54 Edição

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FEVEREIRO 2023 54º Edição

Indíce

FEVEREIRO 2023

CAPA....... António Procópio

04....... Cantinho do João | João Correia

06 ....... Ré em Causa Própria | Adelina Barradas de Oliveira

08 ....... Pano para Mangas | Margarida Vargues

12 ....... O Mar Logo Ali | Ana Gomes

14 ....... Flores na Abíssinia | Carla Coelho

16 ....... “O outro lado do reflexo” | Maria Alice Alves Ribeiro Vale

20 ....... Porque lutam os professores | Cid Orlando Geraldo

22 ....... O embondeiro | António Manuel Monteiro Mendes

24....... Tragédia no aeroporto | Lícinia Quiterio

26 ....... Ela | Raquel Véstia

28 ....... Você corta a etiqueta | Margarida de Mello Moser

DIRECÇÃO: ADELINA BARRADAS DE OLIVEIRA

DESIGN E PRODUÇÃO: DIOGO FERREIRA INÊS OLIVEIRA

SITE:

WWW.JUSTICACOMA.COM

FACEBOOK: JUSTIÇA COM A

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Editorial

Chegamos com mais um número, um conjunto de escritos e opiniões, descobertas que fizemos, assuntos que queremos conversar convosco.

Partilhamos este mês de Fevereiro de 2023 assuntos que estão por aí, quentinhos e interessantes, textos que nos falam dos dias autênticos vividos por quem os escreveu e, não menos interessantes

Não trazemos máscara.

Fiquem connosco no intervalo de uma música de Carnaval ou de uma discussão sobre o palco que será altar. (Já não me lembro quanto custou o palco no Parque Eduardo VII quando veio cá João Paulo II e o fui ver.)

Fiquem connosco e digam de vossa Justiça.

Até Abril em que teremos mais textos mais opiniões, mais assuntos para conversar convosco.

Um minuto de reflexão por todas as vítimas de fenómenos naturais e Guerras anormais.

AVISO: Todos os textos têm gente dentro. Só um deles se serviu da IA.

Descobrem qual é?

Fevereiro de 2023 um mês cheio de assuntos dentro

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DIRECÇÃO: ADELINA BARRADAS DE OLIVEIRA Fotografia gentilmente cedida por Fernando Corrêa dos Santos Visita do Papa Paulo VI a Lisboa

Sobre as curiosas relações de vizinhança.

Tenho um vizinho, pianista, que mora por cima de mim. Sou privilegiado pois, em tempos, já tive um vizinho ex presidiário, situação essa a qual, apesar de não me fazer sentir desconfortável, não abonava muito a respeito da minha vizinhança.

Seja como for, invejo a sua paciência (a do vizinho pianista, não do presidiário, entenda-se) pois o mesmo inicia-se, de quando em quando, numa nova música e começa lentamente, a pouco e pouco, passo a passo, durante horas, que se transformam em dias, dias que se transformam em semanas e por vezes, em meses, até conseguir tocar a música sem quaisquer falhas.

Já pensei em colocar-lhe um bilhete debaixo da porta, de modo gentil, a agradecer-lhe o bem que faz ao meu prédio e a perguntar-lhe, de modo ainda mais gentil, sobre se não se importava de terminar os seus ensaios com uma qualquer música dos Supertramp pois, apesar de apreciar a sua existência, confesso que ao final do dia me saberia bem relaxar de Rachmaninoff. Talvez um dia o faça. Vamos ver. Ou quem sabe ele leia este

artigo … nunca se sabe.

Também tenho um vizinho com uma idade provecta, mas que religiosamente almoça numa tasca onde eu também vou. Cumprimenta-me sempre e comenta o estado das iscas de cebolada ou, eventualmente, da caldeirada de safio e eu, naturalmente, sigo o seu conselho pois já não tenho idade para aventuras. Aliás, encontrei-o um destes dias numa peixaria onde comprou doze douradas tendo o cuidado de me dizer que ia receber família na sua casa e como tal, iria grelhar as mesmas (as douradas, não a família, entendase) para o efeito. Pode parecer ingenuidade minha, mas, no meu entender, quem grelha doze douradas está habilitado a recomendar caldeiradas de safio ou outra coisa qualquer.

Tenho uma senhora encantadora que mora ao meu lado e com a qual eu cumpro a tradição de ir votar cada vez que há eleições. Temos sempre o cuidado de não dizer um ao outro em quem é que vamos votar pois isso não ficaria bem na nossa cultura democrática, mas seja como for,

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CANTINHO DO JOÃO

João

Correia

pomos a conversa em dia e ainda contamos umas piadas um ao outro sobre cada um dos candidatos. Sempre numa perspetiva de chacota pura e nada construtiva pois, de acordo com a nossa visão das coisas, democracia também é isso. Mandar umas piadas cáusticas antes de se colocar a cruz no boletim de voto. É uma espécie de catarse antes do voto. Funciona sempre.

Também tenho alguns chatos na vizinhança mas esses contam pouco para a equação. Desde o senhor que trabalha na frutaria e que olha para todos os clientes como se estes fossem potenciais ladrões de fruta até um outro que vive obcecado com as folhas que caem das árvores do seu jardim e, como tal, as aspira (ou expira), todos os dias, com aquelas máquinas que sopram com um barulho insuportável. Mas enfim, já pensei em apresentar-lhes os dois, um ao outro, para ver o que dá. Deve ser curioso, um diálogo entre estes dois tipos. Talvez derive no combate do século, um armado com as suas frutas e o outro com o seu aspirador. Nunca se sabe.

Vivo perto do mar o que me permite caminhar até lá em muito pouco tempo mas no caminho

não resisto em passar pelo centro do local onde moro, onde sou cumprimentado, sempre, por um senhor que trabalha numa ourivesaria onde comprei em tempos um relógio, pela senhora da óptica e também pelo meu barbeiro o qual tem o cuidado de me dizer se já está, ou não, na altura de cortar o cabelo.

