Lazer e descanso chris luce

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Referência deste texto para citações bibliográficas:

GOMES, Christianne Luce. Lazer e descanso. Seminário Lazer em debate, 9, 2008, São Paulo. Anais... São Paulo: USP, 2008. p.1-15. Disponível em: <http://www.uspleste.usp.br/eventos/lazerdebate/anais-christianne.pdf.pdf>. Acesso em 07/08/08.

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LAZER E DESCANSO Christianne Luce Gomes* Universidade Federal de Minas Gerais Palavras iniciais A proposta desta mesa redonda é debater um assunto que, ultimamente, não impulsiona muitas discussões no campo de estudos sobre o lazer no Brasil. Mas nem sempre foi assim: no decorrer do século XX, por exemplo, “lazer e descanso” constituiu um tema muito estudado e debatido. Logo após a 2a guerra mundial, mais precisamente em 1948, a Organização das Nações Unidas – ONU – elaborou uma Carta difundida como Declaração Universal dos Direitos Humanos, que destaca em seu artigo 24: “Todo homem tem direito a repouso e lazer, inclusive a limitação razoável das horas de trabalho e a férias remuneradas periódicas.” Essa Carta inspirou a elaboração da Constituição de muitos países, como o Brasil, que reconhece o lazer como um direito social. No decorrer do século passado certamente alguns estudiosos brasileiros também dedicaram parte de suas reflexões ao tema lazer e descanso, inclusive autores como Sussekind, Marinho e Góes (1952). Mas, hoje, poucos são aqueles que elaboraram conhecimentos aprofundados, atualizados e críticos sobre a temática. Essa constatação decorre da análise de livros, coletâneas de textos e anais de eventos relacionados ao lazer; apreciação de algumas revistas científicas; consulta em bibliotecas, bancos de dissertações e teses, portais de periódicos e até mesmo em sites na internet. Este levantamento da nossa produção nacional contemporânea evidenciou a ausência de estudos sistematizados ou de pesquisas científicas que aprofundassem ou tratassem

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Professora Doutora da UFMG. Coordenadora do Mestrado Acadêmico em Lazer/UFMG, com abordagem Multidisciplinar. E-mail: chris@ufmg.br .


especificamente da temática “lazer e descanso” para além dos famosos “3 D’s” propostos por Dumazedier (“D” de descanso, de divertimento e de desenvolvimento).1 Não é meu propósito fazer uma síntese desse levantamento tampouco fazer uma análise exaustiva do tema, mas, contribuir com a reflexão sobre lazer e descanso retomando algumas das idéias centrais de Joffre Dumazedier e de outros autores com o intuito de analisá-las e compreendê-las enquanto parte de um constructo teórico – que, para mim, só tem sentido quando dialoga com a realidade concreta. Assim, antes de explorar a temática considero essencial explicitar meu entendimento de lazer, pois ele será o eixo norteador da reflexão aqui proposta.

Compreendendo o lazer como uma dimensão da cultura A definição de lazer elaborada por Dumazedier (1976) foi, durante muito tempo, utilizada como referência no Brasil e em outros países. Em minha prática pedagógica observo que essa definição ainda é bastante empregada em muitas áreas do conhecimento, tais como sociologia, psicologia, pedagogia, turismo e terapia ocupacional. Para o autor, o lazer “é um conjunto de ocupações às quais o indivíduo pode entregar-se de livre vontade, seja para repousar, seja para divertir-se, recrear-se e entreter-se ou, ainda, para desenvolver sua informação ou formação desinteressada, sua participação social voluntária ou sua livre capacidade criadora após livrar-se ou desembaraçar-se das obrigações profissionais, familiares e sociais.” (Dumazedier, 1976, p.34) Fundamentada em autores como Malinowski, Baudrillard e principalmente Marx, Faleiros (1980) analisa quatro obras de Dumazedier e chama a atenção para as

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A busca de informações sobre lazer e descanso, principalmente na internet, evidenciou um aspecto recorrente nos dias de hoje, relacionado com a necessidade de “desaceleração”. Esta é a proposta de alguns grupos preocupados com o ritmo de vida alucinante verificado em nosso contexto, marcado por uma série de “afazeres” que acabam abrindo poucas oportunidades para descansar, repousar e relaxar, ou seja, para o “nada fazer”. Esses grupos, frequentemente, baseiam-se nos princípios propagados pela chamada “Sociedade para desaceleração do tempo” (http://www.zeitverein.com/english/framesets_e/fs_zeitverein_e.html), fundada há 15 anos na Alemanha. Seus princípios, todavia, não colaboram com a discussão aqui proposta, por isso não serão aqui considerados.


