logo Ali | Ana Gomes

26 ....... Flores na Abíssinia | Carla Coelho

30 ....... Maus tratos a pessoas idosas | Mauro Paulino

34 ....... Ré em Causa Própria | Adelina Barradas de Oliveira

DIRECÇÃO: ADELINA BARRADAS DE OLIVEIRA

DESIGN E PRODUÇÃO: DIOGO FERREIRA INÊS OLIVEIRA

SITE:

WWW.JUSTICACOMA.COM

FACEBOOK: JUSTIÇA COM A

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Editorial

Junho é o Mês das Crianças, dos Idosos e dos Refugiados

Um mês de dias enormes e noites curtas, algo que me agrada sempre e me faz desejar o futuro que aí vem quando for idosa, poder portar-me como quando era criança e refugiar-me na praia, nas férias, no sol , na sombra e nas lembranças.

Abandonar deveres, viver sem horas, comer sanduiches e apanhar um escaldão

AH sim! Eu gosto é do Verão de passear, viajar, ler e dormir, pouco de preferência. Ler ou reler umas coisas, umas obras, uns autores, cirandar por Lisboa e observar em vez de aves pessoas. Ser cordial e não ter contrariedades.

Aprender coisas novas, nomes novos maneiras de pensar diferentes.

Também posso aproveitar para ler o que a JustiçA com A tem este mês para nos dar.

Venham daí, os dias são enormes e as noites são curtas ao piano, com o João Barreto.

Um Junho de Verão em 2023

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VOCÊ CORTA A ETIQUETA?

DE
MARGARIDA
MELLO MOSER.

A Arte Das Boas Maneiras

Sim, é uma arte e uma arte cada vez mais rara.

Não tarda muito e vamos ter caçadores de talentos para descobrir os praticantes de tal modalidade.

E o que é que isso nos diz sobre o mundo actual?

Diz-nos quase tudo, diz-nos onde chegámos com as altas tecnologias, os avanços do conhecimento, as amplas liberdades ...

E onde chegámos com a falta de educação, a falta de consideração, a falta de respeito, a ausência de boas maneiras ...

Li, há poucos dias, algures, que é a primeira vez na história que se constata que a nova geração é menos culta, menos inteligente, menos desenvolvida, mais estúpida que a anterior, que há um grande retrocesso na humanidade.

Eu acrescentaria que, simultâneamente, é a mais mal educada, de quantas conheci. Claro que há excepções, mas a falta de maneiras inibe-nos constantemente no diaa-dia, de entrar num confronto que podia ser saudável, numa discusão acesa de onde podia nascer a luz, de dar uma opinião que não seja politicamente correcta.

De facto, alguma coisa está a correr mal

quando as nossas referências deixam de ser o passado: os nossos Pais, os nossos Avós, a nossa História - para passarem a ser o futuro: os nossos filhos, os nossos descendentes e o mundo que há-de vir

Não sei se já vos aconteceu estarem à conversa com alguém, num sítio público, e serem interpelados a propósito do que estão a dizer, da opinião que estão a manifestar, da história que estão a contar. Pois é, está a acontecer! Já assisti à cena, mais do que uma vez. Graças a Deus que não se passou mesmo comigo, porque um dia destes acontece, e, se calhar, não acaba bem. São autênticas câmaras de vigilância que nos controlam os actos e nos querem controlar o pensamento. É para aí que estamos a caminhar a passos muito largos.

O horizonte actual oscila entre o umbigo e o que parece bem ou o que não parece mal, ou o que nem uma coisa nem outra.

E porque começou o Verão, as férias, a praia, o campo, aqui ficam umas linhas para reflexão.

E a etiqueta no meio disto tudo?

Tem tudo a ver.

E enquanto houver alguma, ainda, podemos cortar, ou não.

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PANO PARA MANGAS

Margarida Vargues

SER PROFESSOR

Uma jornada de prazeres e desafios

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Até há bem poucos anos, quando alguém me dizia que queria ser professor, revirava os olhos como que a dizer “Nem sabe no que se vai meter!”.

Hoje já não o faço. A prática assídua e dentro do sistema fez-me recuperar a consciência de que ser professor é mais do que uma profissão: é uma vocação! é um compromisso com a educação e o futuro das gerações que passam pelas nossas mãos. Aqui, como em muitos outros países, a carreira docente exige dedicação, paixão e uma constante atualização de conhecimentos, o que nem sempre é reconhecido por quem nos rodeia.

O espaço da aula, que pode ser a tradicional sala de carteiras umas atrás das outras ou - para os mais atrevidos - um qualquer outro lugar como o pátio ou o jardim - é um espaço mágico, onde o conhecimento é compartilhado e as mentes se abrem para novas possibilidades. E ser professor é ter o privilégio de despertar a curiosidade, estimular o pensamento crítico e ajudar os alunos a desenvolverem todo o seu potencial . É um papel fundamental na formação de cidadãos conscientes e responsáveis, capazes de enfrentar os desafios do mundo que os espera…

Assim escrito, parece uma profissão cor-derosa, onde não faltam nuvens de algodão doce, no entanto, ser professor também implica lidar com uma série de desafios, desde a gestão de uma sala de aula com alunos de diferentes perfis e necessidades até à pressão por resultados académicos - os tais 19s e 20s que fazem as escolas subir nos rankings. Deixemos, por ora, as burocracias de lado, já que dão pano p’ra mangas!

Apesar de todas as adversidades, acredito que a paixão pela educação é o combustível que nos impulsiona a superar todas as dificuldades. É gratificante ver o brilho nos olhos dos alunos quando compreendem um conceito difícil ou quando alcançam uma objectivo que parecia fazer parte apenas de um sonho. Esses momentos de conquista e crescimento fazem todos os desafios valer a pena.

Não somos nem mais nem menos que qualquer outro profissional, mas o certo é que ainda há

muitas profissões que dependem de nós. Todas, talvez, que as habilitações mínimas para se conseguir um emprego correspondem ao último ano do ensino secundário, isto é ao 12º ano de escolaridade. Ninguém passa esta meta sem a nossa presença nas suas vidas. Quer se queira, quer não.

Nem todos os professores são bons! - dizemme. É verdade. O mesmo acontece com os electricistas, os médicos, os pedreiros ou os advogados. Há os bons, os maus. Há os muito bons e os muito maus. Há os de excelência e há os que nem deviam existir.

Mas o que distingue um bom professor de um mau professor? Será a sua bagagem teórica? Será a pedagogia aplicada?

Para se ser um bom professor, é necessário estar permanentemente a par do que se passa à nossa volta, qual software que nos desliga os computadores para receber informação nova e os actualizar. Para que isto aconteça, lemos, participamos em cursos, seminários e workshops, trocamos experiências com os pares e procuramos novas formas de chegar aos alunos que, se por um lado estão mais exigentes, por outro estão mais distantes daquilo que consideramos essencial.

Além disso, ser professor implica também ser um exemplo para os alunos.

É necessário transmitir valores como o respeito, a empatia, a responsabilidade e a solidariedade. Devemos incentivar o diálogo, o pensamento crítico e a capacidade de questionar o mundo à nossa volta Somos agentes de transformação social, e é nosso dever preparar os jovens para serem cidadãos activos e conscientes.

Nesta altura do ano contamos os dias para umas merecidas férias, à medida que riscamos, da agenda, as reuniões, as avaliações, os relatórios, os exames,… Por outro lado questionamo-nos sobre como será Setembro e para onde nos levará, pois para muitos o desconhecido é um estado permanente.

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CANTINHO DO JOÃO

“LISBON STORY”

O olhar sobre Lisboa através da lente de Wim Wenders deixou-me perplexo quando o vivenciei, pela primeira vez, numa sala de cinema algures em 1994 pois, do que retirei do mesmo é que Lisboa era tão bonita como decadente.

Na realidade, debaixo do seu olhar, seria bem mais decadente do que bonita, mas seja como for, sou a crer que a decadência para este não pode ser, em circunstância alguma, dissociada da beleza para passar, até mesmo no extremo, a ser sinónimo desta. Para tanto, basta percorrer “Paris Texas”, “Palermo Shooting”, “As asas do desejo”, entre outras obras primas deste realizador pois, em qualquer uma delas as paredes das cidades onde o drama se desenrola transpiram decadência de uma forma que nos atrai, de forma indelével, ao ecrã.