Sobram muitos mais vizinhos, mas não tenho espaço para os descrever a todos, muito embora me apetecesse fazê-lo. Na realidade, acho que gostaria mesmo era de os desenhar, em jeito de banda desenhada, não em modo de aldeia de Asterix, mas parecido pois aventuras não faltariam com as respectivas personagens.

Fico-me por aqui pois amanhã tenho que trabalhar ao som de Rachmaninoff, e em momento próprio, deslocar-me até à tasca onde pedirei conselhos sobre o que comer sabendo bem que isso não é para qualquer um pois a boa vizinhança é como um jardim.

Cultiva-se.

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A IA À PORTA DOS TRIBUNAIS

A afirmação do Juiz Conselheiro Henrique Araújo no dia da Abertura do ano Judicial “A Justiça é, antes de tudo, uma questão política. “Uma questão política da máxima importância. Incompreensivelmente, o debate político sobre a Justiça saiu de cena há vários anos”, não nos espanta antes nos leva a concordar com a mesma.

Aristóteles afirmava que o homem é um animal político, com o claro sentido de que o homem não poderia viver senão em sociedade e, portanto, com o objetivo de um bem comum em todas as áreas, nomeadamente, na que nos interessa, a da Justiça.

Afirmar-se que a Justiça é antes de tudo uma questão política não significa transportar o que é da Justiça para a Política ou vice-versa, misturar ambas ou tornar a coexistência permissiva ou

promíscua.

Significa corresponsabilização, significa não lavar as mãos, significa muito simplesmente remar no mesmo sentido, com o mesmo objetivo, o do bem comum, e o da evolução comum.

Não são as sucessivas tentativas de reformas da Justiça que nos convencem de que, na verdade, a Política se interessa pela Justiça no sentido necessário, ou melhor, que o Poder executivo e o Poder legislativo, se interessam pelo Poder judicial.

Não são os estudos abertos à IA, para a qual teremos necessariamente de acordar mais tarde ou mais cedo, que nos convencem que a Política de hoje se preocupam com a Justiça. A frase gasta de “à Justiça o que é da Justiça” e o “orgulhosamente sós” do Poder Judicial não servem a Justiça nem lhe dão reconhecimento

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RÉ EM CAUSA PRÓPRIA
Adelina

externo. Como diz Laborinho Lúcio “a justiça é fundamental, porque é fundamental para garantir um Estado de Direito. Tem que ter força e própria e, a força própria em democracia, consegue-se pelo reconhecimento externo. Não se tem força pelos delitos que se condena, tem-se força pelo reconhecimento externo.”

O reconhecimento externo conseguese com um funcionamento eficaz ainda que não tão rápido como o dos MEDIA, porque o tempo da Justiça e o tempo dos MEDIA não são iguais ainda que a IA se adeque ao funcionamento dos Tribunais. Será que o novo mapa de estudo da próxima tentativa de reforma da justiça, só porque propõe uma análise psicotécnica dos “recrutados” e aceites como Juízes, e propõe uma adaptação cautelosa à IA, está a contribuir para esse reconhecimento externo?

Reparo que a questão da comunicação do Poder Judicial com os cidadãos em geral, e para além das decisões, está sobre a mesa. E isso agrada-me, porque sempre me bati por uma comunicação em tempo. Mas, reparo que essa parte tão importante para o reconhecimento externo do Poder Judicial não está entregue à IA, e sim, e bem, aos homens e mulheres que fazem a justiça.

Não deixo de lamentar que muitos dos pontos contidos nesse relatório de estudos se venham arrastando há anos. Que aconteceu ao Simplex para a Justiça? A toda uma reforma judiciária que já se fez e se desfez?

O que vai acontecer agora com o Legal Design Thinking? Serve o Poder Judicial?

Não sou avessa a avanços tecnológicos, até costumo dizer que sim, vivam as máquinas, vamos “escravizá-las”, pô-las a trabalhar para nós, sendo certo que arrepio logo caminho porque me lembro do robô Sophia que afirmou que queria ser Mãe e vejo-me esclavagista de uma qualquer IA que quer elaborar acórdãos.

Mas também me interrogo quando dizem por aí, nos MEDIA, que os Juízes querem ao serviço dos Tribunais uma IA fechada em ecrãs e programas semelhantes ao CHATgpt, que não sabe o que é o CITIUS, quem é o Presidente do Supremo Tribunal e a mim já me matou em 2007.

A verdade é que o ChatGPT interrompe sua compreensão do mundo no final de 2021.

O direito é um fenómeno mutável nas suas fronteiras, plural nas suas fontes de criação ou de revelação, complexo na sua lógica interna, não consistente nem harmónico nos seus conteúdos, e, finalmente, nada afeito a um saber que pretenda certezas e formulações seguras e não opináveis. Não sei até que ponto Direito e Justiça se combinam com IA, com algoritmos, que é o mesmo que dizer padrões.

Não me seduz muito o Admirável Mundo Novo que se materializa se formos todos catalogados e tivermos todos um perfil correspondente a um algoritmo.

Já me seduzem as máquinas a elaborarem relatórios de acórdãos a fornecerem pesquisa de jurisprudência e doutrina, já me seduz que eu apenas tenha de decidir em vez de fazer trabalho material que me rouba horas.

E sim, se é para passar multas basta uma máquina... Já estou de novo a navegar no Mundo de Aldous Huxley e no Mundo do Juiz Dredd, um Stalone que não sabia utilizar 3 conchas. Compreenderão elas códigos de Honra? Tomarão posse? Jurarão cumprir a Constituição e a Lei? E será necessário? Ou com o tempo não passará de ingenuidade?

Vamos então em frente com a reforma da Justiça, que sejam criadas as regulamentações da IA claramente necessárias e... que continuem a existir Juízes em Berlim.

Código Bu-Shi-do

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4.

3.

6.

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義 Gi – Justiça, Retidão e
Honestidade
勇 Yuu –
Coragem, Bravura heroica
仁 Jin –
Compaixão, Benevolência
礼 Rei – Respeito,
Polidez e Cortesia
诚 Makoto
– Honestidade, sinceridade absoluta
名誉 Meiyo – Honra, Glória
忠 Chuu – Dever e Lealdade

PANO PARA MANGAS

Margarida Vargues

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O fim da escrita ou a sua reinvenção?

