A cultura baleeira no Museu do Pico (Açores)

Page 1

E B O OK

A cultura baleeira no Museu do Pico (Açores) Questões metodológicas e concetuais, análise interpretativa e formas de resolução

ETNOGRAFIA DOS AÇORES • N.º1

JOSÉ CARLOS GARCIA 2023


JOSÉ CARLOS GARCIA Sociólogo Investigador na área da antropologia


1

A cultura baleeira no Museu do Pico (Açores) Questões metodológicas e concetuais, análise interpretativa e formas de resolução

JOSÉ CARLOS GARCIA 2023


2

A CULTURA BALEEIRA NO MUSEU DO PICO (AÇORES) Questões metodológicas e concetuais, análise interpretativa e formas de resolução Coleção eBook ‘Etnografia dos Açores’, n.º 1 - 2023 Etnografia dos Açores - Projetos de pesquisa e editoriais https://sites.google.com/view/etnografia-dos-acores/p%C3%A1gina-inicial COPYRIGHT © 2023 José Carlos Garcia Todos os direitos reservados


3

ÍNDICE

05

Nota prévia

07

I. Museu do Pico: Exposição “Physeter macrocephalus – Cachalote”

13

II. Museu do Pico: Cultura baleeira açoriana

19

III. Museu do Pico: Bote baleeiro açoriano

25

IV. Museu do Pico: Espaços de explicação global

33

V. Museu dos Baleeiros: Revisitação da secção da construção naval

39

VI. Museu dos Baleeiros: Proposta de reprogramação das secções expositivas


Fig. 1 - Embarcações e antiga fábrica da baleia de São Roque do Pico (1946-1984). Atual Museu da Indústria Baleeira (1994-). 4 Fotografia de Sérgio Ávila (1988-1992).


5

NOTA PRÉVIA

“Um museu tem sempre de obedecer a um programa e tem de ser criado para satisfazer necessidades de cultura em meios que dela careçam”. João Couto, 1964, “Conversas sobre museologia”, Ocidente, vol. LXVI, n.º 310: 99.

Sob a tutela do Governo dos Açores, o Museu do Pico (1991-) reúne os polos do Museu dos Baleeiros, nas Lajes do Pico (1988-), do Museu da Indústria Baleeira, em São Roque do Pico (1994-), e do Museu do Vinho, na Madalena do Pico (1999-). Em 2000, a instituição foi enquadrada na categoria de museu regional. Este primeiro ebook da ‘Etnografia dos Açores’ é uma compilação de seis textos divulgados no Jornal do Pico (Açores), em 20212022, e que agora são objeto de um processo de adaptação, revisão e atualização especificamente para o presente livro eletrónico. Aborda as representações expositivas, a comunicação e a gestão patrimonial da cultura nos polos baleeiros do Museu do Pico, tendo por base questões metodológicas e concetuais, a análise interpretativa e formas de resolução, no âmbito das quais se adotam conceitos e perspetivas nos campos da antropologia das técnicas, da antropologia marítima e da antropologia baleeira. É só um exercício que tenciona, sem grandes pretensões, dinamizar o debate sobre o assunto.


6

JOSÉ CARLOS GARCIA

A abordagem fundamenta-se sobretudo no projeto de pesquisa e editorial A indústria baleeira dos Açores (2021). A bibliografia, as outras fontes e as respetivas citações, consideradas obrigatórias no quadro dos mais elementares procedimentos de criação, são indispensáveis para se compreender o longo processo de construção da antropologia científica nos Açores. Os textos têm um caráter independente, mas a sua proximidade temática pode levar a uma repetição de definições e de pontos de vista; portanto, pedimos a compreensão por parte do leitor. Todos eles orbitam à volta de um Museu que, a nosso ver, deveria cumprir um projeto cultural-científico (prévio) e, consequentemente, uma programação expositiva (cf. citação inicial), graças às noções e às práticas da etnomuseologia, com os objetivos de salvaguardar e interpretar. Convém saber, no entanto, que de fora deste livro ficam outras imperativas vertentes, relacionadas com o papel social do Museu, enquanto entidade institucional, administrativa, concetual e espacial, nomeadamente na sedimentação e dignificação da cultura baleeira, no reforço da coesão da comunidade de referência, na contribuição para a gestão global de múltiplos recursos lúdicos, patrimoniais e turísticos, na partilha de elementos com os visitantes, os estudiosos e a comunidade científica e, em matéria supra museológica, no desenvolvimento concertado de projetos de investigação e na cooperação com unidades congéneres (“museus marítimos”), tanto a nível regional como a nível nacional e internacional. Neste sentido, parece-nos um terreno de oportunidades perdidas e, por isso, urge reclamar pelo conhecimento da realidade cultural, pelo reconhecimento do património e pela valorização, promoção e difusão dos bens museológicos. As batalhas do nosso tempo são a das ideias, a da qualificação e a do conhecimento, até porque estão em causa as políticas culturais, patrimoniais e turísticas da Região, centrais para o seu desenvolvimento económico e social. Vamos tendo esperança! José Carlos Garcia São Roque do Pico, dezembro de 2023.


7

I. Museu do Pico: Exposição “Physeter macrocephalus – Cachalote”


8

Fig. 2 - Cachalote Physeter macrocephalus. Arquivo fotográfico da Futurismo.


A C U L T U R A B A L E E I R A N O M U S E U D O P I C O ( AÇ O R E S )

9

“É, ao mesmo tempo, o mais majestoso, o mais vigoroso, e o mais bem armado dos habitantes do oceano. Herdeiro do leviatão bíblico, só ele tem o direito a subir para o trono marinho, no qual pela primeira vez o colocaram as palavras proféticas de H. Melville: A Baleia foi deposta, e o Grande cachalote passará a reinar, em seu lugar”. Mário Ruspoli (1960: 29).

No período de tempo compreendido entre os dias 23 de julho e 17 de outubro de 2021, esteve patente, no Museu dos Baleeiros das Lajes do Pico (1988-), polo do Museu do Pico (1991-), uma exposição temporária dedicada ao cachalote Physeter macrocephalus, o maior cetáceo com dentes. De acordo com o seu catálogo (ficha técnica), aqui objeto de uma análise científica, a coordenação, os textos e a revisão são da responsabilidade do Museu do Pico. Ao longo da história açoriana, o cachalote (baleia) proporcionou a criação e o desenvolvimento de uma relevante cultura baleeira, a ponto de esta identificar, diferenciar e qualificar algumas comunidades locais, insulares e arquipelágicas. A - Taxonomia Nos sistemas de classificação mais recentes, já não se usa o termo “sub-ordem” para misticetos/odontocetos, mas superfamília. O termo “cetacea” passou para um nível mais baixo (infraordem). Ver taxonomia atualizada na base de dados WORMS (World Register of Marine Species): Cetartiodactyla (ordem) > Cetancodonta (subordem) > Cetacea (infraordem) > Odontoceti (superfamília) > Physeteridae (família) > Physeter (género) > Physeter macrocephalus Linnaeus, 1758 (espécie) (www.marinespecies.org/index.php).


