Crónicas Rurais
A água do povo... e os contadores Por Júlio Sá Rego
A
o fim da estrada, chega-se a uma freguesia onde no cimo da serra a água corre. Livre e espontânea, ela brota aqui e acolá, formando poços, lagos e córregos. Ao longo das gerações, o povo da freguesia domesticou-a, trazendo-a às casas e levando-a aos campos e estábulos. Homens, animais e plantações usufruíam sustentavelmente dessa riqueza de forma coletiva e comunitária, atentando-se aos ciclos da chuva e da secura para assegurar água contínua para todos. O comunitarismo, contanto, já passou de moda e a Câmara decidiu que já era hora de pôr um basta. Onde já se viu ter água gratuita? Agora há de ter contadores! E assim foram, políticos, técnicos e GNR, num esforço conjunto de conquista, hegemonizar a recalcitrante freguesia. O povo levantou-se, elevou-se e a turma não teve outra saída: dar meia-volta com seus contadores debaixo do braço. Passam anos como corre água, consume-se uma década e lá estavam eles de volta com operários e tratores para reocupar o espaço: abrem buraco, substituem canos instalados pela comunidade, reaproveitam os poços, jogam cloro na água. Pronto! Agora há de pagarem pela água. Não bastasse a surpresa, a fatura vitalícia vinha acompanhada de um sistema de saneamento com estação de tratamento que despeja direto no rio de águas cristalinas. Até o pobre rio tinha de pagar a conta. O povo mais uma vez se levantou e argumentou. “Não pedimos água com cloro em nossas casas”. “Temos água limpa e pura que sempre dessedentou os nossos pais”. “E o rio, coitado, para quê despejar lá”? “Somos uma freguesia tão pequena, não há necessidade de sujar o rio, basta apenas melhorar nossas fossas.” Ninguém queria pagar para beber água com cloro e a desconfiança era grande com relação à honestidade da empresa de saneamento de sempre garantir o tratamento necessário para salvaguardar o rio. 38
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O debate sobre a privatização da água e o tratamento das águas residuais ultrapassa as fronteiras dessa pequena freguesia. Parte do capital internacional descarta que o acesso à água seja um direito público, à imagem das declarações de um dirigente de uma grande empresa agroalimentar suíça em 2018. Em suas próprias palavras, pensar que todo ser humano deve ter acesso a água é uma forma de extremismo. As águas deveriam todas ser privatizadas. Água privada e rio poluído, seria esta a hegemonização proposta para essa freguesia do cimo da serra? O povo continua firme em seu combate pela gestão comunitária de sua água e a proteção de seu rio. Os contadores ainda não foram instalados e a estação de tratamento segue em construção. Mas o povo sozinho, de sua pequena freguesia, está a perder a batalha. A voz miúda já não intimida e, do topo do Alvão, apela por apoio e atenção. Esta freguesia chama-se Alvadia, terra bravia de gente íntegra. “Alvadia, Terra Fria, Como tu não há igual. Nasceste no cimo da serra No distrito de Vila Real.” (Um pastor poeta do Alvão)