Conheço bem a cidade retratada em “Lisbon Story” assim como os seus recantos e assim consigo reconhecê-los quase de imediato num exercício que ainda mais me agradou quando revi o filme em apreço há pouco tempo, tendo oportunidade de comparar duas épocas.

A maior parte do enredo desenrola-se em Alfama,

com passagens perto do mercado de Santa Clara, por vezes ao ar livre, por vezes numa casa com vista para o panteão nacional, casa esta tão decadente como a Lisboa do filme e, tão bonita como a mesma. Não fossem os azulejos que decoram o seu interior destacarem-se, com o seu azul e branco, como fachada onde os Madredeus ensaiam, intervalando conversas com a personagem principal, um alemão de seu nome Winters.

Já agora, todos os membros dos Madredeus, com excepção da Teresa Salgueiro, fumam intensamente, quer durante os ensaios, quer nos seus intervalos, como se não houvesse amanhã.

Notam-se muitas crianças nas ruas, estacionamentos caóticos nas zonas típicas da cidade, muitas antenas de televisão a decorar os telhados de Alfama e um Tejo sem cruzeiros.

Lisboa parece uma cidade muito pobre, não miserável, mas pobre e, em simultâneo, em obras, com grandes estaleiros junto ao aqueduto das águas livres onde Winters conhece um individuo suspeito que se oferece para o ajudar a encontrar o seu amigo cineasta Friedrich que se encontra

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João Correia

desaparecido, quando na realidade não o está. Da mesma forma que a ajuda oferecida não a é, mas apenas um truque para o enganar.

Friedrich desencanta-se com o cinema pois, no seu entender, quando filma em Lisboa sente que esta lhe desaparece, tal como o gato em Alice no País das Maravilhas, uma vez que Lisboa sente a sua câmara como uma arma a esta apontada. Friedrich opta, então, por carregar uma pequena câmara nas suas costas, apontada para lugar nenhum, de modo a que ninguém percepcione o que está a ser filmado, resultando assim num conjunto de peliculas imaculadas, não conspurcadas pela acção humana a qual transformou o cinema num sistema de vendas não desejado, nem pelo autor, nem pelas suas personagens.

Cria, sem mais ninguém saber, uma biblioteca de imagens nunca visualizadas pelo olho humano as quais, ele próprio nunca as viu, num exercício impossível de tentar salvar a cidade de que tanto gosta perpetuando-a sem a poder ver, como se, quando o fizesse, esta já não fosse a mesma que foi retratada nas suas costas. A própria biblioteca está instalada, em segredo, no antigo e degradadíssimo Cinema Paris em Campo de Ourique, junto à Estrela, não fosse a decadência do espaço um sinónimo da beleza de Wenders.

Friedrich desiste, convencido pelo seu amigo Winters, dando a sensação que o atraiu a Lisboa para esse efeito. Iniciam ambos um filme sobre Lisboa, desta vez com a sua visão a orientar

as imagens que captam com uma câmara artesanal, com os eléctricos sempre constantes, fugindo de quando em quando dos mesmos, como se estes fossem Lisboa a protestar com a sua presença atabalhoada nas suas ruas decadentes, mas como tal, bonitas.

Sempre gostei de Lisboa, e antes ou depois do filme de Wenders recordo-me de me zangar com a cidade e, quando me lembravam que nela vivia eu dizia apenas que, se com ela me zangava era por que gostava muito da mesma pois, Lisboa não me era indiferente.

Lisboa já não é decadente e assim perdeu a sua capacidade para servir de cenário a um filme de Wenders mas, em “Lisbon Story” a cidade não é só um cenário. É uma personagem principal com a qual as restantes personagens procuram contracenar exigindo destas um período de aprendizagem e um esforço que deriva entre a vontade de desistir, a mudança de planos, ou ainda numa segunda tentativa de a trabalhar. Não é uma cidade fácil, a Lisboa que Wenders conheceu e com a qual entrou em diálogo. Lisboa é uma actriz difícil e não me refiro aos seus habitantes pois esta é mais do que a soma de todos eles. É como Berlim com dois anjos que nela deambulam, Havana ao som de Buena Vista Social Club, Palermo acossada com o desespero de um fotógrafo, uma vila de seu nome Paris, mas que se situa no Texas, entre muitas outras.

Lisboa é uma actriz caprichosa mas que o seja pois, o que é belo em Wenders nunca será fácil.

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CID ORLANDO GERALDO

QUEM TEM

MEDO DE JORDAN PETERSON

Um homem quase sempre sozinho num palco, reafirmando algumas verdades simples – que, por malevolência alheia, insuficiência própria e pela inerente imperfeição da existência, a vida é grandemente composta por tragédia e sofrimento.

Eis Jordan B. Peterson, célebre psicólogo e académico canadiano, na sua primeira visita de trabalho a Portugal, para realizar um par de palestras (24 de abril em Lisboa, 25 no Porto), à semelhança do que já tem vindo a fazer um pouco por todo o mundo.

Estive presente no Campo Pequeno e assisti a quase duas horas de monólogo desse homem que incendiou as redes sociais e bateu recordes de vendas em todo o mundo, com o seu título 12 Regras Para a Vida: Um Antídoto para o Caos, publicado em 2018. Inevitavelmente apodado de “polémico”, como convém a um portador de verdades inconvenientes, Peterson fascina e entretém quem se predispõe a ouvi-lo com o coração aberto, quase na mesma medida que desgosta e repugna aos fanatizados do politicamente correto. Qual é então o cerne da sua mensagem?

Quem tem medo de Jordan Peterson – e,

crucialmente, porquê?

Que a vida é tragédia e sofrimento, já os gregos o sabiam, demonstrando-o convincentemente através da própria criação da tragédia, cuja máxima mais lapidar atribuo a Sófocles, em Édipo Rei, quando escreve: “Que ninguém se declare feliz até à hora da sua morte, caso seja destituída de dor.”

Schopenhauer desenvolve esta ideia, no livro terceiro do seu O Mundo como Vontade e Representação: “Considerase justamente a tragédia como o mais elevado dos géneros poéticos, tanto quanto à dificuldade de execução como quanto à grandeza da impressão que produz. (...) Esta forma superior do género poético tem como objeto mostrar-nos o lado terrível da vida, as dores indescritíveis, as angústias da humanidade, o triunfo da maldade, o poder do acaso que parece ridicularizar-nos, a derrota infalível do justo e do inocente: encontramos nela um símbolo significativo da natureza do mundo e da existência.”

Apesar disso, como escreveu Pessoa, “é em nós que é tudo”, significando isto que não somos, não podemos ser, tal como Hamlet, meros joguetes passivos das forças

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insondáveis da “fortuna adversa” e dos “milhares de choques naturais / de que a carne é herdeira” (e já agora, também o espírito). Na sua hora mais negra, ignominiosamente preso num Gulag por uma mera observação crítica quanto à condução da guerra defensiva da União Soviética (consabidamente incompetente) contra a agressão nazi, e recentemente diagnosticado com um cancro - ou seja, duas sentenças de morte -, Alexander Soljenítsin perguntou-se a si próprio as seguintes questões: que erros teria ele cometido ao longo da vida que contribuíram para a desventura das suas circunstâncias presentes? Que coisas fez, que não deveria ter feito; que omissões consentiu, que não deveria ter consentido? Embora talvez tivesse boas razões para isso, não acusou Deus, o comunismo ou a infâmia da condição humana - acusou-se a si próprio. Olhou para dentro e não para fora. Encontrou na responsabilidade pessoal a salvação e propôs-se a corrigir a sua conduta para o futuro: escreveu, em condições de penúria e sofrimento físico indescritíveis, o Arquipélago Gulag, o maior libelo de acusação de que há memória contra o mal absoluto que é o comunismo. “A decisão de um homem de mudar a sua vida, em vez de amaldiçoar o destino, abalou todo o sistema patológico da tirania comunista até às suas bases.” (12 Rules For Life)

Em resumo, o antídoto para a miséria da existência é a assunção de responsabilidade individual. Não queiramos mudar o mundomudemo-nos a nós próprios. Se é certo que não temos, por cegueira voluntária ou incapacidade inata, a exata noção do alcance nossas fraquezas, também não é menos verdade que não temos uma consciência clara das nossas potencialidades e valias, até sermos forçados (geralmente pelas circunstâncias) a dar-lhes uso. Podemos, todos nós, ser muito mais e fazer muito melhor. Sejamolo e façamo-lo. Não nos calemos, quando devemos falar. Não fraquejemos, quando temos obrigação de persistir. Encaremos a adversidade - e lutemos sem tréguas, até que ela ou nós pereçam. Escolhamos sensatamente as nossas batalhas (caso elas não nos escolham a nós, como geralmente acontece) e travemo-las até ao fim, com a máxima grandeza e dignidade que consigamos convocar em nosso auxílio. Não contra os males do mundo: as injustiças da sociedade, a inconstância ou a ingratidão dos Homens (esses Homens somos nós) - mas contra

os nossos próprios demónios, insuficiências e fraquezas.

