No Regadio do Baixo Limpopo

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1. Introdução

Movida por uma assombrosa denúncia feita em Maputo no decorrer de um seminário sobre responsabilidade corporativa em 2012, a Justiça Ambiental (JA) decide começar a monitorar os impactos sociais do projecto da sociedade Wanbao Africa Agriculture Development Limited no Regadio do Baixo Limpopo. Fá-lo através de várias visitas de campo, de entrevistas, bem como através de uma fundamental articulação com a sociedade civil local.


“A província de Gaza, concretamente no distrito de Xai-Xai, começou a colher arroz de origem chinesa, desde a semana passada. O arroz, que é de elevada qualidade, foi plantado no ano transacto em regime experimental por técnicos de ambos os países. De acordo com a imprensa chinesa, os técnicos chineses conseguiram bons resultados nas culturas de teste - com a utilização de variedades de elevada qualidade - estando a produção média situada em 10 toneladas por hectare.”

Gaza inicia colheita de arroz de origem chinesa, em Jornal O País, 15 de Abril 2009


1.1 Sobre a Agro-pecuária e Moçambique

“A maior parte da população moçambicana reside na área rural. Esta tendência não é diferente dos outros países africanos. O crescimento da população urbana tem sido muito lento, dados do censo de 1997 apontavam para 28.6% da população que residia em áreas urbana, tendo passado para 30.1% em 2007 e, segundo as projecções, a população urbana em Moçambique para ano de 2014, foi estimada em aproximadamente 32%.”

Estatísticas de Indicadores Sociais 2012-2013 Instituto Nacional de Estatística

Empregando mais de 80% da população rural e contribuindo com 25% do PIB do País, a agro-pecuária é uma actividade económica importantíssima para Moçambique, um país com 5,6 milhões de hectares de terras agrícolas, ocupadas predominantemente por mais de 3,7 milhões de pequenas e médias propriedades. Dos dados estatísticos que se seguem, saltam à vista os mais de dois terços de população rural do país e os assombrosos 98.7% de extensão agrícola entregue a essas pequenas e médias explorações – as machambas.


Distribuição da População e respectiva Densidade Populacional

Distribuição Percentual da População por Área de Residência 31.6% População Urbana

Fonte: Instituto Nacional de Estatística 2010, Projecções Anuais da População Total, Urbana e Rural 2007-2040 2013, Censo Agro-Pecuário

68.4% População Rural

Área Cultivada, por Província, por tipo de Exploração


Número de Explorações Agro-pecuárias do País por tipo e por Província

Número de Pequenas e Médias Explorações quanto ao Género do Chefe do Agregado Familiar, por Província

Número de Pequenas e Médias Explorações por Grau de Escolaridade e Género do Chefe do Agregado Familiar


1.2 Sobre o Regadio do Baixo Limpopo

“Em condições de sequeiro, a planície aluvial do Limpopo, em Moçambique, tem uma produtividade agrícola marginal. A precipitação média (622 mm por ano) é baixa, o que é agravado pelas altas temperaturas e taxas de evapotranspiração (1402 mm por ano). Além disso, a precipitação está sujeita a importantes oscilações, tendose calculado haver boas colheitas apenas em 22% dos anos, aproximadamente (BTFPL, 1956, p. 21). O elevado risco para a agricultura é acentuado pelas grandes oscilações do caudal do Limpopo e do seu principal afluente, o Rio dos Elefantes (Olifants, a montante, na África do Sul). O caudal mensal conjunto dos dois rios varia em média entre 56,5 Mm3, em Setembro, e 1585 Mm3, em Fevereiro. Mesmo estas grandes variações sazonais (x30) são ampliadas pela variação de ano para ano.” Oportunidades e Condicionalismos da Agricultura no Regadio do Chókwè por Ana Sofia Ganho e Phil Woodhouse em IESE Desafios para 2014 – Parte II: Economia

A zona do Regadio do Baixo Limpopo é uma área com terra arável, propícia para a prática de agricultura, há muito caracterizada por uma dupla dualidade: Sistema de Produção Cooperativo Vs. Sistema de Produção Empresarial/Estatal; e Sistema de Produção Familiar Vs. Sistema de Produção Comercial. Após a independência, algumas das zonas de drenagem ao longo das encostas arenosas do regadio foram entregues a cooperativas agrícolas, enquanto a zona aluvionar do Regadio viria a permanecer predominantemente entregue à exploração empresarial/estatal e à criação de gado bovino. Por volta do ano 2000 estes sistemas começam a sofrer algumas transformações. As áreas outrora geridas pelas cooperativas são repartidas em pequenas explorações de tipo familiar e organizadas em associações que, por sua vez, são aglomeradas em Casas Agrárias. Ao mesmo tempo, as áreas exploradas pelas antigas empresas estatais começam a ser exploradas por associações de produtores comerciais emergentes e por empresas agro-industriais. Após vários modelos de gestão e várias transformações estruturais, o governo cria em 2010 o Regadio do Baixo Limpopo, Empresa Pública (RBL), a quem é então entregue a gestão do Regadio. Representando cerca de 80% da terra destinada à exploração agrícola do distrito, o Regadio é fundamental para a segurança alimentar da região.