Diz-se que a curiosidade matou o gato, porém o gato tem sete vidas. Por isso, a ideia de sobrevivência renasce a cada morte como num qualquer jogo em que se ganha vidas no final de cada nível. E a tecnologia, mãe destas vidas, o que matará? Tudo, dirão uns; muito, dirão outros…

E os Velhos do Restelo, como eu? Se não matar a astúcia e a curiosidade ainda há esperança. Para já, morre apenas um pacote de amendoins salgados,que

E POR QUE RAZÃO É ESTA FERRAMENTA TÃO POLÉMICA?

O ChatGPT não é por si só polémico. No entanto, como ferramenta de inteligência artificial desenvolvida por OpenAI, pode ser usada para fins polémicos se usada de maneira inadequada. Algumas pessoas podem ter preocupações com a privacidade e a segurança de seus dados pessoais, enquanto outros podem temer a possibilidade de a IA ser usada para espalhar informações falsas ou prejudiciais.

Além disso, como um modelo de linguagem treinado com dados da internet, ele pode refletir tendências e opiniões presentes na sociedade que são consideradas polémicas ou controversas. No entanto, é importante lembrar que o Chat GPT é apenas uma ferramenta e é o utilizador quem determina como ele é usado.

seguro entre as mãos e me deixa os lábios dormentes, enquanto escrevo o texto que aparece no ecrã. Ainda me restam, pelo menos, seis vidas…

Desde há uns dias o ChatGPT - uma ferramenta movida a Inteligência Artificial - tem estado debaixo de fogo e a polémica está instalada. Curiosa, fui saber um pouco mais sobre o assunto…

CONSEGUE O CHAT GTP ESCREVER COMO UM HUMANO?

O ChatGPT foi treinado com vastas quantidades de texto da internet e, como resultado, é capaz de gerar respostas que parecem ser escritas por um ser humano. No entanto, ele ainda é uma máquina e suas respostas podem não ser tão fluídas ou naturalmente elaboradas quanto as de um ser humano.

Em alguns casos, o Chat GPT pode gerar respostas precisas e informativas, mas em outros pode não ser tão eficaz.

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PANO PARA MANGAS

Margarida Vargues

EM QUE SITUAÇÕES PODEMOS

FAZER USO DO CHAT GPT?

O ChatGPT pode ser usado em várias situações, incluindo:

Resposta a perguntas:

O ChatGPT pode ser usado para responder a perguntas em diversas áreas, como história, geografia, ciência, tecnologia, entre outras.

Conversação:

O ChatGPT pode ser usado para ter conversas com pessoas, sejam elas humanas ou outras inteligências artificiais.

Gerar texto:

O ChatGPT pode ser usado para gerar textos em diversos formatos, como artigos, histórias, descrições de produtos, etc.

Assistente virtual:

O ChatGPT pode ser usado como um assistente virtual para ajudar os usuários a realizar tarefas simples, como agendar compromissos, fazer pesquisas na internet, etc.

Entretenimento:

O ChatGPT também pode ser usado para fins de entretenimento, como brincadeiras ou jogos de conversação.

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HTTPS://CHAT.OPENAI.COM/

Convém relembrar que ChatGPT é apenas uma ferramenta e é importante utilizá-lo sempre de maneira responsável e ética. Além disso, é importante verificar a veracidade das informações geradas pelo ChatGPT antes de as utilizar.

E se, antes do último ponto final deste artigo vos disser que apenas a introdução e esta breve conclusão foram escritas por mim? É verdade…tudo o demais é obra de IA - apenas dei uns retoques no português para o adequar à norma europeia.

E como acontece esta espécie de magia? Basta aceder ao site e digitar no espaço reservado para o efeito uma palavra, um assunto, uma pergunta e ele começa a escrever sozinho. Aqui fiz-lhe perguntas sobre si próprio e parece ter passado no teste sem que fosse necessário verificar-se como não sendo um robot, já que é isso mesmo de que se trata.

Tem tanto de incrível, quanto de assustador! Será a morte de quem escreve? Não acredito. Houve quem ditasse os fim dos livros e cada vez há mais publicações, houve quem vaticinasse o fim da televisão, mas as estrelas da internet vêem o seu mérito reconhecido nos velhos media. Não, não é o fim. Talvez seja, sim, a oportunidade de reinventar o ser humano enquanto tal, com todas as competências e capacidades que lhe são próprias.

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- Ah lâche ! Fais l’amour, et renonce à l’empire (1024) –Titus em Bérénice, Jean Racine, setembro de 2015, Gwénola, Ernest et Paul Fièvre

E O MAR LOGO ALI
Ana Gomes

Bérénice

Berenice fugiu um fim de semana só para assistir à peça com o seu nome. Recebera a newsletter do teatro que tinha visitado uma vez em Paris e ficou curiosa. Não procurou versões no you tube ou excertos dos versos em português. Fez uma pesquisa sobre o texto e o autor e desafiou o namorado para um fim de semana diferente, uma forma de celebrar o 14 de fevereiro. Ele não se chama Titus. No entanto, tem sempre muitas reuniões e decisões a tomar. Seria assim nesse fim de semana, como nos últimos cinco anos. Sem chegar a gerir um império, o seu Titus tem sobreposto o poder ao amor. De alguma maneira, Berenice sabia que não podia exigir mais. Também já tinha passado por fases em que só via os processos que lhe cobriam a secretária. O poder não era exercido no seu interesse ou para ganhar mais dinheiro, era exercido em nome do povo. De todo o modo, um sentido de urgência que demorou a conciliar com a sua vida pessoal, mas que ao fim de alguns anos alcançou.