Quem tem medo de Jordan Peterson? Os demagogos das utopias sociais e os reformadores da humanidade em abstrato. Os que pretendem mudar o Homem, corrigindo-o a partir de cima, em elocubrações revolucionárias e visões totalitárias de paraísos terrestres. Todos aqueles que, confrontados com as insuficiências da condição humana, olham sempre furiosamente para fora, mas jamais para dentro.

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UM DESENHO ANIMADO

LICÍNIA QUITÉRIO

Ela é um desenho animado.

Vai desenhando com os braços tudo o que conta.

Comprou um queijo grande, piramidal, cortou-lhe o bico, estás a ver, a mão em rasoira, depois em quartos, assim, com a mão em cutelo arrastando-se sobre a mesa, os homens a fazerem-lhe a pintura das paredes exteriores, nem queiras saber, os vidros todos salpicados, as duas mãos a aspergirem a invisível tinta na minha direção, uma porcaria, estás a ver, e as pingas pelo chão, o braço desenhando círculos ao longo do corpo, está um calor, e logo vesti esta t-shirt, abana-se, só com a mão, como se leque segurasse, mais magra eu?, olha lá bem, ambas as mãos agarrando as gorduras sobrantes da cintura, os netos é que não param, aos saltos, aos saltos, estás a ver, o rabo a saltar na cadeira, abre a mala, fecha a mala, abre a mala, onde tenho a lima?, uma unha falhada, raios, leva a unha aos dentes, rói de um lado, rói do outro, esfrega-a no tecido das calças, está melhor, mas se tivesse uma lima, estás a ver, as mãos na função com a lima que não há, zuca-zuca, gostei de te ver, tenho de ir, os homens voltam à tarde para tratarem do telhado, estica os braços, sobe os calcanhares, estás a ver a porcaria.

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Entrevista João Barreto

Pianista

João, se te pedisse para te identificares como o farias?

Ainda sou um estudante de música, mas acho que posso dizer que já estou à procura de uma entrada no mundo profissional.

Costumo dizer que sou um jovem compositor de jazz e gosto dessa identificação, pois independentemente do sucesso que possa vir a ter, nada mudará a minha relação com a composição e com o jazz.

Piano, Porquê? E Jazz, Porquê?

Os meus pais sempre adoraram música. Embora nenhum deles tenha relação profissional com esta área, desde muito cedo incutiram o gosto pela música, a mim e aos meus irmãos. Acho que o jazz surgiu até antes do piano, ainda que só me tenha apercebido disso mais tarde. Sempre admirei a capacidade de alguém brincar com o som. O som não é algo palpável ou visível, mas de alguma forma interfere com os nossos sentimentos.

No jazz, sempre admirei a alegria das pessoas a fazerem música em conjunto. Todos os músicos estão numa enorme conexão a comunicar numa linguagem universal. Penso que foi essa alegria de partilhar algo tão belo que me cativou para a música e para o jazz, em particular.

Quanto ao piano, com 3 anos, fui eu que o escolhi. Porque não havia aulas de piano para os mais pequeninos, comecei a aprender violoncelo, mas ficava sempre maravilhado com um piano que estava ao fundo da sala.

No final das aulas era para o piano que eu ia brincar.

Não demorou muito tempo até os meus pais perceberam que o que eu gostava mesmo era de piano e, por isso, lá se arranjou uma professora. Olhando para trás, não me arrependo em nada da escolha que mais tarde acabei por fazer conscientemente. O piano é um instrumento muito versátil e nele consigo exprimir as minhas ideias de forma completa.

“ The Loney Tree” , porquê este título e o que tem a ver contigo?

Não gosto de olhar para os meus projetos de forma separada. Prefiro encará-los como partes de uma caminhada que estou a percorrer no mundo da música. Associo o meu primeiro projeto

“Barefoot” ao início dessa mesma caminhada. Começo descalço.

Com a ajuda dos meus pais comprei um kit de gravação e foi em casa, no Verão de 2020, que gravei este projeto que me deu, entretanto, a oportunidade de gravar “The Lonely Tree”; nas condições ideais, em abril do ano passado, no Centro Musibéria, em Serpa. Este último projeto, associo-o a um momento de introspeção, como se eu fosse a árvore solitária, que se mantém calma e serena num prado vazio. Limito-me a observar o que tenho à minha volta e a refletir. Não se trata de uma solidão negativa, muito pelo contrário, é a solidão no sentido de ter tempo para mim e para pensar no mundo e no que eu quero transmitir com as minhas criações. “

The Lonely Tree” foi criado nestes momentos de introspeção e de procura de novas sonoridades ao piano. Espero que as pessoas ao ouvirem a minha música sintam esta calma que eu senti.

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Entrevista

João

Dizem que a tua música é vanguardista. É?!

Não considero a minha música uma música de rotura. O facto de ainda estar numa fase inicial de um percurso enquanto artista faz com que as minhas criações resultem de uma amálgama de influências, ainda à procura de uma identidade própria. Para além da música clássica e do jazz, as minhas composições podem ser inseridas na música contemporânea. Alguns temas relembram ideias do minimalismo como a repetição de um padrão no acompanhamento, mas outras peças relacionam-se mais com os blues ou até mesmo com sonoridades orientais. Imagino muitas das minhas composições a funcionar num contexto de cinema, sobretudo europeu, uma área que poderei a vir explorar no futuro.

“A Bright Darkness” que compuseste lembra-me alguns noturnos de Chopin. Estou errada?

Efetivamente, Chopin é uma das minhas referências na composição. Os noturnos de Chopin e “A Bright Darkness” partilham de um ambiente semelhante, com tempo nublado, soturno, contudo calmo e quase introspetivo.

A nota em ostinato, isto é, que é tocada repetitivamente ao longo da peça, é uma característica que ajuda a criar este ambiente próximo do ambiente sonoro dos noturnos, embora Chopin não utilize esta técnica. A ordem dos acordes também está relacionada com os noturnos de Chopin e com a harmonia utilizada no período romântico em geral. Há alguns aspetos mais

específicos que os separam um pouco. Por exemplo os acordes com uma sonoridade mais jazzística ou o acompanhamento da melodia que, nesta peça, é mais repetitivo e simples.

Nunca tinha pensado na relação das minhas composições com os noturnos de Chopin, mas, realmente, têm muitos pontos de semelhança. Obrigado.

Se há 10 anos te dissessem que irias ser mesmo pianista que responderias?

Se me disserem agora que farei da música a minha vida também não sei se acredito. Todos os dias trabalho com o objetivo de melhorar a minha técnica, a musicalidade e o vocabulário na composição, mas o mundo da música é muito competitivo e exige um sentido de oportunidade enorme.

Felizmente, tive a sorte de conhecer as pessoas certas que me ajudaram a iniciar o meu

caminho no mundo da música. Não é suficiente o trabalho e o sacrifício quando não somos bem orientados.

Graças à orientação do professor Álvaro Teixeira Lopes na música clássica sinto-me mais capaz ao piano, tanto na interpretação como na improvisação e por isso no caminho certo para cumprir os meus objetivos enquanto pianista.