10

JOSÉ CARLOS GARCIA

B - Formas de organização da indústria baleeira açoriana Considerando a antropologia açoriana (Garcia, 2021: 37; Martins, 2001: 2; 2019: 180, 181, 184), a atividade baleeira costeira (18511984) conheceu duas fases sedentarizadas, organizadas sob a forma de indústria manufatureira (1851-) e de indústria fabril (1937-), no âmbito das quais se articularam a pesca empresarial e a transformação comercial de cachalotes. Portanto, a manufatura e a fábrica implicaram produções piscatórias, transformadoras e comerciais, concentradas por empresários e sociedades, obrigando ao investimento inicial em instrumentos técnicos (construções, barcos, equipamentos), mobilizando muita mão de obra e movimentando grandes quantidades de matérias-primas (espermacete, gordura, carne, ossos) e de derivados (óleos, farinhas), sendo o óleo o produto principal da indústria e quase todo destinado à exportação (América, Europa). No catálogo, a baleação açoriana é classificada como uma indústria “artesanal”, isto é, uma forma de artesanato baleeiro, apenas com base nas técnicas manuais e, deste modo, imune à complexidade dos fenómenos articulados no sistema técnico de produção. Assim, na perspetiva do Museu do Pico, uma armação baleeira de propriedade individual ou coletiva, com setores de atividade muito distintos e especializados (pesca, transformação), mas interdependentes, organizava-se de modo semelhante à pequena produção mercantil de pescadores independentes (pesca artesanal). O programa Cultura Açores da RTP Açores (2021), realizado nos polos baleeiros do Museu do Pico, permite-nos constatar a indefinição quanto às formas de organização das atividades de produção e de distribuição de bens, pois no Museu dos Baleeiros foi dito artesanal (2 de junho), enquanto no Museu da Indústria Baleeira de São Roque do Pico (1994-) se referiu manufatureira (16 de junho)! Em suma, observam-se equívocos e confusões sobre o conceito de indústria, aplicado universalmente, dificultando o conhecimento da realidade cultural e impossibilitando uma correta gestão dos bens patrimoniais e museológicos.


A C U L T U R A B A L E E I R A N O M U S E U D O P I C O ( AÇ O R E S )

11

C - Fases industriais da baleia A manufatura e a indústria fabril do cachalote configuram as fases costeiras da atividade baleeira nos Açores (sedentária/estacional). No catálogo, utiliza-se “fase industrial da baleação” para identificar temporalmente o aproveitamento integral do cachalote (indústria mecânica a vapor e a eletricidade), com recurso a inovadoras fábricas. Isto pode dar a entender, incorretamente, que a manufatura de azeite de baleia, por meio de oficinas manuais com caldeiros, não fez parte de uma fase industrial; logo, não era indústria! D - “Indústria-relíquia” A designação “indústria-relíquia” (Clarke, 2001 [1954]), proposta como tal à luz da corrente evolucionista, é recuperada no catálogo para justificar, até 1984, a sobrevivência da baleação costeira a partir de pequenas embarcações (botes e lanchas de reboque), utilizando arpão e lança manuais. Esta adoção, por parte do Museu do Pico, descura toda a ação empresarial açoriana no desenvolvimento de processos de receção, interpretação e adaptação criativa dos saberes (representações), das terminologias e dos instrumentos baleeiros em contextos ecológicos, económicos e sociais do arquipélago, durante a fase manufatureira e, depois, na revolucionária inovação sociotécnica da indústria fabril. E - A urgência da baleia no museu Estamos perante uma exposição temporária sobre o cachalote, no Museu dos Baleeiros, precisamente onde já deveria ter sido programada uma secção de caráter permanente e especializada nos campos da biologia e ecologia do cetáceo (ver texto VI). Numa perspetiva das relações sociais açorianas com seres não-humanos, a baleia representa a natureza primordial que possibilitou, ritmou e condicionou a criação e o desenvolvimento da cultura organizativa e técnica dos baleeiros, daí a referência destes atores no próprio nome do museu.


12

JOSÉ CARLOS GARCIA

Bibliografia Clarke, Robert. 2001 [1954]. Baleação em botes de boca aberta nos mares dos Açores. História e métodos atuais de uma indústria-relíquia. Vila do Porto, Edição de Robert Clarke e Fernando da Silva (tradutor). Garcia, José Carlos. 2021. A indústria baleeira dos Açores, col. ‘Etnografia dos Açores’, n.º 5. Horta, Observatório do Mar dos Açores. Martins, Rui de Sousa. 2019. “Embarcações e culturas baleeiras. Perspetivas antropológicas”, Cadernos de Trabalho 3. Ponta Delgada, Centro de Estudos Humanísticos, Universidade dos Açores: 135-204. Martins, Rui de Sousa. 2001. Museu do Pico. Museu da Indústria Baleeira. Ponta Delgada, Universidade dos Açores e Museu do Pico. Desdobrável (inédito). “Physeter macrocephalus – Cachalote”, 2021, Angra do Heroísmo, Secretaria Regional da Cultura, da Ciência e Transição Digital. Catálogo da exposição da Direção Regional da Cultura / Museu do Pico (coordenação, textos e revisão). Ruspoli, Mário. 1960. À pesca do cachalote. Lisboa, Livraria Clássica Editora. Webgrafia WORMS (World Register of Marine Species): www.marinespecies.org/index.php (última consulta em 2023). Programa de televisão Programa Cultura Açores da RTP Açores (2021): Museu dos Baleeiros (Lajes do Pico, 2 de junho) e Museu da Indústria Baleeira (São Roque do Pico, 16 de junho). Nota: Versão adaptada, revista e atualizada do seguinte artigo: “Museu do Pico (1/6): Exposição Physeter macrocephalus – o cachalote”, 2021, Jornal do Pico, São Roque do Pico, 26 de novembro: 9.


13

II. Museu do Pico: Cultura baleeira açoriana


Fig. 3 - Casas dos botes baleeiros das companhias de baixo (Lajes do Pico, finais do séc. XIX). Atual Museu dos Baleeiros (1988-). 14 Arquivo fotográfico do Museu do Pico.