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Elipsoide: Clarke 1866 Zona: 36 Datum: WGS1984

Projecção: WGS84

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1.3 Sobre a Wanbao

“A plantação foi estabelecida em 2007 no Xai-Xai, capital da Província de Gaza, graças a um acordo assinado entre os Governos Provinciais de Hubei e Gaza. Este acordo concedia à Hubei Lianfeng Mozambique Company, Lda, uma companhia Estatal Chinesa, uma área de 300 hectares (ha) no Regadio do XaiXai para produzir arroz. Em 2011, a gestão da plantação foi entregue à Wanbao Africa Agriculture Development Limited, uma companhia Chinesa privada. A Wanbao recebeu uma concessão de 20,000 ha por um período de 50 anos, e planeia investir 289 milhões de Dólares Americanos em três a cinco anos, a começar em 2012.” Chinese Agricultural Investment In Mozambique por Sérgio Chichava em The SAIS China - Africa Research Initiative at John Hopkins University – Policy Brief no.02/2014

Em Abril de 2007 as Províncias de Hubei, na China, e Gaza em Moçambique, assinaram um memorando de entendimento para a geração e transferência de tecnologias de produção agrícola (incluindo como pontos de adição de valor aspectos como o armazenamento e processamento). É à luz das condições estipuladas por esse acordo (e dos resultados obtidos nos campos de teste da companhia Estatal Chinesa que a antecedeu) que a Wanbao decide vir para Gaza. Conforme o Relatório Final do Estudo de Impacto Ambiental (REIA) do projecto, a Wanbao é uma sociedade por quotas de responsabilidade limitada sediada no XaiXai, constituída por três sócios de nacionalidade chinesa [Haoping Luo (2.5%), Yong Cai (2.5%) e Shungong Chai (95%)] e com um valor global de investimento (aplicado em infra-estruturas e na aquisição de maquinaria) de 250 milhões de Dólares Americanos. A sua área para a produção de cereais, adquirida de forma faseada, totaliza 20,000 hectares (6,000ha adquiridos no primeiro ano e 14,000ha nos dois anos seguintes). Do total da área prevista, 10% estão supostamente destinados a produtores nacionais. O REIA refere ainda que após 4 anos de implementação apenas se realizaram campos de ensaio de arroz, tendo sido possível identificar variedades com alto potencial produtivo cujo rendimento ronda as 8 a 10 toneladas por hectare. Menciona ainda vários aspectos importantes a abordar, a fim de assegurar a protecção do ambiente e do povo. Para os representantes da Wanbao, apesar de reconhecidas dificuldades (que atribuem a diferenças e choques culturais) nas cedências de terra por parte dos camponeses locais e na aceitação da introdução de novas tecnologias agrícolas, Moçambique continua a ser um país bastante atractivo, com muita terra fértil para agricultura e óptimas condições para o investimento estrangeiro.


1.4 Sobre o governo de Moçambique

“A terra fértil, a procura explosiva de soja e de arroz e um Estado disposto a negociar grandes transacções de terra colocaram o país no centro da corrida à terra que varre actualmente o continente africano. Em 2013, Moçambique era o terceiro país mais pobre do planeta e quase metade das crianças com idade inferior a 5 anos sofriam de subnutrição. As recentes descobertas de jazidas de carvão e gás natural no Norte do país, bem como outras concessões de exploração nos sectores mineiro e florestal, estão a alterar lentamente o seu destino.” “O Próximo Celeiro: Porque estão as grandes empresas a apropriar-se de terras no continente com mais carências alimentares?” por Joel K. Bourne, Jr. para a National Geographic, Julho de 2014

Durante os oito anos (2007-2015) que compreendem a narrativa deste caso, a governação de Moçambique esteve entregue a três governos (embora o último tenha só tomado posse em Janeiro de 2015), todos eles da mesma força política. Durante esse período, sob a bandeira do “combate à pobreza absoluta” e à boleia da descoberta de várias reservas de recursos minerais e de uma controversa política de atracção ao investimento caracterizada por incríveis benefícios e regalias fiscais, estabelecem-se em Moçambique vários mega-projectos. A agricultura segue o molde: grandes extensões de terra são cedidas para plantações florestais, o agronegócio começa a ganhar terreno ao tradicional modelo de agricultura familiar e, à medida que o governo vai ganhando balanço, começam a surgir relatos de problemas com as populações locais que se queixam de abuso de poder, promessas incumpridas e usurpações de terra. Diversos estudos de diversas organizações da sociedade civil nacionais e internacionais denunciam os múltiplos casos que eclodem um pouco por todo o país. Em diversas ocasiões, o governo defende-se argumentando que a sua política era um mal necessário para atrair investimento ao país e que, a longo prazo, as suas decisões trariam prosperidade. No entanto, conforme espelha fielmente o caso da Wanbao, – em que para garantir a transferência de tecnologia o governo criou uma associação de camponeses (Associação de Agricultores Regantes do Bloco de Ponela para o Desenvolvimento Agro-Pecuário e Mecanização Agrícola de Xai-Xai, ou simplesmente ARPONE) tendo entregue as rédeas da Associação a conhecidos membros do partido do poder – o que realmente resultou deste modelo de promoção ao desenvolvimento foram vários problemas sociais, inúmeros projectos desprovidos de sustentabilidade e uma desigual repartição da riqueza obtida, em grande parte fruto do instituído sigilo que rodeia esses mega-contractos, que se adivinham


