Gazeta Rural nº 364

Page 24

Crónicas Rurais

Terra Quente, Terra Fria: terra de Churras Por Júlio Sá Rêgo* Sou um guardador de rebanhos. O rebanho é os meus pensamentos E os meus pensamentos são todos sensações. Penso com os olhos e com os ouvidos E com as mãos e os pés E com o nariz e a boca. (Alberto Caeiro, 1925, poema IX)

O outono minguava e o inverno vingava. As peripécias caprinas do verão já eram saudade e de recordação apenas me restavam cadernos de viagem. Olhando de perto, cadernos de viagem parecem um amontoado de grafemas negros rasgando a monotonia de folhas brancas a partir dos quais você se aplica em dar algum sentido. Eu me situava exatamente ali. Estava a puxar, esticar, encurtar, moldar os grafemas para escrever uma narrativa de acesso às terras de pastagens nos baldios para um congresso de estudos rurais, quando o telefone tocou. A conversa foi curta e minha reposta incisiva: SIM! Havia sido convidado para participar num levantamento das práticas da fileira ovina no distrito de Bragança. Poucas semanas depois, lá estava eu, de volta à estrada, rumo a Bragança, só que dessa vez com chapéu, cajado e um pouco mais de prática.

enquanto a bragançana preta, bem, é uma branca só que colorida de preto. O acesso aos pastores seria facilitado pelas associações de criadores, entidades gestoras dos respectivos livros genealógicos e responsáveis pela conservação e melhoramento das raças. As conversas iniciais com os secretários técnicos de cada uma das associações foram ricas e permitiram estabelecer um primeiro mapeamento da fileira ovina, dos atores envolvidos e de suas práticas. Contudo, o que mais chamou-me a atenção nas diferentes conversas não residia tanto nas palavras em si, mas sim na certa preocupação que exauria das falas dessas conceituadas e respeitáveis engenheiras zootécnicas (apedrejem-me pela concordância linguística, eram três objetivo do projeto era apreciar a viabilidade técnica e senhoras para um senhor!). A profissão sofria e morria econômica da pastorícia ovina aplicada à prevenção de de uma lenta e inexorável hemorragia. Os criadores posincêndios florestais. As ovelhas também são cabras... sapadosuíam idade avançada e eram poucos os novos entrantes ras. Fora isso, meu conhecimento ovino era bem limitado. O na profissão. trabalho encomendado circunscrevia-se às raças ovinas autócA hemorragia diagnosticada repercutia nos efetivos tones por estarem mais emaranhadas ao ecossistema local e, animais. Estes diminuíam lentamente ao longo dos anos. portanto, mais suscetíveis de contribuir para a restauração da A sobrevivência de cada uma das raças estava em jogo e paisagem e a prevenção dos incêndios. No distrito há cinco, a badana já beirava a extinção. O desaparecimento destodas da família churra: a badana, a bragançana branca e a sas raças significaria também a morte histórico-cultural de preta, a mirandesa e a terrincha. Explicaram-me que cada seus territórios, espaços ocupados desde tempos imemoraça tinha suas particularidades alimentares e temperamenriais por essas ovelhas. A badana, como também a bragantais. Eu, infelizmente, tudo que conseguia enxergar naquele çana e a mirandesa, preenchem os lameiros e os montes momento era que a bragançana branca felpuda transformadessas terras desde antes da Nacionalidade, e tornaram-se -se numa mirandesa que, se lhe tirar os óculos, aparenta-se parte integrante, simbiótica da paisagem e da cultura de seus habitantes. Cada vez mais tocado e mobilizado para a uma terrincha que é, por sua vez, uma badana grande;

O

24

www.gazetarural.com


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.