A C U L T U R A B A L E E I R A N O M U S E U D O P I C O ( AÇ O R E S )

15

“Mas a nossa grande aventura, a nossa grande epopeia baleeira. Crescíamos. Entre alegrias e tristezas, baleias que matávamos, baleias que nos matavam, temporais que vencíamos, temporais que nos venciam e afogavam, as nossas cantigas floriam no chão da nossa terra, as nossas histórias ninavam o berço do nosso sonho, as nossas lágrimas ensopavam o sal do nosso mar – deste nosso mar que se tornava pequeno para a imensidade da nossa fome”. Dias de Melo (1983: 57).

Este texto retoma um artigo do jornal Tribuna das Ilhas, produzido pelo historiador Ricardo Madruga da Costa (2021), com “uma visão perturbadoramente heterodoxa do Museu dos Baleeiros” (Lajes do Pico, 1988-). O autor problematiza afirmações proferidas pela direção do Museu do Pico (1991-), no programa Cultura Açores da RTP Açores (2 de junho de 2021), sobre o papel e a narrativa histórica e ficcional do escritor picoense José Dias de Melo (1925-2008), em relação à cultura baleeira açoriana. Focar-nos-emos apenas na interrogação do que seria esta expressiva cultura sem Dias de Melo? 1. Cultura baleeira: Um conceito Segundo o antropólogo Rui de Sousa Martins (2009: 136, nota 4), cultura baleeira “é a configuração antropo-espaciotemporal da totalidade dinâmica dos sistemas de interação humana com as baleias”. Portanto, no caso dos Açores, a sua criação e desenvolvimento envolvem, ao longo do tempo, a apropriação de baleias arrojadas à costa, a pesca e transformação comercial de cachalotes (indústria baleeira, 1848-1984) e, desde 1991, a observação turística de cetáceos em meio selvagem (whale watching).


16

JOSÉ CARLOS GARCIA

2. Os contributos de Dias de Melo No inquestionável papel social e cultural de Dias de Melo, salientam-se três eixos de intervenção. O primeiro é a sua militância pela construção do património, servindo de exemplo um artigo de João Brumal (1969), com o título “Museu baleeiro na ilha do Pico”, onde Dias de Melo defende uma estrutura digna para perpetuar a história passada dos baleeiros, certamente nas Lajes do Pico. O segundo eixo traduz o registo útil da memória baleeira, realçando-se, para o efeito, A vida vivida em terras de baleeiros (Melo, 1983) e alguns volumes da coleção Na memória das gentes (Melo, 1985; 1990). Por último, o facto de ser considerado o escritor Maior da literatura baleeira açoriana, autor de várias obras que se enquadram aqui e o notabilizam nos géneros da poesia e romance (Melo, 1954; 1958; 1964; 1976). 3. Museu dos Baleeiros: A adoção de Dias de Melo Na verdade, a obra de Dias de Melo ilustra muito bem a representação da atividade baleeira como grande aventura e epopeia dramática (ver citação inicial). Esta também é a retórica ideo-demagógica do Museu dos Baleeiros, o que não poderia ser feita se a programação expositiva tivesse colocado questões com pressupostos culturais e científicos (programa museológico), devidamente fundamentados num trabalho antropológico globalizante, sistemático e exaustivo (ver texto VI). Dias de Melo é claramente um escritor emblemático da cultura baleeira açoriana e, como referido, também um etnógrafo de memórias passadas, mas não deve ser instrumentalizado por um museu que, sem ele, duvidaria dessa cultura. Isto é de todo evitável, até porque, numa perspetiva multidisciplinar e interdisciplinar, as ciências naturais (biologia, ecologia), as ciências sociais (história, antropologia) e as humanidades aplicadas (património, museologia) estão qualificadas para a construção do conhecimento sobre o fenómeno baleeiro açoriano, nos múltiplos espaços-tempos insulares e arquipelágicos do seu desenvolvimento organizativo e técnico.


A C U L T U R A B A L E E I R A N O M U S E U D O P I C O ( AÇ O R E S )

17

Por outro lado, a produção, o estudo, a literatura e a promoção da cultura baleeira implicaram, ainda comprometem e continuarão a mobilizar inúmeros atores sociais a vários níveis, tanto açorianos como para além destes, daí ser injusto e até contraproducente polarizar-se num personagem, mesmo que seja o considerado Dias de Melo, o estado da arte no arquipélago. Bibliografia Brumal, João. 1969. “Museu baleeiro na ilha do Pico”, Açoriano Oriental, Ponta Delgada, 8 de março. Costa, Ricardo Madruga da. 2021. “Uma visão perturbadoramente heterodoxa do Museu dos Baleeiros”, Tribuna das Ilhas, Horta, 11 de junho: 8. Martins, Rui de Sousa. 2019. “Embarcações e culturas baleeiras. Perspetivas antropológicas”, Cadernos de Trabalho 3. Ponta Delgada, Centro de Estudos Humanísticos, Universidade dos Açores: 135-204. Melo, Dias de. 1990. Na memória das gentes, livro II, vol. 1. Angra do Heroísmo, Direção Regional de Orientação Pedagógica da Secretaria de Educação e Cultura. Melo, Dias de. 1985. Na memória das gentes, livro I, 3 vols. Angra do Heroísmo, Direção Regional de Orientação Pedagógica da Secretaria de Educação e Cultura. Melo, Dias de. 1983. Vida vivida em terras de baleeiros. Angra do Heroísmo, Direção Regional de Orientação Pedagógica da Secretaria de Educação e Cultura. Melo, Dias de. 1976. Mar pela proa. Lisboa, Prelo. Melo, Dias de. 1964. Pedras negras. Lisboa, Portugália Editora. Melo, Dias de. 1958. Mar rubro. Lisboa, Orion. Melo, Dias de. 1954. Toadas do mar e da terra. Ponta Delgada, Edição do Autor. Nota: Versão adaptada, revista e atualizada do seguinte artigo: “Museu do Pico (2/6): Cultura baleeira açoriana”, 2021, Jornal do Pico, São Roque do Pico, 10 de dezembro: 9.


18


19

III. Museu do Pico: Bote baleeiro açoriano


20

Fig. 4 - Secção do bote baleeiro açoriano no Museu dos Baleeiros (Lajes do Pico, 1988-). Arquivo fotográfico do Museu do Pico.


A C U L T U R A B A L E E I R A N O M U S E U D O P I C O ( AÇ O R E S )

21

“Such was the Yankee whaleboat as it was finally evolved; the most perfect water craft that has ever floated”. Clifford Ashley (1991 [1926]: 64).

