Revista Narrativa Edição 16

REVISTA LABORATÓRIO DO CURSO DE JORNALISMO DA UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE - ANO 2019 - N. 16

Encantos de duas vidas cruzadas em Franco da Rocha

A doença do sentir e os sentidos da depressão, da ansiedade e do pânico

É possível viver isolado do mundo tecnológico em São Paulo?

AMAZÔNIA: DESCENDO O RIO COM AS FILHAS DA FLORESTA

SUMÁRIO 04

CICLO VICIOSO

POR BIANCA SANTOS

07

LIMITES DA LIBERDADE

POR BRUNA ALBUQUERQUE

10

SEGREDOS IGNORADOS PELO ESPELHO

POR BRUNO DE CASTRO & GUILHERME ANNIS

13

A MÚSICA QUE PROMOVE BEM-ESTAR

POR ISABELLE FARINA

17

A BELEZA DO CÂNCER

POR LÍVIA ROSA

20

(DES)ENCONTROS DA TRAVESSIA

POR LUANA DORIGON

23

A MÁSCARA DA MASCULINIDADE

POR PATRICIA CARVALHO

26

ICAMIABAS, AS FILHAS DO RIO AMAZONAS

POR RAQUEL PRYZANT

31

PARA ALÉM DA RECLUSÃO

POR RENAN DANTAS

36

ACORDANDO NO ESCURO: SOB UM NOVO OLHAR

POR RENATA GARRE

39

SE O AMANHÃ NÃO CHEGAR

POR TAISA DONATO

43

OLHAR ALÉM DAS MONTANHAS

POR HELOÍSA CAMPOS

46

PARTO HUMANIZADO NA PERIFERIA

POR AMANDA STABILE

EXPEDIENTE Universidade Presbiteriana Mackenzie Reitor: Prof. Dr. Benedito Guimarães Aguiar Neto Vice-reitor: Prof. Dr. Marco Tullio de Castro Vasconcelos Pró-reitora de graduação e assuntos acadêmicos: Profa. Dra. Marili Moreira da Silva Vieira Pró-reitor de extensão e educação continuada: Prof. Dr. Jorge Alexandre Onoda Pessanha Pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Prof. Dr. Paulo Batista Lopes Secretaria de Conselhos Superiores e de Controle Acadêmico: Prof. Dr. Cleverson Pereira de Almeida Centro de Comunicação e Letras Diretor: Prof. Dr. Marcos Nepomuceno Duarte Curso de Jornalismo Coordenador: Prof. Dr. Rafael Fonseca Santos Revista Narrativa Professor responsável: Carlos Sandano Supervisor de Publicações: José Alves Trigo

Ciclo vicioso Bianca Santos “Eu tenho um pai que é pastor e ele sempre falou que o cigarro é a chupeta do diabo. E quando ele veio me visitar no hospital, ele falou 'eu te avisei'. A preocupação era só uma: 'se você for morrer, você tá preparado?'". Aos 58 anos, o engenheiro eletrotécnico Marcos Robert enfrentou um câncer de garganta causado pelo consumo de cigarro e assumiu toda a responsabilidade de suas ações. "Não sou vítima. Eu escolhi isso pra minha vida".

Assim como Marcos, a comerciante Elizangela Ferreira faz parte dos 22 milhões de brasileiros que fumam, ocupando o 8º lugar no ranking mundial se6 | Narrativa

gundo a Organização Mundial da Saúde. Mas Elizangela quer se encaixar em outra estatística, uma mais otimista do Ministério da Saúde, que mostra queda no número de fumantes diários de 19% para 8% entre mulheres nos últimos 25 anos. "Tenho vontade de parar, mas fico pensando: quando conseguir, qual vai ser minha válvula de escape?'".

O vício não é a única coisa que compartilham.

Assim como Marcos, Elizangela descobriu ter câncer de mama há dois anos. "A primeira coisa que veio na mente foi: será que é porque eu fumo?”, ela confidencia. Ambos receberam tratamento e venceram

a doença, mas só Marcos venceu o vício. Elizangela não parou de fumar após a descoberta, a não ser no dia da cirurgia. "Eu me envergonho, não fumava na frente do local onde eu fazia tratamento", admite sob um riso fraco.

Apesar de enxergar o cigarro como uma droga, nenhum deles jamais imaginou consumir maconha, ecstasy, LSD, cocaína e drogas a base de DMT. Leonardo Martins Pierini tem apenas 24 anos e experimentou tudo isso, assim como o álcool e o cigarro. Para ele, todas causam dependência.

Durante toda a adolescência, Leonardo viu com frequência os amigos fazendo uso de diferentes

substâncias. Com algumas tragadas curtas em um cigarro de maconha dividido entre amigos, experimentou pela primeira vez uma droga ilícita aos 16 anos, instigado para saber qual sensação lhe daria. O riso frouxo e a leveza que tomou conta de seu corpo foi suficiente para que a planta lhe soasse inofensiva.

As festas e passeios com os amigos tornaram-se pretexto para o uso contínuo e a curiosidade abriu o caminho para conhecer as sensações de outras substâncias.

Aos poucos, Leonardo experimentou um pouco de tudo, mas sempre para voltava para aquela da qual mais dependia: a cocaína. "A sensação durante o uso é maravilhosa, não tem como negar, mas o quanto te deprecia é imensurável.

Você só percebe o estrago quando para de usar", assume.

Mesmo com décadas separando a adolescência de Leonardo, Marcos e Elizangela, todos se envolveram com o vício na mesma fase da vida. Embora a mídia atualmente veicule apenas publicidade de bebidas alcóolicas, há uma ideia tão intrínseca de que álcool e cigarro estão ligados a status e sociabilidade que todos relatam ter experimentado para se enturmar.

Elizangela tem 45 anos e teve seu primeiro contato com o cigarro aos 13. "Eu achava bonito as meninas fumando, puxando aquela fumaça e soltando". Assim como Marcos, Elizangela cresceu numa época em que a veiculação de propagandas de cigarro era permitida e o produto era vendido como algo sofisticado. "Eu só fumava na escola, na roda de amigos. Eu nem comprava o cigarro, a gente fazia vaquinha, uma comprava e as outras fumavam", admite Elizangela.

Nascida em Sergipe, ela teve desavenças constantes com a mãe na adolescência. Passou a fumar escondido toda vez que se sentia

nervosa, dando início à dependência que seguiria até os dias atuais.

Ela descreve seu vício como uma mistura de hábito e alívio. "Levantar de manhã, só tomar um café ou uma água e fumar, isso é um hábito. Mas também é pelo estresse da vida. É uma forma de aliviar".

Elizangela não parou depois da descoberta do câncer a não ser pelo da cirurgia. "Eu me envergonho, não fumava na frente do local onde eu fazia tratamento", ri.

Já Marcos parou assim que ouviu a recomendação do médico. "Deu vontade, mas é a sua vida ou o cigarro, eu prefiro a vida. Foi difícil, mas consegui. Tem dificuldade, mas estou vivo", comemora.

A verdade é que Marcos não poderia continuar a fumar mesmo se quisesse. Em um mês de tratamento, emagreceu 36 quilos e passou a ter dificuldade de engolir, tendo que usar sonda. Sua voz ficou rouca e seu corpo parou de produzir saliva. A brutalidade do tratamento fez com que sua garganta fosse queimada e enrijecida pela radioterapia.

Nas últimas semanas, pegou uma gripe que fragilizou sua saúde e deixou sua voz já áspera ainda mais fraca, mas ele gosta de falar, mesmo que precise se levantar para molhar boca eventualmente.

“Todos os dias eu tomo café da manhã com minha esposa, e todos os dias eu me engasgo”.

Aos 17 anos, os pais de Marcos saíram de São Paulo e ele começou a viver por conta própria.

“Meu pai falou 'você vai ter a liberdade que você sempre quis, mas tem que lembrar que o que você fizer de errado a vida vai te cobrar, e o que você fizer de certo, a vida vai te compensar'", relembra. Suas relações familiares são frágeis, o emocionam com facilidade.

Leonardo acredita que viu diante dos olhos a vida cobrá-lo.

Seu vício em cocaína aumentou com o passar do tempo e a freNarrativa | 7

quência em festas e reunião entre amigos o levaram não só a consumir como também a vender a droga. Era fácil, dava dinheiro, ele conhecia pessoas interessadas.

Demanda e oferta.

Em maio de 2016, no entanto, alguém delatou Leonardo e ele foi pego pela polícia. Respondeu por tráfico de drogas e após o julgamento, foi condenado. Teve que abandonar a faculdade no segundo ano, além de lidar com um término de relacionamento conturbado e o começo de depressão. "Sempre fui bem ansioso, mas o início da depressão foi dentro da prisão.

Aquele lugar não tem nada de bom. Você não tem expectativa de nada, só espera o tempo 8 | Narrativa

passar. Consegui tirar força de onde não tinha, sabe? Eu ainda usava droga quando surgiu a depressão, mas eu consegui parar lá dentro mesmo".

Se lembra com amargura da época em que passou encarcerado. Relembra como a religião o ajudou e como a família o apoiou com visitas semanais mesmo estando em um município diferente do que residiam. “Não me orgulho de ter passado o que passei, mas eu acho que foi necessário pra ter todas as mudanças que eu tive”, admite.

Leonardo cumpriu pena de dois anos e três meses e voltou a estudar e trabalhar. Ainda consome álcool eventualmente, mas livrou-se do vício em coca-

ína. "Não é porque eu não uso que às vezes não sinto vontade.

A abstinência é uma das piores sensações da vida, é uma luta incessante contra suas próprias vontades e hábitos, contra suas próprias paixões". É dessa maneira que Elizangela enxerga seu vício. Anos antes do câncer, sofreu um quadro de dificuldade respiratória e foi diagnosticada com asma. Subir ruas íngremes ou mudanças de clima muito bruscas causavam crises que a impediam de ter uma vida normal. “Tive que parar de fumar. Ou eu parava ou eu não aguentaria".

Elizangela ficou sem fumar durante três anos, mas não se lembra de um dia que não tenha sentido falta do cigarro. "Abstinência é cruel. Você sente vontade, fica ansiosa. Acabei engordando porque eu substituía a vontade de fumar por doce". A asma e o uso de adesivos inibidores não enterraram sua vontade. Mesmo incentivando a pausa, quase toda a sua família e amigos faziam uso do cigarro. A convivência e estresse do dia a dia acabaram fazendo com que voltasse a fumar.

Depois de enfrentar os malefícios que o câncer causou em sua vida, Marcos reflete sobre o cigarro com um olhar mais crítico de quem teve a saúde radicalmente afetada por ele. "Não traz nenhum benefício, só que você vê médicos fumando, já vi até padre fumando! É um vício difícil de largar".

Assim como Marcos, Leonardo acredita que a base para largar o cigarro ou qualquer outra droga seja a necessidade unida à força de vontade. “Se algo marcante não acontece na sua vida que te incita a parar, é difícil tomar essa decisão por livre e espontânea vontade".

Para ele, foi a cadeia. Para Marcos, o câncer. Elizangela continua a procurar sua razão.

Limites da liberdade Bruna Albuquerque Mariana Colofatti tem 30 anos, aparenta 23.

Desprovida de tamanho, tem grandes bolas de gude no lugar dos olhos. Ri nervosa ao contar como abandonou a psicologia hospitalar, após 7 anos de carreira, e investiu em um blog de viagem.

Conheci a Mariana primeiro pelas pessoas, por conversas aleatórias que se referiam a ela, simpática, bonita, gosta de se arrumar. Em 2017 fui morar em uma pensão em Gold Coast, uma praia na Austrália, depois de pular de casa em casa durante meses, não me importei em dividir o quarto com uma desconhecida.

Em poucos dias percebi que ela não sabia a diferença de lazer e trabalho. Ela emendava trabalhos atrás de trabalhos, ilegais por sinal. Guardava o dinheiro dentro de um livro de autoajuda, O Poder Pessoal, o mesmo voltou para o Brasil sem nunca ter sido lido de fato.

Nas noites de calor intenso, eu acordava com o barulho das cortinas batendo na janela de metal enferrujada. Ela sempre estava acordada, independente de que horas eram ou de quantas horas tinham trabalhado no dia, lá estava ela com o celular na mão. As Narrativa | 9

vezes comendo, outras assistindo alguma série de comédia barata, a maioria das noites só estava pensando na vida.

Foram nessas noites que eu realmente comecei a entender e conhecer aquela menina. Com a nossa convivência, eu aprendi a ler suas expressões. Eu podia dizer o que ela estava pensando só de analisar o bater das suas mãos e o olhar que vagava pelo quarto Ela me dizia que eu era uma boa psicóloga, mas eu só estava sendo curiosa e prestando atenção na figura inquieta, e viciada em adrenalina que dividia o quarto comigo. Ela tinha que tomar uma decisão, e isso se prolongou durante dois meses.

Ela vivia inquieta. Durante anos trabalhou como psicóloga em um hospital particular em Londrina. Ela se sentia bem em ajudar os outros. Ela tem as palavras como aliadas, isso trazia conforto tanto para ela, quanto para os pacientes. Isso gerava uma certa importância pessoal, que ela buscava reconquistar.

Ela me contou diversas vezes que trabalhava demais, que cobria o horário dos outros e fazia muitas horas extras. Na Austrália ela já fazia isso, sem ser um trabalho que ela realmente gostava.

Imagino como devia ser.

Após ser mandada embora do hospital, ficou sem rumo. Foi inesperado, e um susto. Depois de tantos anos, ela percebeu como se sentia cansada e sufocada nas paredes brancas e rostos com pouca esperança. Foi assim que decidiu ir para a Austrália, e descobrir o que realmente gostava e o que queria viver nos seus próximos anos.

Porém para decidir qual rumo tomar, formam muitas noites sem dormir, e muitos ataques a geladeira.

O mesmo sentimento, outra história

Ana Karolina, 23 anos, com 10 | Narrativa

cachos que pulam e trazem leveza ao rosto sério e olhos amendoados, desistiu da publicidade, de um futuro promissor e das ideias transformadoras quando aprendeu Thetahealing, técnica de terapia holística.

Em 2018, após passar por um período de estresse, decidiu fazer um curso de alguma terapia alternativa e assim começou a procurar técnicas de relaxamento em que eu pudesse aplicar em sí mesma. Foi em uma dessa buscas que chegou ao Thetahealing, uma técnica de meditação que acessa o subconsciente, por meio da onda cerebral Theta.