A nossa Juíza comprou a viagem e aterrou no Charles de Gaulle. Apanhou um táxi, sozinha. A sala estava cheia. As palavras começaram a soar. A grandiosidade dos textos clássicos manifesta-se ao vivo, na beleza das palavras ditas por atores que as entregam ao público prontas a degustar. A grandiosidade dos textos

clássicos está na forma como se persente a vida de todos os dias, quando cada espectador, trezentos e cinquenta anos depois, se consegue identificar com a personagem e fazer com ela a viagem. Berenice fez a viagem de um fôlego, antecipando, melancólica, o que iria acontecer quando regressasse a Lisboa, a separação de vidas que já eram incompatíveis.

Como não tinha lido os 1507 versos, foi surpreendida com a reação que a personagem teve à separação que lhe era imposta. Não pôs fim à vida. Escolheu viver.

- Je vivrai, je suivrai vos ordres absolus. Adieu, Seigneur, régnez, je ne vous verrai plus (1493, 1494) – Bérénice, ob. cit.

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FLORES NA ABISSÍNIA

DA ILUSÃO DA ROTINA

Foi Krishnamurti quem me pôs a pensar nisto, em boa verdade. Quando nos habituamos a uma coisa (e diz a vox populi que nos habituamos a tudo) deixamos de a ver. Damo-la por garantida, assim como a mobília da casa.

A rotina enquanto sinónimo de hábito, acto ou circunstância repetida e repetitiva é uma invenção dos que não têm imaginação. Ou talvez seja algo ainda pior: uma invenção desta sociedade em que vivemos, industrial, massiva e orientada para a produção.

Agora que penso nisto concedo que é o golpe perfeito. Nada há, pelo que nada podemos ver. Mas é ao contrário. Quando os sentidos se aguçam é impossível negar a mudança que diariamente invade no mundo. A chávena de café tem cambiantes, ainda que o tiremos todos os dias da mesma máquina e à mesma hora. O céu sob o qual vivemos idem. Não há

dois nasceres do sol iguais. Hoje, enquanto conduzo o meu automóvel pelas ruas da cidade a caminho do trabalho ao som de Mozart (o anti-rotineiro por excelência) ocorreme que as nuvens que vejo são diferentes das de sexta-feira. Não me lembro se na quintafeira havia nuvens no céu. Ou melhor, não me recordo se as vi, elas lá estariam certamente. Mais perto ou mais longe. Este é o ponto: nada é o mesmo que foi ontem. Amanhã será diferente de hoje, ainda que demos os mesmos passos, caminhemos pela rua de sempre e almocemos restaurante habitual.

Ainda que repitamos o prato. A conversa com o colega será diferente da de ontem. E ainda que não falemos com mais ninguém senão connosco haverá argumentos e razões diversas. Alteração de tema mesmo.

Por isso, não precisamos “quebrar a rotina”, como se diz na publicidade. É apenas uma

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Carla Coelho

forma de nos fazer gastar dinheiro. Podemos gastá-lo, claro. É nosso. Fazemos o que queremos, desde que estejam pagos os impostos.

A custo zero. O chilreio dos pássaros às primeiras horas, sobrepondo-se ao silêncio da cidade ou indo ao nosso encontro para lá das buzinadelas, sirenes e conversas que invadem a cidade. As muitas formas das folhas da árvore que ladeia o passeio à porta de casa. O cachecol do vizinho que não trazia ontem (ou se calhar trazia, nós é que não reparámos).

É quando percebemos que tudo é sempre novo em todos os momentos. O irrepetível do que é banal é o mais difícil de apreciar. Como descrever a normalidade. Imaginemo-nos a descrever o tal vizinho num posto de polícia num qualquer terrível caso que quebrou a rotina (?) do prédio. “E como era ele?”, pergunta o agente. Respondemos: “Normal”. O que queremos dizer é que passámos por ele sem que nada nos despertasse a atenção. Não era muito alto, nem muito baixo. Não o achámos muito belo não podendo, ainda assim, dizer que era feio. Não falava demasiado alto e não sussurrava. Fechava a porta com suavidade e dizia “com licença”. Normal. Todos sabemos o que essa palavra que nada quer dizer significa. É o mesmo para o acumular de dias aparentemente iguais e por isso vistos como banais. Ilusão, ilusão. Nada foi banal. Este dia que termina sem te deixar

marcas na memória, esse dia que esqueces arrogante, foi único e irrepetível. Teve nascer do sol, pequeno-almoço demorado, conversas sem reservas e preocupações, um espectáculo de que gostaste (mas não tão bom que te fique cravado na memória), o jantar que escolheste, o gesto de carinho (para parafrasear Sena) que fizeste ou querias fazer, a botija quente para te aquecer os pés. Foi único, como o foi anteontem e será amanhã. E isso é o que torna a vida tão bonita e difícil. O que foi não volta a ser. O inverso é ilusão.

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Mas a ilusão da rotina assente no facto (real) da sucessão dos dias quebra-se de dentro acolhemosquando o que vem de fora.

Maria Alice

Alves Ribeiro Vale

Nascida a 04/08/1954 em Orca, Fundão - Professora

Em virtude da escassez de professores lecionou Português, frequentando a Faculdade e a Alliance Française, tendo concluído o curso com sucesso. Continuando sempre a lecionar, em 1985 entrou no quadro de professores efetivos do 8º Grupo A (Português, Latim e Grego) na Escola Secundária Afonso de Albuquerque- Guarda, onde lecionou Português, Literatura Portuguesa, Área de Projeto e Formação Cívica até 1 de novembro de 2020, data da aposentação.

Ao longo destes anos de lecionação desempenhou os seguintes cargos:

Diretora de Turma

Vice-Presidente do Conselho Diretivo

Coordenadora do Projeto “Viva a Escola”

Membro do Conselho Pedagógico

Coordenadora do Departamento de Português e Línguas Clássicas

Representante da Educação no NLI (Núcleo Local de Inserção)

Professora Interlocutora em matéria de absentismo e abandono escolares

Membro do Secretariado de Exames; Instrutora de processos disciplinares

Coordenadora do GIPAE (Gabinete de Indisciplina e Prevenção do abandono escolar)

Maria Alzira Seixo escreveu in Discursos do Texto o seguinte:

“Escritor é aquele que escreve. Mas que será escrever? Cobrir papel com tinta? Isso será outra coisa; desenhar, por exemplo; ou fazer contas; ou escurecer a folha branca, de tal modo que fique negra. Então, para definir o que é escrever, e procurando a fórmula mais apropriada, eu direi: é aquilo que o escritor faz. Mas tudo o que o escritor faz é escrita? O escritor come, o escritor bebe, o escritor dorme; ama e odeia; trabalha e repousa, olha e cheira; toca; faz. Mas nem sempre cumpre tudo isso: por vezes, só come, dorme, repousa, cheira, toca; noutros casos, fundamentalmente trabalha, olha e faz.

