Crónicas Rurais
Terra Quente, Terra Fria: um quê de tradição da Terra Fria
Por Júlio Sá Rego *
E assim escrevo, querendo sentir a Natureza, nem sequer como um homem, Mas como quem sente a Natureza, e mais nada. (Alberto Caeiro, 1925, poema XLVI)
O
btive uma boleia na carrinha de uma associação de criadores de ovinos transmontanos em sua ronda periódica a explorações associadas. O destino do dia: explorações situadas no Parque Natural de Montesinho para colheita de sangue e aplicação de brincos de identificação. Lá estava eu, antropólogo curioso, encaixado entre dois engenheiros zootécnicos e uma veterinária. O trajeto de quase meia hora tinha tom de reunião de preparação onde se recapitulou as paragens do dia, se atualizou mutuamente sobre as notícias de cada exploração e se coordenou as funções de cada um na corriça. A minha parecia-me a mais simples: aplicar um questionário sobre as perspectivas econômicas e estratégicas do criador. A primeira paragem era numa exploração gerida por uma pastora de 83 anos e eu já ansiava por perceber sua abordagem e perspectivas sobre a atividade. Ao chegar, a pastora e o neto estavam à porta da corriça à nossa espera e bastou um movimento muito súbito e cadenciado para nos encontrarmos de repente dentro, posicionados e vestidos a rigor. Bem, o “nós” talvez seja um pouco presunçoso. A equipe da associação de criadores estava de prontidão para iniciar o trabalho: macacão, botas e material de colheita de sangue e aplicação de brincos à mão. Eu, um pouco mais tímido e hesitante, tive certa dificuldade para entrar na corriça, elevada pela cama de gado, e ainda me perguntava como abordar a pastora que não sabia nada da minha presença no local. Optei por observar a coreografia sincrônica dos zootécnicos e da veterinária para começar. Puxa e imobiliza uma ovelha, tira o sangue, referencia o tubinho, aplica o brinco, regista no caderno, tudo ao som de identificadores vociferados e de balidos, com o objetivo de obter o ADN de cada animal para inclusão no livro genealógico da raça. Percebendo o meu incômodo e hesitação diante de uma pastora absorvida pelo remelexo em seu rebanho, um dos zootécnicos me apresentou e disse-lhe que eu tinha umas perguntinhas a lhe fazer. Cooperativa, a pastora voltou-se para mim, o rapaz desconhecido que ali estava segurando uma prancheta no meio de uma corriça. Surpreendentemente e apesar de vontade compartilhada de diálogo, eu e a pastora deparámo-nos, no entanto, com uma barreira linguística aparentemente incontornável. Não importava o quanto eu refraseasse as questões, a pastora alternava entre meus olhos e os dos zootécnicos, claramente de32
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