Resolveu fazer o curso básico, assim nos conhecemos lá. Eu estava passando por algo parecido, e foi fácil me simpatizar pela sua história. Não viramos amigas de primeira, nem de segunda. Demorou meses até que ela realmente confiasse e se abrisse comigo.

Eu era expressiva demais para a calma e tranquilidade que ela passava e buscava naquele momento. Sentei perto dela nos dias de curso, e acabamos fazendo dupla durante as atividades. Ela era organizada e monótona. Cada frase que a instrutora falava, ela escrevia minuciosamente em um caderno. Os olhos sempre vidrados no curso, e com uma postura sempre ereta.

Com o passar do meses e encontros ligados a esse curso, fui conhecendo-a melhor. Nossos primeiros contatos eram somente sobre duvidas do curso. Com um esforço da minha parte, ela começou a se abrir comigo.

Formada em publicidade há três anos, trabalhando na área a 6.

Sem hora para sair, Karol é a pessoa mais dedicada e fiel ao trabalho que eu conheço.

Foi depois de três cursos juntas, em janeiro de 2019, quando Karol me disse se sentir desmotivada, cansada e frustrada com a vida. Falava diversas vezes que aquilo não

era vida. Aquele comportamento era bem diferente de tudo que eu já tinha visto da parte dela.

A Karol era o maior exemplo de autocontrole e responsabilidade que eu conhecia. Ela estava sempre programada com tudo na vida, trabalho, finanças, compromissos, horas de estudo. Fiquei assustada e meio incrédula em descobrir que aquilo tudo era uma faixada.

Percebendo que não estava se sentindo bem, começou a procurar grupos de apoio para descobrir o que e como mudar de vida. Se apoiando em terapias alternativas, foi para um retiro de mulheres durante uma semana, onde teve inúmeras palestras e meditações.

Novos começos

Foi durante essas experiências fora da zona de conforto de ambas, que Mariana e Ana Karolina decidiram mudar de vida. Após meses decidindo o que ia fazer com seu visto australiano e com sua vida no Brasil, Mariana decidiu investir grande parte das suas finanças em um mochilão pela Ásia. Foi assim que surgiu seu blog de viagem. Ela foi sozinha, com uma mochila de 23 quilos, despretensiosa e sem um roteiro. Foram dois meses de muitas aventuras por lugares bonitos, e muito perigosos por viajar sozinha em países pouco desenvolvido.

Karol conheceu no retiro mulheres que foram inspirações para ela, por serem bem sucedidas no emprego e na vida. Isso fez ela observar sua atual situação de forma diferente. Conseguiu tirar férias, e foi para um outro retiro espiritual. Dez dias em silencio, praticando meditações e práticas durante 16 horas por dia. Saiu de lá transformada, realmente houve mudanças bruscas em seu modo de agir, encarar as situações e de falar. Depois de muito pensar ela tomou a decisão de sair do seu emprego de anos, e investir tudo em cur-

sos holísticos. Em fevereiro de 2019, ela pediu a conta e começou a trabalhar como autônoma, terapeuta quântica.

O mercado

Mariana e Ana Karolina, são algumas das milhares de pessoas que abriram sua Micro e pequena empresa para um novo futuro.

No mês de março de 2019 foram 180 mil novos postos de trabalho no Brasil. Elas foram mais um número entre tantos que decidiram por uma vida informal e mais leve. No Brasil, 98,5% das empresas são MPE. A decisão de abandonar uma profissão já conhecida, com gra-

duação, cursos e empregos na área, para investir em algo novo foi muito desafiadora. Nenhuma delas teve o apoio dos familiares para conseguir isso. O maior medo dos parentes era faltar dinheiro para pagar as contas no final do mês.

Com planejamento antecipado, Mariana e Karol guardaram dinheiro para se manterem durante três meses. Esse foi o tempo limite para o começo de uma nova profissão, e começar a ter retorno financeiro.

Vejo a Karol muito mais sorridente e otimista com a vida. A pessoa dura e fechada, deu lugar para uma pessoa sorridente e cal-

ma. Seu consumo, que antes era desenfreado, está mais consciente.

O salário antes apertado, sobra no final do mês. Como ela me disse diversas vezes, foi a melhor coisa que ela fez da vida dela.

Já a Mariana é muito mais centrada e focada em seus objetivos. Levar a vida viajando trouxe para ela mais segurança e responsabilidade. A ansiedade está controlada, e pela primeira vez eu a vejo como uma pessoa tranquila.

A compulsão alimentar, e a falta de sono, não fazem mais parte de sua vida. A correria por trabalhos menores, e patrocínio nas viagens continua, mas dessa vez lazer e trabalho andam juntos.

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Segredos ignorados pelo espelho Bruno de Castro & Guilherme Annis Para Jeanny Lima, mulher alta e delicada de cabelos curtos, foi tudo natural, não havia porque se rotular. “A transexualidade nunca foi um problema, mas, sim, uma solução”. Até seus 23 anos, chamavam-na de Jean, mas, já no ensino médio, começou o tratamento hormonal. Depois, colocou próteses de silicone nos seios. A mudança oficial do nome foi feita pelo pai.

Agora, essa paulistana de Perdizes não tem vontade de alterar mais nada em seu corpo.

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Leona Suassuna - como o Ariano - cresceu na periferia do Pimentas, bairro mais populoso da cidade de Guarulhos. E, apesar de notar que não era igual aos outros meninos, não questionou o gênero que lhe foi dado. Nascera menino, chamado Guilherme, e tinha primos com quem deveria brincar de carrinho e luta. E isso deveria bastar.

Questionava quem era e de como deveria agir conforme amadurecia. Assim, o tempo de colégio foi

um ponto chave em sua vida. “Eu era uma ótima aluna e tive poucas amizades, porque não era compatível com ninguém”. Se expressar de qualquer forma era motivo para sofrer violência. Ser diferente é agressivo, e ela não era como as outras crianças.

Leona foi enforcada pelo sagrado. O crucifixo que usava no pescoço, que fora presente de sua mãe, prendeu sua respiração enquanto um garoto de sua classe o puxava. Dessa forma, o medo de sofrer novas retaliações fez com que encontrasse formas de se proteger de qualquer ataque. “Se o máximo era cem por cento, eu me guardava duzentos. Não me expu-

nha em nada e em nenhum assunto para ninguém”.

Enquanto que, para Jeanny, a felicidade é sacra. “Minha fé salvou minha vida. Ela me fez acreditar sempre no melhor e querer ser melhor do que fui ontem”. A fuga do rigor do mundo está no terreiro de umbanda que frequenta. Até então, não tinha o amor necessário por si. Agradecendo a deus, diz “amo quem eu me tornei, amo ser transexual”.

Ela está fora do padrão dos transexuais no Brasil: tem o apoio da família, estudou em boas escolas, tem dois diplomas universitários e está a caminho do terceiro.

Leona carrega em seus documentos seu nome de batismo, mas pretende mudá-los -o que é permitido pelo Supremo Tribunal Federal desde o ano passado, em decisão que autoriza pessoas trans a usarem seu nome social em documentos oficiais sem a comprovação de cirurgia de redesignação sexual.

As decisões dos ministros do STF, entretanto, não valem na casa onde Leona vive. A relação da travesti com sua mãe é muito aberta, mas o oposto acontece com seu pai. “Eu ter essa amizade e abertura com minha mãe não significa que ela entenda. Com meu pai, não existe nem ‘bom dia’”.

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Com o alcoolismo do pai e a falta de compreensão da mãe, seu nome sempre volta a ser Guilherme.

Apesar de ser dona de uma personalidade forte, Jeanny tem medo. Sempre é a única pessoa trans nos ambientes que frequenta. “Tenho medo de não conseguir emprego, de não ser respeitada nas ruas, de pensar que um dia eu possa ser indigente simplesmente pelo fato de ser trans”. Apenas 10% da população trans chega ao emprego formal, apontou Pesquisa da Articulação Nacional das Travestis (Antra).

Leona não tem carteira de reservista, nem título de eleitor. A burocracia e o medo do alistamento militar fizeram com que ela, aos 20 anos, desistisse dos documentos. Além disso, está desempregada. Entrega seus currículos com seu nome de registro, mas não passa das entrevistas.

Ao contrário do mercado de trabalho, Leona nunca havia desprezado o próprio corpo e não questionava a masculinidade que lhe foi atribuída. Ela se encontrou nas palavras de Linn da Quebrada - cantora de funk da periferia paulistana. “Ela tem frases como: ela tem pau de mulher. Eu pensei será que não é isso que faltava para eu compreender a mim mesma?”

Para ser essa mulher deve sair da casa dos pais, e, apesar de dizer que não tem problemas com o próprio corpo, ela deseja começar seu tratamento hormonal. “Agora não vou ser mais a Leona por que tenho pelos e barba? Eu tenho pau e posso falar que sou Leona”. Experienciar seu próprio corpo, esse é o seu gênero.

A experiência de uma travesti, porém, costuma durar apenas 35 anos. Segundo o IBGE, essa é a expectativa de vida de pessoas trans e travestis no Brasil, menos da metade da média nacional, que é de 75 anos. Leona sabe disso e diz que não tem expectativas altas, 14 | Narrativa

espera uma vida feliz e saudável.

“Não quero ser muito rica ou famosa. Só quero viver”.

Matheus Guilherme é seu amigo desde o colégio e acompanhou as mudanças da travesti de perto. Se conheceram quando Leona era Guilherme e sua gentileza era apenas timidez. Matheus é o oposto de sua amiga de diversas formas - é extrovertido, tem pele negra, se identifica com o gênero que lhe foi atribuído, tem título de eleitor e carteira assinada. “Acompanhei todos os problemas que ela teve e tento ajudar o máximo que posso, mas a família dela é muito difícil”. Leona passa boa parte do tempo na casa de seu amigo. “Aqui eu me sinto mais eu. Essa é mais minha família do que quem mora comigo, ele e a tia me ajudam muito” A tia é Cássia de Paiva, mãe de Matheus, que acolhe a travesti em sua casa com frequência. “Ela vem aqui se arrumar para as festas, sai toda pintada”. Tia Cássia é atendente de telemarketing e, ao ser questionada se a identidade de gênero de Leona não é estranha para ela, responde com calma: “Onde eu trabalho é o que mais tem, vários travestis”.

Os erros com os artigos não incomodam mais Leona. “Se eu corrigir todo mundo que erra artigo e pronome, eu vou enlouquecer”. A forma com as pessoas lidam com sua identidade de gênero construíram uma resistência da travesti contra possíveis ataques. “Quão melhor eu fico comigo mesma, piora a relação das pessoas com o meu corpo”.

Com uma experiência completamente diferente, Jeanny teve a assistência jurídica e emocional de seus pais, ambos advogados. “Meu pai foi o grande responsável pela mudança oficial do meu nome”. Seu processo de transição não afetou a relação com a família, na verdade, trou-

xe sua verdadeira identidade à tona. “A transexualidade nunca foi um problema, mas, sim, uma solução. Nunca me impediu de estudar, trabalhar e exercer minha função de cidadã”.

Contudo, o apoio da família e as condições financeiras não impediram Jeanny de ficar à mercê dos riscos de ser uma trans no Brasil. A estudante desenvolveu depressão e problemas que desencadearam em disfunções cardiovasculares e trombose. “Apesar das cicatrizes que carrego, não gosto de olhar tudo o que passei com maus olhos.

Evito remoer a situação e sempre levo tudo como aprendizado e crescimento pessoal”.

Sair de casa é uma constante luta para Leona. Há dias em que a travesti prefere passar o dia em sua cama do que assistir as pessoas apontarem os dedos, darem risada e cochicharem enquanto anda pela rua. “Se o mundo tivesse preparado para pessoas trans e travestis, eu não teria medo de sair e casa, não me sentiria desconfortável em todo espaço que estou”. Uma pesquisa da Associação Nacional de Travestis e Transexuais indica que 99% da população LGBT brasileira não se sente segura nas ruas.

Ambas protagonistas desta narrativa, apesar da contraposição, fazem parte do mesmo lado de uma moeda e encontram suas semelhanças em um fato difícil de ser encarado: moram no estado com o maior número de assassinatos transfóbicos do país, segundo o Grupo Gay da Bahia.

Sejam elas de Perdizes ou do Pimentas, que se abriguem braços dos pais ou na casa de quem as aceita, religiosas ou descrentes; as duas carregam lesões físicas e psicológicas causadas pela transforbia. Com expectativas baixas e grande resistência, elas se deparam com a mais insólita das realidades – ter sua existência contestada.

A música que promove bem-estar Isabelle Farina “Meu contato com a música hoje é intenso. Por conta do tratamento contra o linfoma de Hodgkin acabo ficando um pouco limitada.” Amanda diz. “Eu vivo de música, não só financeiramente, mas num modo geral.”

Seus olhos brilhavam, a paixão pela arte era perceptível. Seu corpo devastado pelo câncer não a impede de abrir um humilde sorriso. Amanda Sanches tem apenas 23 anos, desde pequena sempre se interessou por música “tive muita influência dos musicais que assistia na época. Logo depois minha mãe notou meu interesse por música e ganhei meu primeiro violão.”

Ao ouvir a música que há tempos escutava quando era criança, começa a chorar. Seus pelos se arrepiam ao som da canção de um solo de Renato Russo. Naquela tarde fria, Amanda se levanta do sofá e observa

sua mãe que se emociona ao ouvir as palavras de sua filha. As lágrimas escoriam sobre seu rosto destacando seus grandes olhos pretos.

Linfoma ou Doença de Hodgkin é um tipo de câncer que se origina no sistema linfático. A descoberta da doença nunca afetou o contato com a arte.

“A música me motivou 90% nas minhas recuperações, os procedimentos que passei de tratamento e até hoje me ajuda.” Amanda passou metade de sua vida sendo estimulada pela melodia. Sua suave voz se desencadeia alegremente. Ás dez horas seu celular começa a tocar. Amanda se levanta e carrega em suas mãos dois comprimidos que ingere todos os dias. Do outro lado da sala sua mãe reserva o dinheiro dos remédios que estão acabando e caminha até a farmácia.

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“Aprendi a tocar violão assistindo vídeos no Youtube. Comecei a postar covers e me encontrei. Tenho a certeza do que quero fazer para o resto da minha vida.” Ao se preparar para gravar seus vídeos, um pequeno ensaio antes de filmar a deixa mais segura. Ela nunca pensou que poderia salvar vidas compartilhando seu talento com o mundo.