Isto talvez queira dizer alguma coisa. Mas não quer ainda dizer aquilo que procuro, que é uma definição de escrita ou de escritor. E descubro que só entendo uma coisa pela outra e que a palava é o coração da acção.

Esta descoberta me satisfaz, por agora, e dela sei o nome: autonímia. Descobri então uma palavra, uma acção- e descobri a(s) escrevendo. (Então serei escritora?) (…)”

(…) Escrever é descobrir, então. Revelar, também…

(…) Escritor é aquele que escreve? Não: escritor é aquele que faz com palavras. E a palavra é de ordem, é uma ordem, é um dos caminhos da construção.”

Maria Alzira Seixo, Diário de Notícias, 8 de maio de 1975, in Discursos do Texto

“O outro lado do reflexo”

critica

Ilustrações de Isabel Valente

Vêm estas palavras a propósito da obra “O Outro Lado do Reflexo” de Adelina Barradas de Oliveira, que em boa hora descobri através de um velho amigo.

No Prefácio, José Luís Outono aborda a questão do ato de escrever “em duplicado”, por um lado, os despachos irrepreensíveis que a autora no seu viver quotidiano tem de arquitetar; por outro, os rostos, as vozes, os olhares, as vivências que através da redação desses despachos podem e são plasmados nestas doze narrativas autobiográficas, que constituem o corpo do livro.

Após o Prefácio, a autora, através de cinco frases iniciadas pela conjunção subordinativa adverbial condicional “se”, remete-nos para a filosofia do seu mundo perfeito:

•a não violência;

•a não punição;

•o direito a viajar e a escrever todos os dias e todas as noites;

e tantos outros anseios que se podem adivinhar através do uso das reticências na última frase. Podemos deste modo inferir que a partir daqui estamos na presença de uma entidade que nos vai surpreender desmistificando o seu ofício de juiz com as suas histórias contadas na primeira pessoa num estilo engenhoso.

Mas antes de iniciarmos a sua leitura concentremonos nos textos que abrem e encerram esta obra:

“-Escreve para mim” e “Eu escrevo”, mais uma vez e tendo em atenção as palavras de Maria Alzira

Seixo e as afirmações do prefaciador, a narradora que tem dedicado toda a sua vida a uma escrita objetiva, técnica, cheia de conceitos, de factos e de conclusões, sente que a sua privacidade e o seu desnudamento podem estar postos em causa uma vez que, escrever sem tema prévio é mais difícil e pode não ter interesse: “Sem tema, perdemo-nos em mil e uma ideias e nenhuma parece ter interesse.” (pág. 19).

No entanto, e após variadas reflexões, acaba por aceder a este “pedido de um tu”: “- Escreve para mim”, ainda que preocupada com aquilo que os leitores possam vir a dizer. E eis que, aos nossos olhos surgem doze contos que remetem para o tema, entretanto pensado na sua área profissional: o ato de julgar, inferindo-se que estamos na presença de um conjunto de textos autobiográficos. Mas centremo-nos no último texto, “Eu escrevo”. Poderemos afirmar que estamos perante uma resposta ao “pedido” como lhe chamámos atrás?

Novamente o ambiente que rodeia o “eu e o tu” é o mar, que parece ser o inspirador da escrita da narradora: “O tom azul avermelhado do final da tarde passava já os dedos no meu cabelo. A brisa marítima trazia o aroma do dia que adormecia lentamente em redor.” (pág. 161),

“Em Portugal, uma praia minha, às 21h30m de um dia de Verão, na minha cidade, o mais belo pôr do sol da Europa. Um dia de Verão em que traçara em pensamento, o esboço de algo que poderia escrever, escrever-lhe.” (pág. 161).

Após afirmar que a Justiça tem de acompanhar o tempo e os Homens, a narradora refere-se à Constituição Portuguesa; à recomendação 924 datada de 1981 e adotada pela Assembleia Parlamentar

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do Conselho da Europa que condena toda a discriminação legal e social contra a população homossexual; à necessidade urgente das mentes mais abertas às mudanças nas mais diversas áreas temáticas da Justiça, desafiando assim as escolas, os políticos e os “Média”:

“… urge abrir-se ainda mais ao outro e também a estas diferenças do outro. Urge abanar os conceitos, agitar a experiência, espevitar a intuição, dar largas à sensibilidade e lembrar que o que parece politicamente correto e sensato nem sempre o é. “(pág. 159).

A terminar, a narradora embalada pelo anoitecer na sua cidade e junto ao mar afirma convictamente que a sua escrita irá eternizar os rostos, as vozes e os olhares de todos aqueles que se cruzaram com ela na sala de audiências, no seu ofício de juiz: “E lembrei-me de tantos rostos, tantas vozes, tantos olhares, tantas vivências dentro de uma sala de audiências.” (pág. 164).

E, de facto, em todos os textos que constituem o corpo desta obra está espelhada a sensibilidade da pessoa que escreve e o cuidado que tem em desmontar o ato de questionar. Percebese que aquela juiz de beca preta tem alma, tem sentimentos, sabe muito bem que há assuntos escabrosos, difíceis de abordar em público e por isso os diálogos são entrecortados com alguma calma, mas também com assertividade. E o leitor tem a possibilidade não só de se familiarizar com todo o léxico específico do Direito e da Justiça, mas também de ficar a conhecer casos que se julgam nos tribunais.

