Espiritualidade 9

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ESPIRITUALIDADE PARA UMA VIDA VIRTUOSA – 9


SOLIDARIEDADE Francisco de Assis agrupou pessoas para viver com elas valores enraizados no Evangelho e no sonho da Fraternidade. O grupo primitivo de Francisco n達o passou despercebido porque teve um modo original de se expressar socialmente: viver simples, vestir-se simples, estar entre os simples, cuidar dos chagados e ajudar camponeses.


Seus primeiros companheiros e pouco tempo depois, Clara de Assis e suas companheiras que se ajuntaram a eles, vieram de várias categorias sociais; mas o seu propósito tão claro, criou uma única classe humana: a dos que fazem o Amor ser realmente amado! Escolhem a itinerância e a contemplação como um modo de vida e isso os ajuda a viver o desprendimento, a mobilidade, o privilégio de não ter privilégios, a liberdade, a igualdade, e uma prática da caridade que garante a realização do Evangelho e uma visão de mundo muito sensível. Este grupo, sem usar este termo, viveu a solidariedade como a fecundidade social do amor.


Fazem a experiência de dar e receber; a experiência de esmolar; e a esmola não era só o que se recebia como doação ou que se oferecia prodigamente, mas era, sobretudo, estar no lugar onde estavam as necessidades dos doentes e leprosos, dos pobres e fracos, dos mendigos, dos lascados, dos excluídos, dos irmãos e irmãs, da gente marginalizada e desprezada.


Aqui começa para esta fraternidade a primeira prática solidária: o que eu tenho eu dou, porque é preciso viver não para si mesmo, mas em favor dos que necessitam; e viver era suprir, oferecer, estar junto dividir, providenciar o necessário ( cfr Rnb 9). Assim cresceram eles e todos os que participavam deste modo de ser, pois quem vai ao encontro da necessidade alheia devolve à pessoa a sua beleza e dignidade.


Porque decidiram viver nas ruas e pelos caminhos Assis, pelas estradas da Úmbria e do mundo, da portaria do mosteiro de São Damião à todas as portas abertas das necessidades sociais, perceberam os malvistos, os malcuidados, os mal educados, os banidos e os que são vítimas de preconceitos de castas e credos. É assim mesmo! Quem decidiu seguir as sendas de Jesus Cristo, consegue ver melhor o faminto, o preso, o nu, o sedento, o pequeno, o sofrido e o paralítico. Não tem como não filtrar tudo pelos olhos do Evangelho e suas práticas.


Na sua origem o Projeto Franciscano, teologicamente é centrado na Encarnação, na Paixão e na Eucaristia. A Encarnação é um Deus que vem morar junto, é humano, é carne da nossa carne, é raça, é Filho do Homem, é um atencioso pleno de cuidado solidário. A Paixão mostra que a Cruz não é fim; é fonte! Fonte de capacidade do Amor se entregar até as últimas conseqüências. Morrer prometendo ao contrário o paraíso e arrumando uma Mãe para o discípulo e para o mundo.


A Cruz fala em meio a enigmas, entregas e incompreensões, mas sempre fala e manda reconstruir! A Eucaristia lembra, cada dia e em todos os lugares, a partilha, o fortalecer a caminhada, o dar um pedaço de si, revelando nele a própria natureza, alimentando de um Deus que se faz humildade e comida para tocar o humano nas suas entranhas. É fazer-se inteiro em cada pedaço! A Eucaristia faz ir para a mesa quem mais precisa.


Francisco de Assis ensinou a solidariedade através do Cântico das Criaturas, isto é, a destinação universal de todos os bens, a fraternidade universal e o universalismo fraterno. O Altíssimo Onipotente é sempre um Bom Senhor, o Sumo Bem, é o Deus de nosso coração que nos convoca a um Amor Universal, inaugura a fraternidade e a solidariedade de todos os seres, de todas as criaturas, de todas as pessoas. Todo ser criado nos remete à fecundidade social do amor.