Calma e com o sorriso exposto, se posiciona para passar maquiagem suas roupas charmosas são o destaque. Ao estender seu braço em direção à câmera sua empatia ressalta nas lentes.

Faz 4 anos que Amanda publica vídeos na internet. A música se tornou uma terapia para seu tratamento. “É onde eu descarrego o peso dos meus dias. Onde eu me encontro. Onde eu me curo.” A musicoterapia pode atuar como uma forma de ajudar no tratamento de doenças e como prevenção.

Do outro lado da cidade de São Paulo, o aposentado Francisco Braga se prepara para seu ensaio. O móvel simples que segura o peso de seu instrumento está corroído. “Tenho 77 anos e a música me trouxe muitos benefícios.” A cada experiência o medo some, seus cabelos pretos e brancos remetem a anos vividos. A delicadeza e o cuidado com seu teclado é visível, todos os dias ele limpa e cobre o objeto com um lençol velho. Nas quartas-feiras se prepara para tocar na igreja. Os ensaios diários são dedicados a suas apresentações, porém o prazer de tocar é maior. O fato de nunca ter estudado não o impediu de desistir de seu sonho.

“Tocar em uma orquestra sempre foi meu maior desejo.” Na adolescência já trabalhava como cabeleireiro de bairro. Diante de suas ânsias o menino jovem almejava conquistar mais. “Aprendi ler comprando jornal na banca da minha cidade.” Francisco sentiu-se esperançoso e o interesse pela música amadureceu. “Eu observa16 | Narrativa

va as pessoas tocando, ficava com muita vontade.”

Um homem temente a Deus, as partituras nunca se tornaram um obstáculo. “Aprendi as notas e as partituras sozinho, sem o auxílio de um profissional.” Sentado na cama de seu quarto sua esposa o observa.

Francisco se apaixonou por uma loira de olhos verdes, e ela, sempre o motivou a tocar. “Costumava vê-la nos bailes, dançando. Às vezes ela passava na frente do meu cabelereiro. Ficava de longe a observando.”

A moça bonita paquerou Francisco, até hoje eles se lembram das músicas que tocavam naquela noite. O refrão da melodia veio em sua mente com a voz baixa e rouca, ressoou a música “Pense em mim” de Leandro e Leonardo. “Música é o sonho de muitas pessoas. Esta arte reserva um prêmio maravilhoso, é como sentir a canção correr dentro das veias e fazer parte de nós mesmos.”

A arte possibilita o desenvolvimento da criatividade e tem sido utilizado em veículos terapêuticos.

Segundo o site Boa Saúde “A música trabalha os hemisférios cerebrais, promovendo o equilíbrio entre o pensar e o sentir, resgatando a "afinação" do indivíduo, de maneira coerente com seu diapasão interno.”

Nos trilhos do metrô, Vânia Lima se apresenta nos vagões de São Paulo há cinco anos. “Comecei a tocar no metrô para ajudar meu filho que se forma em direito ano que vem. Ele precisa de um apoio financeiro para terminar o curso.”

Eram 11 horas da manhã de uma terça-feira, Vânia e seu filho Guilherme se preparavam para sua apresentação. A escolha do vagão é determinada pelo menor fluxo de passageiros.

“Após o fechamento das portas eu e meu filho anunciamos a apresentação.” Os olhares de negação de alguns usuários o cercam. Durante o percurso de três ou quatro estações as variações de músicas recheiam o

metrô. Jota Quest foi sua escolha, a maioria dos passageiros ressoam a canção, mas deixam desejar devido aos usuários impacientes.

Ao parar na estação seguinte, dois seguranças vigiam o vagão.

Guilherme rapidamente esconde seu instrumento, com medo percebe a presença do funcionário no local e permanece em silêncio.

Quatro mulheres entram no metrô rindo alto, de repente a serenidade sobressai e todas voluntariamente cantam juntas.

“A música tem o poder de mudar tudo o que você estiver sentido. É nítida a expressão das pessoas durante a viagem. Quando se inicia uma música antiga o sorriso surge sutilmente. Alguns aplaudem outros apenas observam.”

A expressão de felicidade se instala em seu rosto, todos os dias as apresentações nos vagões se tornam um desafio. A fiscalização da segurança os obriga a se retirar do metrô “somos colocados para fora. É uma situação desconfortável.”

Ela cresceu com a arte. Seus pais e seus 11 irmãos eram músicos. “A música me ajuda até hoje.

Eu vivo minha vida toda da arte.”

Seu filho Guilherme Lima, decidiu acompanhar Vânia nas viagens de trem. Ele a escutava cantando quando era criança, isto o motivou a querer seguir os passos de sua mãe. “A música representa a arte de sorrir cada vez que o mundo diz não, ou seja, até quando tudo está dando errado a música é capaz de te fazer sorrir, mesmo quando tudo e todos te dizem não.”

Do outro lado da Radial Leste, em sua casa Eloise Oliveira, de 23 anos se conforta ao som do antigo grupo Legião Urbana. Foi através de sua mãe que o desejo pela arte se fortaleceu. O estresse e a ansiedade foram um dos fatores que contribuíram para seu desenvolvimento na música.

Sua rotina começa pontualmente ás seis da manhã. O ner-

vosismo em pegar metrô lotado desanima suas emoções. Com sua ironia afiada ela coloca seu fone de ouvido e esquece o mundo afora “a música me trás paz, quando quero esquecer de algo mergulho de cabeça nas melodias. Por muitos anos, nessas ocasiões eu sempre escrevia alguma musica.”

Ao questiona-la sobre suas composições a mulher abaixa sua cabeça. A vergonha e a timidez estiveram presentes por anos em sua vida, algumas mágoas ainda preenchem seu coração. “Minhas composições são pessoais, está ligada a minha vida.” Seus olhos se enchem de lágrimas após ler uma de suas canções.

A ansiedade a consumiu de uma forma vasta que o único jeito de desabafar era escrevendo músicas que falassem o que ela estava vivendo. “Há momentos difíceis onde a gente se depara com uma música e aquilo fala tão profundo com a gente. É como se a música contemplasse um momento, marcasse uma mudança, uma felicidade, um desabafo.”

Suas mãos soam enquanto ela se expressa, sentada no banco da estação República ela observa o caminhar das pessoas desconhecidas que vagam por lá. “Ir para minha aula de música me trás calmaria. O metrô me estressa, mas quando chega a hora de tocar eu me esqueço de tudo.”

Sua habilidade em segurar o instrumento é perceptível. Antes de tocá-lo Eloise fecha os olhos e debruça sobre o objeto, seu ritual diário para se acalmar se tornou uma referência para seu professor que com orgulho a abraça e a incentiva. Pouco depois a canção ressoa sobre as pequenas caixas de sons. A paz do ambiente toma conta de suas emoções. “Faço isso todos os dias como se fosse a primeira vez, minha paixão nunca muda.” Finaliza com os olhos cheios d’água.

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A beleza do câncer Lívia Rosa

Administradora de empresas, palestrante, escritora e idealizadora do Instituto Quimioterapia e Beleza, Flávia Flores teve medo de perder sua identidade quando foi diagnosticada com câncer de mama, aos 35 anos. “Naquele momento, o que eu mais temia não era a morte, mas como levaria a vida dali em diante.

Pensava que, se eu me olhasse no espelho e me reconhecesse como Flávia, com certeza o meu tratamento iria ser mais tranquilo”.

Também jovem, aos 27 anos, a fisioterapeuta e especialista na área cardiorrespiratória, Roberta Perez, descobriu um carcinoma medular invasivo grau III. De acordo com a ONG Instituto Oncoguia, é o tipo mais comum de câncer de mama, no qual as células tendem a crescer e se disseminar de forma cada vez mais agressiva. “Fiquei desesperada, chorei, pensei que iria morrer, questionei o por que daquilo estar acontecendo comigo e tive a sensação de que não tinha vivido nada do que eu realmente queria”.

Segundo dados da Agência Internacional para a Pesquisa do Câncer, o câncer de mama é o tipo de câncer mais comum e que mais mata mulheres em todo o mundo. E de acordo com a última pesquisa realizada pela Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (IARC) é o quinto em questão de mortalidade no mundo.

Quando Flávia descobriu o câncer, em 2012, seu principal objetivo era aparentar estar saudável e bonita. Talvez nem tanto para os outros, mas muito para si mesma. A aparência e autoestima tinha grande peso em seu bem-estar, já que sempre esteve relacionada de alguma forma com a moda e a beleza durante sua vida. No final da adolescência foi modelo fotográfica e, quando formada, trabalhou em grandes marcas do mundo da moda, como Cavalera, Forum e Ellus.

Flávia relembra como se fosse ontem: dias depois de seu diagnóstico, ao invés de paralisar diante da doença degenerativa, resolveu agir. Iniciou uma pesquisa na internet para ler experiências de outras mulheres com o câncer, já que a sua curiosidade sobre o tratamento era interminável. O que mais ela queria saber eram os artifícios usados por outras pacientes para enfrentar um período tão aflitivo.

E foi nesse momento, quando não encontrou quase nada do que procurava, que decidiu criar sua página na internet e compartilhar a sua própria jornada contra a doença, sem pretensões de atingir um grande público e muito menos de realizar grandes projetos.

Com o nome de Quimioterapia e Beleza, Flávia publica na rede há quase sete anos.

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Ao contrário da administradora de empresas, Roberta não tinha uma boa relação com a sua aparência. Sua autoestima era ferida, insegura, quase como uma inimiga. Além disso, sua relação com a própria saúde era muito distante. A última vez que tinha se consultado com um médico fazia quatro anos.

“Foi quando em maio de 2016, durante o banho, senti na mama algo 20 | Narrativa

parecido com um grãozinho de feijão. Fiquei superpreocupada”. Um mês depois, em junho de 2016, a fisioterapeuta foi diagnosticada.

Tanto para Roberta, quanto para Flávia, não perder suas identidades durante o tratamento era fundamental. O que elas mais desejavam eram se reconhecer como mulheres comuns, como elas mesmas. E com certeza esse desejo de seguir e bus-

car novos caminhos, diante de uma curva quase interminável, lhe deram forças para seguirem firme.

“Os artifícios de beleza que eu comecei a usar, como a maquiagem, perucas e lenços, ajudaram a me reconectar comigo e com as pessoas. Fez toda a diferença no meu tratamento”, Flávia relembra em tom nostálgico. Estar e se sentir bonita refletiu até mesmo em

sua imunidade. Ela sempre teve forças para fazer as quimioterapias e seu corpo nunca precisou de uma pausa por estar debilitado.

Para Roberta, que até então tinha sua autoestima frágil, a queda do cabelo e a perda dos fios dos cílios e sobrancelhas foram situações transformadoras em sua visão de si mesma. “Logo no início ainda ficava tímida e colocava o lenço pra disfarçar. Mas quando fortaleci minha autoestima me entreguei de vez à careca, passei a sentir um baita orgulho de mim mesma, da minha coragem e da minha luta. Eu não precisava me envergonhar de nada”.

O que realmente alimentou sua autoestima e confiança? A atividade física. Ao ser alertada sobre o protocolo de quimioterapia, que muitas vezes incha o organismo, a fisioterapeuta decidiu iniciar um acompanhamento com uma nutricionista. E, assim, descobriu a importância da alimentação saudável para minimizar os efeitos colaterais do tratamento.

E como um estilo de vida saudável carrega junto com a alimentação alguma atividade física, Roberta não fez diferente.

Com orgulho, relembrou do dia em que saiu para caminhar no parque com seu marido e, sem saber se seu corpo aguentaria, decidiu correr.

Foram 2km. “Toda vez que eu corria eu chorava, porque eu me sentia viva. E porque eu percebia que havia vida dentro de mim e que eu era capaz de ir além! Costumo dizer que, ironicamente, na fase que meu corpo estava mais doente foi quando eu me senti mais saudável”.

Enquanto Roberta encontrou suporte na atividade física – especialmente na corrida – Flávia foi convidada pelo presidente do Instituto ABIHPEC (Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos) para ser embaixadora do projeto De Bem Com Você, a Beleza Contra o Câncer no Brasil. E o

seu maior alicerce foi o mundo da maquiagem e beleza.

O projeto, na qual é embaixadora, é associado ao Look Good Feel Better, norte-americano e com a mesma finalidade, e oferece gratuitamente oficinas de automaquiagem para mulheres que estão em tratamento oncológico.

Bahia, Ceará, Minas Gerais, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná e Pernambuco são os estados agraciadas pelo programa. No Brasil, são 24 cidades, mais de 18 mil pacientes atendidos e 500 oficinas realizadas. “É o projeto mais lindo que eu conheço. Eles estão sediados juntamente com o Instituto Quimioterapia e Beleza e agora somos uma coisa só”, disse, com orgulho de participar do projeto.

Na sala onde são realizadas as oficinas, as cadeiras rosas em volta de duas mesas retangulares carregam muitos sentimentos como insegurança, medo, fraqueza e desmotivação. Mas ao iniciar as aulas, o ambiente se transforma e oferece uma nova atmosfera: positiva, incentivadora e de suporte.

As voluntárias, que muitas vezes são mulheres que já venceram a doença, estão ali para provar que a cura é um caminho possível e, com a maquiagem, ela pode ser muito mais agradável e confiante.

Segundo uma pesquisa realizada pelo De Bem Com Você, a Beleza Contra o Câncer, houve um aumento de 93% na confiança das mulheres depois de participarem das oficinas. Os resultados foram baseados em dados de mais de 10 mil mulheres em 11 países durante o ano passado. Além disso, 90% das entrevistadas concordaram ou concordaram totalmente com a afirmação de que sua aparência as faz sentir mais confiantes para o tratamento. No Brasil, a pesquisa obteve resultado de 96%.

As oficinas de automaquiagem não são os únicos serviços de ajuda à mulheres com câncer que Flávia

está envolvida. O banco de lenços da administradora de empresas funciona ativamente e já distribuiu cerca de 25 mil lenços à mulheres que estão passando pelo tratamento de quimioterapia e perdem o cabelo. Além da perda dos fios, um dos efeitos da quimioterapia pouco falado é a perda das unhas, que ficam quebradiças e roxas. A pele também pode ficar manchada e os dentes da boca podem cair. São muitos efeitos estéticos causados pela doença que afeta a autoestima de milhares de mulheres.