firmados num mar de conflitos de interesses onde se especula que nadem grandes nomes da praça. Convém também mencionar que entre meados de 2013 e o presente, Moçambique vive um escalar de tensão político-militar. Enquanto entre 2013 e 2015 as duas maiores forças políticas do país digladiavam-se quanto a mudanças na lei eleitoral com as Eleições Gerais de 2015 em mente, hoje ambas reclamam vitória no pleito, da qual a FRELIMO foi declarada vencedora apesar dos sérios indícios de fraude eleitoral em diversas mesas de voto. Certo é que, desde 2013, o centro do país tem sido palco de vários confrontos armados. 1.4.1 Plano Estratégico de Desenvolvimento Agrário (PEDSA) À semelhança de outros projectos de larga envergadura a decorrer no país, o Governo de Moçambique enquadra o projecto da Wanbao no PEDSA, um plano estabelecido pelo Sistema Nacional de Planificação com uma visão de médio/longo prazo assente nas directrizes nacionais traçadas para a agricultura e nas prioridades do quadro orientador comum dos países africanos para melhorar o desempenho do sector agrário – o Programa Integrado para o Desenvolvimento da Agricultura em África. Em linha com os princípios advogados pelo PEDSA, o governo defende que o projecto da Wanbao contribuirá para a segurança alimentar da região e ajudará a reduzir as importações do país. A principal crítica feita a este plano e à actual política agrária do país pelos muitos cépticos, é que os seus instrumentos beneficiam os grandes investimentos/megaprojectos em detrimento do camponês, sendo que hoje, os principais desafios enfrentados em Moçambique pelos pequenos agricultores são a insegurança da posse de terra e a sistemática violação dos direitos fundamentais das populações afectadas por grandes investimentos/mega-projectos. 1.4.2 Pronunciamento da Directora Provincial do MICOA em Gaza Em conversa connosco em Junho de 2015, a Directora Provincial do MICOA admitiu ter sabido, ainda que por via informal, que quando o projecto da Wanbao arrancou, gerou conflitos com as comunidades locais, tendo inclusivamente sido informada de uma marcha dos camponeses. Disse também lamentar que todo o processo tivesse sido conduzido da forma como o foi. Num discurso desalinhado com os actos do seu executivo, disse ainda que, pequenas ou grandes, as parcelas de culturas diversificadas sustentavam muitas famílias e, como tal, ajudavam na redução da pobreza do país – o tal grande desafio do governo Moçambicano. Complementou isto dizendo que permitir o investimento estrangeiro tem como objectivo, em primeiro lugar, beneficiar o povo de Moçambique e não prejudicá-lo, pois não se combate a pobreza privando as pessoas dos seus meios de subsistência, deslocando-as para zonas inférteis e tomando medidas que as colocam em risco.


1.5 Sobre as Comunidades na Área do Projecto

“A intervenção da empresa Wanbao é feita através duma parceria «público-privado-população» implementada com enfoque para o programa de transferência de tecnologia a produtores locais, alocação de áreas infra-estruturadas, apoio ao programa de suplementação alimentar e intervenções conjuntas. A componente de transferência de tecnologia irá beneficiar mil produtores locais.” “Regadio do Baixo Limpopo em vias de tirar Moçambique do mapa de importador de arroz” por Almiro Mazive para a Agência de Informação de Moçambique, 31 de Agosto de 2013

Como nos confirmou o Presidente do Conselho de Administração da RBL, o projecto está a ser implementado numa área afecta a cerca de 79.868 habitantes dos diversos bairros da cidade de Xai-Xai e arredores, e de bairros comunais e povoações de toda a região. Os agricultores da região usam a terra tanto para sua subsistência, como para a obtenção de renda através da venda dos seus produtos nos mercados locais.



2. O Caso Wanbao “O Governo de Moçambique concedeu 20,000 hectares de terra a uma empresa chinesa denominada “Wanbao Agriculture”, para exploração de arroz durante um período de 50 anos. Esta área corresponde a 22% do total da área irrigável do Baixo Limpopo, província de Gaza. Com esta concessão, cerca de 80 mil pessoas deverão abandonar as suas terras. A empresa agora está a invadir as zonas de Hluvucaze, Languene e Gumbane que não faziam parte do projecto, e as populações dos cinco (5) bairros do posto administrativo de Chicumbane, ficaram sem terra para praticar agricultura e pastar os seus gados. Temem ainda que as ocupações prossigam para outras áreas das comunidades. Não há informação disponibilizada para as comunidades pelo Governo. As pessoas estão apenas a assistir as suas terras a serem ocupadas.” CanalMoz, 25 de Outubro de 2012

Depois do Governo Moçambicano ter cedido oficialmente à Wanbao 20,000 hectares sem o consentimento das comunidades, a empresa, com o apoio da RBL, fazendo uso de retroescavadoras e tractores foi paulatinamente invadindo pequenas parcelas de terra usadas pelas populações, destruindo as suas culturas (muitas delas prontas para ser colhidas) e abrindo valas de tal profundidade e largura que inviabilizaram a circulação de pessoas e bens, bem como do abundante gado, causando assim imensos transtornos. Estes constrangimentos afectaram cerca de 500 produtores agrícolas e camponeses residentes em diferentes bairros do distrito de Xai-Xai, cujas machambas se encontravam nas áreas de Kana Kana e Baixa Fome no Regadio do Baixo Limpopo. Segundo os camponeses afectados, a RBL designou-lhes então uma nova área para fazerem machambas, mas essa área está entregue a uma empresa produtora de algodão desde a época colonial, o que só veio gerar mais confusão e desconfiança. Ainda segundo os populares, numa tentativa de prestar esclarecimentos à população, a Wanbao deixou bastante claro aos camponeses (ainda que gesticulando, uma vez que lhes é difícil falar o Português ou o Xitchangana) que já haviam pago ao Governo e, como tal, estavam a exercer o seu direito. Posto isto, um grupo de mulheres visadas dirigiu-se ao Governo Distrital de modo a solicitar explicações ao Administrador, mas este não as recebeu. Por seu turno, a JA tentou também agendar um encontro com o mesmo, o que também não foi possível, alegadamente por estar ausente, o que sabemos não corresponder à verdade.