1. Nota prévia Como vamos produzir uma pequena reflexão sobre a musealização do bote baleeiro açoriano, importa referir que este artefacto naval e marítimo integra duas secções do Museu dos Baleeiros das Lajes do Pico (1988-), sendo possível observar aqui o antigo bote Santa Teresinha (bote açoriano) e, desde 2008, um novo exemplar “propositadamente inacabado” (construção naval), pelo mestre picoense Manuel Hermínio Brum (Identificação…, 2016: 40). Derivado de equívocos, o sítio da Internet do Museu do Pico (www.museu-pico.azores.gov.pt) concetualiza o Museu dos Baleeiros e o Museu da Indústria Baleeira de São Roque do Pico (1994-) como “núcleos”, quando na realidade são polos (extensões); logo, o Museu do Pico (1991-) é uma estrutura multipolar e não polinucleada. 2. Classificação dos botes O bote da baleação açoriana (1848-1984) é o resultado de um longo processo que envolveu, no espaço-tempo, diferentes modelos, locais de construção, características morfológicas, estruturais e técnicas. Portanto, constitui-se por variantes, nomeadamente o bote importado de tabuado horizontal (costeiro e de bordo) (séc. XIX, 2.ª metade), o bote açórico-americano de tabuado horizontal liso (séc. XX), o bote açórico-madeirense de tabuado em dupla diagonal (1953-) e o bote motorizado (1909-). A inovação do sistema baleeiro é que terá potenciado o aperfeiçoamento do bote americano no arquipélago, através de um modelo transculturalizado, desenvolvido e estandardizado a partir da ilha do Pico (Martins, 2019: 184, 185).


22

JOSÉ CARLOS GARCIA

3. Identificação dos processos técnicos de construção do bote baleeiro açoriano Em 2016, a Direção Regional da Cultura tornou público um documento sobre a identificação dos processos técnicos em título, elaborado pelo Museu do Pico. Na abordagem, reconhecem-se as variantes de embarcação, embora privilegiando-se o “bote picoense” e subalternizando-se os outros modelos da cultura baleeira insular: “bote micaelense” e “bote a motor”. Sublinha-se que este trabalho deu cumprimento à resolução n.º 16/2015/A, de 30 de abril, da Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores, para a qual terá contribuído um intenso debate, dinamizado pelo micaelense Luís Miguel Cravinho, membro da Associação de Classe do Bote Baleeiro Açoriano (ACBBA). 4. Processos sociopolíticos de requalificação do Museu dos Baleeiros Em 2018, numa reunião com o Conselho de Ilha do Pico, o Governo dos Açores assumiu institucionalmente a reformulação do caráter regional do Museu do Pico, incluindo os espaços de representação do Museu dos Baleeiros (ver texto VI) e, mais especificamente, a secção da construção naval (ver texto V), onde se pretendia exibir a metade longitudinal de um bote micaelense, cedida pela Câmara Municipal das Velas de São Jorge (“Construção naval açoriana…”, 2018). 5. Exercício crítico (jan. 2022) A - A Identificação dos processos e técnicas de construção do bote baleeiro açoriano (DRC, 2016) não aprofunda a classificação desta embarcação, que deveria decorrer da análise técnica e comparativa dos diferentes modelos. Na ausência de um estudo sistematizado, a perspetiva norteou-se por juízos de valor, verticalizando as várias categorias de bote, no sentido de uma desigualdade cultural à luz da diferença técnica (Martins, 2018: 38).


A C U L T U R A B A L E E I R A N O M U S E U D O P I C O ( AÇ O R E S )

23

B - Na classificação dos barcos, há a unanimidade universal de categorizá-los com base nas caraterísticas do casco e não pela identidade étnica, que é outra relevante questão (Notas orientadoras…, 2021). Também o próprio levantamento do bote de tabuado em dupla diagonal não foi acompanhando por engenheiros e construtores navais e, por isso, seria fundamental que os responsáveis pelo projeto concluíssem o trabalho técnico (ver o “levantamento arquitetónico” do bote Santo André, anexo III da Identificação…, 2016). C - O bote americano importado não está representado no Museu dos Baleeiros e, se atendermos à descrição do inglês Robert Clarke (2001 [1954]: 30-49), cetólogo e antropólogo da baleação açoriana, o bote Santa Teresinha, cujo modelo foi comum no arquipélago, à semelhança daquele primeiro, ambos de tabuado horizontal, necessita de um contexto explicativo no âmbito da pesca empresarial (captura e reboque), junto com as restantes tipologias de embarcação. Em outra secção expositiva, só o bote “inacabado” traduz, igualmente, a falta do conceito de sistema técnico e organizativo, mas agora ao nível da construção naval baleeira (ver textos V e VI). D - Em face do exposto, o Museu dos Baleeiros não chegou a realizar as pretensões do secretário regional da Educação e Cultura do XII Governo dos Açores, doutor Avelino de Freitas de Meneses (“Construção naval açoriana…”, 2018), reconhecido académico no campo da história (Universidade dos Açores). Paralelamente, a instituição continua a fazer tábua rasa dos trabalhos inovadores do antropólogo Rui de Sousa Martins (2018; 2019), professor emérito da referida academia insular. E - No caso do Museu da Indústria Baleeira, vocacionado para comunicar as atividades das Armações Baleeiras Reunidas (1942-1984), assiste-se ao desconhecimento da realidade cultural e da classificação das formas de organização da produção, nomeadamente na categoria tipológica de indústria fabril, onde se articulavam os sistemas de pesca e de transformação comercial de cetáceos. Terá sido isso que


24

JOSÉ CARLOS GARCIA

justificou a opção de retirar do interior da fábrica-museu um antigo bote baleeiro, com velas armadas, cuja imagem permitiria uma leitura global do modelo explicativo. Bibliografia Ashley, Clifford W. 1991 [1926]. The Yankee Whaler. New York, Dover Publications, Inc. Clarke, Robert. 2001 [1954]. Baleação em botes de boca aberta nos mares dos Açores. História e métodos atuais de uma indústria-relíquia. Vila do Porto, Edição de Robert Clarke e Fernando da Silva (tradutor). “Construção naval açoriana representada no Museu dos Baleeiros por embarcação de São Miguel”, 2018, Ilha Maior, Madalena do Pico, 20 de abril: 20. Identificação dos processos e técnicas de construção do bote baleeiro açoriano. 2016. Angra do Heroísmo, Direção Regional da Cultura. Martins, Rui de Sousa. 2019. “Embarcações e culturas baleeiras. Perspetivas antropológicas”, Cadernos de Trabalho 3. Ponta Delgada, Centro de Estudos Humanísticos, Universidade dos Açores: 135-204. Martins, Rui de Sousa. 2018. “Sobre a identificação dos processos técnicos de construção do bote baleeiro açoriano”, Cadernos de Trabalho 2. Ponta Delgada, Centro de Estudos Humanísticos, Universidade dos Açores: 31-47. Notas orientadoras do projeto antropológico A indústria baleeira dos Açores, 2019-2021. Webgrafia Museu do Pico: www.museu-pico.azores.gov.pt (última consulta em 2023). Nota: Versão adaptada, revista e atualizada do seguinte artigo: “Museu do Pico (3/6): Bote baleeiro açoriano”, 2022, Jornal do Pico, São Roque do Pico, 7 de janeiro: 9.