Depois de seis anos de sua sobrevida, Flávia Flores atualmente tem 41 e divide a sua vida entre o Brasil e os Estados Unidos. Na maior parte do tempo vive em San Diego, na Califórnia, e espera o seu segundo filho, Lyon, com 28 semanas de gravidez.

Sua felicidade ao compartilhar essa vitória com suas seguidoras, nas redes sociais, encoraja quem está passando pelo processo. Ela é uma espécie de luz no fim de um túnel escuro e muitas vezes vazio de suporte e incentivo.

Já Roberta, de 30 anos, se tornou professora de yoga e é voluntária do Oncoguia, associação sem fins lucrativos, criada e idealizada com o objetivo de ajudar o paciente com câncer a viver melhor por meio de projetos e ações de informação de qualidade, educação em saúde, apoio e orientação.

Depois de seu tratamento realizado com sucesso, ela revelou ter necessitado de muitas sessões de terapia. A questão da beleza e de padrões sociais tinha muito impacto em sua visão de mundo e o autoconhecimento foi fundamental para a descoberta de uma nova Roberta. “Não precisava mais ser a pessoa que eu era antes. Agora sou uma nova mulher, mais segura e mais feliz. Ressignifiquei minha dor, minha autopercepção, meu trabalho, e, principalmente, minha qualidade de vida”.

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(Des)encantos da Travessia Luana Dorigon O cheiro de bolo invade o espaço, habitual clichê de casa de vó. As luzes e paredes brancas se misturam aos fios grisalhos de cerca de quinze pessoas, entre homens e mulheres com idades próximas. A televisão está ligada, mas ninguém se importa com o fluxo de notícias dado. Reunidos em uma mesa no centro da sala, alguns brincam de dominó e vibram a cada vitó22 | Narrativa

ria. Pelas extremidades, outros descansam do almoço, entre cochilos e conversas isoladas.

Em outro canto da sala, duas Marias concentradas em desvendar as mil peças de mais um quebra-cabeça.

Nem percebem que estão sendo observadas. “Elas são assim mesmo. Se deixarmos, ficam o dia todo montando quebra-cabeças”, brinca uma das cuidadoras.

Maria Daguia e Maria Servantes se conheceram no Centro Dia do Idoso, inaugurado há três anos, num bairro de Franco da Rocha, na Grande São Paulo.

Juntas “como unha e carne”, como são conhecidas pelos demais frequentadores do espaço, passam os dias buscando manterem-se ativas. Plantam e colhem os frutos e verduras do jardim cultivado por elas. Veem na sua frente a vida e a morte e aproveitam cada minuto que têm para ser felizes.

“Pois eu já vivi tudo o que tinha que viver. Tô só esperando a hora de partir”, garante uma senhora sentada próxima a Servantes, e logo volta a se calar, refletindo no seu canto, seu mundo. Seu nome também era Maria, mas todos a conheciam como “Nina”.

Nina se negava a sonhar, dizia que não faz sentido sonhar se não há saúde para realizá-los. Seu corpo já fraco pela idade não responde mais como antes e ela sabia exatamente o que isso significava:

“já cuidei dos meus filhos. Tive netos. Agora é só eu. Não tem mais o que fazer aqui, meu tempo já deu”, voltou a dizer.

Mas ‘ser feliz’ também é o sonho de Eunice, cuja felicidade está diretamente ligada ao matrimônio. Sonha em casar e dividir os anos que sobram de sua vida.

Não exige muito, só torce para que seja um marido companheiro e longe de vícios.

Nice adora músicas e boas histórias. Apoiada em sua bengala, Narrativa | 23

companheira há cerca de 20 anos, caminha com dificuldade, causada pelas travessuras de uma vida dura.

E ainda sonha resgatar o tempo que a vida lhe roubou.

“Nasci na Bahia. Acho que em Salvador, mas minha vida foi aqui em São Paulo. Não sei ao certo que idade tenho. Meu pai tirou meu registro adiantado. Aumentou a idade porque estava de fogo, não se lembrava de nada. Nele, está marcado que vou fazer 74 anos, mas não é tudo isso”.

Não teve tempo de estudar.

Aos seis anos, já trabalhava na roça junto a seu pai e irmãos. Saía antes do raiar do dia e só voltava quando o sol se punha. Trabalhava e vivia por doze horas, segurando uma enxadinha para acompanhar os outros roceiros.

Cresceu assim: sem tempo para estudar, nem para ser criança.

Por entre roças, cafezais e olarias, fincou suas raízes nos solos paulistanos. E se encantou pelo oleiro Aparecido Moreno. Apesar do alerta dos pais: ‘Eunice, largue ele. Esse homem não presta’, casou-se e deu à luz três filhos.

Não foi um casamento feliz.

Devia ter escutado os pais. “Ele bebia muito. Todo o dinheiro que achava, inclusive do leite dos nossos filhos, gastava com álcool e mulheres”. Um dia, voltou do trabalho e ele não estava lá, nem suas roupas. “Uma vizinha depois me disse que ele havia arrumado outra”.

Seguiu sua vida. Casou-se novamente e colheu o fruto desse amor, experimentando um gole da felicidade que tanto desejava sentir. Mas também não durou. Seu marido foi vítima de um acidente de trabalho. Sozinha novamente, apesar das peças pregadas, nunca deixou de ter fé na vida. Garantiu

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os estudos de seus quatro filhos: dois meninos e duas meninas. Para eles desejava um futuro diferente do seu, mas um não teve sorte.

“Meu filho foi morto aos 21 anos de idade. Ele estava voltando do trabalho e tentaram assaltar, mas como não tinham nada pra roubar, mataram”.

Sempre independente, trabalhou muito para criar seus filhos, até que caiu. “Eu trabalhava na limpeza de uma delegacia, quando escorreguei e machuquei a coluna.

Na época, meu chefe disse que eu não devia ter dito que foi acidente de trabalho. Há vinte anos espero por ressarcimento da empresa”.

Hoje, com o auxílio de sua filha mais velha e da equipe médica do CDI, aos poucos está voltando à ativa. Religiosa, realizou o desejo de se batizar nas águas: “desceu do céu aquele raio em cima da minha cabeça. Foi lindo”. E não desistiu de viver um romance eterno. Com os filhos criados, ainda espera casar.

Diferente de Eunice, Daguia associa a sua felicidade à liberdade que sente por estar sozinha.

Filha mais velha dos dezesseis filhos que sua mãe teve, dividiu sua juventude entre cuidar de seus irmãos e bordar. Depois, passou quatro décadas de sua vida em um casamento turbulento. Agora, com quase 70 anos, tem como única preocupação os próximos encaixes do novo quebra-cabeças que está montando.

Casada por 45 anos, somente agora que está viúva se sente livre e feliz. Por vinte anos, dividiram a mesma casa, mas não a mesma vida. “Já não estávamos mais juntos, mas nunca mais me relacionei com ninguém”.

Assim como Nice, também teve que lidar com um marido

mulherengo e alcóolatra. “Ele morreu há cinco anos e eu ainda consigo sentir o cheiro de cachaça impregnado no quarto”. Nasceu bebendo. Se criou bebendo. Vivia caído pelas ruas. Nos últimos dois anos de vida, decidiu parar.

Mas a bebida não era o único problema. Com histórico de uma relação violenta, às vezes as brigas só cessavam quando os pingos de sangue caíam no chão.

Daguia diz orgulhosa de que, apesar de apanhar, também nunca deixou de bater. E mostra a cicatriz que registra a noite em que recebeu uma tijolada no rosto, causando um corte profundo em seu nariz. Foram oito pontos no nariz e algumas reticências em sua vida. “Sofri o pão que o diabo amassou com ele. Mas agora ele tá debaixo da terra. E eu estou aqui: viva”.

Foi tecendo sua vida por entre pontos e cruzes. Passou a vida fazendo crochê. Recebia encomendas da vizinhança inteira e nem mesmo a implicância de seu marido foi capaz de tirar dela o seu ofício. Isso diretamente. Há sete anos, Daguia sofreu um acidente vascular cerebral, que paralisou todo o seu braço esquerdo.

E atribui a ele a culpa pela invalidez. “Para mim, ele só deixou as sequelas de um AVC. Ruim como foi, nunca sofreu sequelas do derrame que teve. Me deixou em paz, mas inválida”.

Apesar de conseguir fazer as coisas sozinha, ainda se sente muito dependente de terceiros. Para quem sempre voou sozinha, um pouso para descanso já é prisão. “A sensação é de não conseguir fazer nada sozinha, já que nunca dependi de ninguém. É muito complicado, mas estou viva”.

A máscara da masculinidade Patricia Carvalho “Por que eu não posso chorar, se estou com vontade? Por que não posso dançar, se estou a fim? Por que não posso demonstrar emoção, se estou emocionado?”, foram esses questionamentos que fizeram com que Cristiano Jakus, no auge de sua conturbada adolescência, percebesse os padrões que determinam o que é ser homem.

A partir daí, deu largada à jornada de romper com esses paradigmas, dos quais 75% dos homens nunca ouviram falar, segundo um estudo realizado pelo Google Consumer.

Embora o dito popular transmita a ideia de que as aparências enganam, no caso de Cristiano, elas revelam.

Seu corpo majoritariamente tatuado e esguio é quase uma obra de arte onde seu universo particular é expos-

to. O Ícaro centralizado em seu peitoral e a Mariana nome de sua irmã, com quem possui uma forte conexão - ao lado esquerdo do personagem mitológico dão ritmo aos demais desenhos e frases, que sobem para seu pescoço, nuca e escorrem pelos braços e costelas.

Do lado de dentro, as finas camadas de epiderme que abrigam o jovem de 20 anos, também guardam suas dores, amores e reflexões diárias provocadas ao contemplar o céu e os prédios – sua construção preferida - do pequeno bairro na cidade do interior onde vive. Juntas, elas dão formas a poemas guardados no bloco de notas de seu celular e desenhos assimétricos no seu caderno de bolso.

Alguns quarteirões e muitas ladeiras acima, há um sobrado onde vive um rapaz seis anos mais velho, que Narrativa | 25

também compactua da ideia de depositar seus sentimentos raivosos e melancólicos em um bloco de notas, repleto de poemas. É neles que Caio Kawasaka se sente à vontade para expressar suas emoções calculadas e para colocar seus pensamentos em ordem, com um copo de cerveja em uma mão e um charuto aceso na mesa de centro amadeirada da sala de estar.

Por mais que tenha consciência sobre os padrões de gênero masculino, Caio nunca se sentiu cobrado em aspectos machistas.

“Era uma pressão controlável, pelo menos eu nunca senti como se eu fosse obrigado a seguir algo [...] acho que sempre tive um senso crítico muito bom, que não me impediram de errar inúmeras vezes, mas refletir e ter minha própria forma de pensar”. É essa linha de pensamento que faz com que Caio chore quando sente vontade, como ao assistir uma comédia romântica qualquer no Netflix. Ou deixe de chorar em situações convencionais para grande parte das pessoas, como na despedida de seu melhor amigo que estava de partida para o Japão.

Também é esse raciocínio que fez com que ele desafiasse a ideia de perseguir um diploma para ser bem-sucedido e trancasse o curso de Arquitetura no último ano.

Não se arrepende, assegura, com a expressão sempre neutra e parcialmente coberta pelos óculos e cabelos caídos ao rosto.

Já Daniel Vasconcelos, de cabelos rentes ao couro cabeludo e a 30 quilômetros de distância de Cristiano e Caio, vivencia um dos efeitos da masculinidade tóxica – a qual afirma que homens não devem chorar ou demonstrar traços de vulnerabilidade - e não possui a mesma habilidade para expressar seus sentimentos. Sua prima Ana, de quatro anos, é uma das poucas pessoas com quem Daniel possui vínculo e troca de afetos.

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Ainda assim, é difícil vê-lo sério com quem quer que seja. Às vezes tímido, outras vezes incontido, mas de lábios na maior parte do tempo curvados com os dentes retos e brilhantes a mostra.

Para o psicólogo William Pollack, porém, citado no estudo A Nova Masculinidade e os Homens Brasileiros, efeitos como o vivenciado por Daniel impedem que os homens revelem sua personalidade real. Por esse motivo e pela ansiedade que acompanha o garoto há aproximadamente três anos, decidiu se consultar com uma psicóloga.

Assim como Cristiano, Daniel decidiu romper com os padrões ainda adolescente. Vez ou outra, porém, se questiona sobre sua decisão. “Antes, se você era julgado por não seguir, agora também passa a ser julgado por se rebelar. Ainda me pego em momentos pensando ‘será que eu realmente estou errado?’, já que não é um assunto debatido.”

Masculinidade, sinônimo de virilidade?

“Eu nunca briguei na vida. Já sofri ameaças, mas era muito na minha. Achava que violência iria gerar violência, então cheguei a apanhar uma vez no colégio, mas não reagi”. Apesar de ter ouvido inúmeras vezes que homem deve brigar, Caio explica que nunca sentiu essa necessidade, nem mesmo quando vivenciou um relacionamento abusivo no qual foi agredido diversas vezes por sua namorada, na época.

A sua realidade, porém, diverge-se de grande parte dos homens brasileiros. De acordo com a Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso) e o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), os homens são os que mais cometem suicídio, os que mais morrem, mais correm riscos e, ainda, os que mais matam.

Esse último dado por pouco não se expandiu, quando Daniel presenciou a cena de sua vizinha

apanhando do marido, que tornava-se casa vez mais frequente. “Ela não podia separar pois a religião não recomendava... Foi ali que me dei conta de que o machismo existia”. O mesmo machismo que fez com que Daniel sofresse bullying nos tempos de escola, por não fazer comentário sobre as garotas e por ter um círculo de amizades predominantemente feminino.

Caio também foi testemunha de situações machistas com pessoas próximas como amigos e familiares.

“Já vi várias vezes alguns posicionamentos que não considero legal como a indução à sexualidade, instigar crianças que ainda não estão dentro desse espectro de interesses ou atitudes como olhar para mulheres e desejá-las”. Para o jovem com descendência oriental, comportamentos como esse são culturais.

Onde nasce a masculinidade tóxica?

Para Cristiano, Caio e Daniel ela nasce dentro de casa, mas desenvolve-se em ambientes externos. “Me lembro do meu avô dizendo que não era legal um homem crescidinho se emocionar com filmes de comédias românticas porque isso era coisa de menina”, desabafa Cristiano.