Assim, desde o menino a quem um homem asqueroso roubou a idade da sua inocência, “…o julgamento do despudor do nosso pudor.” (pág.23); à Ana que vivia numa quinta de um senhor rico e a quem o padrasto violentou sexualmente; a Abdul, engenheiro no Cairo que tinha vindo para Portugal na sequência de pertencer a uma guerrilha que combatia o governo do seu país; à enfermeira/parteira bielorussa a trabalhar numa lavandaria em Portugal e apavorada caso fosse apanhada pelas máfias do Leste; ao rapaz magro e macilento acusado por uma prostituta de a ter obrigado a ter sexo com ele chamando-

lhe nomes pouco agradáveis e apontando-lhe uma pistola; à ladra de desodorizantes, batons…, e a tantas outras personagens que povoam a sociedade. Pelos nossos olhos, desfilam situações de pedofilia, prostituição, exílio político, homicídio, toxicodependência, infanticídio, roubos…

Em todas estas narrativas o discurso é fluente, cativador, repleto de metáforas, sinestesias, adjetivaçãoexpressiva, diminutivos, comparações, imagens, enumerações, intertextualidade com autores, assuntos e personagens a fim de dar força à argumentação usada.

Concluindo, diremos que estamos perante um conjunto de contos com personagens tipo que calcorreiam os lugares onde nos movimentamos e que tantas vezes nem queremos ver. Por outro lado, através destes textos o leitor não pode ficar indiferente ao conteúdo dos mesmos, quer pela natureza dos delitos, quer pela forma como a juiz conduz os interrogatórios que irão desembocar numa sentença.

Acresce dizer que a autora, ao vestir a beca preta, veste também a sua alma. De facto, a Justiça deve ser cega, mas não insensível:

“Escreveria para quem não percebesse nada dos reflexos da Justiça. Se me iria expor, pouco me importava, afinal, eu tinha tanto direito como qualquer mortal a escrever sobre o que me desse na gana!!! Independentemente da censura e apesar dela. “(pág. 163).

Não estamos perante um soneto que tradicionalmente deve fechar com chave de ouro, mas sim na presença de uma obra que encerra em tons de dourado com um poema de Sophia de Mello Breyner em que o mar, a areia, as algas, os corais, a maré cheia… embalam as duas personagens.

Também a autora necessitou da proximidade do mar e de tudo o que a rodeia no seu quotidiano para se inspirar e ganhar força, qual Anteu, para aceitar o desafio de uma outra vertente da escrita: o conto literário.

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“O outro lado do reflexo”

Porque lutam os professores?

Sexta-feira 13, pela primeira vez na vida, fiz greve. A sala ficou vazia, os sumários por escrever, a matéria por dar, as dúvidas por esclarecer. Nos meus anos mais jovens e impressionáveis, também eu era daqueles que snobavam dos professores - que eram ignorantes, mal preparados, partidários de uma certa linha política que não era - e continua a não ser - a minha. E, como em todas as profissões, muitos ainda o serão. Mas a experiência da vida ensinou-me, entretanto, algumas coisas (confirma-se o paradoxo: quem mais ensina, mais aprende). Permitamme a lição.

Lidamos diariamente com turmas de aproximadamente trinta alunos, dos quais uma pequena percentagem (em média, cinco) estão manifestamente impreparados, não se interessam nem se esforçam e são, em muitos casos, indisciplinados. Mas, praticamente, não os podemos chumbar.

Em vez disso, preenchemos relatórios de apoio à aprendizagem, disponibilizamos explicações gratuitas na escola (às quais muitos afirmam abertamente não quererem comparecer) e aplicamos medidas pedagógicas diferenciadas.

Em vez de elevarmos os alunos às matérias,

tidas como padrão dos conhecimentos a adquirir, moldamos os conteúdos aos alunos. Ou seja, baixamos o nível. Se um aluno do ensino profissional obtém classificação negativa no final de um módulo, temos de fazer um teste de recuperação, por lei.

Sabendo disto, muitos deles entregam as avaliações, que deveriam durar dois tempos letivos e que demoram em média quatro horas a preparar, cerca de dez minutos depois do começo da aula, pretextando, por exemplo, que têm de ir ver o Benfica e que “o professor é obrigado a fazer outro teste para eu passar” (aconteceu-me: chumbei-o).

À disciplina que leciono, Português (para o caso, é irrelevante - o cenário é semelhante em todas as áreas científicas), cada aluno tem de ser avaliado em oito parâmetros individuais, a que correspondem, nos primeiros seis casos, avaliações formais: educação literária, leitura (compreensão de texto), gramática, produção de texto (redação), compreensão oral, expressão oral, participação e atitudes. Isto significa, pelo menos, doze avaliações por período e dezasseis items de grelha para preencher.

Demoro perto de uma hora a corrigir um teste. Tenho cento e vinte alunos. Evidentemente, há ainda que preparar as aulas, redigir as atas das

22 CID ORLANDO GERALDO
Tema de capa

reuniões, ler os relatórios de apoio, enviar materiais complementares e esclerecer dúvidas online, dinamizar a Cidadania e o PES (mais grelhas para preencher...).

Em resumo: os professores não têm fins-de-semana. Os professores não têm feriados. Os professores não têm manhãs ou tarde livres, porque a prática docente não se esgota nas quatro paredes de uma sala de aula, nem na simetria retangular das horas letivas estampadas numa folha de excel.

É verdade que temos mais férias de verão do que a generalidade das profissões, mas, durante o ano letivo, não há para nós vida fora da escola. O e-mail nunca dorme: o aluno X faltou ao teste, é preciso fazer outro; a encarregada Y quer saber porque motivo o educando teve 14 em vez de 15; escasseiam N apoios para alunos com “classificação inferior a dez” (ainda não referi o policiamento da linguagem? O termo “negativa” é estigmatizante e, como tal, deve ser evitado...).

Nos cursos profissionais, não nos pagam as horas extra, que correspondem tipicamente a um período letivo. Temos obrigações contínuas de formação, entre mestrados e ações diversas, que conciliamos, o melhor que conseguimos, com a prática letiva. Somos colocados longe de casa e não temos apoios à deslocação.