A verdadeira fraternidade humana se ampara na comunhão de valores e de bens fundamentais para a vida: a terra, a água, o ar, o fogo, a luz, o verde das plantas, a habitação, o mundo limpo e bonito, partilhado e cuidado para oferecer a todos as melhores condições de viver. Ao dividir tudo isso, conquistamos a verdade, a justiça, o amor, a solidariedade, a liberdade, a mais plena comunhão de bens e de dons.


Com o Projeto Franciscano aprendemos que solidariedade é energia de amor e generosidade, que é busca incansável do bem, do dom de si à fraternidade humana; uma atitude permanente de renúncia e serviço; de gerar recursos para viver e trabalhar em benefício de todos.


Aprendemos que Pobreza não é contrária ao sonho de ter, nem a angústia de não ter, mas é gerar recursos, trabalhar e dividir com todos. Aprendemos que Obediência é atitude constante de escutar o Amor e dizer: “De boa vontade o farei, Senhor!” e, a partir daí, ter paixão na vontade e nos projetos. Aprendemos que a Pureza de Coração é epifania de um Amor Solidário e Universal.


Com Francisco de Assis aprendemos que ser solidário é a identificação com a Pobreza e com o Pobre; que ser solidário é ser irmão e irmã de todos; é ver o mundo no coração da experiência de alguém que está experimentando uma grande carência. Isto é o que transforma as práticas e o modo de estar no mundo, tornando “ o amargo em doçura de corpo e alma”(Test 3).


Francisco não está preso aos projetos do mundo. Ele se recusa a ter um pensamento utilitarista, isto é, ter o melhor uso dos recursos para o melhor funcionamento dos sistemas; um processo que continua industrializando e mercantilizando mentes e corações ( cfr. o filme: “ Quanto vale ou é por quilo?”, de Sérgio Bianchi). Ele é um pobre, um livre, um diferente, um irmão que mostra que a verdadeira solidariedade é apontar para a desumanidade; é notar a negatividade e as injustiças presentes nos processos sociais e lutar contra isso;


é questionar as promessas que o sistema faz e não cumpre; é deixar as pessoas falarem; é educar para a originalidade; cuidar da singularidade da pessoa para que ela seja cada vez mais ela mesma e não apenas vítima; pregar e viver a sensibilidade, a fineza, a cordialidade; ser um instrumento de paz, e paz é garantir a quem precisa o melhor! Temos que perguntar: que Espiritualidade brota desta prática solidária?


Com São Francisco de Assis temos a inspiração de reconstruir e transformar, viver e praticar a solidariedade como serviço! Tudo isto gera uma Espiritualidade comprometida; reacende um modo de crer. A fé instaura a esperança de que algo precisa mudar e a esperança instaura um dever ser melhor. É sempre um projeto a ser realizado e não uma tarefa já comprida. Dizia Francisco pouco antes da sua morte: “ Irmãos até agora nada fizemos, vamos recomeçar!” Nós precisamos ter fé no Deus da Vida e na vida que precisa de cuidado para poder mudar, ultrapassar, transcender e transformar.


Crer não é dominar a vida, mas servi-la! Mostrar que as misérias não podem ficar paradas no absurdo. É preciso instaurar a dinâmica da Utopia ( não entender utopia como fuga da realidade), a linguagem e a prática do princípioesperança do dever-ser. É a capacidade humana de poder contestar, transgredir, estar além de qualquer situação que é dada. É a proclamação e a realização de uma promessa orientada para um cumprimento: atravessar desertos e chegar à Terra Prometida. A Espiritualidade não quer a vida, quer a Vida Eterna; não quer o amor, mas o Amor sem fim; não quer isto ou aquilo, quer Tudo, quer o melhor!


A Espiritualidade tem que falar divinamente do humano; falar em nome do Divino que habita o humano e que não pode ser violado, injustiçado, subornado, por nada, por nenhuma ideologia, por nenhum arranjo político, por ninguém. Ao fazer isso a Espiritualidade presta um serviço incontestável à toda humanidade, aos humilhados e ofendidos, para que a sua dignidade e sacralidade seja respeitada.