inconsistências, incoerências e fragilidades da definição de lazer por ele formulada2. A autora salienta que tal conceito associa as atividades de lazer à satisfação de determinadas necessidades humanas. Adotando uma postura consistente mas que, por vezes, torna-se radical, afirma que Dumazedier procura explorar as implicações do que considera lazer sem, no entanto, compreender a dinâmica social que permite a manifestação dessas atividades. Ressalta que o sociólogo francês pretendeu construir um conceito operacional cuja utilização, no máximo, implica no preenchimento do lazer por atividades sociais que atenderiam as suas características, sem, entretanto, conseguir explicá-las. O lazer seria, dessa maneira, um “invólucro vazio” a ser preenchido com determinadas atividades. Já desenvolvi, no verbete “Lazer – Concepções” do Dicionário crítico do lazer (Gomes, 2004), uma discussão que envolveu os conceitos de lazer elaborados por Dumazedier e por outros estudiosos brasileiros, dentre os quais destaco Marcellino (1987), parceiro de diálogo nesta mesa redonda. Ao considerar o lazer como cultura vivenciada no tempo disponível, entendo que foi dado um importante e decisivo passo para uma compreensão mais contextualizada do lazer. Essa “mudança de enfoque” indica que a consideração do lazer como um mero conjunto de ocupações (denominadas por Dumazedier de “lazeres”) passa a ser redimensionada, sendo esse fenômeno percebido sob o prisma da cultura. Mesmo que essa mudança conceitual não seja verificada efetivamente em todas as áreas do conhecimento, sugere uma ampliação do olhar sobre o lazer, o que considero fundamental para o avanço do saber sobre este fenômeno em nossa realidade. Situo-me, dessa forma, entre os pesquisadores que compreendem o lazer como um fenômeno cultural e afirmo, sem receio, que mesmo com as diferenças conceituais entre os autores da área verifico uma tendência, na atualidade brasileira, em compreender o lazer como uma dimensão da cultura. Sobre esse aspecto, Alves (2003) chamou a atenção para a necessidade de também aprofundarmos conhecimentos sobre a cultura, evitando assim análises superficiais sobre o assunto. Cultura: palavra polissêmica, objeto de estudo de diversas áreas do 2

Entre outros pontos, Faleiros (1980) questiona o fato de Dumazedier restringir as atividades de lazer como próprias à “civilização técnica”. Na sua compreensão, as análises sobre o lazer não deveria excluir as “civilizações tradicionais” e as sociedades rurais. Além disso, a autora contrapõe-se ao entendimento de lazer e trabalho como esferas opostas, como entende Dumazedier.


conhecimento que instiga várias correntes teóricas. Muitas são as abordagens, mas, assim como a autora acima, opto pela perspectiva antropológica para discutir o lazer como uma dimensão da cultura – o que não significa, no entanto, que a antropologia tenha uma única vertente teórica ou que suas várias abordagens compreendam a cultura da mesma maneira. Por isso, apóio-me em autores como Geertz (2001), Sahlins (2003) e Hall (2003) para compreender a cultura como produção humana e como dimensão simbólica na qual o significado é central. Nessa perspectiva, entendo o lazer como uma criação humana que está em constante diálogo com as demais esferas da vida. O lazer participa da complexa trama histórico-social que caracteriza a vida em sociedade, é um dos fios tecidos na rede humana de significados, símbolos e significações. Gomes e Faria (2005) colaboram com essa discussão ao esclarecer que o lazer deve ser pensado no campo das práticas humanas como um emaranhado de sentidos e significados dialeticamente partilhados nas construções subjetivas e objetivas dos sujeitos, em diferentes contextos de práticas sociais. Seguindo essa linha, o lazer é por mim concebido como “uma dimensão da cultura constituída pela vivência lúdica de manifestações culturais no tempo/espaço conquistado pelo sujeito ou grupo social, estabelecendo relações dialéticas com as necessidades, os deveres e as obrigações – especialmente com o trabalho produtivo.” (Gomes, 2004, p.125) Essa compreensão de lazer envolve quatro elementos inter-relacionados, os quais refletem as condições materiais e simbólicas que caracterizam a nossa vida em sociedade: (a) o tempo, que corresponde ao usufruto do momento presente e não se limita aos períodos institucionalizados para o lazer; (b) o espaço/lugar, que vai além do espaço físico por ser um “local” do qual os sujeitos se apropriam no sentido de transformá-lo em ponto de encontro para o convívio social; (c) as manifestações culturais, que constituem as práticas vivenciadas como fruição da cultura e, por isso, detém significados singulares para quem as vivencia, e (d) a atitude, que se fundamenta na ludicidade – aqui entendida como expressão humana de significados da/na cultura referenciada no brincar consigo, com o outro e com a realidade (Gomes, 2004).