Mais tarde, durante uma aula de Educação Física no colégio, Cristiano ouviu de seu professor que deveria preferir futebol à moda após revelar que queria tornar-se um estilista. Apesar de sua escolha pela profissão ter mudado para audiovisual, seu gosto por moda permanece. Com peças coloridas e por vezes excêntricas adquiridas em brechós, Cristiano compõe seu estilo.

Estilo que por vezes lhe custa a paz. Já foi alvo de expressões pejorativas nas ruas e até mesmo em seu ambiente de trabalho, onde lida diretamente com o público em um setor hospitalar. Um homem impaciente por não ser atendido questionou Cristiano

lar acompanhada de uma cerveja bem gelada. Não muito diferente de Caio, que quer o dinheiro suficiente para despesas básicas, charutos, cervejas, uísque e para seu filho que está a caminho.

Nova Masculinidade

pela demora e ficou insatisfeito ao ouvir que nada poderia ser feito.

“Como contrataram alguém tão inútil para trabalhar em um hospital? E esse braço todo tatuado?

Parece uma bichinha”.

O mesmo adjetivo ouvido por Daniel corriqueiramente no colégio. Em sua casa, o choro não era livre. Nem a dança. Quando criança, ao receber recomendação médica para praticar algum exercício físico, foi impedido de se matricular no curso de balé.

Ao adquirir independência, passou a fazer a aula que tanto quis.

Mas até mesmo lá ouviu outros alunos comentando que alguns passos não eram adequados para meninos.

Sentia-se deslocado no mundo, em oposição a Caio que cresceu com

pais mais receptivos.

“Eles sempre me explicaram sobre respeito e educação. Fui criado com muita liberdade e consciência, então não me senti tão cobrado nesses pontos machistas”, esclarece. Segundo ele, esse é um dos motivos pelos quais as cobranças externas também não surtiram muito efeito. Nem mesmo as relações entre gênero e poder, que atribui ao homem a figura de sucesso.

Os três jovens, embora tenham vivenciado passados distintos, anseiam por um futuro em comum.

“Ter meu canto, onde eu possa tomar meu café quentinho, aproveitar minha própria companhia e a dos meus amigos”, aspira Cristiano. E shows, acrescenta Daniel, que adora uma boa música popu-

Cristiano define a masculinidade de acordo com suas experiências. Ser homem é banalizar tudo que é de espontâneo em um ser humano. É ser mais técnico e menos artístico. É ser padrão. É nesse contexto que surge o conceito de Nova Masculinidade, com o objetivo de abranger todas as formas de ser homem, o que inclui Cristiano com suas tatuagens, roupas estampadas e sua rotina matinal de tomar uma xícara de café enquanto se banha de sol no quintal de sua casa.

Acolhe Daniel com os sorrisos que distribui, seu gosto por dança e defesa das causas nas quais acredita. E até mesmo Caio, com seu gosto e habilidades por futebol, poemas, fabricação de cervejas artesanais na garagem de sua casa e charutos importados.

Enquanto o conceito não é popularizado no Brasil, Cristiano rompe com os paradigmas e dá vida a sua essência, o que, segundo ele, exige coragem e autoconfiança. “É você vestir uma calça que vende no departamento feminino e se sentir bem com isso”.

Caio, aplica sua racionalidade exacerbada nesse fenômeno também. Utiliza seu dote observador para suas próprias atitudes e, sempre que percebe um comportamento considerado machista, esforça-se para mudá-lo.

Já Daniel acredita que a desconstrução dos padrões acontece por meio da discussão. “Não tem onde falar sobre isso e eu tenho consciência que irá levar algum tempo para colocar o assunto em debate, mas é preciso tentar. Se a gente não falar, nada muda”.

Narrativa | 27

Icamiabas,as filhas do Rio Amazonas Raquel Pryzant

Nas docas de Itacoatiara grande parte da cidade fitava o horizonte acima do rio. Inutilmente, buscavam algum traço do menino. O pequeno navio patrulha da marinha, na vastidão do Amazonas, não era de se apostar. Seu Poró, arrependido, madrugou na tempestade com gosto de cachaça vencida no peito.

Depois choramingou aos céus por seu neto e filho, como se ainda pudesse pedir alguma coisa.

Naquela manhã quente e desesperada, assim que pai e filho foram resgatados, Poró gastou seu último desejo de forma misteriosa. “Tem o bolo de macaxeira, tem a tapioquinha, ainda tem o cafézinho, ainda tem o queijinho, ainda tem o bolo.”

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Às cinco da manhã, vendedores acordam sem cerimônia os mais de trezentos passageiros dormidos em redes de cores vivas. Anunciam em coro seus produtos matutinos percorrendo os três andares metálicos da embarcação até que o capitão dê partida nos motores. Diferente dos vendedores, nós, passageiros, não podemos descer nas docas de cada parada.

Já era dia no Golfinho do Mar II, barco regional que sai de Manaus e passa por Itacoatiara, Parintins e Óbidos até Belém. Nesta grande e caudalosa estrada, as viagens são medidas em dias, não em horas. Os passageiros, entregues ao tempo, passam as tardes deitados no azedume úmido das redes de pano. Nos corredores, o

vento é constante e o chão, sempre molhado. A cada parada, novos chinelos vão colorindo o chão de terra.

Onze da manhã é a hora do almoço e às cinco da tarde, começa a fila do jantar. Depois de dois dias, o mesmo cheiro, da mesma comida, já não abre o apetite. Aryane Santos comprou um misto quente.

Em seus vinte anos, era a primeira vez no barco. Seus olhos azuis trazem medo e saudade da filha que deixara com a irmã.

Do outro lado da mesa, Brunna Andrade tenta abrir a grande marmita de isopor enquanto arruma seus dois filhos. O pequeno Thalles Gabriel não pára um minuto e Aline Gabriele, que cabe no antebraço, é o motivo da viagem. Brunna atravessa o Amazonas para apresentar a recém nascida ao pai, limpador de terrenos em Jacareacanga.

Limpador de terrenos é eufemismo para madeireiro, que por

sua vez, é um nome forte para os filhos da floresta que nem o exército e o Ibama juntos conseguem educar. O dinheiro da madeira não é muito para quem corta, mas para muitos, a opção carrega menos sangue que o tráfico de coca. Os cabelos pretos longos e os olhos levemente puxados de Brunna são característicos do povo Munduruku. Seu sangue misturado tem herança, mas a última índia da família foi sua avó.

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Os pequenos animais fugiam do barracão onde Brunna preparava pacas à lenha para o almoço. Os indígenas fugiam da serra elétrica e os madeireiros, do helicóptero do Ibama. Mas até a caça, luta na floresta. Brunna disputou no rugido sua cria que brincava distraída com um porco do mato de dentes afiados, olhando em seus olhos dia desses, no barracão.

O sol laranja invadiu o Golfinho do Mar II e ninguém mais tomou banho. Nenhum sinal de internet ou de vida fora do barco. O bar começou a vender mais cerveja e a música ficou mais alta. Passageiros que estavam na rede apareciam pela primeira vez rumo ao convés superior. O tempo estava quente e perfeito para ver o sol se pôr.

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Quatro mulheres subiram as escadas rindo alto e absolutamente todos pararam o que faziam, que não era muito, para acompanhá-las. A mais alta, magra e musculosa, Priscilla Mollinary, anima as outras. Samba, rebola e ri quando o vento levanta seu vestido. Esconde com as mãos o volume que ainda carrega dentro da calcinha preta, última lembrança de quando chamava-se Sebastião Soares.

Priscilla é rainha bicampeã do carnaval de Parintins e durante a preparação para o título de Rainha Gay da Mocidade Independente de Aparecida, um dia sem dançar é um dia perdido. Deixara entre as redes seu bem mais precioso, uma fantasia repleta de penas e pedras,

que a levaria ao pódio, a fama e algum dia, ao exterior. “Minha vida é corrida, foi corrida para mim e assim cheguei onde eu estou” Tudo vale pelo sonho que persegue desde os 16 anos, quando começou a sambar entre gringos, na famosa Festa do Boi. Priscilla se considera uma garota de sorte, apesar de tudo, tem pais maravilhosos que a acompanham em concursos e não são como outros pais, que não aceitam filhos gays. Não deve nada a ninguém, é dona de sua vida e decidiu curtir um pouco a festa que se armava, mas não tanto, sua rede a espera para uma noite de rainha.

Cai a noite nas margens do Amazonas que passa furioso a boroeste. As luzes azuis da em-

barcação se acendem e com elas, o tecnobrega e a dança das meninas. Patriciane se destaca não só pela beleza, mas pelo olhar perdido de quem coloca a vida em balanço. Estende sem vontade seu copo plástico para meninos sem barba derramarem uísque barato. Esperam, sem sorte, um sorriso de volta.

Tudo nela é falso. Do cabelo loiro e liso à marquinha de biquini. Sua maquiagem repassada tem um cheiro forte que todos os homens de Parintins sabem o gosto.

Seu irmão, que pôde estudar, cansou dos comentários sobre a gostosa da Patriciane. A ela, só coube ser incansável.

Eram os gemidos dos homens de uma noite ou as ordens de um só, pelo resto da vida. Por isso embarcou. Deixou sua filha em Parintins para conhecer outras camas. Começando aquela noite, as doze horas, na porta da cabine do comandante. Eram dez

e ainda restavam 120 minutos para mais uma decisão. Se jogar da popa do Golfinho do Mar II e virar Amazonas ou virar mais um copo e ir trabalhar.

“Tem o bolo de macaxeira, tem a tapioquinha, ainda tem o cafézinho, ainda tem o queijinho, ainda tem o bolo.” Novos vendedores anunciam mais uma manhã desde a escada de portaló.

Santarém se aproxima lentamente e tudo que havia passado na noite anterior, foi apagado com o dia. A partir dali, o Amazonas deixaria seus fiéis passageiros no Tapajós, de águas cristalinas e praias de areia branca. A despedida foi antecipada e as redes coloridas foram desarmadas, uma a uma. Das pequenas caixinhas de som bem posicionadas, ouvimos na voz do capitão os agradecimentos pela preferência e um convite, para uma próxima viagem.

As filhas do Amazonas lutam diariamente como suas antepas-

sadas, Icamiabas, arqueiras nuas.

Quando Francisco de Orellana se atreveu desbravar a Amazônia buscando ouro, voltou para Espanha tentando esquecer o encontro com as guerreiras de uma tribo composta exclusivamente por mulheres. Coube a Frei Gaspar de Carvajal comparar tais mulheres brasileiras sem maridos, armadas até os dentes, com as Amazonas da mitologia grega, nomeando posteriormente o rio mais caudaloso do planeta.

Tais índias altas escolhiam onde e quando queriam a companhia dos Guacaris, convidando os índios para uma festa em nome de Iaci. Pagavam a boa companhia na beira do rio com um amuleto de sorte que resolveria qualquer situação, por mais desesperadora que fosse. Com o Muiraquitã em formato de sapo, feito de argila verde no peito, os Guacaris partiam contentes, com novos desejos, esperando a próxima lua.

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Para além da reclusão Renan Dantas

Vivemos em uma era que o geógrafo Milton Santos denominou de meio técnico-científico-informacional. Um mundo impossível de se desligar, onde a concentração se transformou em uma forma de resistência. Isolar-se é uma tarefa árdua, que demanda do indivíduo doses de determinação e foco.

O termo surgiu na Roma Antiga, na ilha tiberina, encravada no sinuoso Rio Tibre. No local, havia um centro de recuperação de doentes e moribundos. Daí se originou o radical isola, que em latim e italiano quer dizer ilha. Então, quando romanos falavam que iam ser “isolados”, queriam dizer que perderam o contato com o mundo até se recuperarem. Cristãos no século IV também se isolavam como forma de evitar as “tentações” do mundo terreno e seguir os passos de Jesus.

Os mosteiros conservam ainda hoje essa atmosfera, servindo como ilhas para religioso dispostos a entregarem inteiramente as suas vidas à serviço da Igreja, longe dos vícios e distrações. Porém, não in-

teiramente. De acordo com o frei José Afonso Brito, os muros do mosteiro funcionam como uma peneira em relação a tudo aquilo que é ofertado pelo mundo.

O religioso reside no tradicional mosteiro de São Bento, no centro de São Paulo. Ali, moram cerca de 40 monges. Ao adentrar na construção inaugurada em 1912, começa uma realidade distinta. No teto, um majestoso candelabro com seis lâmpadas. Apesar disso, o ambiente é pouco iluminado. Prevalece a luz natural, causando uma sensação de retraimento. Não era mais a modernidade que estava à frente. Celulares são desligados e percorre-se corredores decorados com formas geométricas e frases em latim. Um grande portão de ferro fundido materializa a reclusão e os deveres dos monges. Em letras garrafais, lia-se: “CLAUSURA”.

Frei José possui uma fala mansa, com um tom de voz doce, que abraça os seus tímpanos. Durante a entrevista, os badalos dos sinos alemães do início do século XX do mosteiro nos transportavam para a Idade Média Narrativa | 33

enquanto os ruídos do metrô gritando abaixo dos nossos pés criava uma simbiose, misturando a antiga e a moderna São Paulo.

Na conversa, havia um ar de inquietude no frei. Não parou de balançar as canelas. Ele estava disposto a quebrar o senso comum que coloca o monge como pessoas retrógradas. “Às vezes, acham que a Igreja e os religiosos são sempre rabugentos em relação ao mundo. Tudo que é novo parece que é errado”. A começar pelo traba34 | Narrativa

lho de divulgação que realizam.

O mosteiro conta com uma página do Facebook e do Instagram e uma assessoria de comunicação.

“Quando você fala de mosteiro, as pessoas associam que o mosteiro é uma prisão de condenados. Na realidade, não é essa a ideia. Primeiro que estou aqui por livre e espontânea vontade. Eu escolhi essa forma de vida”.

O modo alternativo vivenciados pelos monges beneditinos requer disciplina. No século V, nos

primórdios da era cristã, São Bento de Núrsia fundou a sua ordem, composta por 73 regras. Os princípios contemplam todos os aspectos da vida religiosos, que vão das orações diárias até a higiene pessoal. Os métodos beneditinos foram tão eficazes que se espalharam por toda a Europa e serviu de base para outras ordens de religiosos. No Brasil, aportaram pela primeira em 1581, na Bahia.

Como o mundo moderno afetou a estrutura milenar dos bene-

ditinos? Frei José ressalta que viver em mosteiro não significa, necessariamente, estar total e completamente fora do alcance do mundo.