Um exemplo concreto: gasto, por semana, aproximadamente 100€ em combustível e 25€ em portagens para trabalhar. Grosso modo, metade do meu salário. Mas sou um privilegiado, porque não tenho de pagar uma renda de casa adicional, ao contrário de tantos colegas. Que importa? Estamos irmanados na miséria.

Conta-se que outrora no Japão, a única classe profissional que não se curvava diante do Imperador eram os professores.

Mesmo o eleito de Deus na terra para governar sabia que sem eles nada poderia atingir. O tributo da sua consideração era a contrapartida natural pelo seu prestígio, porque quem nada sabe, nada pode. Verdade ou mito, a história significa apenas o seguinte: a profissão era respeitada. Não pedimos mais.

Finalmente, para quem de tudo isto discorde, fica a pergunta: se os professores são todos uns mandriões acríticos que fazem greve como carneiros a mando dos sindicatos, como por este país se escreve e arrota, como explicar uma tão superabundante carência de quadros na profissão, que se vai agravar (e muito) nos próximos anos? O mercado não mente – e, hoje em dia, ninguém quer ser professor. Ou, dito claramente: a profissão é uma escravatura.

Perguntava-me recentemente uma colega, mais velha, por que motivo os (relativamente) mais jovens ainda escolhem esta vida. Não lhe levei a mal: a justeza das suas palavras era evidente. Nem tão-pouco lhe soube responder. Trata-se de uma questão em que cada professor deve meditar o melhor que puder. Até que a solução seja óbvia para todos.

Não mais, musa, não mais, que a lira tenho Destemperada e a voz enrouquecida, E não do canto, mas de ver que venho Cantar a gente surda e endurecida. O favor com que mais se acende o engenho Não no dá a pátria, não, que está metida No gosto da cobiça e na rudeza Duma austera, apagada e vil tristeza. (“Os Lusíadas”, Canto X)

Ilustração de António Procópio

António Manuel Monteiro Mendes

63 anos de idade.

15 anos de África-Angola, 36 anos de investigação criminal na Polícia Judiciária,Tráfico de Estupefacientes, Vigilância e Secção Regional de Combate ao Banditismo e Terrorismo.

Participou com 40 poemas num Livro, denominado, “Por Ti”, cujas verbas visaram auxiliar uma Instituição da Santa Casa da Misericórdia

Escreveu “A Minha Casa Não Tinha Campainha” a fuga de dois jovens Angolanos, após a Revolução de 25 de Abril de 1974. (Baseado em factos verídicos).

Tem um projecto com textos poemas e contos pinturas e fotografias de autor sobre Angola/ África

Tem outro projecto de um livro romanceado sobre uma vítima(vítimas) de pedofilia na Irlanda do Norte.

Tem acção numa localidade da Costa Irlandesa(real) e cujo título será, “ A filha do Papa”.

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OEMBONDEIRO.

O embondeiro em África e noutros locais deste mundo, tem a nobre missão de ligar os espaços que hoje conhecemos, reverências milenares, cerimoniais, espirituais, que foram, são, fonte de vida entre o indivíduo e o colectivo.

A magnificência da sua complexidade implica regras comunicacionais. É um “deus” vivo, perseguido. Serve o sacrifício pluralista e o julgamento da aceitação. Sendo árvore, é, para quem nele crê, ancestralidade pura e imparcial, lugar da imortalidade pelas sagradas decisões, permanecendo como pilar criador das raízes do existencial, a par da Alma, da Morte e da Vida, da Existência do Culto e da Cultura, do equilíbrio e reparação, da entrega e distribuição, apanágio de um lugar que conhecemos bem.

No seu espaço, o infinito tem lugar. Escrever sobre o embondeiro é, contudo, ultrapassar os limites do conhecimento.

É nadar nas suas águas... (sim, colhe a benção dessa dádiva, abafando as intempéries do Demo) é ser mais do que um “Ngana Nzambi” ¹(Senhor Deus).

Nasci em África, Angola. Tenho, algures, uma Alma à espera. Viajarei, sempre, entre dois Continentes.

- “aiuê...aiuê...tem lenda a contar no sim do tambor”, que bom aprendiz, plantado na vida do Além e no interior daquela árvore, se beijar a planta, casca ou raiz, viverá enquanto ela existir...

Um guerreiro que viu vinte mil Baobás caírem, disse, num tom de voz de juíz, “Almas nas nuvens, luvas de ocre de cinco dedos, eram milhões.

Viajavam veloz e tristemente para outros embondeiros sem medo”. Nunca morrerão. Nunca serão escravos.

Alma não tem segredo.

***

LICÍNIA QUITÉRIO TRAGÉDIA NO AEROPORTO

Abriu a mala para tirar o batom, num gesto quase maquinal, a quebrar o fastio da espera na sala pouco movimentada do aeroporto. Ao remexer o interior da bolsa dos cosméticos, sentiu na mão o frio de um objecto de metal e não o tubo procurado. Espreitou. Mal podia acreditar no que via. Ali, na sua mão direita, um canivete suíço, vermelho, tão longo como a sua mão aberta. Estremeceu, olhou em volta, tornou a fechar a mala. Ninguém podia ver o objecto proibido num lugar daqueles, altamente vigiado, no coração de um continente em crise, com sensores presumivelmente implacáveis. Certificou-se de que nenhum alarme soava, que nenhum vigilante se lhe dirigia. Continuou fingindo a maior calma, a mala aconchegada no colo, a pensar no que fazer ao canivete. Deixá-lo ali caído, deitálo num recipiente de lixo, enfiá-lo no bolso do casaco do passageiro adormecido a seu lado. Nenhuma das hipóteses lhe agradou, o habitual poder de imaginação a falhar redondamente. Foi quando se fez luz na sua cabeça aturdida pela insólita situação. Para que serve uma arma daquelas? Para cortar. Cortar o quê? Começou então, metodicamente, a cortar em pedaços os poucos passageiros em espera. Cabeça de um que já prometia pendências, pernas de outro, convenientemente esticadas ao longo do banco, a mão de outro, abandonada no vazio, e mais um pé descalço, e uma orelha do outro a pedir misericórdia, e ainda…

“Senhores passageiros do voo XYZ com destino a KKKK queiram dirigir-se à porta de embarque 000”.

