Gazeta Rural nº 368

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Crónicas Rurais

Terra Quente, Terra Fria: terra traída Por: Júlio Sá Rego Antes o vôo da ave, que passa e não deixa rasto, Que a passagem do animal, que fica lembrada no chão. A ave passa e esquece, e assim deve ser. O animal, onde já não está e por isso de nada serve, Mostra que já esteve, o que não serve para nada. A recordação é uma traição à Natureza, Porque a Natureza de ontem não é Natureza. O que foi não é nada, e lembrar é não ver. Passa, ave, passa, e ensina-me a passar! (Alberto Caeiro, 1925, poema XLIII)

pelo retorno estival dos que emigraram para outras terras, há muito tudo já teria ido por água abaixo. O discurso público torna-se acusador. O pastor tende a sentir-se mais acuado e sem voz para se defender. “Mas nós também gostamos dos animais”, exclamam! A relação do pastor com seu rebanho e a natureza é dificilmente questionável quando se experiencia o cotidiano deles. A história da pastora do Parque de Montesinho que cantava para suas ovelhas é apenas uma das inúmeras demonstrações cotidianas inha percorrendo o distrito de Bragança, da Foz Tua a Vinhais, de Mide carinho e apreço pelas ovelhas do rebanho. randa do Douro a Mirandela, a visitar explorações ovinas, negocianAo fim e ao cabo, o pastor vive para assegurar o bemtes, restaurantes e, claro, matadouros. Foi justamente em um matadouro -estar e a saúde de seus animais. A diferença com nossa onde ressurgiu uma conversa já frequente de outras viagens: a crescente percepção urbana quase edênica da natureza, porém, é preocupação com o bem-estar animal na sociedade portuguesa e, seu que tudo tem uma função a cumprir. Enquanto para uns corolário mais drástico, a expansão do vegetarianismo e do veganismo. a natureza tem de ser o quanto possível protegida e preLá estava eu, sentado num escritório justaposto a uma sala de abate, a servada em seu estado imaculado, para outros a natureza dialogar sobre o direito dos animais. Matadouros em Portugal possuem tem de ser gerida como parte integrante do sistema de rigorosos cadernos de encargos e regras operacionais e muito se prosustento à vida. grediu com respeito ao bem-estar animal no decorrer dos anos. Porém A confrontação dessas duas visões de mundo não é ree a despeito dos esforços desenvolvidos, funcionários de matadouros cente, nem restrita à pastorícia transmontana. As duas vitendem ainda a se sentir discriminados por parte da sociedade. sões têm interagido em dialética desde o século passado A discussão sobre o especismo é vasta. A hierarquização moral das e desenhado políticas agrárias e ambientais pelo mundo. O espécies vivas e os direitos subjacentes que lhes são conferidos gefato, já comprovado, é que nada disso é binário. A paisagem ram um debate ético efervescente e polarizado que não caberia nesé dinâmica, possui vida própria, e devolvê-la ao estado de ausas linhas. Não obstante a legitimidade dos pontos de vista políticos togestão solitária tende a provocar resultados inesperados e e filosóficos de cada um, o sentimento de frustração é generalizado mesmo indesejáveis, como os incêndios rurais em Portugal. na fileira ovina transmontana. Na pecuária tradicional familiar, em Fala-se muito, cada vez mais, da função da pastorícia na maparticular, paira incompreensão, quase sentimento de traição. Pasnutenção da paisagem. A pastorícia é alçada a instrumento de tores nunca deixaram de cumprir seu papel social de alimentar a gestão pública ambiental e ganha novo estatuto de utilidade nação, apesar da dedicação e dos sacríficos pessoais requeridos; pública. Não se pode negar que a pressão exercida pelo animal hoje, em retorno pelos bons serviços cumpridos, a sociedade pa(pequenos e grandes ruminantes, mas também cavalos e ourece não os desejar mais. tros) molda a vegetação, contribuindo para a biodiversidade e, O cordeiro vende-se mal. O preço está estancado há anos e os ao que nos interessa aqui, a prevenção dos incêndios. A pastorírendimentos das explorações ovinas despencam. Se não fosse cia liberta os montes, insufla-lhes oxigênio como sangue a correr o mês de agosto e seu alto consumo de cordeiro impulsionado

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