25

IV. Museu do Pico: Espaços de explicação global


26

Fig. 5 - Museu da Indústria Baleeira (São Roque do Pico, 1994-). Fotografia de Henrique Andrade (2017).


A C U L T U R A B A L E E I R A N O M U S E U D O P I C O ( AÇ O R E S )

27

“Tudo muito “único”, tudo muito “complementar”, tudo muito “privilegiado”, tudo muito “explicável”, tudo muito “especializado”, tudo “mais importante”, tudo muito cheio de “potencial”, tudo muito “global”!! Não é coisa pouca. Só que o autor da formulação desta tese e desta abundante adjetivação, não se explicou de modo a que a modesta visão do leitor compreenda o alcance profundo do que está a afirmar”. Ricardo Madruga da Costa (2019a: 232).

O espaço de explicação global é uma conceção muito recorrente na problematização científica dos polos baleeiros do Museu Regional do Pico (1991/2000-). Tem subjacente o sentido de totalidade (globalidade), o conceito de organização sociotécnica (sistema) e o método comparativo, envolvendo a noção de cultura baleeira, que decorre do conceito antropológico de cultura, e a interpretação do fenómeno à luz dos paradigmas das ciências naturais e das ciências sociais. 1. Orientações e pareceres O investigador e bibliotecário terceirense João Afonso (1990: I), delegado governamental na primeira Comissão Instaladora de 1977 do Museu dos Baleeiros das Lajes do Pico (1988-), divulgou o seu “enquadramento histórico”, destacando que “um museu do género, fosse em que ilha fosse – pois em todas as do arquipélago, incluindo o Corvo, houve estações baleeiras ou manteve-se contacto com barcas baleeiras… –, representaria sempre uma resposta conveniente a propósitos vindos de longe…”. No ano de 1990, o museólogo inglês kenneth Hudson (1992: 86, 87) descreveu-o como um “feito notável”, mas sugerindo que “deve-


28

JOSÉ CARLOS GARCIA

ria ser pensado como o centro, como que a central elétrica de um ecomuseu que inclui toda a cidade. (…). A cidade toda constitui o Museu e aquilo a que agora se chama Museu [dos Baleeiros] nada mais é, de facto, do que o centro do Museu”. Foi o antropólogo e museólogo Rui de Sousa Martins (1998: 5), professor da Universidade dos Açores e responsável pela elaboração de um Parecer sobre o projeto de Decreto Legislativo Regional – Património baleeiro regional, que aqui defendeu primeiramente o crescimento e a especialização do referido polo do Museu do Pico, no sentido de explicar “o fenómeno baleeiro dos Açores em todas as suas dimensões” e de potenciar um “Museu da baleação açoriana”. Em 2015, a imprensa escrita noticiou que a exposição do Museu dos Baleeiros seria alterada, de acordo com o secretário regional da Educação e Cultura, doutor Avelino de Freitas de Meneses [historiador da Universidade dos Açores], procurando-se a “invocação da memória baleeira ilhoa” e “uma referência ao envolvimento arquipelágico” (“Museografia…”, 2015). Passados três anos, o governo de então decidiu, junto do Conselho de Ilha, remover os artefactos agrícolas da secção do baleeiro em terra (ainda sem efeito), com o objetivo de se “ganhar espaço para o tratamento da baleação nas dimensões arquipelágica e internacional” (“Construção naval açoriana…”, 2018). Desta forma, readquiriria uma natureza especializada (museu temático) e transformar-se-ia num meio de comunicação “da pluralidade heterogénea da cultura baleeira do passado e do presente, assim como dos seus valores patrimoniais territorializados no arquipélago”, incluindo os diferentes recursos da vila das Lajes do Pico – Capital Baleeira dos Açores (Martins, 2018: 40, 43). 2. Ciência baleeira interdisciplinar A história da baleação anglo-americana nos Açores e da participação dos insulares nesta indústria transoceânica está muito bem documentada pelo investigador João Afonso (1998), pelo estudioso florentino João Gomes Vieira (2007) e pelo historiador Ricardo Madruga da Costa (2009; 2012; 2019b), todos eles conhecedores da temática, com


A C U L T U R A B A L E E I R A N O M U S E U D O P I C O ( AÇ O R E S )

29

extensa obra publicada e o indispensável percurso norte-americano. As pesquisas e uma edição impressa do historiador americano Donald Warrin (2010), com versão portuguesa (2020), dão-lhes uma inteira e justa razão. No Portugal insular, a baleação sedentarizada foi sobejamente estudada pelo médico veterinário José Mousinho de Figueiredo (1996 [1946]) e pelo oceanógrafo e cetólogo inglês Robert Clarke (2001 [1954]), ambos com trabalhos dedicados ao cachalote, sendo de destacar um artigo do segundo cientista (1956/1957). Em 1996, a reedição da análise de Figueiredo justificou uma “atualização de conhecimentos” sobre aquele grande cetáceo, produzida pelo biólogo João Manuel Gonçalves, professor do Departamento de Oceanografia e Pescas da Universidade dos Açores. Uma classificação das formas de organização da indústria baleeira açoriana – produção e distribuição – foi proposta pelo professor Rui de Sousa Martins (2001: 2), cujo trabalho é ainda inédito (desdobrável), tendo sido elaborado no âmbito do projeto de reconversão museológica da Fábrica da Baleia de São Roque do Pico (1991-) (Museu da Indústria Baleeira, 1994-). Este antropólogo também categorizou tipologicamente os botes baleeiros utilizados e construídos nos Açores (Martins, 2019: 179 e segs.). Ao historiador Francisco Henriques (2016) coube um reconhecido estudo que explica, no âmbito da baleação portuguesa do Estado Novo (1937-1958), a organização corporativa das pescas e o condicionamento industrial. 3. Polos baleeiros do Museu do Pico Atualmente, o Museu dos Baleeiros, que só aumentou com espaços administrativos, um auditório e uma galeria de exposições (20082014), continua um obstáculo à compreensão, à comunicação e à gestão patrimonial do fenómeno baleeiro insular (Martins, 2018: 38, 39); portanto, à margem das pretensões iniciais dos atores sociais e políticos e, sobretudo, dos trabalhos de estudiosos e académicos sobre a ecologia da baleia, a matriz da baleação americana, as variantes dos


