Gazeta Rural nº 357

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Crónicas Rurais

Um dia no monte: a chegada à Aldeia Por Júlio Sá Rêgo Toda a paz da Natureza sem gente Vem sentar-se a meu lado. (Alberto Caeiro, 1925, poema I)

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onduzia em direção ao Alvão. Acostumado com as paisagens rurais de incêndios florestais, etc., mas ela não me francesas, esperava encontrar no fim do caminho uma aldeia florida, pareceu nada convencida pela minha pregacom suas lojas gourmets promovendo iguarias locais e riquezas da região. ção. Diante de patente fracasso, resignei-me a À medida que subia a encosta, a perplexidade crescia. As paisagens vermudar de assunto. dejantes do vale davam, pouco a pouco, lugar a um ‘marrom’ rochoso. Como outros que ali viviam, ela morou uns Em um povoado, no caminho da Aldeia, deparei-me com um rebanho anos na França e regressou por sentir falta da de cabras, na estrada, bem à minha frente. Paciente, segui calmamente região natal. Surpreendeu-se em saber que eu atrás. O som dos chocalhos penetrava meu veículo, enquanto minha também era francês e logo começamos a conimaginação corria. O que ia encontrar nesse meu primeiro contato com versar sobre lugares comuns. Observei que nas o mundo rural português? paredes havia escudos de clube de futebol, troO rebanho deambulava pelas ruas do povoado. As cabras eram basféus esportivos e retratos das belezas naturais da tante animadas e bagunceiras. Saltitantes, elas apoiavam-se contra os freguesia. Não sabia, mas lentamente ia-me já muros dos jardins e invadiam os terrenos, comendo plantas ornamenapegando àquela comunidade. tais que porventura estivessem ao alcance. Os cães pastores, incansáOs habitantes da Aldeia gostam de futebol. A veis, tentavam pôr ordem, a organizar o rebanho e orientar as cabras maioria torce para o FC Porto, mas também há bascom seus latidos. Os vizinhos, de suas janelas, acompanhavam o motantes torcedores do Benfica. Contudo, ninguém vimento desconfiados e usavam o berro para espantar as bichas de torcia para o Sporting. A própria Dona do café consuas plantas. fessou respeitar os dois rivais nacionais, mas não ter O rebanho tangenciou e pude seguir o meu caminho. O visual nenhum apreço pelo Sporting. continuava a transformar-se e a estrada a estreitar-se. A vegetação, Na Aldeia, anos atrás, havia um ‘time’ de futebol cada vez mais rasteira e seca, dominava as montanhas onduladas, também. A foto da equipe da época estava lá exposdas quais, agora, apenas um desfiladeiro me separava. A estrada ta. Nela figurava, muito mais novo, o Pastor pelo qual não comportava mais barreiras de proteção e as curvas se multiesperava. Nostálgica, disse-me que o time já não exisplicavam ao horizonte. tia e enganchou nas fotos das belezas naturais da reA 960 metros de altitude cheguei à Aldeia. Um conjunto de cagião... rio, cachoeiras, pontes medievais... foi quando sas esparsas em estado de conservação variável. Não havia ninchegou o Pastor. guém. Ouviam-se apenas os pássaros, galinhas e algumas máquiBonachão, ele inspirou-me logo muita simpatia e nas agrícolas à distância. Havia combinado de encontrar o Pastor confiança. Brincou dizendo que já não era o primeiro a no café da Aldeia, mas como dispunha de tempo aproveitei para aventurar-se com ele no monte. Outro dia competiu-lhe dar uma pequena volta. No passeio, avistei algumas pessoas. levar um tipo de Guimarães lá. Temia que fosse obeso, Engajadas em tarefas rurais, elas interrompiam-se para, por inspois era da cidade e não daria conta de caminhar. Contutantes, me espiar. do, o tipo era magrinho. Percebi logo o recado. A apreenApós deambular pelas ruas quase desertas, traçadas por são também se dirigia a mim. Perguntou-me se tinha háimemoriais casas de pedras, dirigi-me ao café de nosso enconbito de caminhar. Diante da afirmativa e de minha silhueta tro. Não havia nenhum cliente lá. Apresentei-me à dona do esbelta, tranquilizou-se. Despedimo-nos da Dona do café mesmo e expliquei-lhe o propósito de minha visita. Surpresa, e fomos rumo ao estábulo. ela indagou: vais ao monte pastorear o dia todo?! Nos arredores da Aldeia lá estava o estábulo, guardado Provavelmente pensou que fosse algum aloprado urbapor três cães pastores de raça Castro Laboreiro. Simpáticos no que via beleza naquela vida dura e que aparentemente e afetuosos logo me acolheram. O Pastor percebeu que eu ninguém mais estava disposto a assumir. Engatei no diálogo não tinha cajado. De fato, quem vai ao monte sem cajado? animado sobre a pastorícia, a biodiversidade, a prevenção Mais um turista, deve ter pensado ele ao abrir uma portinha 24

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