Nessa direção, o lazer representa um fenômeno sociocultural que se manifesta em diferentes

contextos

(histórico,

social,

político,

etc)

de

acordo

com

os

sentidos/significados que são produzidos e reproduzidos por meio de relações dialéticas dos sujeitos nas suas relações com o mundo. Enquanto uma dimensão da cultura, o lazer é dinâmico e, se por um lado é marcado pela diversidade, por outro constitui/é constituído pelas identidades distintivas de cada grupo social, colocando em realce os hibridismos que permeiam a relação global/local. Tais reflexões revelam que lazer é um fenômeno complexo, permeado de conflitos, tensões e contradições. Como bem observam Gomes e Faria (2005), no lazer coexistem lógicas diferentes ao mesmo tempo. Sua trama cultural evidencia que é tempo/espaço de manifestação do tradicional e da novidade, de conformismo e de resistência. Sua ambigüidade indica que ora é mera reprodução da ordem social, ora totalmente produtor do novo. Esta compreensão de lazer será o pano de fundo para as análises aqui propostas, que procuram focalizar a função de descanso atribuída a este fenômeno por Dumazedier e outros autores. Com qual sentido esses pesquisadores encaminharam seus estudos sobre o lazer e o descanso? É o que veremos no próximo tópico.

Analisando o descanso como uma “função” do lazer Como mencionado anteriormente, uma discussão sobre lazer e descanso nos faz pensar nas “funções do lazer” postuladas por Joffre Dumazedier, o autor dessa classificação amplamente difundida e aceita no Brasil e em outros países. Para Dumazedier (1976), o descanso é uma “função” do lazer, assim como o divertimento e o desenvolvimento – que, aliás, constituem o eixo central dos debates nesta 9a versão deste Seminário. Como o autor chegou a essa categorização? Essas funções foram definidas a partir de uma enquete realizada pelo Centre d’Études Sociologiques durante os anos de 1956-57 sobre a posição do lazer no desenvolvimento sociocultural da cidade francesa de Annecy, na época com 40.000 habitantes. Nessa pesquisa, foram identificadas três categorias que correspondiam a três “funções” do lazer consideradas pelo autor como mais importantes: a) função de


descanso, b) função de divertimento/recreação/entrenimento3 e c) função de desenvolvimento da personalidade (Dumazedier, 1976). No que se refere particularmente ao descanso, é importante salientar que o próprio Dumazedier já dizia que, inicialmente, o lazer foi concebido como sinônimo de repouso, mas, no decorrer do século XX, passou a ser visto como um conjunto mais ou menos estruturado de atividades com respeito às necessidades do corpo e do espírito.4 Todavia, mesmo passível de modificações quanto ao seu conceito, ao longo dos tempos o entendimento de lazer continua preservando a possibilidade de descanso. No tópico anterior, afirmei que o lazer, sendo visto como uma dimensão da cultura está em franco diálogo com as demais esferas da vida em sociedade. Assim, é importante indagar: o que os estudos sobre o tema nos indicam sobre o lazer e o descanso? Como esse binômio vem sendo compreendido e vivenciado em nossa realidade? Retomemos Dumazedier (1976). O sociólogo francês observa que o descanso libera da fadiga. O lazer, nessa perspectiva, assume o papel de reparador das deteriorações físicas e nervosas provocadas pelas tensões decorrentes das obrigações cotidianas, especialmente do trabalho. Para o autor, o ritmo da produtividade, a complexidade das relações industriais, assim como a grande distância entre a moradia e o local de trabalho, verificada nas grandes cidades, determinam um aumento na necessidade de repouso, silêncio e pequenos afazeres “sem objetivo”.5 Em termos gerais, fadiga é uma sensação de fraqueza, falta de energia e exaustão, o que compromete a realização das atividades cotidianas. Pode ser provocada por diversas causas (tais como patologias, estresse e ansiedade), o que gera esgotamento nervoso, dificuldade de concentração, noites mal dormidas e perda da vitalidade, entre inúmeros outros problemas.