30

JOSÉ CARLOS GARCIA

botes, as lanchas de reboque, a pesca empresarial, as técnicas de transformação do cachalote e outras formas de cultura baleeira, como a observação de cetáceos (whale watching). Não explica corretamente a construção naval (ver texto V) e tem uma secção de arte baleeira, mas que extravasa o conceito de scrimshaw (ver texto VI), indo igualmente muito além da sua vocação temática (especialização), pois exibe representações agrícolas e religiosas (museu híbrido). Por outro lado, o Museu do Pico não potencializa qualquer estratégia programática para centralizar, articular e partilhar, no polo das Lajes do Pico, por meio de redes relacionais locais, regionais e internacionais, representações presentes e virtuais da baleação global e regional. Em relação ao Museu da Indústria Baleeira, cujo projeto não chegou a ser concluído pelo professor Rui de Sousa Martins, falta transmitir que a estrutura baleeira concentrou as atividades de produção (pesca, transformação) e de comercialização das Armações Baleeiras Reunidas (1942-1984), as quais funcionavam como setores integrados, interdependentes e necessários à organização ecossociotécnica industrial, não tendo, portanto, qualquer autonomia fora deste sistema dinâmico e relacional. É por isso que a exposição de um bote baleeiro fazia sentido (conceito de indústria fabril), como já acontecera no interior da fábrica-museu, bem como a abertura ao público de duas oficinas musealizadas (ferraria-fundição, serralharia-tornearia), indispensáveis à explicação do complexo produtivo. Ainda no plano etnomuseológico, ambos os polos do Museu do Pico deveriam representar, com recurso ao conceito de cadeia operatória (etapa/fases/gestos), a atividade técnica dos sistemas de produção: tenda de ferreiro, construção naval, pesca empresarial (Museu dos Baleeiros) e indústria fabril (Museu da Indústria Baleeira). Bibliografia Afonso, João. 1990. “Museu dos Baleeiros – ilha do Pico. Novidade entre museus do género”, Boletim Cultural e Informativo da Casa dos Açores do Norte – A imagem de uma comunidade, n.º 29, janeiro-março (suplemento – Museus dos Açores). Porto, Casa dos Açores do Norte: I-IV.


A C U L T U R A B A L E E I R A N O M U S E U D O P I C O ( AÇ O R E S )

31

Afonso, João. 1998. Mar de baleias e de baleeiros. Angra do Heroísmo, Direção Regional da Cultura. “Construção naval açoriana representada no Museu dos Baleeiros por embarcação de São Miguel”, 2018, Ilha Maior, Madalena do Pico, 20 de abril: 20. Costa, Ricardo Manuel Madruga da. 2019a. “Museu do Pico por quem nos visita”, Boletim do Núcleo Cultural da Horta, n.º 28, Revista de livros. Horta, Núcleo Cultural da Horta: 227-234. Costa, Ricardo Manuel Madruga da. 2019b. Os Dennis Wood Abstracts e o porto da Horta como provedoria da frota baleeira americana. Um contributo para uma reflexão sobre a baleação dos Açores. Horta, Núcleo Cultural da Horta. Costa, Ricardo Manuel Madruga da. 2012. A ilha do Faial na logística da frota baleeira americana no “Século Dabney”. Lisboa, Centro de História de Além-Mar; Horta, Observatório do Mar dos Açores. Costa, Ricardo Manuel Madruga da. 2009. O Século Dabney. Uma perspetiva das relações entre os Açores e os Estados Unidos da América à luz da correspondência consular (1806-1892). Ponta Delgada, Universidade dos Açores. Trabalho realizado no âmbito do projeto de pós-doutoramento – O Século Dabney. Clarke, Robert. 1957 (1956). “Sperm whales of the Azores”, Discovery Reports, vol. XXVIII. Cambridge, National Institute of Oceanography: 237-298, gravuras I e II. Clarke, Robert. 2001 [1954]. Baleação em botes de boca aberta nos mares dos Açores. História e métodos atuais de uma indústria-relíquia. Vila do Porto, Edição de Robert Clarke e Fernando da Silva (tradutor). Figueiredo, J. Mousinho. 1996 [1946]. Introdução ao estudo da indústria baleeira insular. Lajes do Pico, Museu dos Baleeiros. Gonçalves, João Manuel A. 1996. “Atualização de conhecimentos sobre a biologia e ecologia do cachalote”, in J. Mousinho Figueiredo, Introdução ao estudo da indústria baleeira insular. Lajes do Pico, Museu dos Baleeiros: 229-284.


32

JOSÉ CARLOS GARCIA

Henriques, Francisco Maia Pereira Bruno. 2016. A baleação e o Estado Novo. Industrialização e organização corporativa (19371958). Angra do Heroísmo, Secretaria Regional da Educação e Cultura, Direção Regional da Cultura. Hudson, kenneth. 1992. “O Museu dos Baleeiros: Algumas sugestões”, Património e Museus Locais, n.º 1-2. Lisboa, Instituto Rainha D. Leonor: 85-87. Martins, Rui de Sousa. 2019. “Embarcações e culturas baleeiras. Perspetivas antropológicas”, Cadernos de Trabalho 3. Ponta Delgada, Centro de Estudos Humanísticos, Universidade dos Açores: 135-204. Martins, Rui de Sousa. 2018. “Sobre a identificação dos processos técnicos de construção do bote baleeiro açoriano”, Cadernos de Trabalho 2. Ponta Delgada, Centro de Estudos Humanísticos, Universidade dos Açores: 31-47. Martins, Rui de Sousa. 2001. Museu do Pico. Museu da Indústria Baleeira. Ponta Delgada, Universidade dos Açores e Museu do Pico. Desdobrável (inédito). Martins, Rui de Sousa. 1998. Parecer sobre o projeto de Decreto Legislativo Regional – Património baleeiro regional. Ponta Delgada, Universidade dos Açores, Centro de Estudos Etnológicos: 1-6. Texto policopiado. “Museografia do Museu dos Baleeiros será alterada”, 2015, Ilha Maior, Madalena do Pico, 20 de março: 6. Vieira, João A. Gomes. 2007. O Homem e o Mar. A participação portuguesa (açorianos e cabo-verdianos) na baleação americana. Lisboa, Medialand, Lda. Warrin, Donald. 2020 [2010]. Assim acaba este dia. Os portugueses na baleação americana. 1765-1927. Horta, Núcleo Cultural da Horta e Assembleia Legislativa da Região Autónoma dos Açores. Edição portuguesa. Nota: Versão adaptada, revista e atualizada do seguinte artigo: “Museu do Pico (4/6): Espaços de explicação global”, 2022, Jornal do Pico, São Roque do Pico, 21 de janeiro: 9.


