Crónicas Rurais II
Um dia no monte: Pastor por um dia Por Júlio Sá Rêgo “Minha alma é como um pastor, Conhece o vento e o sol E anda pela mão das Estações A seguir e a olhar”. (Alberto Caeiro, 1925, poema I)
P
enetrei o monte sem saber o que me esperava. De pastorícia não e, quando muito, intervínhamos para guiar os conhecia nada além do imaginário construído pelos contos da mianimais aos pontos de água. Como os humanha infância. Desenhava-me o pastor a conduzir o rebanho para o cimo nos, naturalmente, as cabras se desidratam duda serra de manhã cedo, ao crepúsculo, sempre à frente com seu cajado rante o percurso e é necessário dessedentá-las e acompanhado de seu fiel cão. Atrás, calmamente, seguiriam as cabras para que continuem a alimentar-se. ao ritmo dos chocalhos e da flauta do pastor. “Uma vida tão bonita, que Esta serra do Alvão é rica em água e o Pastor até os santos gostavam dela e os poetas antigos a cantavam! […] O céu tinha também o privilégio de desfrutar de água por cima, o ar livre, o nascer do Sol visto lá do alto... À noite, as estresempre gelada nas abundantes nascentes que las...” (Ferreira de Castro, A Lã e a Neve, 1947). jaziam. Eu, enquanto isso, teimava em carregar A realidade encontrada nessa serra do Alvão, porém, era outra. A minhas garrafinhas de água já morna e esquivavaharmonia entre o pastor, os cães, as cabras e a paisagem até lá esta-me de beber na ‘fonte’ a cada nova paragem, até vam; a beleza dos montes ondulados a perder de vista também se minha água acabar. Com sede e receoso, cedi ao dizia presente; mas os versos dos poetas ofuscados pelo bucolismo convite de compartilhar a nascente. esqueciam que a pastorícia era mais um trabalho, como um outro Inexperiente e desajeitado, precipitei meu rosto qualquer. na poça de água cristalina para me refrescar um Saímos do curral às 10 horas da manhã. O sol, apesar de forte, pouco e limpar o suor que escorria pelas sobrancevia-se amenizado por uma brisa que vinha do Oeste. Armado de um lhas, contaminando, por inadvertência, a água que bastão de caminhada emprestado pelo Pastor, tentava arduamente íamos beber. Muito diplomático, e provavelmente segui-lo pelo monte sem demonstrar receio quanto à minha capaespantado pela minha falta de bom senso, o Pastor cidade de terminar nossa jornada laboral. A temperatura amena simplesmente comentou: “agora há de esperar um daquela serra autorizava um longo e contínuo percurso até o pôr pouco antes de beber!”. A água da fonte era de fato do sol, às 21 horas. saborosa e de ali em diante passei a beber nas nascenAs cabras Bravias pareciam perfeitamente adequadas àquela tes com ele. paisagem. Pequenas e robustas, elas saltavam felizes de buraco O pastoreio de percurso praticado no Alvão é peculiar em pedra, a cumprir metodicamente o percurso planeado, ena esta região. À medida que visitava diferentes serras, quadradas por três cães. Dantes os cães que por ali se via eram apercebia-me que não havia um único padrão e que o ‘vira-latas’ quaisquer. Hoje, o Pastor podia contar com o serviço percurso dependia intrinsecamente do clima, da paisainfalível de cães pastores de raça Castro Laboreiro, introduzigem, da localização dos alimentos, mas também refletia dos por uma associação de conservação do lobo ibérico há uns diferenças geracionais entre pastores tradicionais e noquinze anos para melhorar a proteção aos rebanhos e erradivos pastores. car o abate retaliativo de lobos. Na serra da Peneda, por exemplo, tive a ocasião de Os três Castros Laboreiros ordenavam orgulhosamente o reobservar um maneio diferenciado. As cabras cruzavam o banho, a fêmea na frente, o macho de mais idade nas laterais cimo da montanha sozinhas, acompanhadas apenas de e o macho jovem atrás. É certo que a fêmea e o macho idodois cães de guarda. Elas eram geolocalizadas em tempo so abandonaram por vezes o ofício para estar connosco em real e o pastor monitorava o progresso do percurso diretabusca de descanso e lanche, mas sem jamais perder de vista mente no seu telemóvel. Quando estas chegavam ao outro o rebanho. O jovem macho, por sua vez, não deixou nunca lado da serra, o Pastor ‘hightech’ pulava no carro, contoro serviço. Nós apenas observávamos o movimento de longe nava a serra e ia ao encontro do rebanho para ordenar a 26
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