Se o meu professor de jazz Pablo Lapidusas não tivesse mostrado o meu trabalho ao Centro Musibéria e se o Centro Musibéria não me tivesse dado a incrível oportunidade de gravar este projeto, certamente não estaria a responder a esta entrevista.

Sempre soube que independentemente

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Entrevista

João

da minha profissão, o piano estará sempre presente. Sempre foi algo tão natural como caminhar.

Nunca tive dúvidas sobre tocar piano. Até há pouco tempo não tinha a certeza sobre se seria possível fazer da música profissão. Felizmente, agora, sinto que estou cada vez mais próximo desta possibilidade, mas tenho que continuar a trabalhar como tenho feito e, por outro lado, dar-me a conhecer ao público.

Como é ter 17 anos e ser compositor? Como conjugas com a Vida e o Mundo à tua volta?

Gosto da forma como o artista é olhado, como se fosse um ser fora deste mundo e confesso que às vezes eu próprio me sinto assim.

Há alturas no estudo em que perco a noção do tempo e, se não fosse o estômago a dizer que são horas de almoçar, provavelmente passaria o dia todo só a tocar piano.

Acho que o mundo da música e a vida real não só são conjugáveis como se completam. Para mim ser-me-ia impossível viver sem música, mas, por outro lado, acho que, em parte, a música contém elementos da realidade.

Na verdade, considero pouco usual um rapaz da minha idade, para além de adorar música clássica e jazz, compor peças para piano. Sem contar com os amigos que conheci através da música, não conheço um jovem que tenha estes interesses.

Todavia, fiquei muito satisfeito quando amigos meus, que pensei nunca gostassem deste tipo de música, me deram o feedback

do “The Lonely Tree”.

Sinto que a minha missão foi cumprida quando a minha música chegou a um público que, de outra forma, nunca ouviria este género musical.

O mundo da música em geral é um mundo no qual se tem de entrar cedo. É habitual ouvir falar nos prodígios na música e, embora a música exija maturidade e não se limite a ter uma técnica fenomenal, efetivamente é preciso começar-se desde cedo para se poder desenvolver certas capacidades que permitam ambicionar uma carreira profissional.

Os meus amigos estranham o facto de eu gravar projetos, dar concertos e aparecer na televisão e isso efetivamente é muito bom para um rapaz da minha idade.

Por outro lado, uma vez que já tenho quase 18 anos, costumo dizer que estou na idade de fazer coisas! Preciso de compor novas músicas, dar-me a conhecer ao público e lançar-me no mundo da música. Há um tempo para tudo e sinto que é este o percurso que devo fazer.

Gostava que comentasses esta afirmação:

“A música é como a matemática”.

Em parte a música é como a matemática. Em Bach, por exemplo, há toda uma metodologia que tem de ser seguida de forma muito rígida para ser bem tocado.

A música do período barroco ou clássico é muito clara. Há uma série de “regras” que funcionam como base para a música. Contudo, isto é só uma base, sendo uma arte, a música não se pode limitar às regras.

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Há muito mais para além dos dogmas antiquados que impedem que haja liberdade na interpretação musical.

Por exemplo, alguns concursos de música clássica do mais alto nível são criticados pelo facto de parecer que todos os músicos tocam de forma igual.

A quantidade de regras é tal que, infelizmente, nalguns casos não é aberta a possibilidade ao intérprete de tomar determinadas decisões, restringindo assim a criatividade do artista e contribuindo para que a música deixe de ser uma arte, sem espaço para a imaginação.

O artista, seja ele intérprete ou compositor, tem de acrescentar algo de seu à obra musical. Para mim, há sempre um enorme espaço no qual o músico faz as suas escolhas e, na verdade, é isto que o vai distinguir enquanto artista.

Falando agora na música clássica, aquela interpretação é a interpretação que um músico faz de uma determinada obra, é, por isso, uma perspetiva tão válida como as outras, na minha opinião.

Já na composição, posso também, em parte, concordar com a afirmação.

À medida que vou ganhando conhecimento, começo a compreender melhor a sonoridade que um determinado acorde me vai dar num certo contexto. Por vezes, sinto que não preciso de procurar tanto pelo facto de já saber, quase matematicamente, que o acorde x ou a nota y me vai dar o “sabor” que estou à procura. Naturalmente, acho essencial procurar algo de novo e fugir das sonoridades que já se conhece, mas, em muitos casos, há uma explicação para o acorde x funcionar na

situação y quase como se se tratasse de uma regra matemática. Mesmo assim, há acordes nunca tocados, escalas nunca ouvidas e um enorme mundo musical que ainda não obedece a regras matemáticas e acho que, embora me encontre confortável na minha linguagem, que pode ser inserida dentro da linguagem da música ocidental, seja ela pop ou clássica, devo ter a coragem de procurar novos caminhos que não estejam escritos no “manual de matemática”.

Compositores: se escolhesses um clássico qual seria e porquê?

É sempre muito difícil escolher um. Na música que ouço tenho várias referências e tenho alturas da minha vida em que sinto maior afinidade com um compositor em específico. Acho que Bach será sempre uma enorme referência, mas a minha principal inspiração na música clássica são os compositores do período romântico como Chopin, Schumann, Liszt ou Rachmaninoff.

Como se compõe uma peça para piano? Surge do nada? É intuitivo?

Nasce como? Existe já em ti? Inspirações, quais?

Não conheço a existência de um manual para a criação artística.

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“Gosto da forma como o artista é olhado, como se fosse um ser fora deste mundo e confesso que às vezes eu próprio me sinto assim.”

Mesmo que exista acredito que seja muito vago. Ainda por cima, na música - algo que não se vê, que não é palpável -, cabe ao artista “brincar com o som”.

Enquanto pianista, limito-me a fazer música a partir do piano, o que em si limita muito as possibilidades. Mesmo assim há um leque enorme de escalas, acordes e melodias por descobrir, pelo que acho essencial um artista não ter medo de procurar algo novo, algo que nunca tenha sido tentado.

Muitas peças minhas surgiram de improvisações ao piano e, por isso, sinestesicamente. Há momentos da improvisação em que já quase nem penso e permito às minhas mãos seguirem os padrões que conhecem o que, na verdade, é algo que tento combater.

A improvisação deve ser uma improvisação verdadeiramente consciente pelo que é muito difícil sair da minha zona de conforto. Costumo gravar as minhas improvisações e depois tento melhorá-las. Isto pode ser feito através da introdução de algumas vozes que respondam à melodia principal, de acordes que não sejam habituais naquele contexto de modo a surpreender o ouvinte, ou até por vezes retirando notas que considere que estejam a mais.

Ao piano é tão fácil tocar uma tecla que por vezes os pianistas banalizam esta característica e acabam por cair no erro de tocar demasiadas notas quando na verdade a mensagem pode passar melhor tocando menos. Como em qualquer arte é preciso saber dosear, tudo tem de ter a proporção perfeita e só após refletir muito sobre as escolhas é que se consegue apresentar um resultado final.

Também há situações em que, como por magia, aparece uma nova ideia.

Nessa altura, gravo-me a cantar no telemóvel para que nenhum pormenor da ideia se perca e depois em casa, ao piano, aprimoro a ideia musical de forma meticulosa e consciente. O meu professor de jazz, Pablo Lapidusas, está sempre a comparar a música a uma língua estrangeira e não podia estar mais de acordo com isso.

Da mesma forma que um escritor tem de ler, um músico tem de ouvir música e é aí que vai buscar as suas referências. Adoro as improvisações e os arranjos de Keith Jarrett, os covers e os temas originais de Brad Mehldau e a sonoridade de Mário Laginha é talvez aquela com que mais me tenho identificado nos últimos tempos.

Gosto também de ouvir standards de jazz e muita música clássica uma vez que atualmente tenho estado mais ligado a este estilo de música, com as aulas o professor Álvaro Teixeira Lopes.

Concertos?  Quantos já? E Onde?

Atualmente estou a terminar o 12.º ano no Porto e felizmente tenho tido a oportunidade de apresentar muito programa de música clássica em audições. Também já apresentei as minhas composições várias vezes em audições escolares do Curso de Música Silva Monteiro. Logo depois das gravações no Centro Musibéria, em Serpa, dei um concerto com todas as músicas do álbum “The Lonely Tree” que decorreu com muito sucesso.