Uma vez frustrada essa tentativa, os camponeses visados por esta primeira investida, que eram acima de 100 e na sua maioria mulheres, reuniram-se mais uma vez em Kana Kana junto a uma das vias de acesso aos campos, por onde acreditavam que o administrador passaria, em jeito de manifestação e protesto. Fizeram uma autêntica espera em frente às suas terras, palco de destruição das suas culturas pela Wanbao. A situação era volátil, até catanas havia nas mãos da multidão. Mas não passou nem administrador, nem membro algum do governo, apenas um técnico do RBL que nada disse alegando não ser de sua competência, mas que garantiu levar o assunto a quem de direito. A população enfurecida conteve-se. Perante este cenário, a JA dirigiu-se à RBL e teve uma reunião com o Administrador e com a Secretária Executiva do PCA, onde procurou sensibilizá-los e relembrá-los da sua responsabilidade pelo bem estar social e económico da população. O Administrador da RBL mostrou-se desagradado e surpreso com a atitude da Wanbao em destruir as culturas em fase de maturação e disse não poder garantir qualquer tipo de indemnização, apenas a devolução das terras acima referidas e o tapar das valas. Ou seja, resumidamente, os representantes da RBL garantiram-nos que entrariam em contacto com a Wanbao para que estes parassem com os seus trabalhos, restituíssem as machambas às populações e fechassem as valas. E assim foi. As parcelas foram desocupadas e restituídas à população, mas indemnização nenhuma lhes foi oferecida pelos danos. Durante o primeiro semestre de 2013 a Wanbao volta a invadir as terras entretanto devolvidas às comunidades. Desta feita, uma série de organizações da sociedade civil, entre as quais a JA, o Fórum das Organizações Nacionais de Gaza (FONGA), a Liga dos Direitos Humanos (LDH) e a União Nacional dos Camponeses de Gaza (UNAC), ajudaram a população a exercer o seu direito de petição, queixa e reclamação (ao abrigo da Lei n.º 2/96 de 4 de Janeiro), organizando uma marcha pacífica que culminou com a entrega de uma petição endereçada ao Governador da Província de Gaza onde constavam todas as preocupações e exigências dos afectados pelo projecto supracitado. Até à data, esta petição não surtiu resposta alguma. Questionados sobre a destruição de culturas em fase de maturação, representantes da Wanbao confirmaram posteriormente que o incidente acontecera e lamentaram o sucedido. Segundo estes, nas consultas comunitárias havidas, ficou acordado que as populações cessariam as suas prácticas agrícolas uma vez que as terras já lhes haviam sido cedidas pelo governo Moçambicano. No entanto, os locais continuaram a produzir e chegada a data prevista para o início de actividades, a empresa iniciou a lavoura sem se importar com as culturas lá existentes. Além da destruição das suas culturas, das realocações forçadas, inadequadas e desprovidas de devida compensação, e de uma incompreensível e quase total ausência de comunicação, o projecto compreende outros problemas que julgamos preocupantes. Vamos abordar alguns.




2.1 Início de actividade sem EIA e sem Licença Ambiental

Conforme carta do Ministério Para a Coordenação da Acção Ambiental (MICOA) datada de 30 de Setembro de 2013 (na proxima página), a aprovação do Relatório Final de Estudo do Impacto Ambiental (REIA) deste projecto só se veio a efectuar em Setembro de 2013. Sobre o tópico, em entrevista concedida à JA em 2012, o PCA da RBL disse que, porque se tratava de um projecto cuja finalidade é beneficiar o povo moçambicano, o projecto da Wanbao não carecia de um Estudo de Impacto Ambiental (EIA) aprovado para dar início às suas actividades. – Esta afirmação é desprovida de qualquer suporte legal. Por seu turno, em Junho de 2015 numa reunião com a JA, um técnico da Direcção Provincial do MICOA disse não saber se a Wanbao (cujo projecto, segundo o estipulado pelo Decreto n°45/2004 de 29 de Setembro é dito de Categoria A e como tal requer um EIA) já obtivera o devido licenciamento ambiental. Disse ainda que o processo de aprovação do projecto havia sido tratado a nível central e, como tal, também não sabia dizer se a Wanbao já efectuara o pagamento de 250 milhões de Dólares Americanos (determinado pelo MICOA) para dar inicio às actividades, em conformidade com o Regulamento sobre o Processo de Avaliação do Impacto Ambiental na alínea a) do nº1 do Artigo 25, do Decreto 45\2004, de 29 de Setembro. Em Junho de 2015, num encontro com representantes da Wanbao, a JA ficou a saber que a empresa ainda não detinha Licença Ambiental por alegada falta de fundos para o pagamento da da tal taxa de 250 milhões de Dólares estipulada pelo MICOA. À semelhança do que fora dito em 2012 pelo PCA da RBL, segundo os representantes da empresa chinesa, tratando-se de um projecto de agricultura não era imperiosa a obtenção do mencionado documento legal para dar início às actividades. – Nova asserção sem qualquer base legal. Legalmente, a verdade é que as operações da Wanbao violam taxativamente o acima mencionado Decreto 45/2004, de 29 de Setembro, que preconiza a obrigatoriedade da realização do EIA para qualquer proposta de projecto de actividade económica, bem como a obtenção da respectiva Licença Ambiental, obtida mediante o pagamento impreterível da devida taxa.