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Na obra original, Dumazedier utiliza a palavra francesa divertissement, que foi traduzida para o português como divertimento, recreação e entretenimento. Por isso os três termos são justapostos na obra Lazer e cultura popular, designando assim essa “função” descrita por Dumazedier (1976). 4 Para Dumazedier (1976) essas atividades são os “lazeres”, e o seu conjunto compõe o lazer. 5 Dumazedier (1976) salienta ainda que, independentemente da categoria profissional, o estudo da função de recuperação pelo lazer deveria ampliar o campo das pesquisas sobre a fadiga e sobre a fatigabilidade. O autor mencionou uma nova tendência, vinculada a trabalhos médico-sociais, sobre as relações entre o ritmo de trabalho e o ritmo do lazer, recorrendo cada vez mais à colaboração da psicologia do trabalho e da psicosociologia do lazer.


É notório que a fadiga afeta, profundamente, o desempenho no trabalho produtivo, gerando conseqüentemente o aumento da necessidade do indivíduo de descansar. Considerando o acelerado ritmo de vida verificado nas sociedades industrializadas, Dumazedier acredita que essa necessidade é satisfeita quando o lazer assume a função de descanso. Dessa forma, o sentido do lazer estaria vinculado à recuperação da fadiga do indivíduo garantindo, portanto, a reposição da sua força de trabalho. Entretanto... qual a razão do aumento da fadiga em nossa sociedade? Por que é imprescindível que o sujeito tenha uma rápida reposição da sua força produtiva? Por que essa tarefa deve ser atribuída ao lazer? Quais significados o lazer assume nesse contexto? Os porquês dessa situação não são considerados por Dumazedier, que preferiu apenas apontar o lazer como alternativa viável para “amenizar” ou solucionar o problema. Assim, pontua que “a atual duração do lazer nao corresponde às crescentes necessidades de evasão. O trabalho industrial (...) implica uma fadiga maior para os nervos e por isso impõe (...) a necessidade de repouso e evasão.” (Dumazedier, 1976, p.23). Mesmo tendo como referência as sociedades industriais avançadas (capitalistas ou socialistas), o autor se restringiu à aparência, não se preocupando com a essência: os significados assumidos e partilhados pelo lazer nas construções objetivas/subjetivas, materiais/simbólicas dos indivíduos, em um determinado contexto histórico-social. Porém, como acentuou Geertz (2001), o significado se dá sempre em contexto e não é um código a ser decifrado de maneira fria e distante, como sugerem as categorizações formuladas por Dumazedier (1976, 1979). Seguindo a mesma linha de Dumazedier, outros autores também discorreram sobre as chamadas “funções do lazer”, mas, na maioria das vezes, esses estudiosos apenas endossaram o pensamento do sociólogo francês. Parker (1978, p.48) faz menção a esse aspecto e também se reporta a Dumazedier, no entanto, pontua que “Rolf Meyersohn obtém uma versão ampliada dessas funções, levando em consideração certas questões referentes ao indivíduo”. Assim, destaca como funções do lazer o descanso, o divertimento, a realização própria e a renovação espiritual. Sobre o lazer como “descanso, folga, recuperação”, este é dimensionado por Parker pelo fato de todos nós precisarmos de intervalos entre turnos de trabalho e outras atividades obrigatórias. Interpretações como essas devem ser revistas, pois sugerem que o