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Há momentos em que é difícil conciliar o estudo da música clássica com o jazz. Na fase de desenvolvimento em que estou, ainda procuro a minha forma de tocar piano e o tempo de estudo e os concursos de música clássica tornam mais difícil ter tempo para mais. Por esse motivo, após o concerto no centro Musibéria não voltei a apresentar-me em recitais a solo. Acredito que em breve a minha disponibilidade irá coincidir com o interesse de festivais de jazz e espaços culturais que tenham interesse na minha música. Gostava de poder voltar a apresentar-me em recitais a solo, mas também seria interessante explorar outras formações musicais.

E qual o próximo projeto?

Por enquanto, ainda não há um novo projeto. Tenho alguns esboços de um concerto para piano e orquestra, um grande objetivo que tenho agora. Obviamente que não parei de

compor, pelo que existem muitas ideias em desenvolvimento. Tenho também estado a explorar a composição de peças para trio de piano, contrabaixo e bateria, uma das formações mais comuns no jazz. Gostaria de um dia poder apresentar um projeto para este conjunto instrumental.

Para quando um Concerto em Lisboa?

Quando Lisboa me quiser!

Se a JustiçA com A te pedisse para tocares connosco duas ou três peças tuas, aceitarias?

Aceitaria com todo o gosto! É essencial um artista ter palco para conseguir continuar a fazer a arte de que tanto gosta.

Seria uma excelente oportunidade para dar a conhecer o meu trabalho a um público mais alargado e, ao mesmo tempo, agradecer pela incrível oportunidade de me terem convidado para esta entrevista.

O João está amanhã, dia 27, no Auditório do Curso de Música Silva Monteiro no Porto às 17:00h.

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ANA RITA GIL

Professora Auxiliar da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e investigadora do Lisbon Public Law. Leciona várias cadeiras de Direito Internacional Público, Direitos Humanos e Direito da União Europeia. Tirou o doutoramento na Nova, com uma tese sobre Direitos Fundamentais dos Migrantes. É licenciada em Coimbra. Trabalhou como assessora do Gabinete de Juízes do Tribunal Constitucional, ajunta da Provedora de Justiça e foi membro do Mecanismo Nacional de Prevenção da Tortura, bem como relatora para diversos estudos para as Instituições Europeias, em matéria de Direito de Asilo e das Migrações.

DIREITO DOS REFUGIADOS: um Direito imperfeito e muitos desafios futuros

O Direito dos Refugiados é repleto de imperfeições. Exclui muitos migrantes forçados de proteção, não atribui responsabilidades pela receção dos mesmos a nenhum Estado em específico, e exige que as pessoas cheguem pelos seus próprios meios ao destino para aí terem um direito a ser protegidas.

Focar-me-ei no primeiro aspeto: o Direito Internacional dos Refugiados deixa de fora muitos migrantes que poderíamos considerar merecedores de proteção internacional.

A noção jurídica de Refugiado está ainda alicerçada no conceito delineado na Convenção de Genebra de 1951, e remete para a pessoa que é perseguida em função de determinados motivos taxativos: raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou das suas opiniões políticas.

A pertença a grupo social tem permitido alargar a proteção a pessoas para as quais o estatuto não se encontrava inicialmente pensado, como as pessoas perseguidas em função da orientação ou identidade sexual, ou mesmo da idade (pensemos em países em que exista o recrutamento forçado de crianças-soldado, mutilação genital, casamentos forçados). No entanto, a noção não é infinitamente elástica e tem limitações

inultrapassáveis, que deixam de fora outros migrantes que poderíamos qualificar como “forçados”.

O Direito internacional de fonte regional tem já vindo a colmatar algumas falhas neste contexto, criando proteção para os chamados “deslocados de guerra” –i.e., pessoas não perseguidas, mas que abandonaram os seus países por temerem pela sua vida ou integridade pessoal devido à existência de um conflito armado – chama-se, na União Europeia, a este tipo de proteção, “proteção subsidiária”. No entanto, este mecanismo complementar continua a não oferecer proteção a todos os que saem dos países de origem por terem os seus direitos humanos mais básicos desrespeitados. É o caso dos chamados “migrantes climáticos”, que imigraram por motivos ambientais, como secas, cheias, desastres ou mesmo subida do nível das águas do mar. Apesar de se ter generalizado a expressão “refugiado climático”, em bom rigor estas pessoas continuam a não ser reconhecidas como refugiados – falta o elemento “perseguição” –, nem foi ainda criado qualquer estatuto complementar destinado a proteger as mesmas. Tão pouco merece reconhecimento uma eventual categoria de “refugiados económicos”,

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destinada a proteger pessoas que abandonariam os seus países por neles viverem em condições de pobreza e escassez tais que as deixariam no limiar da dignidade da pessoa humana, e em risco de sobrevivência.

Este estado de coisas não deixa de causar alguma perplexidade, se enquadrarmos o Direito dos Refugiados no Direito Internacional dos Direitos Humanos: quer nos casos de perseguição, quer nos casos de proteção subsidiária, o asilo é reconhecido como instrumental e necessário à proteção de direitos humanos básicos, como a vida ou integridade pessoal. Direitos humanos esses que estão igualmente em risco nos últimos casos mencionados. No entanto, o Direito dos Refugiados não se encontra estruturado de acordo com essa lógica, referente à necessidade de proteção de direitos humanos: as categorias de migrantes com direito de asilo são taxativas (refugiados e proteção subsidiária), e quem não cabe nas mesmas é considerado como “mero migrante económico”.

Tenho vindo a defender uma alteração deste paradigma. Na irrealidade de um possível mundo de fronteiras abertas, teria de continuar a existir uma divisão dos migrantes em dois: os forçados e os voluntários.

Porém, uma leitura deste ramo do Direito à luz dos Direitos Humanos exigiria que se considerasse como estando abrangidos na primeira todos aqueles que se viram forçados a imigrar por não reunirem, nos seus países de origem, as condições básicas de sobrevivência e dignidade,

independentemente da fonte de perigo para os seus direitos fundamentais: perseguição, guerra, pobreza extrema, alterações climáticas. Já quem reunisse tais direitos básicos e apenas pretendesse melhorar o seu nível de vida seria enquadrável na categoria de “migrante voluntário”. Enquanto os primeiros teriam um direito a ser protegidos, os segundos continuariam sujeitos a uma decisão soberana estadual, discricionária, sobre se tal pessoa deveria ser ou não aceite no território.

Esta é uma leitura que faz sentido do ponto de vista dos bens jurídicos protegidos, bem como da harmonia entre ramos de Direito. E parece ser esse o caminho para proteger os chamados “Migrantes climáticos”. Em 2020, no famoso caso Teitiota c. Nova Zelândia, apesar de não ter dado razão ao requerente, o Comité de Direitos Humanos das Nações Unidas abriu a porta para se considerar que a expulsão de uma pessoa para um Estado insular que, devido ao aumento do nível do mar, oferecia condições de vida insustentáveis, pode implicar uma violação do direito à vida. Assim, através da proteção contra condições de vida desumanas e degradantes, pode começar a abrir-se a porta para um direito humano a procurar e obter asilo por motivos climáticos. Trata-se de um caminho que já foi feito inicialmente pelo TEDH no que toca à proibição de expulsão quando se invocava risco de sujeição a pena de morte ou tortura, e que, posteriormente, veio a ser reconhecido pelo Direito da UE através do já referido estatuto de proteção subsidiária.

A via, pois, de proteger os direitos humanos destes migrantes forçados poderá e deverá ser mesmo essa: a de demonstrar que a sua permanência ou regresso ao país de origem levará inevitavelmente à violação dos seus direitos humanos mais básicos. É, contudo, um caminho que tem ainda de ser feito, apesar da urgência do mesmo. De acordo com estimativas do Banco Mundial, as alterações climáticas passarão a ser a maior causa de migrações forçadas no futuro. Importa criar um estatuto para estas pessoas, e importa ainda continuar a limar as arestas do Direito dos Refugiados, que continua a não dar resposta sobre que Estados deverão ser responsáveis por acolher os milhões de migrantes forçados do mundo

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Buchmann tinha dado ordem a Julia Liegnitz para escrever frases que eram o oposto da verdade: estar em frente a um muro branco e afirmar que o muro é negro ou saber bem que o dia seguinte é terça-feira e afirmar que não, jurá-lo, se necessário.