2.2 Consultas Comunitárias e sua Aprovação

Segundo muitos dos camponeses afectados pelo projecto, os visados não foram sequer devidamente informados, quanto mais consultados, durante o processo que culminou com a usurpação das suas terras pela Wanbao. A perda da terra onde produziam há mais de 30 anos ocorreu sem transparência e sem indemnizações, com a agravante que na altura em que as máquinas da Wanbao “limparam” os campos, “limparam” também culturas em fase de maturação de muitos camponeses. Este facto é confirmado pela inexistência de uma cópia da acta da consulta comunitária quer nos arquivos das estruturas locais, bem como nos da Direcção Provincial do MICOA, nos da RBL e nos da Wanbao. Aliás, apesar de imprescindível para todo o processo de licenciamento do projecto, esse documento nem consta do seu REIA. As consultas comunitárias são extremamente importantes para evitar conflitos futuros. Tipicamente, na consulta à comunidade discutir-se-iam as razões da reunião, os dados do projecto proposto, a legislação de terra em relação a este processo e os direitos da comunidade. Aos membros da comunidade seria dada oportunidade para fazer perguntas e discutir prós, contras e demais implicações do projecto. A Lei de Terras estipula que os “acordos ou promessas feitas durante as consultas à comunidade são incluídas na acta da consulta e são consideradas obrigatórias” (Regulamento da Lei de Terras, Decreto 15/2000 de 20 de Junho, Decreto 45/2004 e o Decreto 31/2012 de 8 de Agosto). Embora na opinião de muitos elas lamentavelmente tenham muito pouco peso no processo legal, as consultas comunitárias não são facultativas e existem por algum motivo.

2.3 Violações da Lei de Trabalho

Uma queixa recorrente dos camponeses é a violação sistemática dos seus direitos laborais. Trabalho sem contratos, salários abaixo do tabelado, horas extras sem remuneração, rescisão de contratos unilateralmente sem justa causa e alguns casos de maus tratos aos trabalhadores moçambicanos.


2.4 Agrotóxicos?

Tudo leva a crer que o projecto Wanbao use agrotóxicos (químicos usados para o controle de pragas, para prevenir doenças causadas por micro-organismos e para impedir o crescimento de outras plantas que não sejam as do cultivo). Estas substâncias, quando utilizadas em larga escala (como, dada a envergadura do projecto, se supõe que seja o caso) podem causar sérios problemas ao meio ambiente. Num ecossistema como o do Regadio do Limpopo, o risco está na contaminação de solos e águas e consequentemente da fauna e flora da região. Um uso excessivo/ desregulado de agrotóxicos poderá, por exemplo, ameaçar seriamente a população de várias espécies de peixes do Rio Limpopo.

2.5 Desrespeito pelos Valores Culturais e Espírituais

De acordo com a sua tradição, várias famílias das comunidades locais enterravam os seus mortos dentro do perímetro hoje concessionado à Wanbao. Face a isto, a empresa custeou a exumação de parte dessas sepulturas, enquanto noutros casos, as campas foram simplesmente removidas sem qualquer cuidado ou critério.

2.6 Divisão de Lucros Injusta

Os agricultores queixam-se que a Wanbao vende o arroz que produzem a preço normal de mercado, por vezes até acima da sua concorrência, mas no entanto não lhes paga por este um valor justo, ficando assim com a maior porção dos lucros. Desta forma, a tal transferência de tecnologia que supostamente beneficiaria todo o país, é paga (a vários níveis) estritamente por quem mais devia beneficiar dela. Ou seja, não é uma transferência de tecnologia, é uma prestação de serviços mal remunerada.



3. O Insólito Caso da Penitenciária de Gaza

Dia 19 de Outubro de 2015, no exacto momento em que uma equipa da JA e mais de 90 camponeses de Baixa Fome e Kana Kana terminavam uma reunião sobre as mais recentes invasões das suas machambas, chegou ao local um camião com alguns homens, carregada de blocos de cimento. Os homens eram presidiários acompanhados por guardas prisionais, e ao chegarem puseram-se de imediato a descarregar os blocos sob o olhar atento dos guardas. Este cenário desencadeou de imediato uma resposta furiosa da população. Com os nervos compreensivelmente à flor da pele, os camponeses a quem o governo não se dignava a responder, avançaram intrepidamente em direcção ao grupo a fim de lhes pedir explicações sobre o que estavam a fazer. Exaltados, abordaram-nos de forma bastante agressiva e intimidatória, gerando um momento muito tenso. Os guardas prisionais estavam armados, e embora tenham respondido à letra à abordagem hostil da população (o que nos pregou um enorme susto), felizmente mantiveram-se calmos tempo suficiente para permitir que lhes explicássemos a situação e apaziguássemos os ânimos da população que entretanto também se apercebeu da insensatez do seu acto. Restabelecida a razão e o diálogo, o grupo de homens explicou que quem lhes concedera o espaço fora a RBL. Preocupadas, a JA, a FONGA e a LDH contactaram imediatamente o PCA da RBL, expuseram a situação e agendaram uma reunião para o dia seguinte. Importa referir que, para que também estivessem presentes na reunião, a RBL ficara incumbida de contactar o líder da Comunidade de Chimbonhanine e um representante do Comité dos Camponeses, no entanto, tal não aconteceu e estes não teriam participado caso a JA não os tivesse contactado e ido buscar. A RBL fez-se representar no encontro por dois técnicos da sua área social.