homem deve ser tratado como uma máquina que tem necessidade de intervalos de inércia para evitar o desgaste e a ruína do material, como adverte Reale (1980). Um outro autor que apresenta outras funções além dos 3 D’s de Dumazedier foi Roger Sue (1992) que, na década de 1980, propôs uma distinção entre as funções psicosociológicas, as funções sociais e a função econômica do lazer. Assim, além das três funções do lazer mais conhecidas, em sua obra (cujo título original é Le loisir) o autor elencou mais quatro.6 Sue (1992) afirmou que o lazer cumpria uma série de funções que se encontravam em todas as práticas e destacou que o importante era saber a quais necessidades o lazer correspondia no plano individual, no social e no econômico. O descanso insere-se entre as funções psicosociológicas e é, para Sue (1992), a mais necessária, pois, sem a recuperação da fadiga nervosa e física não seria possível desfrutar o lazer. Diferentemente dos outros autores, Sue discorre um pouco mais sobre as funções do lazer. O descanso também é compreendido como repouso que libera as tensões e a fadiga física ou nervosa geradas pela jornada de trabalho, envolvendo ainda a liberação psicológica dos condicionamentos, obrigações e tarefas realizadas por necessidade ou dever que acabam pesando sobre o sujeito, tais como os longos deslocamentos que geram impaciência e nervosismo, a pressão inevitável e obrigatória do trabalho, assim como a “usurpação” do tempo de lazer. Este aspecto do estilo de vida urbano faz com que os momentos de descanso sejam mais necessários, de maneira que para Sue (1992) o descanso como sinônimo de repouso é o principal componente do lazer moderno. Pelas observações até aqui efetuadas, percebemos que o descanso é tratado como uma função do lazer que corresponde a uma determinada necessidade, ou seja, recuperação da fadiga física e/ou nervosa e liberação das tensões, especialmente daquelas provocadas pelo trabalho. Tal constatação instiga duas ponderações. A primeira relaciona-se com a idéia subjacente ao binômio lazer/descanso, que é a tônica posta no valor do trabalho, admitindo-se via de regra que o homem só deve descansar para recuperar as forças e retornar ao trabalho. Reale (1980) explica que tão 6

Para Sue (1992), as funções psicosociológicas do lazer compreendem o descanso, a diversão e o desenvolvimento pessoal; as funções sociais englobam a sociabilidade, o simbólico e o terapêutico. A função econômica, por sua vez, diz respeito ao importante papel que a “indústria” do lazer ocupa na economia das sociedades ocidentais.


forte se tornou a projeção do trabalho como categoria histórico-econômica que ele passou a ocupar o centro do cenário cultural. Seguindo essa lógica, o tempo de lazer voltado para o repouso ou descanso – diário, semanal ou anual, ou aquele que sobrevém com a aposentadoria – passa a ser apreciado apenas em função do trabalho. Na opinião do autor, o lazer não deve ser reduzido a um mero corolário da atividade produtora de bens e serviços. Compartilho com essa idéia embora ciente de que, na realidade, muitas vezes é assim que o lazer é compreendido e concretizado na vida das pessoas. Afinal, como ressaltado anteriormente, o lazer é um fenômeno sociocultural complexo, permeado de conflitos, de tensões e de contradições. Com isso, lamentavelmente acaba reproduzindo a ordem social: Por um lado, descansar se torna um imperativo para a manutenção ou recuperação da nossa capacidade produtiva. Mas, por outro lado, como observa Reale (1980, p.116-117) “o homem não descansa ou goza de uma pausa em suas operações produtivas apenas em função do trabalho, mas porque o lazer é tão essencial ao ser humano como a atividade empenhada na produção de resultados considerados úteis ou vitais.” A segunda ponderação refere-se à relação necessidade/função que caracteriza o lazer. Faleiros (1980), mesmo tendo publicado seu artigo há quase 30 anos pode auxiliar nossas observações. No entender da autora, a maneira como Dumazedier define o lazer e elabora sua proposta teórico-metodológica condiz com a estrutura lógica própria do funcionalismo. No seu ponto de vista, a análise de Dumazedier acaba se limitando às funções que as atividades de lazer preenchem ou poderiam vir a preencher. Lançando mão de obras marxistas e assumindo uma postura unilateral por não reconhecer as possíveis contribuições de Dumazedier, Faleiros não poupa críticas ao sociólogo francês, cuja abordagem é por ela considerada “positivista”, “pobre”, “insatisfatória”, “falaciosa” e “funcional” (Faleiros, 1980, p.60-61). Sem desmerecer a inestimável contribuição de Dumazedier, um autor que deixou um importante legado para estudiosos do lazer de diversos países e cujo arcabouço teórico é capaz de instigar novas e antigas reflexões, sistematizações, pesquisas e análises, em alguns pontos nos aproximamos da autora acima, especialmente no que se refere ao seguinte aspecto:


“Na equação necessidade/satisfação, a produção propriamente capitalista não tem mais por objetivo primeiro satisfazer as necessidades dos homens, mas exclusivamente a necessidade histórica do lucro (...). Por outro lado, o trabalhador não produz objetos que satisfazem as suas necessidades, mas as necessidades de outros: o que diz respeito ao consumo do objeto produzido e à necessidade de lucro do proprietário da sua força de trabalho. O caráter histórico das necessidades humanas no capitalismo é dado pela própria essência desse modo de produção: o homem não se vê mais como um portador de necessidades, mas de uma necessidade: a de dinheiro.” (Faleiros, 1980, p.56-57. Grifos da autora) Em outras palavras, caberia ao lazer desempenhar uma certa função com a finalidade de satisfazer uma determinada necessidade sem que isso provocasse, todavia, uma reflexão mais ampla sobre o porquê de tudo isso, suas implicações objetivas e subjetivas para o indivíduo e para a sociedade. Nesse âmbito, a “necessidade” de descansar em face do desgaste físico/psicológico provocado, por exemplo, por condições indignas e opressoras de trabalho parece ser “natural” e própria da natureza humana, ao invés de ser compreendida no seio das determinações histórico-sociais. “Acreditar que as necessidades do ‘trabalhador’ se atêm àquelas que apenas permitem, num mínimo, a manutenção da sua força de trabalho – comer, vestir, habitar – é, além de justificar o status quo, supor que existem diferentes naturezas humanas” (Faleiros, 1980, p.57-58). É aceitar e justificar a ideologia das desigualdades e das injustiças sociais, segundo a qual a maioria das pessoas deve se satisfazer apenas com o necessário para sobreviver enquanto alguns detêm privilégios e regalias. Todos precisam comer, essa é uma necessidade básica e natural. Mas ela se torna histórica e social quando é satisfeita de maneiras diferentes: o “peão” da fábrica deveria se contentar com uma pequena porção de pão e água, mas o “patrão” pode se fartar com caviar e vinho francês. Isso porque as necessidades humanas, refletidas nas desigualdades sociais, são transformadas em desejos cuja satisfação depende das condições materiais e simbólicas próprias às diferentes camadas sociais. A necessidade de descanso, pois, pode ser atendida por meio do sono que permite, quando muito, a recuperação das energias despendidas no processo produtivo pelos grupos socialmente desfavorecidos. Porém, dependendo das condições concretas de existência, para os segmentos mais abastados a necessidade de descanso vai muito além do sono reparador, podendo ser satisfeita por meio do consumo de bens e de serviços:


massagens, terapias, viagens, divertimentos relaxantes, tratamentos alternativos, cursos e outras diversas possibilidades. Segundo Faleiros (1980), o capitalismo reforça a idéia de que as necessidades precisam ser satisfeitas através do consumo de mercadorias e, assim, as atividades caracterizadas como lazer passam a reproduzir esse processo. A autora esclarece: É dessa maneira que “as necessidades humanas perdem o seu caráter orgânico e natural para adquirirem um caráter histórico e social” (p.63). O lazer como descanso se torna, assim, condicionado socialmente. Enquanto para alguns o repouso se mantém como necessidade humana básica cuja satisfação é injustamente vinculada à reposição das energias/recuperação psicosomática, para outros representa um estilo de vida no qual esta necessidade é saciada através do consumo de bens e de serviços. Em face dessas ponderações, destaco a importância de repensarmos os papéis do lazer como descanso funcional na perspectiva da produtividade e como oferta de bens e serviços na perspectiva da sociedade do consumo. Essas idéias integram a “função de descanso” assumida pelo lazer e defendida por vários autores, e não apenas por Dumazedier. Quando ressalto a importância de repensarmos esses papéis do lazer, mesmo que não concordemos com tais atribuições por elas estarem a serviço de uma lógica alienante, injusta e excludente, precisamos reconhecer que ela existe e permeia nossas relações sociais. Afinal, o lazer não é um fenômeno isolado: ele se manifesta em diferentes contextos de acordo com os sentidos e significados produzidos e reproduzidos por meio de relações dialéticas dos sujeitos nas suas relações com o mundo. Conceber o lazer como uma dimensão da cultura também requer a compreensão dessas ambigüidades e contradições, pois, somente compreendendo-as é que poderemos enfrentá-las.

Considerações finais: Ambigüidades do lazer Mesmo que as diversas nuanças do tema em debate não se esgotem nesta mesa redonda – pois acredito que os nossos diálogos estejam apenas se iniciando –, finalizo minha exposição chamando a atenção para uma questão que perpassou todas as reflexões aqui propostas: as ambigüidades do lazer.