33

V. Museu dos Baleeiros: Revisitação da secção da construção naval


Fig. 6 - Secção da construção naval no Museu dos Baleeiros (Lajes do Pico, 1988-). Arquivo fotográfico do Museu do Pico. 34


A C U L T U R A B A L E E I R A N O M U S E U D O P I C O ( AÇ O R E S )

35

“…o bote baleeiro açoriano é uma embarcação especializada, que empresários, marítimos e construtores navais do arquipélago adotaram e utilizaram, a partir do século XIX, nos diferentes espaços insulares, independentemente da proveniência do modelo, das suas caraterísticas morfológicas, estruturais e técnicas ou do seu local de construção/transformação”. Rui de Sousa Martins (2019: 189).

Apoiando-se numa reflexão antropológica, o presente texto expõe uma análise atualizada sobre a programação da secção da construção naval no Museu dos Baleeiros das Lajes do Pico (1988-), polo do Museu do Pico (1991-). As considerações revisitam a representação do bote comum em fase de construção (2008-) e, no mesmo espaço, direcionam-se para uma nova explicação do “bote baleeiro açoriano”, documentada com textos descritivos, imagens materializadas (desenho, fotografia) e trabalho cartográfico (2022-). A - Bote em fase construtiva A secção expositiva em questão, com uma embarcação “deliberadamente incompleta” pelo mestre picoense Manuel Hermínio Brum (1937-2012), persiste sem uma representação do processo técnico de construção dos botes, onde se relacionariam os “materiais”, os instrumentos, os espaços, os gestos e as posturas (cf. Martins, 2018: 35). B - “Bote baleeiro açoriano” 1. A referência da baleação anglo-norte-americana, que envolve um vasto e complexo tema da história marítima mundial, é incontornável para se compreender a indústria baleeira açoriana (1848-1984).


36

JOSÉ CARLOS GARCIA

2. A designação “navio-oficina” é insuficiente para definir a dupla natureza do navio industrial baleeiro de produção múltipla, processo tributário do “galeão” basco (Martins, 2019: 177; 2021: 27, nota 13). 3. A abordagem do bote baleeiro açoriano como uma embarcação insular especializada, englobando diferentes modelos, com caraterísticas morfológicas, estruturais e técnicas, no espaço-tempo, é também muito significativa. 4. A inclusão do bote importado para armação costeira (1851) e do bote açórico-americano (1894) no conceito de “bote comum”, ambos de tabuado horizontal, interpreta corretamente a realidade baleeira. Porém, o bote americano não era “bojudo, pesado e de difícil manobra”, mas uma embarcação aperfeiçoada e sofisticada na modalidade de manufatura oceânica, daí ter sido considerado “the most perfect water craft that has ever floated” (Ashley, 1991 [1926]: 64). 5. Independentemente do nível interpretativo, há uma unanimidade universal em relação à classificação tipológica dos barcos, que deve ser proposta de acordo com as caraterísticas do casco e não pela identidade étnica. A designação bote micaelense, à semelhança de bote picoense, é uma classificação étnica ao serviço dos legítimos processos sociais de construção e afirmação da identidade insular. No entanto, não tem qualquer base técnica e científica, sendo mesmo ambígua e mistificadora; portanto, à margem do conhecimento (Notas orientadoras…, 2021). Convém recordar que, na ilha de São Miguel, se utilizaram e construíram botes açórico-americanos de tabuado horizontal, botes açórico-madeirenses de tabuado em dupla diagonal (1953-) e botes motorizados (1966-). Neste sentido, são todos micaelenses. 6. Mantêm-se os equívocos e as confusões acerca do conceito de indústria baleeira açoriana (1851-1984). Não existiu uma “fase industrial”, mas duas fases sedentarizadas da indústria insular, organizadas sob a forma de indústria manufatureira (1851-) e de indústria fabril (1937-) (Garcia, 2021: 37).


A C U L T U R A B A L E E I R A N O M U S E U D O P I C O ( AÇ O R E S )

37

7. Parece-nos que as embarcações deviam ser representadas com a proa à direita. Os levantamentos geométricos dos botes também não representam o tabuado. 8. O trabalho refere a introdução das lanchas da baleia (1920-1930), mas faltam os planos geométricos destas embarcações de reboque de botes e capturas. Aqui, o imaginário dos botes acabou por se impor e esconder a realidade baleeira. 9. A representação cartográfica da construção naval baleeira é uma metodologia eficaz. Contudo, apenas o mapa da ilha do Pico é insuficiente, sendo mesmo obrigatório o mapa do arquipélago, com uma base concetual, no sentido de territorializar a tipologia dos botes (americano e variantes transculturalizadas), os centros de construção naval e até as áreas de utilização, assim como os respetivos processos relacionais, pois o seu desenvolvimento realizou-se a diferentes escalas: local, interinsular, interarquipelágica e transatlântica. 10. A salvaguarda das embarcações baleeiras, após a desativação da atividade produtiva e comercial (1984), não passou apenas pela sua recuperação, reutilização e/ou reprodução, com finalidades lúdico-turísticas e desportivas (regatas), mas igualmente por outros processos sociais de gestão patrimonial e museológica, cujos resultados são notáveis, mesmo em espaços extra-açorianos. 11. A noção de “bote baleeiro açoriano” e a classificação dos seus diferentes modelos deveriam assentar, de forma implícita, no conceito de cultura açoriana, numa perspetiva de totalidade. É neste sentido que se enquadra a abordagem antropológica do académico Rui de Sousa Martins (2019: 179 e segs.), sobre os botes baleeiros nos Açores, a nível concetual, comparativo, classificatório e cartográfico. Bibliografia Ashley, Clifford W. 1991 [1926]. The Yankee Whaler. New York, Dover Publications, Inc.