3.1 Reunião, dia 20 de Outubro de 2015

Intervenção dos representantes do camponeses Segundo os representantes dos camponeses afectados, numa primeira instância eles já haviam lavrado manualmente a terra e esperavam apenas a chuva para semear quando souberam que estavam tractores a lavrar as suas machambas. Deslocaram-se ao terreno e abordaram os invasores pedindo-lhes que parassem com a lavoura pois as terras eram suas. Esses homens pararam os trabalhos, isolaram-se, conversaram entre si, fizeram chamadas telefónicas e de seguida foram-se embora sem dar qualquer tipo de explicação. No entanto, alguns dias depois retomaram as suas actividades, desta feita ignorando os seus protestos. Foi então que solicitaram o apoio da JA, cuja visita coincidiu com nova invasão. Agora, perante os líderes locais e os representantes da RBL, queriam saber o que estava a acontecer. Intervenção do Líder Comunitário de Chimbonhanine e do Chefe do Comité dos Camponeses de Baixa Fome De acordo com o Líder Comunitário e com o Chefe do Comité dos Camponeses, a RBL abordou-os sobre a possibilidade de concederem à Penitenciária de Gaza uma área de 320 hectares cedidos à população há mais de 24 anos pelo Governo da Província e ocupada por 52 famílias da comunidade de Chimbonhanine (mais de metade desta área foi entretanto ocupada/entregue à Wanbao). A essas 52 famílias desapropriadas, propunham em troca novas terras numa área pertencente e cultivada pela Comunidade de Magul, que também fora vítima da Wanbao. Os líderes disseram ter recusado a proposta afirmando que a terra que lhes propunham mal reunia condições para os que já lá estavam. Foi, portanto, com surpresa que viram os tractores com homens da Penitenciária a lavrar as suas terras. Frustrada a tentativa de dissuadi-los e perante a sua persistência solicitaram o apoio da JA, que chegou a tempo de testemunhar nova investida. Reiteraram então que esperavam que a RBL pudesse hoje esclarecer o ocorrido. Intervenção dos representantes da RBL Segundo a RBL, a empresa trabalha, com e para, mais de nove mil camponeses/ agricultores, número que aumenta todos os dias. De acordo com a sua versão dos factos, após ter sido abordada pela penitenciária, a empresa analisou zonas não exploradas e contactou a Casa Agrária de Inhamissa , com quem identificou a área em questão. Deu-se então início à lavoura de 42 hectares e posteriormente de mais 28, totalizando assim 70 hectares. Depois da população intervir a RBL mandou a Penitenciária paralisar o trabalho. Procuraram então o Líder da Comunidade e o Chefe do Comité dos camponeses de modo a solucionarem o conflito causado pelo facto de não terem consultado/falado com os camponeses.


Posto isto, delegou-se uma comissão de representantes dos agricultores/ camponeses para gerir o conflito. Essa comissão, liderada pelo Secretário do Comité dos Camponeses – que garantiu estar a trabalhar em consenso com o Líder da Comunidade e com o Chefe do Comité – identificou uma área de 48 hectares que foi lavrada para realocar os camponeses que perderam as suas áreas de cultivo. Segundo os representantes da RBL, o Secretário disse ter falado com os camponeses afectados e que estes teriam concordado com a troca. No entanto, perante as declarações dos camponeses, do Líder Comunitário de Chimbonhanine e do Chefe do Comité de Camponeses de Baixa Fome, reconheceram ter estado a trabalhar com as pessoas erradas e ter conduzido o processo de forma incorrecta, pelo que pediram desculpas pelo sucedido em nome da RBL. Questionados se essas reuniões de resolução de conflitos estavam documentadas, se alguém sequer notas tirara, responderam que não por julgarem tratar-se de um trabalho de rotina e como tal não acharem relevante. A JA, LDH e FONGA, recomendaram à RBL o seguinte: • Envolver sempre o maior número de representantes dos camponeses e lideranças locais possível para evitar futuros conflitos e mal entendidos, e para garantir um processo transparente, justo e abrangente; • Documentar devidamente todas as reuniões com as ferramentas possíveis (notas, actas e a imprescindível assinatura dos participantes); • Zelar, acima de tudo, pelo bem estar dos camponeses (sua obrigação como Empresa Pública) trabalhando dentro das normas; • Que se reunissem com o Líder Comunitário de Chimbonhanine e com o Chefe e o Secretário do Comité dos Camponeses de Baixa Fome para solucionarem o conflito; • Que escrevessem prontamente uma carta à Penitenciária de Gaza ordenando a paralisação das suas actividades enquanto se resolve o conflito. No fim da reunião os camponeses queixaram-se bastante da postura do governo, a quem acusaram de desconsideração e falta de respeito, lamentando o seu silêncio cúmplice. Dez dias depois os camponeses foram autorizados a retomar as suas machambas.