Em alguns momentos de sua obra Dumazedier (1976, 1979) citou este aspecto, mas, por alguma razão, não explorou as tensões, os conflitos e as contradições que permearam e continuam permeando o lazer na dinâmica da vida em sociedade, indicando-nos que optou por tratar da realidade como algo estático, e não em sua dinamicidade. Sem contar que o autor comete, ao meu ver, graves deslizes, revelando-se contraditório em muitas de suas observações. Aqui destacarei apenas um desses pontos que merecem reflexões: Por um lado, Dumazedier reconhece que o lazer é um fenômeno ambíguo, mas, por outro, adota as categorias “semilazer” e “antilazer”. A primeira foi cunhada pelo próprio Dumazedier para justificar que o lazer, por estar “em oposição” a obrigações de diversas naturezas, e não apenas ao trabalho, deve delas se distinguir. Para o autor, se o lazer atende parcialmente a um fim lucrativo, utilitário ou engajado sem se converter em obrigação não é mais “inteiramente lazer”, pois torna-se um lazer parcial, um “semilazer”. Na sua visão é o que acontece, por exemplo, quando o jardineiro apaixonado pelas flores cultiva alguns legumes para nutrirse ou quando alguém vai a uma festa cívica por divertimento mais do que pela cerimônia em si (Dumazedier, 1979). É como se o lazer fosse um fenômeno isolado, o que não condiz com a realidade. Entendo que não existem fronteiras absolutas entre o trabalho e o lazer, tampouco entre o lazer e as obrigações cotidianas. Inevitavelmente eles se mesclam: vou a um coquetel de negócios e trato de assuntos profissionais ao mesmo tempo em que “jogo conversa fora”, danço e me divirto; assisto um filme infantil com meus filhos pequenos e, apesar de curtir a experiência, se estivesse sozinha poderia optar por um outro estilo de filme; vou a uma conveção política em outra cidade e aproveito para conhecê-la. Na dinâmica social essas coisas se misturam, pois o lazer estabelece relações dialéticas com as necessidades, os deveres e as obrigações (Gomes, 2004; 2008). Mas Dumazedier não reconheceu este aspecto provavelmente para não ferir os preceitos da sociologia do lazer, que para ser legitimada como um ramo especializado da sociologia não poderia ser confundida com a sociologia da família, sociologia do trabalho, sociologia política. Para ele, como o lazer implica liberação das obrigações, caso não atendesse essa prerrogativa deixaria de ser lazer...


A segunda categoria aqui questionada foi formulada por Godbey (citado por Parker, 1978). O autor considerava que as práticas consideradas nocivas para o indivíduo ou para a sociedade (tais como jogos de azar e consumo de drogas ilícitas) não são “lazer”, são o seu oposto, ou seja, “antilazer”: atividades empreendidas compulsivamente, vivenciadas como um meio e não como um fim em si mesmas, passíveis de pressões, ansiedade, passividade, alienação e consumismo. A categoria “antilazer” precisa ser revista: mesmo que não concordemos com práticas culturais que enfatizem as características acima, elas não deixam de ser vivenciadas social e culturalmente como lazer. Talvez não sejam as vivências de lazer que eu desejo, acredito e incentivo, mas também representam práticas de lazer apreciadas e experimentadas por muitas pessoas, fazendo parte da sua vida cotidiana. Além do mais, uma vivência pode ser classificada como prejudicial ou ilícita em uma cultura, mas em outra não. Aos meus olhos, o que seria “antilazer” pode significar uma das práticas típicas de lazer em outra realidade e, por isso, não seriam tomadas como nocivas. É necessário considerar todos esses dilemas reconhecendo que o lazer, mesmo “alienante”, “consumista” ou “empobrecido” não deixará, por isso, de ser considerado na vida cotidiana como lazer. Basta pensar na audiência obtida pelos reality shows... Sem contar que, mesmo sendo uma estudiosa comprometida com uma “visão mais crítica do lazer”, posso, em algum momento da minha vida, vivenciá-lo para fugir da minha rotina, diminuir o tédio ou mesmo para reparar as tensões – o que de fato acontece. O que não é desejável, contudo, é que se perca de vista os motivos que levam a essa busca, bem como as razões de suas implicações, seus limites e suas possibilidades. Se considero que o lazer é ambíguo, certamente ele será passível de conflitos e tensões, e assim tais contradições poderão fazer parte das minhas experiências. O essencial, portanto, é não negligenciar a importância de refletir sobre as causas e consequências das nossas vivências de lazer: sejam voltadas para o descanso... ou não.

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