Jornal Vaia edição 28

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Entrevista com AMILCAR BETTEGA * Um autor: SIDNEI SCHNEIDER * Contos de PATRÍCIA REIS e MARCELO BENVENUTTI * Poemas de ANA MARIANO, REYNALDO BESSA, LAU SIQUEIRA, CLÁUDIO PORTELLA, RONALD AUGUSTO e ISMAR TIRELLI NETO * Traços de CACO GALHARDO


CACO GALHARDO

Ana

ilustração LÍDIA PACHECO

Chico Bacon

xiste uma cidade no interior de um antigo país, tão antigo que não se conhece mais o nome, onde as pessoas na hora da janta levantam-se e oram em nome dos mortos. Todos os dias.

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Nessa cidade vive uma mulher, de nome Ana, que se nega a rezar pelos mortos. Ana tem os olhos castanhos e o cabelo liso e escorrido. Quando sai do trabalho, e ela é cabeleireira, caminha entre as árvores do parque que existe no centro da cidade. Por cada árvore que passa recolhe uma folha. Na janta ela põe todas as folhas em um prato e as mastiga lentamente. Enquanto as pessoas de sua família rezam pelos mortos e antepassados, Ana sente o gosto amargo e verde das folhas das árvores dos parques. Antes de dormir, olha-se durante horas no espelho de seu quarto e lembra-se de como seria bom ser feliz. Seus olhos castanhos apagam a luz e Ana sonha. O sonho de Ana repete-se todos os dias. Ela, sozinha, no banco da praça. Um homem alto, de roupa preta, passa e lhe pergunta as horas. Ana diz que não tem relógio. O homem sorri, dá um beijo em seu queixo e vai embora. Ana tira os sapatos e se masturba. O sonho termina. Ela acorda cansada e vai trabalhar. Na praça, o mesmo homem do sonho lhe dá um bom dia sociável. Ana vira o rosto e segue em frente. A cidade continua sua vida entre os escombros dos mortos.

Marcelo Benvenutti

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Jornal Vaia - Edição Número 28 - novembro/2009 Editor Fernando Ramos Diagramação Marco Marques Capa Victor Hugo Cecatto Impresão Proletra -3221.5683 Redação: Rua Demétrio Ribeiro, 706/601 - 90.010-312 - Porto Alegre - RS

www.cidadepoema.com V VI V

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um livro

Divulgação/7Letras

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RICARDO SILVESTRIN, poeta, ficcionista, compositor, autor de 13 livros publicados, acaba de lançar o romance “O videogame do Rei”. Mas é sobre o seu livro anterior, “Play” (Record,2008), que ele fala aqui Quando foi que a literatura se impôs, a poesia te “pegou”, não havia escapatória, era aceitar ou aceitar? Quando li, aos quinze anos, Manuel Bandeira. Queria fazer uma banda de rock pesado. Não tocava nada nem tinha amigos que tocassem. Comecei a escrever letras para uma banda que não existia. Fui à biblioteca Josué Guimarães e li uma antologia do Bandeira. Achei que era rock and roll no papel. Vi que o texto escrito podia ser legal, criativo, surpreendente. Então, comecei a escrever. Daí em diante, até hoje, venho lendo, relendo, descobrindo vários poetas e prosadores. Ao mesmo tempo em que venho descobrindo sempre novas maneiras de criar com a palavra. Fiz Letras. Meu trabalho sempre foi de ler, escrever e refletir sobre. Adoro os bons ensaístas, teóricos com Jakobson, os estudos dos irmãos Campos, Barthes, os formalistas russos, enfim, a reflexão sobre o fazer. Essa procura e descoberta de maneiras novas de criar com as palavras fatalmente te fizeram encarar embates ou crises, lutas corporais com a linguagem. No “Play” o que detonou a produção dos contos? Tem dois motivadores no “Play”. Um é o do conto Play, que dá título ao livro. Ali, parti da idéia de apertar a tecla play e sair falando. Um texto em que coubesse tudo o que eu quisesse colocar dentro. Por isso é mais que um conto. Tem pensamentos, teses, mini-ensaios, cuspir fora coisas que precisavam ser expressas, além de uma narrativa que percorre todo o “Play”. O outro motivador, que vale para todos os outros dezesseis contos do livro, é a descoberta do prazer criativo da prosa. Sempre fui um grande leitor de prosa. Como professor de literatura ou estudante de Letras, já trabalhei com vários textos narrativos, li teoria da literatura, enfim, meu convívio com a prosa sempre foi grande. No entanto, a prosa de que gostava e que achava que, se um dia escrevesse prosa seria assim, era a de invenção, a que tem um trabalho com a palavra mais próximo da poesia: como “Macunaíma” do Mario de Andrade, “Memórias Sentimentais de João Miramar” do Oswald, Clarice Lispector, Joyce, Borges... E o Play, o conto, é mais para isso. Mas, ao ler o conto O Espelho, do Machado de Assis, caiu pela primeira vez a ficha da prosa mais realista, a que conta uma história. Vi que para o que a narrativa daquele conto remetia não estava contado. Era como uma pedra jogada n´água. O narrado abria ondas de sentido para muito além dele. Curti fazer isso. Isso que já sabia como professor de literatura e como leitor. Mas não sabia como escritor. A partir disso, comecei a escrever meus contos. É uma chave que abre várias portas - o abrir de ondas no espelho d'agua da narrativa, característica que a gente vê em todos os contos do Play. Além disso, sinto na maioria dos contos uma voz revoltada e inconformada com a condição humana – com a escassa liberdade, injustiças sociais/políticas e truculência das regras sociais. V VI