Desistiu da degola, agarrou a mala, olhou em volta, nada de alarmes, dirigiu-se à porta indicada. Atrás dela, uma fila de zombies que reconheceu claramente. Um deles chegará a presidente de uma qualquer república, pensou. Já dentro do avião, voltou a procurar na mala o canivete. Lá continuava, longo, frio. Achou estranho que agora as lâminas também fossem vermelhas,masuma explicação haveria de encontrar. Agarrou-se com firmeza aos braços do assento. Tinha sempre medo nas descolagens. Para acalmar, pensou em contos de terror, antes de voltar a adormecer.

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RAQUEL VÉSTIA

Ela...

Ela

Ela foi presa por ser livre, por falar, respirar, por sentir, pensar, por ver, e simplesmente acreditar, que a sua essência era mais que a sua simples existência! Ela sempre caminhou firme, na eterna esperança de reconhecer a expressão da sua plena dignidade.

Ela foi mutilada por não se resignar, por não tolerar e resistir. Condenada apenas por existir com o desígnio fatal de ser mulher!

Ela foi discriminada, apenas por crer, que as suas palavras faziam mover o mundo!

Ela foi oprimida e ocultada por escolher a fome da luta, ao pão da conformação e da intolerância.

Ela foi negligenciada, por ter o incontornável desígnio de nascer menina, e não a deixaram ser criança!!

Nunca se deixou vencer pelo desalento, pela incompreensão dos demais, que teimavam em não ver!

Ela foi condenada, não apenas por sonhar, mas por querer superar e ultrapassar, os limites da sua condição.

Ela foi calada, silenciada e enterrada nas suas mágoas.

Mas até ao fim, nunca se silenciou sempre se ergueu!!

A sua voz ecoa no tempo, nas horas, no vazio dos espaços.

Se lhe tirarem a alegria de viver aqui na terra. Ela nunca perderá a guerra.

Mesmo assim procura o mar, o céu e as estrelas que a conduzem ao caminho eterno da liberdade!!!

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Estou cansada!

Pois, cansada de tanto puxar pela cabeça para encontrar um tema interessante, polémico ou não, e que não suscite maus e estranhos instintos.

Estranho?

Pois é estranho, mas tornou-se prática comum neste mundo global - ou direi melhor: viral - comentar coisa nenhuma sobre tudo, ter opiniões sobre todo e qualquer assunto, mesmo ou, principalmente, sobre aqueles sobre os quais não se tem qualquer conhecimento.

E escavando nesse denso nevoeiro, páro e olho para o meu próprio umbigo.

E não, não só não tenho esse hábito, como me venho encolhendo e remetendo ao diálogo com os meus botões, em vez de dar as minhas opiniões, expressar sentimentos, entrar em polémicas, atitudes que no passado eram um exercício saudável, instrutivo, educativo, divertido no convívio com os outros.

De uma maneira geral, estas trocas de galhardetes, de foguetes, de petardos, de fisgadas ou de mimos, eram feitas de forma civilizada, animavam uma festarola ou uma patuscada e serviam de mote a tanta caminhada interessante por onde ou para onde a vida nos levava.

E agora?

Agora, pensamos pelo menos duas vezes antes de abrir a boca. Qualquer tema é passível de discussão azeda para alguém, de peixeirada, de insulto.

E isto diz-nos tudo sobre o mundo em que estamos a viver.

Dito isto, que fazer?

Como proceder?

Nos vários papeis que desempenhamos na vida, a atitude é obrigatoriamente diferente.

Se somos anfitriões, temos que ter em atenção as pessoas que misturamos no mesmo espaço, pesar as suas incompatibilidades, a sua tolerância, a sua civilidade. Temos que juntar a esse papel, o papel de moderadores, para que não se ultrapassem as linhas de perigo, para que o ambiente se mantenha controlado. É difícil? Muitas vezes parece uma tarefa impossível. É preciso engenho e arte, diplomacia, e paciência, muita paciência. E uns truques, também. Jogar à defesa, quer dizer, convidar menos pessoas, para haver menos surpresas. E quando isso, por qualquer razão, não é possível, arranjar uns ajudantes de campo para o controlo ser feito em várias frentes.

Deixe para trás aquela máxima (mínima!): aqui não há cerimónias, cada um senta-se onde quer.

30 DE

DEFORMAQUEESTRANHA VIDA

VOCÊ CORTA A ETIQUETA?

Em nossa casa, quem manda somos nós. E se decidirmos bem a colocação das pessoas, já é meio caminho andado.

O sucesso de qualquer acontecimento que organizamos depende em grande parte da nossa preocupação com os pormenores na preparação. E esse é, sem dúvida, um dos maiores segredos de um anfitrião.

Quando não somos anfitriões, a tarefa simplifica-se bastante. Só temos guerra, quando queremos mesmo entrar em guerra. E às vezes, temos que entrar a matar. Ou então - calamo-nos. E calar-mo-nos começa a ser, com demasiada frequência, o mais cómodo. Evitamos discussões que não levam a lado nenhum, não nos cansamos a falar para as paredes e a vida continua ...

Os temas polémicos, dos quais convém fugir a sete pés, têm-se multiplicado com o passar dos anos.

No século passado tentávamos evitar temas

como a religião, o futebol e a política e pouco mais - talvez sexo, drogas e rock and roll. Mesmo assim, as conversas aqueciam, mas não faziam inimigos.

Agora, agora nunca sabemos ....

Pare, escute e olhe! Isso dá-lhe tempo para decidir o que fazer: entrar em guerra ou ficar calmamente no seu canto a assistir à guerra.

E quanto à etiqueta? Cortamos? Não cortamos?

Ou ... ? Não cortamos? Cortamos?

Não há etiqueta que resista a tanta falta dela.

E que falta que ela está a fazer ...

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MARGARIDA DE MELLO MOSER.
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