A Espiritualidade tem que acordar a denúncia profética, para que os opressores sejam julgados já na história, pela voz da própria consciência que é a voz de Deus falando e julgando de dentro dos corações ofendidos. A Espiritualidade deve ajudar a pessoa a conquistar e reconquistar a sua humanidade.


A Espiritualidade não pode falar de um Deus qualquer; mas de um Deus de nossos pais, dos profetas, de Jesus Cristo, de um Deus que não compactua com a iniqüidade. Um Deus onipotente e forte, Senhor do Cântico das Criaturas e de muita ternura para com o seu povo; um Deus que não permite que a vida seja destruída.


A Espiritualidade ajuda a voltar o olhar para o céu e encontrar ali este Deus que ensina a ver a terra, e perceber a pessoa ao lado, sofrida e necessitada. Uma Espiritualidade tem que trazer Deus das nuvens ao chão; tem que ajudar a transformar a história, reconstruir a casa, viver o Evangelho não para uma pregação piedosa, mas para uma maior humanização. O que adianta uma Espiritualidade que não se comprometa com o processo histórico de um povo?


Tem que estar por detrás um processo de mudanças e não apenas livros e cheiros de adocicados incensos. Tem que ter um compromisso pela justiça. É momento de iluminação e animação de práticas e não fuga de realidades conflitivas. Do que adianta ficarmos recitando salmos, orar em línguas e cantar mantras enquanto há exploração das grandes maiorias e acumulação escandalosa nas mãos de minorias? Uma Espiritualidade não pede só a transformação da pessoa, pede também a transformação das estruturas. Ou será que a realidade não ocupou um lugar privilegiado na pregação de Jesus e dos grandes Mestres?


A Espiritualidade muda não só a consciência, mas convida à uma ação: transformação interior e a mudança do mundo. Conhecer a realidade do mundo. Conhecer para transformar. O divino, o religioso, o espiritual, o social, são dimensões que atravessam tudo. Viver é fazer esta travessia. Diz o teólogo Congar: “ nós só podemos ter a teologia da nossa própria prática”. Ser espiritual é humanizar a vida. Abraçar uma Espiritualidade é ser levado à práticas de Amor; é nascer novamente de atos concretos de Amor.


A Espiritualidade é necessária para a luta na vida e pela vida, para o fundamento das convicções. É estar entre o povo com muito amor pelo povo. Não ter só um protagonismo individual, mas um protagonismo de homens e mulheres novos. É amar o povo como se ama a pessoa amada. Construir uma sociedade melhor é refazer o sonho de Jesus: instaurar o Reino de Deus.


A Espiritualidade tem que sonhar e realizar a prosperidade. Não perder a vontade de crescer, de evoluir, de ser criativo. Ser mais, amar mais, ter mais, saber mais, multiplicar mais; sem superioridade, mas de forma compartilhada. O necessário não pode faltar para ninguém, contudo não precisamos mais do que o necessário, se não vamos comprometer o futuro do planeta e das pessoas.


A Espiritualidade faz nascer em nós uma certa rebeldia: dizer um não à domesticação, à escravidão, à manipulação, à rotulação. Precisamos ter lucidez crítica, cobrar coerência e apontar injustiças sem medo.


Enfim, existe uma Espiritualidade que brota da Solidariedade. Não temos muito que dizer. É melhor ler um trecho de uma carta de um pai revolucionário aos seus filhos: “ Se sentires a dor dos outros como a tua dor, se a injustiça no corpo do oprimido for a injustiça que fere a tua própria pele, se a lágrima que cair do rosto desesperado for a lágrima que você derrama, se o sonho dos deserdados desta sociedade cruel e sem piedade for o teu sonho de uma Terra Prometida, então, serás um revolucionário, terás vivido a solidariedade essencial”.


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