“Ao falar em um isolamento de um monge hoje em dia as pessoas tem uma ideia muito medieval. Parece que a gente sempre anda com teia de aranha. O isolamento significa assim: eu vivo no mundo, mas não com o mundo. Não acompanho o mundo como ele quer que seja. Eu tenho, como posso dizer, uma vida alternativa”, pontua.

Ali perto, outro tradicional ponto de fé no centro de São Paulo: o mosteiro de São Francisco. Os franciscanos são conhecidos pela sua hospitalidade. O lema da ordem é: humildade, simplicidade e justiça. Com esse espírito, em meio a uma Igreja afetada pelo materialismo, São Francisco de Assis fundou a sua ordem em 1209.

Na entrada da igreja construída no século XVII, que remonta ao passado colonial da cidade, estava o Frade Marcos Melo, vendendo

os famosos pães de São Francisco. O religioso, de estatura média , está na vida religiosa há 33 anos.

Antes, cursou filosofia da Universidade de São Paulo. Questionado se havia muitas entre um ambiente e outro, respondeu: “Claro! Era uma universidade composta por uma maioria de jovens, bem diferente de um convento. Digamos que o cheiro do incenso era outro (risos)”, brinca.

Para o frade Melo, participar da vida religiosa é algo muito Narrativa | 35

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mais profundo. “A espiritualidade é modo de ser, um modo de existir dentro da sociedade. Espiritualidade não se resume a rezar, a trabalhar. A espiritualidade mexe com você, com o seu modo de ser”.

Diferente dos beneditinos, os franciscanos são mais ativos em relação à comunidade. Prestam atendimento aos necessitados e aos enfermos. Entre os serviços sociais, destaca-se o “Chá do Padre”, que dá assistência aos moradores em situação de rua do Centro. “Não somos enclausurados, fechados. Nós temos mais liberdade”. Mesmo assim, eles mantêm uma vida de intenso trabalho e disciplina. No subsolo do mosteiro, fica a fabricação dos pães. Receitas centenárias são minuciosamente preparadas diariamente para atender a alta demanda por pães. Ao todo, vivem no mosteiro 14 monges. “As regras e a disciplina nos ajudam a permanecer unidos”.

O frei capuchinho Claudemir Vialli também destaca a importância da fé e da espiritualidade para auxiliar e dar forças ao seu trabalho como religioso.

E acrescenta: ”em nossa sociedade, enquanto a maioria das pessoas vivem na dispersão voltadas para fora, pontuando sua existência em múltiplas atividades, travando incansavelmente uma luta contra o vazio e a falta de sentido, a espiritualidade faz o caminho inverso, indo ao encontro de uma vida interior para dar significado a tudo que somos e fazemos diariamente”.

Os capuchinho também seguem os ensinamentos de Francisco de Assis.

Paradoxos

Ao mesmo tempo em que as redes sociais permitiram eliminar fronteiras e facilitaram a comunicação, elas, de certa forma, tornaram as relações pessoas mais pobres, mais vazias, no que pensador polonês Zygmunt Bauman denominou “sociedade líquida”.

“As pessoas não se comunicam verdadeiramente. Elas são cada vez mais falsas, mais hipócritas em seus relacionamentos. Parece que todos as pessoas se tornaram virtuais. Até aquelas que estão presentes ao seu lado. Existe uma degradação na convivência humana social”, examina frei José.

Frei Vialli destaca que mesmo com a conectividade que existe nos nosso meios sociais, as pessoas ainda vivem distantes em relação ao próximo. “Gostaria muito que mudássemos nosso estilo de vida por meio de uma consciência mais participativa no processo de evolução, por mais humanidade nas relações, na defesa da vida, na promoção da dignidade da pessoa”, destaca.

Já o frade Melo argumenta que as mudanças têm aspectos positivos, mas trazem consigo consequências negativas nas relações sociais dos indiví-

duos. “As mudanças estão cada vez mais aceleradas.

Ela tem um lado positivo: nos ajuda a entender o que está acontecendo no mundo com mais velocidade. O que antigamente você levava um tempo, hoje você sabe instantaneamente. Essa tecnologia, por outro lado, cria uma dimensão que está acentuando o individualismo”.

O religioso afirma que essa realidade é percebida no próprio ambiente religioso. “Percebo que nas missas as pessoas estão mais dispersas”, diz. O frade conta que muitas paróquias exibem faixas enormes proibindo o uso do celular. No próprio mosteiro, há preocupação para que as novas mídias não prejudiquem o convívio. “Os religiosos não se reúnem mais para falar do trabalho pastoral, por exemplo”, lamenta.

Nem tanto ao ceú, nem tanto à terra

Diante de todas as mudanças, como os monges e Igreja têm se preparado para se “encontrarem” no século XXI? Frei Vialli afirma que a internet possui a vantagem de diminuir distâncias e criar uma rede de apoio que pode ser utilizado para evangelizar novos fiéis. “Penso que, mesmo hipoteticamente, até nas comunidades mais remotas do planeta, há algum confrade com um perfil numa rede social. Por isso digo, a medida em que influenciamos as redes sociais com o nosso ideal de vida, elas também nos tocam, causando um saudável enfrentamento, para que possamos estar a par dos acontecimentos e nos adequar as possíveis mudanças”.

Frei José destaca que as mudanças fazem parte do limiar da história. É possível impedi-la. “A gente sabe, com toda a certeza, que tudo que é uma nova forma de ser na sociedade, com todas as modificações de costumes, traz consigo algumas coisas muito boas, que são avanços. Mas traz alguns prejuízos, causam danos para as próprias pessoas que vivem aquilo. É uma roda, é um motor que não vai parar”, destaca.

Trilhando o mesmo caminho, frei Vialli reafirma que as mudança estão aí. Mas destaca que o indivíduo não pode ser deixado de lado nesse processo.

“As sociedades evoluem, novas tecnologias surgem, o pensamento se desenvolve e as mudanças devem acontecer sempre, por isso, vejo positivamente, mas gostaria que houvesse uma mudança radical em nosso modo de ser”.

E assim caminha a humanidade. Cheia de perguntas e inquietações. Tentando se encontrar em um mar de possibilidades, que se elevou ainda mais com a ascensão da internet. Mesmo assim, nenhum avanço foi capaz de satisfazer o nosso ímpeto. Como resposta ao mundo, pessoas buscam no isolamento uma forma e achar a si mesma.

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Acordando no escuro: sob um novo olhar Renata Garre

Acordando na escuridão

Ao abrir os olhos, apenas escuridão. “A cirurgia foi um fracasso?”. Dor, desespero e angústia. “Isso realmente está acontecendo comigo?”. Deu-se conta que as imagens jamais teriam cor e o dia seria uma eterna noite.

Na manhã de 11 de fevereiro de 2016, Felipe Santana, então com 22 anos, integrou a estatística dos 38 | Narrativa

1,2 milhões de brasileiros cegos. Passou 3 dias apenas chorando, sem levantar da cama, sem comer.

Aos 7 anos de idade foi diagnosticado com diabetes e pelo menos uma vez por semana tinha problemas com a instabilidade de seu índice glicêmico. Na adolescência, conseguiu o primeiro emprego como auxiliar de garçom em um buffet de festas que havia no final da rua de sua casa.

O dia de receber o salário era uma alegria, pois sabia que compraria doces e refrigerantes. Felipe fez da saúde sua pior inimiga, na qual ele já havia aberto mão. O garoto não hesitava em satisfazer suas vontades. Quando notou algo errado em sua visão, procurou um médico e pra sua surpresa, ou não, já tinha perdido 80% da capacidade visual do olho esquerdo.

Sequências e baterias de exames, tentativas de estabilizar e reverter o ocorrido, até que a cirurgia se tornou inevitável. E para sua infelicidade, Felipe agora era um homem monocular. Em questão de semanas o médico chegou até ele e o informou: - Chegou a hora de operarmos seu olho direito!

Foi um momento de reflexão.

Ele tinha consciência dos riscos, mas sabia que se não passasse pelo procedimento cirúrgico perderia a visão em pouco tempo.

Era tudo ou nada.

- Parece que foi ontem. Lembro-me de instantes antes de ser operado. Olhei pra trás e vi minha mãe com os olhos cheios de lágrimas e uma expressão que falava muito sem dizer uma só palavra. Mal sabia que esse seria meu último registro.

Com a voz tremula seguida de um suspiro, Andréa, mãe de Felipe, demora alguns minutos para dar inicio a nossa entrevista. Muito emocionada, ela pede desculpas, mas falar desse assunto é sempre um desafio.

- Uma coisa que me marcou muito foi quando a enfermeira tirou o tampão e ele falou “mãe?”, eu respondia “filho, estou aqui”.

Quando ele apertou minha mão, começou a gritar de desespero: “mãe, estou cego”. E eu fiquei desnorteada, sai pelos corredores chorando, enquanto os enfermeiros tentavam me acalmar. Até que tive que ouvir do meu filho a seguinte frase:

- Mãe, se for para te ouvir chorando e sofrendo eu prefiro morrer.

Foi quando Andrea parou para pensar e chegou à conclusão: “opa, eu tenho um filho deficiente visual, mas graças a Deus está com saúde”. Ela conta que o melhor amigo de Felipe foi fundamental nesse processo de readaptação, o único capaz de fazê-lo sair do quarto e voltar a sair para os barzinhos, entre todas as outras atividades que lhe davam prazer.

- O Thiago, meu irmão de alma, me deu um choque de realidade que foi duro, mas me fez acordar de vez para o que estava acontecendo.

- Fê, desculpa. Suspirou ele.

Mas você pediu por tudo isso, né? Sempre falamos para você se cuidar, cuidar da diabetes e o que você fez? Onde isso te levou? A responsabilidade é exclusivamente sua. Agora levanta dessa cama, vai tomar um banho, vamos sair, vamos viver.

- Como eu senti raiva, cheguei até a falar que ele não precisava estar ali para ser meu cão-guia. Mas ele estava certo. Logo comecei a dar gargalhadas e falei: “você tem razão”. Era uma realidade dura, por vezes desejei acordar assustado no meio da noite como se realmente tivesse tido um horrível pesadelo, mas o que me restava além de aceitar?

Júlio Cesar de Oliveira, assim como Felipe, também foi uma vítima da diabetes e perdeu a visão aos 18 anos. Porém, para ele foi mais difícil se conformar com a situação. Ele diz que seu “período de luto”, durou cerca de dois anos.

- Eu não tinha conhecimento sobre o assunto. Só pensava que ia depender de todo mundo e não sabia nem por onde começar.

Tudo mudou quando conheci pessoas que eram deficientes visuais e fui buscando cada vez mais informações sobre a cegueira.

E foi na Fundação Dorina Nowill que os caminhos de Felipe e Júlio se entrelaçaram. A Associação revolucionou a inclusão social e hoje, faz desde reabilitação para poder andar com a bengala, até o atendimento de psicólogos, aulas de informática e ensinamentos do braile.

A readaptação

Felipe conta que no começo quebrou alguns copos, derrubava suco na mesa, até que teve a ideia de usar o dedo indicador como medidor para que não derrubasse mais nada.

- Os dois primeiros meses foram ‘divertidos’ e de muitos esforços para se adaptar, principalmente dentro de casa. Toda hora eu dava canelada em algum móvel.

Contudo, sabia que era questão de treino e persistência.

Felipe começou a redescobrir a vida. Hoje reconhece quando os carros param apenas pelo barulho do atrito do pneu com o asfalto.

- Depois de me adaptar comecei a procurar emprego, além de ferramentas para inclusão social.

Foi ai que um balde de água fria caiu em mim. O nosso mundo realmente foi feito para pessoas que enxergam. Levou um tempo para eu associar os sons. Como uma criança que acabou de dar os primeiros passos. Quando ganhei a primeira bengala ficava treinando na calçada de minha residência.

Era curioso descobrir o mundo por meio de uma bengala, saber distinguir se era degrau ou parede, poste ou a perna de alguém. (ele dá gargalhadas e brinca com a própria situação).

Já para Júlio, o processo de readaptação foi mais complexo. Mas ele sempre compartilhou da ideia de que o verdadeiro cego é aquele que não quer ver.

- Não precisa enxergar com os olhos, mas basta sentir com o coração.

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De acordo com ele e Felipe, a vantagem de perder a visão está ligada ao fato de que, no mundo dos cegos, não há espaço para preconceitos.

- Agora com 29 anos, é um privilégio ter autonomia total, posso dizer que a vida de um deficiente visual é simples, faço quase tudo que fazia antigamente. Vou para balada, me divirto e namoro. Tornei-me uma pessoa muito melhor. Vaidade era uma coisa essencial, não só em mim, como nos outros. Um dia a beleza acaba e o que resta é o caráter. Sendo cego tenho a capacidade de sentir o que a pessoa é por dentro e enxergo isso como um ponto positivo.

Inclusão social As mãos se tornaram o instrumento principal de trabalho tanto de Júlio, como de Felipe. Juntos eles iniciaram um projeto chamado Blind Beez Abelhas Cegas, que é composto apenas por massoterapeutas com deficiência visual. Até o momento são 10 integrantes.

Eles atendem empresas, eventos, back stage e a domicílio. Inclusive, já participaram de diversos shows de famosos que apoiam a causa.

Cláudia Leite, Falamansa, Gabriel Pensador, Thiaguinho, entre outras celebridades.

Essa foi a maneira que os dois encontraram para promover a inclusão social e mostrar que ser deficiente visual é apenas um detalhe. No caminho, descobriram que além da inclusão social ser necessária, lutar por seus direitos nem sempre é uma tarefa fácil, principalmente porque existem cegos que possuem preconceito contra a própria deficiência. Além de incluir, o objetivo da Blind Beez é ensinar a essas pessoas que o fato de não enxergar não significa que se tornaram incapazes. E fazer com que elas voltem a ver sentido em desfrutar os prazeres da vida e passem a enxergar os desafios sob um novo olhar.

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SE O AMANHÃ NÃO CHEGAR Taisa Donato Caídos no chão do banheiro haviam pílulas e um copo de Velho Barreiro. Caído na sacada havia um menino. Ele praticamente se envenenou. Álcool e remédios. Corra! Era o que o cérebro de Luca gritava.

Não há mais tempo para o futuro.

Num quarto a um mês dali, havia uma pequena bolha de desespero que não deixava o oxigênio entrar. Manoela se balançava na cama enquanto tentava fazer o ar chegar aos seus pulmões durante um ataque de pânico. Respire!