Gonçalo M. Tavares, Aprender a rezar na era da técnica, 2022, Relógio d’Água

E O MAR LOGO ALI
Ana Gomes

A VERDADE

«Juro pela minha honra que hei de dizer toda a verdade e só a verdade» é a declaração de quem está perante um Tribunal como testemunha.

Fórmulas mais ou menos como esta são praticadas, com o objetivo de fazer sentir ao depoente que tem o dever de ser fiel. Mas a verdade absoluta alcançável mediante meios cognitivos ilimitados é totalmente imaginária. Qualquer atividade cognitiva está limitada pelos meios que podem ser usados para estabelecer a verdade possível. Assim é numa reportagem, nos livros de história ou num processo judicial. Daí até ser indiferente ao Juiz declarar como verdade o que não aconteceu vai um passo de gigante e os Juízes não são gigantes.

Helena tem um metro e meio, de saltos altos cresce um pouco, continua franzina, mas a dimensão – ou a falta dela – nunca a incomodou. Diz que foi concebida à escala natural e que aquilo que os humanos, entretanto, construíram para chegar ao céu ou para se sentirem maiores ou mais poderosos, não é consigo nem uma ofensa à sua pessoa.

Todos os dias, a Juíza assume a responsabilidade de declarar se certo facto aconteceu, enunciando-o, e qual a consequência para os autores ou vítimas desse evento. Todos os dias, consome-a a possibilidade de declarar o que não aconteceu. Daí estar sempre alerta, ser meticulosa na apreciação da prova e ficar frustrada quando intui que possa ter sido diferente, mas não ter elementos para dar um salto lógico que ninguém compreenderia.

Dar de caras, ainda que na ficção, com uma personagem que falta deliberadamente à verdade, que do início ao fim, mentia, como nos confessa o narrador, com o objetivo de o seu nome ganhar solidez e fama, incomoda

Helena a ponto de quase deixar o livro de lado.

Helena obriga-se a começar a semana com um almoço de colegas, não todos, mas aqueles com quem ainda dá gosto conversar, que já não tem idade para fretes.

E, de facto, a prosa segue fluída, com partilha sobre como foi o fim de semana até à discussão sobre os grandes acontecimentos que raramente são o que apanham nos noticiários ou que fazem as delícias dos comentadores habituais.

Ali, não há espiral de silêncio. São cerca de dez pessoas a falar de tudo, numa tertúlia como não se divulga mais, dando a ideia de que desapareceram. E entre Juízes lá veio à baila o tema da verdade e as reflexões da Juíza Helena.

Não te apoquentes, mulher, que mentira sempre houve, sabia-se era muito depois de ser afirmada, o que dava aos mentiroso uma maior compreensão de quem o ouvia. Quando se descobria, já o mentiroso não era famoso ou tinha morrido e a mentira perdia o seu impacto – avançou um.

Eu percebo a Helena, parece que as razões eram mais nobres, os fins justificam os meios, estás a ver, muitas vezes uma forma de proteger o outro de uma realidade dura –interveio outro.

Talvez seja um sinal da atualidade, esta convivência natural com a mentira e tal como o silêncio pode eliminar uma verdade, a tua personagem e tanta gente à nossa volta estejam a fazer uma experiência única: de tanto afirmar uma mentira, ela convertese em verdade, isto é, aquilo em que todos acreditam. Daqui a uns anos veremos o que se conta destes nossos tempos.

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FLORES NA ABISSÍNIA

VAMOS À LA PLAYA

Evadi-me num mergulho. Cedi a Duras depois de ter tentado a abertura de espírito à la Annie Ernaux. Fiquei muito emocionada quando li Regardez les umières mon amour, numa edição de bolso com capa cintilante e fotografia de um carrinho de supermercado em tons de encarnado vivo. O que me sensibilizou foi a capacidade de atenção da autora que durante meses se deslocou a grandes superfícies perto do sítio onde morava, observando o que por lá se passava. E acontecia lá alguma coisa? Quando vemos com atenção está sempre a acontecer alguma coisa em todo o lado.

Foi assim a minha tarde:

Cheguei à praia para uma conversa silenciosa com o mar, o céu e a areia. Durante uns minutos, muito curtos, parecia que isso ia acontecer. Breve ilusão. À minha volta, outros

terráqueos tinham vindo à praia aos pares ou em grupo maior e o silêncio era companhia que não pretendiam manter.

Acima de mim, deitados um ao lado do outro – o que não se adivinharia face ao volume das vozes – um casal falava sobre conhecidos comuns, surpreendidos com uma gravidez inesperada. O homem relata com uma alegria perversa:

“Pois, isso foi o que aconteceu ao Tadeu e à mulher. Numa noite de bebedeira, entusiasmaram-se e com a estória de que ela já não funcionava, não dava, olha, mamaram com dois, gémeos!”

Instantaneamente, tenho pena do Tadeu que me é desconhecido. Imagino-o a contar aos amigos ou aos colegas que ia ser pai e a aguentar as piadas grosseiros, os risos guturais, a vergonha dos filhos mais velhos,

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Carla Coelho

adolescentes ou mesmo quase adultos.

Entretanto, o homem que assim narrava os infortúnios do Tadeu levantou-se ainda a rir e fez sinal a alguém. Pelo canto da lente direita dos óculos de sol, vejo aproximarse a mulher das bolas de Berlim. Nem sabia que estas figuras ainda existiam. Trajando de branco, com uma grande mala a tiracolo. O casal pede duas bolas de Berlim. É reconfortante vê-los a delamberem o açúcar e o creme, alheios a gorduras e excessos de açúcar no sangue, sem pinta de remorso expresso em promessas de irem ao ginásio no dia a seguir. Mais tarde, quando forem ao banho, ele seguirá para o mar guiado pela sua barriga protuberante, luzidia como o topo da cabeça careca, ambos pontos cardeais do corpo, orgulhosos como um mercador holandês num quadro do século XVII.

Espreguiço-me com uma discrição desnecessária. Ninguém deu por mim. Não há perigo de ir parar ao texto de um qualquer observador insuspeito com pretensões a escrevinhar as suas impressões do quotidiano.

À minha frente um pai e uma filha passeiam pela praia, ele com uma t-shirt de um clube

de futebol que não consigo identificar, ela com um vestidinho rosa que já teve um tom mais vivo, mas não envergonha ninguém. O pai queria ir ao lado dela. Mas a miúda, com a crueldade inerente aos pré-adolescentes, essa categoria pós-moderna híbrida, foi inflexível.

“Vou à frente e tu segues …”

O pai acata em silêncio. Mais à frente põese ao lado dela, aparentemente sem gerar repúdio.

Do meu lado direito, uma família africana. Parecem ser dois netos muito pequenos ainda, pai e mãe (ambos em forma, mas ele capaz de integrar o calendário dos bombeiros do burgo sem qualquer condescendência) e avós. Percebo aqui a Ernaux. Quando descrevemos a paisagem humana devemos indicar a cor de quem vemos? Dizemos se é gordo, magro, alto, baixo, enfim. Porque não dizer se é branco, azul, albino, negro? O pudor das cores impede-nos de normalizar uma ida à praia, aparentemente num país estrangeiro, pois apercebo-me de que a família fala francês. Como Ernaux decido manter a referência à cor da pele da família pois sei que por

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Vamos à la playa

Flores na abissínia

defeito se nada disser pensar-se-á que são brancos. A Ernaux pensou o mesmo, sublinho. E eu quero deixar claro que a praia é de todos e para todos, mesmo sabendo bem essa simplicidade é enganadora.

Nos céus também há agitação Gaivotas cirandam para trás e para frente falando entre si. Não percebo gaivotês. Pergunto-me se será língua de lugares comuns. Intrigam? Ou será uma língua que apenas se presta a informações práticas. “Cuidado. Vou virar à direita fazendo uma curva bem por fora”. “Atenção, sigo em frente a toda a velocidade”. Não sei.

É quando dois miúdos pequenos decidem jogar futebol perto de mim que me decido a ir ver como estão as águas.