4. Testemunhos Durante a nossa monitoria, conduzimos várias entrevistas nas comunidades de Marien Ngouabi, Patrice Lumumba, Inhamissa, Chicumbane e Chimbonhanine. Eis alguns que julgamos pertinentes: Jossias Langa, residente no Bairro de Marien Ngouabi e camponês na Baixa Fome, perdeu 4 hectares para a Wanbao com culturas em fase de maturação. Para o cultivo e sementeira dessa terra teve de contrair um empréstimo no banco que seria pago com a venda dos produtos dessa colheita. Sem outra fonte de rendimento, não tinha como liquidar a sua dívida. Acabou comprometendo-se a produzir 2 hectares de arroz para o projecto Wanbao, a quem entregou o arroz há dois meses. Para sua tristeza e frustração, a empresa Wanbao não lhe pagara ainda, alegando não ter dinheiro de momento. Este facto foi relatado por mais de 10 camponeses envolvidos no mesmo projecto, agastados por terem perdido as suas terras, sido forçados a trabalhar para quem as usurpou, e ainda assim continuarem de mãos vazias. Angélica Moyane, viúva, também residente no Bairro de Marien Ngouabi e camponesa na Baixa Fome, detinha 1\2 hectare no regadio. Por ano chegava a colher duas toneladas de milho e outras variedades de culturas em pequena escala para seu consumo e para lhe ajudar a custear as despesas de educação dos seus 4 netos. Investiu o seu tempo e os seus parcos recursos financeiros na compra de sementes e na lavoura da terra para a sementeira e está agastada com a perda das suas culturas. Raquelina Mathe, anciã e viúva, camponesa de Kana Kana e residente no Bairro de Inhamissa, com 7 dependentes, tinha 1 hectare cuja produção lhe dava para seu sustento durante o ano e para a educação das crianças. A destruição das suas culturas atentou seriamente a sobrevivência da sua família. Jossias Manhique, residente em Chimbonhanine, tinha 12 cabeças de gado (cada um com o valor aproximado de 15 a 18 mil meticais) que usava na época de cultivo para trabalhar nas suas machambas e de outros camponeses, o que lhe permitia viver de forma condigna. Quando as suas terras foram entregues à Wanbao, por não ter espaço para pastar esses bois, teve que abater a maioria das cabeças e vender algumas abaixo do seu valor. (Facto também relatado por outros camponeses, alguns dos quais mantiveram parte do gado que hoje se encontra, por falta de pasto, em muito má condição.) “Vovó” Felismina é uma anciã residente na zona de Marien Ngouabi que, segundo o seu testemunho e o de seus vizinhos, teve um ataque cardíaco quando viu as suas culturas a serem destruídas pelas máquinas da Wanbao. Viúva e com 9 netos que dependiam da sua machamba, sem condição física vive agora uma vida miserável, dependente da caridade de alguns vizinhos. O mais velho dos seus netos (todos órfãos) ainda que menor de idade, teve que começar a trabalhar a pastar de gado de modo a poder ajudar a sua avó, mas o valor que recebe não chega nem para seu próprio sustento. Felismina carece de apoio alimentar e de saúde e reside numa habitação que não reúne condições mínimas para um ser humano.



5. Conclusões

A Lei é bem explícita quando diz que “a terra é propriedade do Estado”, isto significa que pertence ao povo moçambicano. A obrigatoriedade de consultar as comunidades locais antes de acolher investidores e outros interessados na terra, é considerada uma das principais inovações da Lei de Terras (Artigo 13, número 3). Para haver ocupação de terra, o investidor (ou o Estado), na condição de (novo) requerente, é obrigado por Lei a realizar uma consulta comunitária com a finalidade de determinar se a área pretendida está livre e não tem ocupantes. Mas será que a aquisição de um Direito de Uso e Aproveitamento da Terra (DUAT) por pessoas singulares ou colectivas (nos termos da alínea c) do artigo 12 da Lei n.º 19/97, de 1 de Outubro) se sobrepõe às demais formas de aquisição fixadas no mesmo artigo? Nos termos do nº2 do artigo 13 do mesmo dispositivo legal, a ausência de título não deve prejudicar o direito de uso e aproveitamento da terra adquirido por ocupação por pessoas singulares e pelas comunidades locais, segundo as normas e práticas costumeiras e ocupação por pessoas singulares nacionais que, de boa-fé, estejam a utilizar a terra há pelo menos 10 anos. Por sua vez, a Constituição da República de Moçambique (CRM) acautela que a política económica do Estado é dirigida à construção das bases fundamentais do desenvolvimento, à melhoria das condições de vida do povo, ao reforço da soberania do Estado e à consolidação da unidade nacional através da participação dos cidadãos, bem como da utilização eficiente dos recursos humanos e materiais, sem prejuízo do desenvolvimento equilibrado. Mais, o Estado garante a distribuição da riqueza nacional, reconhecendo e valorizando o papel das zonas produtoras, sendo que é seu dever promover, coordenar e fiscalizar a actividade económica agindo directa ou indirectamente para a solução dos problemas fundamentais do povo e para a redução das desigualdades sociais e regionais. O seu papel é impulsionar a promoção do desenvolvimento de forma equilibrada. Tal não sucedeu neste caso. Importa referir também que os órgãos de Administração Pública têm o dever de responder aos pedidos de esclarecimento por parte do cidadão, bem como de ponderar e tomar posição sobre as observações, sugestões e recomendações feitas. (Ao abrigo do Decreto 30/2011 de 15 de Outubro e a Lei nº14/2011, de 8 de Fevereiro). A Lei moçambicana é clara e rigorosa, pelo desenvolvimento sustentável e equilibrado, pela não violação dos direitos humanos dos cidadãos e pela justa