É o que seu corpo pedia. Pare! É o que cérebro gritava.

Numa distância exata de 2 meses e 31km do quarto de Manoela, Gaybol era colocado no chuveiro enquanto tentava se recuperar de uma das piores crises de ansiedade que já havia experimentado. Metade do seu corpo congelou no presente enquanto a outra metade gritava pelo o que ainda estava por vir.

Depressão. Síndrome do pânico. Ansiedade. Todas elas caracterizadas como doenças do sentir. Ou, Narrativa | 41

mais precisamente, como doenças do século. Cerca de 5,8% dos brasileiros sofre de depressão, assim como Luca. Como Manoela, 280 milhões de pessoas ao redor do mundo têm síndrome do pânico. 9,3% da população brasileira – o número mais alto do mundo – sofre de ansiedade.

Como Gaybol.

A cada 46 minutos uma pessoa se mata no Brasil. Por uma janela exata de 37 minutos, Luca não entrou nessa estatística. No dia 18 de 42 | Narrativa

outubro de 2018, sua mãe, Chiara, recebeu uma ligação.

“Mãe, eu estou morrendo”, ele dizia ao telefone. No momento a mãe não entendeu nada, até que ouviu ele começar a engasgar, “eu gritava, ‘Luca, o que está acontecendo’, mas ele não conseguia falar”. Entre sílabas desconexas ele explicou. Mãe, eu me matei.

“Eu tentei manter a calma, mas eu estava ouvindo ele morrer. Eu estava ouvindo meu filho meu filho morrer. ‘Luca, respira e inspi-

ra’, eu falava para o nada, porque ele já não estava mais ao telefone.

Ele estava morrendo engasgado.

Até que de repente, ele não estava mais”.

O telefone ficou em silêncio.

Mudo. Branco. Corra!, seu cérebro gritou, Não há tempo!, mas ela estava a 385km de distância do filho.

“Eu conseguia sentir cada uma das minhas convulsões”, conta Luca, “eu senti a morte chegando e foi horrível”, conta com uma naturalidade que me assusta.

Seu corpo parou de funcionar enquanto ainda estava no quarto.

Suas pernas não respondiam, da sua boca saía um líquido que ele não controlava e que não conseguia mexer o corpo por tempo o suficiente para cuspir. Ele sabia que, para respirar, precisaria engolir, mas a garganta também não funcionava mais. Não existia a opção deglutir.

No meio da agonia, ele se arrastou para a sacada. Queria morrer olhando para o céu.

A agonia durou exatos 37 minutos. Tempo que seu avô, Silvio, demorou para receber a ligação de Chiara, descer do ônibus e pegar um Uber para ir mais rápido. Por 9 minutos, Silvio impediu que Luca se tornasse apenas mais uma estática. Nove minutos salvou uma vida.

Assim como a água pode ter salvado a vida de Gaybol. No dia 29 de janeiro de 2019 ele se sentiu mal, “Era só um princípio de intoxicação alimentar, mas eu entrei em pânico. Paralisei”.

Existem momentos em que o corpo reflete a mente, e esse foi o de Gaybol. Ansiedade é ter um corpo presente e uma mente no futuro. Naquele dia, metade do seu corpo parou. Corra!, uma metade gritou, há muito o que fazer amanhã! Pare!, a outra gritou, por favor, não aguento mais! Então uma ficou. A outra correu. E metade do seu corpo paralisou.

“Quando comecei a passar mal, pedi para que a Sabrina, que mora comigo, já ligasse para minha mãe. Enquanto elas estavam no telefone, eu comecei a travar”.

Jogue ele debaixo do chuveiro, era o que sua mãe gritava.

Ele não conseguia se levantar.

Sabrina não tinha forças para carrega-lo. Gaybol foi arrastado até o chuveiro e despido. “Não tira a cueca!” ainda era sua principal preocupação. Naquele momento, algo tão simples quanto uma cueca, carregava a dignidade de uma vida toda.

Ficou debaixo do chuveiro por um bom tempo. Não melhorou.

Sua parte paralisada ainda se encontrava perdida em meio ao pânico do que estava por vir. A parte boa vomitava em si mesmo. Vomitava tentando expulsar o medo do futuro para encontrar o fôlego no presente.

Foi levado ao hospital e admitido com crise de ansiedade. “Um enfermeiro me abordou duas vezes para perguntar se eu tinha usado pó. Eu não tinha usado nada”.

Naquele dia Gaybol foi diagnosticado com ansiedade.

Ansiedade. Do latim anxietas.

Angústia. Sufoco. Apreensão por uma situação que ainda está por vir. Para Gaybol, um dos maiores problemas da ansiedade é não conseguir separar as coisas. Na época, namorava e trabalhava. Ia para a casa da namorada preocupado com o horário que teria que voltar ao trabalho. Ia ao trabalho pensando na hora que ia sair para ficar com ela. Em nenhum momento estava Narrativa | 43

presente. Sua mente nunca esteve presente. Sua mente sempre esteve futura. “É exatamente essa coisa de viver no amanhã. E quando o amanhã chega, você não consegue viver o amanhã porque você está vivendo o amanhã do amanhã. Então você não consegue mais estar ali naquele momento”.

Atualmente trabalha como apresentador do Pipocando Games. Um trabalho que adora, mas que vem com muitas cobranças. Principalmente por parte de si próprio. Para ele, auto cobrança foi a expressão chave para fazer com que seu corpo finalmente parasse.

Para Luca, de 18 anos, o problema era justamente não enxergar o futuro. A nostalgia do passado e a desesperança do futuro foi o que fez com que quisesse parar de viver. Assim como Gaybol, nunca foi muito de estudar. Queria viver. Andar de skate e aproveitar a vida. Não via sentido no diploma. Mas era imposto pela sociedade. A obrigação de fazer algo que não queria fez com que a felicidade escapasse das suas mãos.

Luca não via sentido no que estava fazendo. Acordar todo dia e fazer sempre a mesma coisa. Estudar para passar num vestibular no qual não acreditava apenas para provar para o mundo que era capaz. Levantar e ir para um emprego que só lhe causaria estresses. Ganhar dinheiro e nunca ter tempo de gastar.

A depressão aos poucos tomou seu cérebro.

Depressão. Do latim Deprimere. Apertar firmemente para baixo. Era isso que Luca sentia. Que a vida o apertava firmemente para baixo. Tão baixo que em certo momento pensou “Então porquê não ir logo para sete palmos abaixo da terra?” O resto da história você já conhece.

Manoela também sentiu algo escapar por entre os dedos. Sua sanidade. Diagnosticada com Síndrome do Pânico aos 23 anos, o momento foi o problema.

Ao contrário de Luca e Gaybol, Manu sempre adorou estudar. Amava o universo e ansiava por entender seu funcionamento. Para Manu, a física sempre foi a única coisa capaz de fazer com que perdesse o fôlego.

Seu ar era ciência. Até o dia que a ciência lhe tirou o ar.

Síndrome do Pânico. Do grego Panikon, medo repetitivo. Para Manoela, o medo de não ter tempo. A prisão do presente.

Manu nunca conseguiu deixar para resolver depois o que podia ser resolvido agora. “Eu não conseguia enxergar o amanhã. Não tinha perspectiva de futuro, então para mim tudo precisava ser resolvido já.

Isso me enlouqueceu”.

Em 9 de novembro de 2018, ela sentiu um formigamento nas mãos enquanto estudava. De repente tudo ficou embaçado e ela só percebeu que chorava quando sentiu as lágrimas salgando seus lábios.

Manoela passava as mãos pelos cabelos enquanto sentia seu corpo todo palpitar. Gritava aos céus, ao 44 | Narrativa

universo, a quem estivesse ouvindo “Por favor, faz parar!”, sua mente e corpo gritavam em conjunto “Corra! Seu tempo está acabando!”.

Em desespero, Manu colocava as mãos no peito enquanto tentava respirar.

No andar debaixo, sua mãe ouviu os gritos desesperados da filha e correu para ajudar. “Ela já estava ficando com os lábios roxos. Eu tentava abraça-la para que se acalmasse, mas isso só a deixava mais desesperada”. Ana Luíza sentiu o corpo da filha começar a ficar frouxo em seus braços enquanto o ar lhe escapava. O desespero de sentir sua filha se esvaindo lhe deu forças. Carregou Manoela até o banheiro e a colocou debaixo da água fria, enquanto esperava a menina voltar ao seu corpo.

“Ela não voltou totalmente. Tive que chamar uma ambulância”. Aos 23 anos, Manoela foi admitida no hospital com sintomas de infarto. Após exames não detectarem nada, passou pelo psicólogo e foi diagnosticada com Síndrome do Pânico.

“Eu me doei para minha faculdade e acredito que ela tirou mais de mim do que eu esperava”. Para ela, desespero foi a palavra chave. A vontade desesperada de fazer tudo de uma vez, fez com que enlouquecesse.

O ficar quando devia correr, lhe custou alto.

Depressão. Síndrome do Pânico. Ansiedade. Todas elas classificadas pela Organização Mundial da Saúde como as doenças do século. Ou, mais precisamente, como as doenças do passado, presente e futuro.

O ponto de vista da autora

Entrar na casa era a parte difícil. Meu irmão tinha acabado de tentar se matar e eu entrei no hospital como se nada tivesse acontecido. Mas entrar na casa foi a parte difícil. Por algum motivo, estava com medo de olhar o local onde ele havia tentado tirar a vida. Minha tia respirou fundo e entrou comigo. Fui direto para o banheiro. Lembro-me das pílulas jogadas no chão como se fosse ontem. O computador ainda estava ligado. Tudo parecia tão normal. Mas o fantasma da morte pairava ali. Eu conseguia sentir em todo meu corpo. Olhei minha tia entrar no quarto do meu irmão. Antigo quarto do falecido marido. Não entro aqui desde que seu tio morreu, declarou. Meu perto apertou enquanto eu pensava nela e meu vô revivendo a cena da morte do meu tio através do Luca. As convulsões fortíssimas. O vômito. Observá-lo entre a vida e a morte sem ter o que fazer. Em silêncio, arrumamos cama que já estava arrumada.

Pela primeira vez em 6 anos, peguei a coberta e me escondi no sofá. A casa pós suicídio foi demais para mim. Passei a noite observando a televisão ligada. Até hoje não me lembro da programação.

Olhar além das montanhas Heloísa Campos

Sonhos, insônia, dor de cabeça e respiração curta são constantes nas semanas de caminhada. São necessários meses de preparo físico e até 60 mil dólares no bolso - há diversos pedágios de 10 mil dólares cada - para enfrentar aos mais de 8000 metros de altitude do Everest. Durante o trajeto, como prêmio pelo esforço, alguns goles de água e um pacote de bolacha, ou salgadinhos.

“Estávamos a 4.910m, era café da manhã”, lembra o jornalista Felipe Arruda Mortara, que estava lá a

trabalho para o jornal O Estado de S. Paulo. Chegando aos 7500, começariam a usar as garrafas de oxigênio. O objetivo era caminhar até o Acampamento Base do Monte Everest, a 5.400m, dormir lá duas noites e voltar em segurança.

“Eu mandei emails. De repente a internet caiu e um minuto depois pelo rádio chegou a notícia do acidente. Foi o desprendimento de um grande bloco de gelo”. Às 6:45 da manhã (Hora do Nepal), a neve tornou-se vermelha. Uma queda de um bloco de gelo Narrativa | 45

causou a avalanche em The Khumbu Glacier, localizado na região de Khumbu, no norte do Nepal. Mais de 10 pessoas foram mortas, todas Sherpas - termo usado para pessoas que praticam montanhismo e trabalham no Nepal auxiliando as expedições.

“Havíamos dormido duas noites maravilhosas lá, com alguns estrondos de blocos de gelo pequenos caindo. Tudo normal segundo eles.

Era como uma geladeira. Lembro de marcar oito,” detalha Felipe.

O dia, de azul tornou-se sombrio. O jornalista diz que a expedição durou em torno de 21 dias, ele que sonhava em ver o Himalaia e o Everest, nunca imaginou que um dia estaria lá para escrever sobre o roteiro até o Acampamento Base do Monte Everest.

A região onde ocorreu o acidente - Khumbu Glacier - é o primeiro obstáculo que os viajantes passam para chegar até o topo - é considerado o lugar mais perigoso - Qualquer um que queira escalar o Everest pela face sul deve passar por lá - exclamou o Lucas Sato na roda de conversa. Alpinista desde 2006 estava em Lobuche (4.900 m de altitude), no dia do acidente.

Lucas Sato demorou horas até dar alguma notícia para sua família que estava no Brasil. Ele começou a praticar o esporte há mais de 10 anos. Para completar as horas de experiência exigidas, começou a praticar escalada em ginásios, para depois começar a se familiarizar com as rochas.

Após fazer diversos cursos, como de primeiro socorros em áreas remotas, tipos de escaladas, entre elas a de gelo, ele se capacitou para atuar como guia e instrutor. Ele que aprendia com os 46 | Narrativa

outros, tornou-se o professor.

Abriu sua própria empresa, a Sato Montanhismo, em 2017. Mesmo tendo passado ‘’por um dos piores momentos de sua vida’’ ele nunca abandonará as montanhas.

Enquanto a ligação de Lucas não chegava no Brasil, o que restava é esperar. Durante horas sua mãe ficou plantada na frente do telefone, e de todo tipo de noticiário possível. Suas mãos tremiam, sua pele morena, tornou-se pálida, o mundo pareceu desmoronar.

Essa foi a descrição de Walquiria Sato, mãe de Lucas, ao saber da notícia no Brasil.

O desespero da mãe - 1 hora da manhã (do dia seguinte) seu telefone tocou - era o filho que se comunicava através do telefone satelital das montanhas gigantescas.

Ele renasceu, ele renasceu - gritou ela, que estava ardente por notícias.

A ajuda demorou, a comunicação pouco eficaz, os respiros foram diminuindo, até que de branco, vermelho, tudo se tornou nada.

"Sabíamos que havia três pessoas desaparecidas de nossa equipe, uma delas era Nakaji Sherpa, nosso líder sherpa e tio de dois sherpas mais jovens que nos acompanharam durante toda a expedição.

Uma manhã triste que marcou minha vida para sempre’’. Lucas nunca esquecerá esse dia.

Depois de chegar ao último acampamento base - antes de começar a subir o Everest - há mais quatro paradas durante a subida (para descanso e habitação).