Entro devagar pelas ondas adentro. Um arrepio serpenteia-me corpo acima. Atravesso o ponto de rebentação e invademe o silêncio. Deixo-me submergir pela mansidão fresca das águas. Fecho os olhos e fico ali. Finalmente, o céu e eu deitada nos lençóis oceânicos como o Menino Jesus nas palhinhas. Inocente e sem cuidados. Abro os olhos e vejo-a. Ali está ela ao meu lado. A gaivota. Olhamo-nos e pressinto a injustiça que Hitchcock lhe fez com o filme sobre pássaros. Não há raiva nos seus olhos, não há ódio nas suas pupilas negras. Há espanto. Há curiosidade. Dois dos três sentimentos mais bonitos que podemos identificar naquelas com quem cruzamos o olhar. O outro? O outro é o amor, bien sur. Não exageramos, porém, não senti amor nos olhos da gaivota.

*

A narração podia ficar por aqui. O leitor adivinhará que a protagonista respirou fundo, deixando o seu lugar no mar para voltar a terra, onde a esperavam as suas preocupações de adulta e as coisas abandonadas no areal. Não precisa de se preocupar em saber se havia muito trânsito para chegar a casa. Isso são

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detalhes prosaicos que nada acrescentam à beleza do dia, ainda que pudessem interessar a Ernaux ou a Proust. A narradora que inflectiu caminho até Duras prefere deixar-se assim, esquecida do mundo, a flutuar ao lado de uma gaivota, ambas mudas pelo espanto. Mas o texto, ele próprio, não se conforma com isso. Como a vida quer escrever-se a si próprio. Por isso, onde a escrevinhadora larga a caneta, o texto, toma-a e recomeça a narração dos factos. Inventa-se assim:

A mulher mantém-se em silêncio. Observa a gaivota com um misto de receio e curiosidade. Para além do filme, lembra-se do dia em que, em passeio nas Berlengas, uma gaivota lhe roubou uma salsicha deixando-lhe apenas a carcaça. Quanto tempo vive uma gaivota? Até 30 anos, esclarece o texto. Pode então ser esta a mesma atrevida que lhe roubou parte do lanche? Não é impossível, mas seria uma grande coincidência. Entre milhões de pessoas e gaivotas tornaremse a encontrar. Mas a vida é feita também daquelas, não é?

Pressinto-o que o silêncio estava a ficar desconfortável a gaivota toma a palavra:

- Está um dia esplêndido, não?

A mulher fica siderada. Claramente não esperava que a gaivota falasse, muito menos português.

- Falas português?

- A menos que prefira falar na minha língua?

- O gaivotês?

- Gaivotês? Quem disse isso? Não é gaivotês … essa palavra existe na tua língua? – Ou inventas palavras?

- Não invento palavras. Ocorreu-me há pouco que poderia ser. Mas, qual é então a sua língua?

A gaivota grasnou.

- Como?

Repetição.

- Não consigo dizer. Desculpa, é um idioma totalmente novo … Mas está um dia óptimo, sim.

(a mulher – o texto nunca lhe vai dar nome, até para não ofender a gaivota que fica inominada – não quer perder o momento, pelo que tenta manter a conversa, apesar de reconhecer que se alguém em terra a vir a falar com a gaivota vai pensar que ela é uma louca, como pensam das velhas que alimentam os pombos, como se fosse coisa assim tão excêntrica dar de comer a quem tem fome).

- Estava a fazer uns voos planados, já um bocado farta das conversas e a pensar vir até aqui descansar um bocado.

- A sério? Eu também vim para aqui por isso. Apetecia-me o silêncio. Claro que não pensei que iria estar aqui à conversa com uma gaivota.

- Se quiseres, podemos ficar caladas, como é nosso hábito.

- Conhecemo-nos?

- Sim, pode dizer-se que sim. Coincidimos uma ou outra vez, ali ao pé do rio a meio do dia.

A mulher observa a gaivota com atenção redobrada. Sim, aqueles olhos, o bico laranja com uma risca encarnada, será a mesma gaivota. Não a que lhe fanou a melhor parte da sandes, mas aquela outra com que se cruza de vez em quando ao passear junto ao Tejo nos intervalos do trabalho. Sorri em silêncio, contrariando a sua natureza palavrosa. E ali ficam, lado a lado num silêncio que não chega a ser cortado pelos ruídos que o vento lhes traz e que são anulados pelo som das ondas, tornando-os inócuos perante o mistério maior das coisas do mundo.

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Mauro Paulino

Maus-tratos a pessoas idosas

Entre

O envelhecimento, enquanto processo cumulativo, faz parte da realidade de qualquer ser vivo, a qual se tem tornado cada vez mais presente, pelos avanços científicos que nos permitem uma maior longevidade. Porém, surge não raras vezes aliada a eventual vulnerabilidade física, financeira e psicológica. É, por isso, que maior longevidade não significa maior qualidade de vida, pois as pessoas vivem mais, mas tornam-se, muitas vezes, prisoneiras da solidão, ou vítimas de violência e maus-tratos.

Particularmente em Portugal, assistimos a um fenómeno de aumento do envelhecimento da população. Os dados demográficos expõem-no através do Índice de Envelhecimento (relação entre a população com 65 anos

(Dia dos Avós 26 Julho)

ou mais, e a população com menos de 15 anos), que em 2000 era de 98,8%, e em 2018 passou para 157,4%. Estes dados espelham um cenário com o qual as políticas públicas e a sociedade civil não podem ficar indiferentes.

Os maus-tratos a pessoas idosas são reconhecidos pela Organização Mundial de Saúde como um grave problema de saúde pública e de direitos humanos, estimando-se que 1 em cada 6 idosos tenha sofrido algum tipo de violência nos últimos 12 meses.

É importante enquadrar que os maustratos a pessoas idosas remetem para um ato intencional, que coloca em risco de, ou provoca dano uma pessoa idosa, ou que falha em satisfazer

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a importância da prevenção e a necessidade ética da formação
Psicólogo Clínico e Forense Coordenador da Mind | Psicologia Clínica e Forense

as necessidades básicas e de proteção requeridas. A violência decorrente destes casos pode ser manifestada de várias formas, designadamente, física, sexual, psicológica, financeira, negligência e abandono, não deixando necessariamente marcas corporais visíveis.

Os seus efeitos são devastadores na medida em que não só comprometem a qualidade de vida e o bem-estar psicossocial dos idosos, como estão associados a um aumento das taxas de mortalidade e de morbilidade, pelo que os seus custos sociais são também inegáveis. Contudo, ao contrário de outras situações de doença que afetam a velhice, o abuso de idosos é passível de prevenção, o que deveria ser uma prioridade nacional.

Foi em 2002, com a realização da Assembleia Mundial para o Envelhecimento, em Madrid, que resultou o Plano Internacional para a Ação sobre o Envelhecimento, segundo o qual o abandono, os maus-tratos e a violência foram designados como prioridades para a ação no domínio do envelhecimento, colocando-se a violência contra as pessoas idosas num plano equivalente à violação de direitos humanos universais.

Mas, no plano nacional, a verdade é que a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima tem registado, nos últimos anos, um acréscimo de 30% de denúncias. No ano passado, foram relatadas três situações por dia. Mas a Polícia de Segurança Pública registou 16 206 casos, o que corresponde a uma média de 44 casos por dia. Nos primeiros três meses do ano, foram abertos 3684 processos de violência contra idosos, tendo sido identificadas 3778 vítimas. De acordo com a PSP e a APAV, na maior parte das situações, o agressor é filho ou o cuidador, o que leva a crer que o problema poderá ser mais grave, uma vez as cifras negras são maiores do que conhecemos.

Estudos internacionais estimam que os membros da família e os cônjuges estejam

envolvidos em cerca de 90% dos casos de violência contra estas pessoas, mas entre os agressores também se encontram os cuidadores formais, profissionais de saúde, assim como amigos ou vizinhos. Estes nem sempre têm consciência que os seus atos configuram comportamentos abusivos, o mesmo sucedendo com alguns idosos que, por vezes, têm dificuldade em reconhecer que são vítimas de maus-tratos.