indemnização/compensação em caso de qualquer dano resultantes da actividade económica. Não é que o projecto agrícola da Wanbao no Regadio seja uma má iniciativa, mas a realizar-se deveria ter por base uma relação harmoniosa com as outras partes interessadas, bem como com a natureza, o que infelizmente, não é o caso. Este conflito, à imagem de outros, é uma indicação de que é necessário que se enveredem mais esforços para optimizar estes processos, para que de futuro decorram de forma mais transparente, inclusiva e democrática. Todas as partes deverão ser integradas nas decisões tomadas e essas decisões devem ser guiadas por uma abordagem holística, onde todas as dimensões do pretendido (ambientais, sociais, culturais, espirituais e económicas) sejam contempladas. Isto só pode ser alcançado se o contributo de todas as partes envolvidas for levado em conta. O principal objectivo deste documento é contribuir para a resolução do conflito e trazer justiça às partes afectadas.


5. Recomendações 1. A Wanbao e o Governo deveriam apresentar um pedido de desculpas oficial às comunidades pelo sofrimento e perdas causados pelo Projecto; 2. A totalidade das terras usurpadas deveria ser devolvida às comunidades; 3. Ao abrigo do artigo 58 da CRM, que preconiza que, “1. A todos é reconhecido o direito de exigir, nos termos da lei, indemnização pelos prejuízos que forem causados pela violação dos seus direitos fundamentais; e 2. O Estado é responsável pelos danos causados por actos ilegais dos seus agentes, no exercício das suas funções, sem prejuízo do direito de regresso nos termos da lei”, as pessoas das comunidades afectadas deveriam ser devidamente indemnizadas; 4. A comunicação entre as partes deve ser melhorada e aumentada e o modus operandi na tomada de decisões precisa ser melhorado de forma a tornar-se mais inclusivo; 5. O conhecimento tradicional, incluindo as técnicas de cultivo, precisa de ser relevante na tomada de decisões agrícolas, e a introdução de novas tecnologias deve ser feita levando em consideração esse conhecimento tradicional, aliás, conforme preconizam: • A alínea i do artigo 11 da CRM, que define como um dos objectivos fundamentais do Estado “a afirmação da identidade moçambicana, das suas tradições e demais valores sócio-culturais”; e • O artigo 118 do mesmo dispositivo legal, que diz: “1. O Estado reconhece e valoriza a autoridade tradicional legitimada pelas populações e segundo o direito consuetudinário; e 2. O Estado define o relacionamento da autoridade tradicional com as demais instituições e enquadra a sua participação na vida económica, social e cultural do país, nos termos da lei”. 6. As leis do país são para respeitar e cumprir. Os Estudos de Impacto Ambiental não são facultativos, devem ser elaborados o mais cuidadosamente possível e devem honrados. Eles existem para nos salvaguardar; 7. Todas as formas de aquisição de DUAT estabelecidas pela Lei, devem ser respeitadas e honradas por igual, conforme o estabelecido no artigo 12 da Lei nº 19/97 de 1 de Outubro: “O direito de uso e aproveitamento da terra é adquirido por: a) ocupação por pessoas singulares e pelas comunidades locais, segundo as normas


e práticas costumeiras no que não contrariem a constituição; b) ocupação por pessoas singulares nacionais que, de boa fé, estejam a utilizar a terra há pelo menos dez anos; c) autorização do pedido apresentado por pessoas singulares ou colectivas na forma estabelecida na presente Lei.” 8. O Estado não deve sacrificar o povo em prol do desenvolvimento. O seu papel é outro, conforme estipula o nº2 do artigo 103 da CRM: “O Estado garante e promove o desenvolvimento rural para a satisfação crescente e multiforme das necessidades do povo e o progresso económico e social do país”. 9. Por último, recomendamos a todos os afectados que continuem a agir dentro do estipulado pela lei, ainda assim relembrando-lhes que o artigo 80 da CRM estabelece que “o cidadão tem o direito de não acatar ordens ilegais ou que ofendam os seus direitos, liberdades e garantias.”


Ficha Técnica Titulo No Regadio do Baixo Limpopo Autoria Gizela Zunguze Publicação Justiça Ambiental – Amigos da Terra Moçambique Coordenação e Revisão Anabela Lemos Daniel Ribeiro Trabalho de Campo Gizela Zunguze Manuel Chaúque Samuel Mondlane Xavier Pene Daniel Burgos-Nyström Edição de Texto e Layout Outra Perspectiva Fotografia da Capa Samuel Mondlane Distribuição Gratuita



O conteúdo desta publicação é de inteira responsabilidade da Justiça Ambiental e de nenhuma maneira reflecte a posicão ou opinião dos financiadores.


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