38

JOSÉ CARLOS GARCIA

Garcia, José Carlos. 2021. A indústria baleeira dos Açores, col. ‘Etnografia dos Açores’, n.º 5. Horta, Observatório do Mar dos Açores. Martins, Rui de Sousa. 2021. “Paisagens industriais baleeiras”, prefácio a José Carlos Garcia, A indústria baleeira dos Açores, col. ‘Etnografia dos Açores’, n.º 5. Horta, Observatório do Mar dos Açores: 9-34. Martins, Rui de Sousa. 2019. “Embarcações e culturas baleeiras. Perspetivas antropológicas”, Cadernos de Trabalho 3. Ponta Delgada, Centro de Estudos Humanísticos, Universidade dos Açores: 135-204. Martins, Rui de Sousa. 2018. “Sobre a identificação dos processos técnicos de construção do bote baleeiro açoriano”, Cadernos de Trabalho 2. Ponta Delgada, Centro de Estudos Humanísticos, Universidade dos Açores: 31-47. Notas orientadoras do projeto antropológico A indústria baleeira dos Açores, 2019-2021. Nota: Versão adaptada, revista e atualizada do seguinte artigo: “Museu do Baleeiros: Ciência da mauzura”, 2022, Jornal do Pico, São Roque do Pico, 1 de julho: 9.


39

VI. Museu dos Baleeiros: Proposta de reprogramação das secções expositivas


40

Fig. 7 - Museu dos Baleeiros (Lajes do Pico, 1988-). Arquivo fotográfico do Museu do Pico.


A C U L T U R A B A L E E I R A N O M U S E U D O P I C O ( AÇ O R E S )

41

“…é indispensável a existência de um espaço especializado de explicação global da baleagem açoriana. Este espaço tem de ser necessariamente o Museu dos Baleeiros…”. Rui de Sousa Martins (1998: 5).

Depois dos anteriores cinco textos, dedicados ao cachalote, à cultura baleeira açoriana, ao bote baleeiro, aos espaços de explicação global e à construção naval baleeira, no âmbito dos quais foi possível contribuir para a análise de uma relevante cultura marítima e para problematizar a comunicação e a gestão museológica da baleia (Museu do Pico, 1991-), resta-nos agora repensar uma indispensável reprogramação do Museu dos Baleeiros das Lajes do Pico (1988-), qualificado como um dos mais visitados do arquipélago. Com base num exercício comparativo e interpretativo, apresentam-se aqui os núcleos de longa duração do Museu dos Baleeiros (A), de acordo com o sítio de Internet do Museu do Pico (www.museupico.azores.gov.pt), e uma proposta de reformulação do seu espaço de representação expositiva (secções), com impacto na própria vocação da instituição (B). A - Núcleos expositivos na perspetiva do Museu do Pico: 1. Núcleo do bote baleeiro açoriano 2. Núcleo da tenda de ferreiro 3. Núcleo do baleeiro em terra 4. Núcleo da construção naval 5. Núcleo da arte baleeira (Scrimshaw)


42

JOSÉ CARLOS GARCIA

B - Secções expositivas na perspetiva das ciências naturais e das ciências sociais e de acordo com a lógica e a articulação dos sistemas e processos baleeiros: 1. Secção do gigante dos mares: • Biologia e ecologia do cachalote; • Cultura baleeira açoriana, enquanto totalidade dinâmica no espaço-tempo, até à observação de cetáceos (whale watching, 1991-). 2. Secção dos Açores na indústria baleeira anglo-norte-americana: • Baleação atlântica (1765-1927); • Baleação açórico-americana, numa perspetiva transcultural e intercultural: produções itinerante (1848-1888) e costeira (1851-1984). 3. Secção da tenda de ferreiro: • Arpão e lança, matéria-prima, instrumentos, espaço de trabalho, energia, processo técnico de produção, gestos, posturas e saberes. 4. Secção da construção naval baleeira: • Categorias de bote baleeiro no espaço-tempo insular (bote importado, séc. XIX, 2.ª metade; bote de tabuado horizontal, séc. XX; bote de tabuado em dupla diagonal, 1953-; bote motorizado, 1909-), lanchas de reboque (1920/1930-), matéria-prima, instrumentos, espaços de trabalho, energia, processo técnico, gestos, posturas e saberes. 5. Secção da pesca da baleia: • Sistema ecossociotécnico de produção baleeira açoriana, numa perspetiva global e sistemática, pois em todas as ilhas se baleou. Aqui, é necessário o conceito de pesca empresarial (1851-1984), enquanto setor de atividade da manufatura (1851-) e da indústria fabril (1937-), envolvendo proprietários, pescadores e trabalhadores. 6. Secção da arte baleeira: • Peças em dente e osso de cachalote, de produção baleeira americana (scrimshaw);


A C U L T U R A B A L E E I R A N O M U S E U D O P I C O ( AÇ O R E S )

43

• Peças e coleções em dente e osso de cachalote, de produção artesanal açoriana. Sobre este tema, lembramos que a arte do osso e do dente de baleia existe desde a pré-história, em várias partes do mundo, tendo sido cultivada pelos Inuíte há muitas centenas de anos, se bem que eram outros contextos e outras formas de produção (Martins, 2019: 138-146). Nos Açores, “foi produzida, de forma notável, por processos sociais insulares muito distintos. Por esta razão, nem tudo é scrimshaw (arte de bordo das baleeiras americanas), como pensam alguns dependentes da terminologia corrente norte-americana, que imaginam prestigiante e que coloniza as pessoas, impedindo-as de ver, compreender e valorizar a sua própria realidade” (Notas orientadoras…, 2021). Bibliografia Martins, Rui de Sousa. 2019. “Embarcações e culturas baleeiras. Perspetivas antropológicas”, Cadernos de Trabalho 3. Ponta Delgada, Centro de Estudos Humanísticos, Universidade dos Açores: 135-204. Martins, Rui de Sousa. 1998. Parecer sobre o projeto de Decreto Legislativo Regional – Património baleeiro regional. Ponta Delgada, Universidade dos Açores, Centro de Estudos Etnológicos: 1-6. Texto policopiado. Notas orientadoras do projeto antropológico A indústria baleeira dos Açores, 2019-2021. Webgrafia Museu do Pico: www.museu-pico.azores.gov.pt (última consulta em 2023). Nota: Versão adaptada, revista e atualizada do seguinte artigo: “Museu do Pico (6/6): ‘Assim acaba este dia’”, 2022, Jornal do Pico, São Roque do Pico, 18 de fevereiro: 9.


44


45

Garcia, José Carlos. 2023. A cultura baleeira no Museu do Pico (Açores). Questões metodológicas e concetuais, análise interpretativa e formas de resolução, col. eBook ‘Etnografia dos Açores’, n.º 1. Edição do Autor.


46

A CULTURA BALEEIRA NO MUSEU DO PICO (AÇORES) Questões metodológicas e concetuais, análise interpretativa e formas de resolução Coleção eBook ‘Etnografia dos Açores’, n.º 1 - 2023 Etnografia dos Açores - Projetos de pesquisa e editoriais https://sites.google.com/view/etnografia-dos-acores/p%C3%A1gina-inicial COPYRIGHT © 2023 José Carlos Garcia Todos os direitos reservados


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.