Nada fácil para um ser humano normal. São meses de preparação para que essas pessoas consigam fazer o caminho a montanha com 8.848 metros acima do nível do

mar. As viagens acontecem entre abril e maio, únicos meses do ano possíveis para realizar essa aventura.

Entre 10,6 litros de sopa, 22,5 litros de chá e 67,5 litros de água mineral. Os suprimentos são levados pelos sherpas, pois não há meios de transporte para distribuir alimentos e remédios.

"Nós sabíamos que era uma avalanche, mas não conseguimos fugir ou fazer nada. Do nada, parecíamos estar entre as nuvens". choraminga Ang Kami Sherpa, um dos sobreviventes, ele e seus companheiros estavam amarrados a uma corda e carregando gás oxigênio para o acampamento quando ouviram um som alto.

O clima fechou. Era difícil ter que continuar a jornada, tendo que ver rastros vermelhos pelo caminho, sem poder ajudar, sem poder voltar para trás, e esperar por socorro. Uns desistem, outros seguiram a luta pelo sonho.

Foram 275 mil passos, 110,2 km percorridos, 21 barras de cereal, 26012 calorias gastas e 175ML de filtro solar. Essa foi a conta do jornalista Felipe. “81 anos é a idade do homem mais velho a escalar o Everest”, comenta.

Após chegar ao último acampamento, antes de começar a subir o Everest, chegou o momento de descanso. É nessas horas que os momentos frios, se tornam mais quentes, onde eles conversam sobre o dia, sobre os próximos passos e como será o dia em que o sonho será realizado.

O acidente foi muito chocante, devido a todas as circunstâncias envolvidas, mas este tipo de risco é inerente à atividade de alta montanha. Quem está disposto a fazer o esporte tem que aceitá-lo. “Em

praticamente todas as montanhas que eu fui, havia mortes nos próximos dias”, diz com firmeza Arthur Estivalet Svidzinski.

O homem de 32 anos, depois de já ter vistos vários acidentes na montanha, já foi para Ojos del Salado nos Andes, Elbrus na Rússia, Kilimanjaro na África e Mont Blanc nos Alpes. O montanhismo segue entre as veias dessas pessoas, que se submetem a condições anormais para realizar sonhos.

A comoção estava a flor da pele. "A irmandade cresce mais forte em momentos como esse".

Exclamou Tania Bel, 52 anos, tímida e de poucas palavras, mas feroz nas montanhas.

O caminho está longe de terminar. Até chegar ao topo, existem dois obstáculos, o Cornice Traverse e o estreito de Hillary. Primeiro se deve passar por uma parede infinita de gelo - claustrofóbica - logo após, há Hillary, a temida Hillary.

Muitos desistem no último desafio. Hillary é estreita, passagem que antes era escadaria, mas um terremoto a derrubou. Nessa hora, o ar já é rarefeito, e seus galões estão fazendo o trabalho. Por meio de cordas e grampões - ufa - o sonho chegou.

Depois de meses de caminhada, neve vermelha, amigos deixados para trás, o sonho chegou, o sonho finalmente chegou. E duram minutos.

Quando se chega ao topo, não se pode passar mais do que alguma horas lá, devido às condições climáticas, é necessário logo começar o caminho de descida, que é quase o mesmo tempo que o de subida.

Entre todos os brasileiros que já tentaram chegar rumo ao Cume do Everest (lugar mais alto), ape-

nas 23 conseguiram. O caso mais recente ocorreu em 2018, quando os brasileiros Renato Zângaro, de 60 anos e Ayesha Zângaro, de 23 pai e filha - , conseguiram chegar até o cume sãos e salvos.

Em conversa com o sherpa Wanda (amigo de Lucas), e seu inglês arrastado, ele conta que há dois sherpas que já subiram mais de 21 vezes cada um o ponto mais alto da Terra. E para quem pensa que só homens fizeram isso mais de uma vez, uma mulher já chegou a subir a montanha 8 vezes.

Wanda diz que seu sonho é bater o recorde do “Lakpa Gelu Sherpa”, que conseguiu chegar da base ao topo em 10 horas e 56 minutos.

Ele conta animado que fará uma grande festa quando isso acontecer - “Você vem?” - perguntou.

Os sherpas passam mais tempo na montanha com seus clientes do que com seus filhos, esposas e amigos. Mas eles sentem uma excitação enorme de estar aqui, para ele as expedições trazem, “dinheiro, amigo, e como se diz? momentos inesquecíveis” , completa Wanda, em meio a uma ligação via aplicativo.

Enquanto para nos campos base, ele tenta me contar um pouco de sua experiência, e o quanto as montanhas significam para ele. “Tudo” , diz. Além do sherpa agradecer de estar lá, é gratificante para ele trabalhar com o que se ama. Independente do quão difícil seja, enquanto o ar rarefeito fica para trás, outras coisas também se vão… ”Aprendemos a valorizar os pequenos prazeres da vida, como um banho, um copo de água limpo, uma cama confortável, uma boa refeição com comida fresca.

Aprendemos que não precisamos de muito para sermos felizes”, re-

trata o montanhista Alexandre Haigaz, que está a 10 anos entre uma aventura e outra.

A montanha torna-se uma escola para esses que a desejam encarar. Em condições extremas pequenos privilégios são deixados para trás, e os montanhistas se sentem pequenos diante de um mundo com grandeza tão fascinante.

Ao perguntar para os personagens sobre as dificuldades, todos dizem que os pontos positivos, superam qualquer ponto negativo. Lá é proporcionado `` o mais bonito nascer do Sol`` , completa Haigaz.

A montanha é algo que o tira da realidade, ela pode ser comparada com uma fábula, conto, grande viagem ao desconhecido. Vivendo cada instante da caminhada intensamente, aprendendo a lê-las e respeitá-las. Afinal, o que acontece no trajeto é imprevisível.

“Chego ao limite de minhas emoções e energias. Me divirto, me desafio, relaxo, conheço novas pessoas, novas culturas”. Necessidade é a palavra que quer dizer algo que não se pode evitar, essencial, indispensável, esse é o significado das montanhas para as pessoas que contaram sua história.

Estar no alto é um estilo de vida, não é apenas um status.

Conversar com essas pessoas me fez lembrar de uma frase que li em um biscoito da sorte - A perfeição é uma montanha impossível de escalar que deve ser escalada um pouco a cada dia.

Há pessoas que viajam para admirar a altura das montanhas, ver o percurso dos rios, as estrelas. É engraçado ver o quanto seres humanos se desafiam para viver momentos como esse, que o tiram da realidade e conforto do dia-dia.

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Parto humanizado na periferia Amanda Stabile A doulagem é como uma extensão do papel da terra. A doula representa a mãe da parturiente assim como a Terra é a mãe da vida. Pode simbolizar uma mãe que já se foi, uma mãe com quem se perdeu o contato, ou uma que se esconde no sertão nordestino.

Ambas nutrem, levam informação, auxiliam em todos os processos para a concepção da vida, por gerações.

Em um cenário onde a violência obstétrica atinge pelo menos 1 a cada 4 gestantes no Brasil, o parto humanizado ascende como uma forma de garantir à mulher autonomia sobre o próprio corpo. Tolhida, muitas vezes, pela falta de acesso à informação ou devido à uma 48 | Narrativa

sociedade que normatiza o sofrimento no momento do parto, com violências que vão de xingamentos a cesárias forçadas ou a proibição de acompanhantes.

As doulas são aquelas que dão assistência enquanto as parturientes dão à luz. Um trabalho ancestral, exercido nos partos domiciliares pelas mães, tias ou madrinhas, mas que não carregavam esse título. Para Daniele Sampaio, 36 anos, é questão de honra uma mulher parir sem sofrer abusos. Neta mais velha de parteira, recepciona vidas há mais de duas décadas.

Desde criança, dorme com as puérperas da família.

Acolhe mães recém-nascidas.

Mãe de dois e terra preta, apesar de enxergar beleza na doulagem, nos gestos e no nascimento, confidencia que o momento do parto não é bonito. É sofrido. O ensejo em que se exteriorizam todos os traumas e opressões experienciadas pela parturiente.

Vivências que estavam escusas debaixo de palmos e camadas de tapetes emocionais. “É como uma grande faxina”.

Além dessas questões, no momento do parto também vem à tona a relação com a saúde hereditária daquela mulher. “Se a mãe teve pressão alta, por exemplo, ela já tem um risco no histórico”, conta a pedagoga Edite Neves, de 32 anos, doula há cinco. Mãe negra, atua em periferias diversas, tanto em Guarulhos – cidade na região metropolita-

na de São Paulo – onde mora, quanto na capital paulista.

Outro ponto que conecta as histórias de Daniele e Edite são as marcas físicas e emocionais da violência que sofreram na hora do parto. Danie pariu seus dois filhos de forma natural, mas em sua primeira experiência, há mais de 15 anos, sofreu uma episiotomia sem necessidade, um corte feito na região do períneo para ampliar o canal de parto. “Sou militante exatamente por isso”. Teve um pós-parto sofrido. “Eu não atendo mulheres em pós-parto porque é um processo de cura que eu ainda estou vivendo. Me enxergar dentro do processo faz com que a coisa seja mais honesta, respeitosa, verdadeira”.

Edite teve Ravi há seis anos e após sofrer diversas violências no processo, se interessou pelo trabalho de acolher e lutar para que o máximo de mulheres à sua volta tenha respeito em seu momento de dar à luz. “Como pedagoga, tenho lugar de pensar na primeira infância e a partir disso, com tudo que eu fui lendo, eu achei que eu tinha o direito de ter um atendimento justo e honesto, pelo menos respeitoso”.

Na gestação, principalmente na periferia, enquanto homens não cumprem com êxito a obrigação da paternidade, mas sim o êxodo desse papel – considerando, ainda, que, no Brasil, quase 6 milhões de crianças não tem o nome do pai na certidão de nascimento -, quem realiza o trabalho ativo de acompanhar e confortar as parturientes no momento de sua gênese como mulher-mãe são as comadres, amigas.

Por isso, estreitar laços e tecer redes entre elas é fundamental.

Redes embalam, e dão descanso, além de amparo e assistência. Partindo dessa observação, Danie e sua amiga Anna Ottoni, também mãe, doula e periférica, criaram o

Mãe na Roda, um coletivo que ensina mulheres periféricas a cuidarem de suas mulheres no momento da gestação.

O projeto surgiu no final de 2016, a partir de uma roda de conversa em um curso de formação de doulas. O objetivo é claro: olhar com carinho e cuidado para a maternidade, em um cenário de constantes ameaças a autonomia da mulher, numa sociedade patriarcal onde o poder de escolha sobre o próprio corpo é tolhido constantemente.

A violência contra o corpo da mulher já se inicia dentro de casa, “quando o marido diz que a esposa vai ter de fazer uma cesária ou quando ela é abandonada”, explica Edite. “A gente ainda tem muito a aprender sobre os nossos direitos, sobre os nossos corpos e as nossas perspectivas. Esse é um momento nosso. É nosso corpo que vai estar naquela maca”.

Daniele enxerga o trabalho de doula como uma militância.

“Ser doula é ser militante. A gente sabe dos índices de violência obstétrica e da vulnerabilização da mulher em diversos momentos, sobretudo das mulheres negras”. E, além do trabalho que realiza com o projeto, atua há dois anos como doula voluntária na Casa ngela, casa de parto localizada na periferia da Zona Sul de São Paulo e que, por atender pelo Sistema Único de Saúde, amplia a possibilidade de um parto sem sofrimento para mulheres de baixa renda.

“Ser doula também é militância, porque é um corpo que eu posso orientar, que depende de mim dentro de uma perspectiva, mas que a decisão final é dela”, complementa Edite. A orientação a que se refere é levar informação as mulheres periféricas, para que assim, ela tenha a possibilidade de sofrer menos violência.

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Para a mulher periférica que já carrega um grande histórico de violações e vulnerabilidades, o risco de violência obstétrica é ainda maior e por meio da informação, as doulas buscam transformar esse cenário “senão, a gente vai continuar a deixar que os outros decidam pelos nossos corpos”. É preciso uma estrutura mínima, uma rede de apoio. ”Então, a doulagem pra mim entra nesse lugar político de orientação. Politicamente não me cabia outra coisa”.

A doulagem entra no caminho de tentar desmitificar que o parto precisa ser um momento de dor e opressão. “A violência contra os nossos corpos está estruturada”. Principalmente sobre os corpos negros.

“Isso mostra o quanto a gente precisa, um passo de cada vez, desfazer um nó aqui e ali para atingir lugares que estejam, o mínimo possível, bom para todas, ou pelo menos respeitoso para todas”.

Esse ano, Danie se dedicou a atender apenas adolescentes grávidas, “um jeito de impedir que essas manas apareçam na minha frente com traumas do processo. Para tentar diminuir o impacto na vida delas”. Em atendimento, conforta: “Deixa o corpo trabalhar. Não fica com medo, tá bom? Deixa doer, é só um pouquinho. Dói, mas é pro bebê passar. Respira, relaxa”. E reafirma a autonomia da mulher sobre o próprio corpo, ao ouvi-la dizer que não vai conseguir: “consegue sim, esse é o seu corpo!”

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Nesses quase 30 meses, presenciou pelo menos cem nascimentos. O suficiente para afirmar ativamente e com paixão que a presença da doula evita que mulheres sejam mutiladas no parto. “E as mulheres que eu não acompanho no parto também não são submetidas porque a primeira coisa que eu ensino essa mulher a fazer é falar”. Espiritualizada, mas não religiosa, confessa que o momento do nascimento é o mais perto do sagrado que já chegou.

Além de empatia, outro requisito para importante para exercer a função de doula é ter curiosidade para entender o contexto de cada mulher. Em especial para com as mulheres periféricas, estigmatizadas e violentadas de diversas formas pela sociedade cotidianamente. “Só a mulher periférica que não pode carregar o filho dela, porque todo mundo fala que ele vai ficar manhoso. Enquanto isso, o filho da mulher do outro lado da ponte é carregado todo dia no maior conforto. Essa mulher que não pôde carregar o filho, vai ter que sair daqui e dar mimo lá”.

Em relação a como o parto humanizado é visto nessas regiões, a falta de informação faz com que este seja visto como uma frescura. Privilégio para poucas, já que sofrer nesse período é algo normalizado. “Por isso, a gente tem que empoderar a mulher, para ela poder sustentar o desejo dela de autonomia corporal e decidir o modo como quer parir”.