As pessoas idosas podem hesitar confrontar quem as agride por ser a mesma pessoa que também lhes presta cuidados. Entre as razões para a não-denúncia da violência e/ ou para a vítima não apresentar queixa, está um conjunto de sentimentos e crenças que se reforçam mutuamente. Por um lado, o medo de que aumente a dependência em relação a

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Maus-tratos a pessoas idosas

quem agride e, por outro, a esperança de que a situação de vitimização mude.

As crenças dominantes, evidenciadas em expressões como “de um filho não se faz queixa” ou “é uma vergonha ir a tribunal denunciar um filho ou um cônjuge”, estão de tal forma enraizadas no sistema cultural português que, de modo ilógico, pode levar as pessoas idosas a sentir culpa pela situação, silenciando-a, negando a vitimização ou justificando-a.

Outros fatores, de ordem mais pragmática, incluem o desconhecimento da lei e do modo de funcionamento do sistema de justiça, a falta de suporte familiar e a existência de experiências negativas, as quais podem ser diretas ou experiências de outros relatadas por conhecidos ou mesmo abordadas na comunicação social.

Desta forma, é de grande importância a presença de um observador externo que desempenhe uma espécie de supervisão, capaz de identificar e avaliar regularmente as práticas de cuidado, assim como as dinâmicas familiares existentes. À semelhança destes, funcionam como fatores de proteção aos maus-tratos a promoção de um maior grau de autonomia da pessoa idosa e o investimento em práticas profissionais informadas e especializadas, nas quais as ferramentas de identificação e intervenção são fundamentais.

Assumindo que um envelhecimento ativo é um processo em que a dignidade e a qualidade de vida são pilares fundamentais, incompatíveis com a violência contra a pessoa idosa, devem ser efetivamente definidas estratégias preventivas que sejam transversais a toda a sociedade e desenvolvidas ao longo da vida. Os serviços sociais e de saúde têm de desenvolver programas que apostem na promoção da saúde, favorecendo a autonomia e o autocontrolo das pessoas idosas, mas

também na prevenção da doença e na gestão adequada das limitações que advêm do envelhecimento e doenças a este associadas. Um ambiente social favorável pressupõe a existência de suporte efetivo, oportunidades educativas e mecanismos de proteção contra a violência, que considerem o isolamento social, a solidão, a iliteracia e o défice de educação.

Sabemos pela investigação que a sensibilização e educação da comunidade, a visita domiciliária e a metodologia de gestão de caso, que permitem intervenções psicossociais e educacionais junto da pessoa idosa e do agressor, assim como o trabalho em equipa multidisciplinar, no sentido da articulação entre diferentes profissionais de diferentes áreas, têm sido as estratégias recomendadas, mas, infelizmente, pouco investidas.

Os maus-tratos a pessoas idosas exigem uma grande atenção quer do sistema social e de saúde, quer dos decisores de políticas públicas. Adicionalmente, a formação de todos os profissionais que possam trabalhar com estes casos, como por exemplo, enfermeiros, médicos, psicólogos, magistrados judiciais, órgãos de polícia criminal, é um imperativo ético. Os programas de formação levam a um aumento da consciencialização do problema e à melhoria na capacidade de detetar situações. Contudo, que se perceba que o défice de conhecimentos persiste mesmo após iniciativas isoladas de formação, pelo que estas deverão perdurar ao longo do tempo e abranger discussão e supervisão de casos.

É fundamental reconhecer que a denúncia é importante, mas não é suficiente, se todos os mecanismos de atuação, os planos de segurança com profissionais habilitados e a capacidade operacional e técnica de mobilizar organizações e agentes falhar.

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OS GUERREIROS DA ARTE

À Hora que escrevo isto podia fazê-lo ao som da Cavalgada das Valquírias que, para quem não sabe, é a 3ª parte de uma ópera composta por Richard Wagner, que nos fala de Valquírias, donzelas guerreiras na mitologia nórdica, encarregadas de levar as almas dos guerreiros mortos para o Walhalla, o “paraíso”, onde seria o destino dos mortos heróicos. Lá, desfrutavam da vida eterna os guerreiros mais nobres e destemidos, que morriam no campo de batalha, escolhidos por Odin.

Também fala de um anel, como o do Senhor dos anéis, símbolo de poder, aquele dos Deuses, este do Poder que tudo move, tudo mata e tudo controla, como se os seres não nascessem livres e iguais em direitos oportunidades e natureza.

Pensei falar-vos de Pedro Brito. Um Professor que é ilustrador, mas sinceramente a mim parece-me mais caricaturista, mas, pensando bem, o que ele é mesmo é comentador político.

Sim porque a arte é política, não é só momentos lúdicos, criatividade, sensações bonitas ou feias.

Envolveu-se o professor numa polémica porque no dia 10 de Junho, dia de Portugal, foram exibidos uns cartazes, com desenhos seus, numa “manifestação”, intervenção ou interrupção, feita por professores junto do 1º Ministro.

Uns cartoons, acho que posso chamar assim, que não fogem aquilo que o Professor de Évora já faz há muito tempo, crítica social e política, económica também, através de um estilo próprio ao som do seu lápis. Muito interessante.

E, sinceramente não acredito que alguém possa considerar que o que ele faz é proibido. A ser assim, estaríamos numa situação quase idêntica à do Charlie Hebdo que se atreve a caricaturar, chocando, numa atitude de censura própria da arte.

Realmente a arte tem de ser livre para que seja arte, e de comunicar para ser arte, e tem de ter uma mensagem, sempre, que chegue, ainda que choque.

É aquilo a que se chama Liberdade de Expressão e a Nossa Constituição consagra no artº 37º onde nos diz que todos têm o

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RÉ EM CAUSA PRÓPRIA

direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações.

O exercício destes direitos não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura. Mas isto não interessa nada, tendo em conta que à hora que vos escrevo há como que um jogo nas ruas até Moscovo. Um Jogo ou um filme, um teatro, .... mas de guerra. Um verdadeiro Teatro de Guerra, no sentido de peça, de atores, de papéis,... talvez uma comédia, em que todos filmam e transmitem pelas redes sociais.

Dizem que é o grupo Wagner, que vai tomar o Poder e que deporá Putin.

Espanta-me não haver Força Aérea na Rússia e, espanta-me ainda mais que um grupo de mercenários se passeie, rasteje e faça avisos, dê entrevistas, sendo tudo transmitido sem que Putin reaja.

Não sei o que querem provar, mas, na verdade não provam nada a não ser que este Wagner não tem nada a ver com o outro, o das Valquírias que compôs até o Libreto da sua Ópera.

O que concluo é que a cavalgada das Valquírias, a composta por Wagner, é uma coisa muito mais séria que esta marcha sobre Moscovo, e que o Apocalipse Now que queriam ligar a esta marcha e ligaram à Cavalgada, ao pé disto, é uma coisa bem séria perto desta comédia.

A Verdade a Verdade, é que andam a brincar às Guerras e já não há Valquírias porque já nem há heróis. A Verdade é que precisamos de outro modelo de Heróis.

Os que não finjam que o são, os que ponham um ponto nos conflitos, os que não matem mais inocentes, os que, principalmente não peguem em armas, se recusem a assinar leis como a que foi aprovada agora na Europa para fabrico de mais armamento.

Do que nós precisamos é de gente, que diga sem matar o que pensa, tenha uma intervenção política que trave, que mude, que marque, que não finja e que atinja.

“A maneira de o artista colaborar utilmente na vidadasociedadeaque pertenceénãocolaborarnela.Assimlhe ordenouaNaturezaquefizesse,quandoocriou artistaenãopolíticooucomerciante.

[...] Quanto mais instintivamente se fizer essa divisãodotrabalhosocial,maisperfeitoseráo funcionamento da sociedade [...]Éperfeitamentelógicoqueumartistapregue aDecadêncianasuaarte,e,seforpolítico, pregueaVidaeForçanasuapolítica. É,mesmo,assimquedeveser.

Nãoseadmitequeumartistaescrevapoemas patrióticos,comonãoseadmitequeumpolítico escrevaartigosantipatrióticos.

(PESSOA,2009, “Os Fun- damentos do Sensacionismo”)

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William T. Maud (British, 1865 – 1903)
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