Então, isso tudo foi expresso e transformado em arte. Nesse sentido, nada nos resta além da linguagem. Ela é que nos salva. Sem ela, não atravessaríamos esse mar revolto todo. A falta, a ponte que a linguagem faz para nos levar por sobre o buraco, o vazio. Cheguei do outro lado com um livro. Tem muito do prazer da narrativa, de ler Kafka, Caio Fernando Abreu, Campos de Carvalho, Cortázar, e poder fazer algo assim, contando e vibrando com a construção da frase, da sequência de frases, do enredo, da trama. E muito de me recolocar no mundo. Esse lugar de artista, um lugar que precisei levar algum tempo para ver que é o meu. E isso, o teu lugar de artista, remete também à leitura do conto O espelho do Machado de Assis? A ficha caiu pra te fazer ver as possibilidades da narrativa e também pra provocar uma autoreflexão sobre a condição de artista? Não. A leitura do conto apenas me mostrou o prazer de criar a narrativa. Mas se olhar para a minha produção de poesia, dá pra ver que a narrativa já vinha se insinuando, sobretudo nos dois livros para crianças: “Pequenas observações sobre a vida em outros planetas” e “É tudo invenção”. E também em alguns poemas de “O menos vendido”, como O Homem das Cavernas, Faraós, Teixeira, Memórias de outras vidas e mesmo em A poesia de cada dia. Sobre ser artista é mais um processo interno. Na verdade, sempre fui artista. Não fiz outro caminho na minha vida. A diferença é assumir isso sem tentar ser outra coisa. O conto do Machado apenas despertou em mim um prazer de criar textos narrativos. Play foi o primeiro conto escrito, e depois vieram os outros? A ideia, o projeto do livro, nasceu a partir do conto Play? São dois processos criativos. Os contos, fora o Play, foram sendo descobertos e criados numa sequência mais lenta. Um primeiro conjunto. Um tempo com eles guardados. Depois, o texto Play e sua realização, também em dois ou três tempos, de retomadas. Estamos falando aqui de 2003 a 2006. Após isso, a editora quis publicar o livro e escrevi mais uma série de uns sete contos. Também o conto Preto no Preto foi um projeto iniciado para ser um texto mais longo e que foi retomado na reta final de terminar o livro, sendo integrado ao conjunto.

Há nos contos diversos conflitos provindos de situações de escolha com os quais os personagens se deparam. Eles têm que tomar partido, escolher ou recusar algo, agindo ou não eles estão envolvidos por essa situação. Sim, é uma constatação que fazes e está certa. Mas não foi um projeto. Os contos foram tratando dos seus temas cada um com seu enredo, seus conflitos, suas soluções narrativas. Preto no Preto é o que mais aprofunda essa questão das escolhas. Mas o fundamental para mim, em todos os contos, é a maneira de construir o texto. O tema é parte de jogo formal. Embora a prosa, aparentemente mais do que a poesia, trate sobre algo que parece ser possível comentar, na verdade, o conteúdo é só mais uma parte da forma. Como ele é construído é que deixa o texto mais ou menos interessante. Um bom assunto sem um bom trabalho formal não passa de um bom assunto. No livro “O menos vendido” há um capítulo (A poesia de cada dia) em que tu exercitaste a elaboração de um poema por dia, houve a rotina de fazer um poema todos os dias. Antes tu falaste em pesquisa criativa para escrever prosa. O poeta Silvestrin está pesquisando também formas de escrever poesia ou não há esse tipo de preocupação? Comigo, e acredito que deva ocorrer com todo artista, a recepção de mensagens criativas sempre se dá também num plano de pesquisa. Sempre que leio poetas de que gosto, estou observando seus procedimentos criativos. Isso se dá naturalmente. Minhas leituras de prosa formam esse caldo de pesquisa criativa para a prosa, que não tem um método, é natural. As de poesia também. Quando leio os outros, leio também a criação, não só os conteúdos. Na poesia, minha arte número um, estou ligado o tempo todo. E minha maneira de escrever poesia abrange muitos projetos/ descobertas. Em “O Menos Vendido” tem a parte de A poesia de cada dia, mas outras duas partes, Manchas e Quieto no meu canto, também há. Quem ler vai descobrir vários deles. divulgação

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Tudo isso junto se une nessa pesquisa criativa de escrever prosa. Alguns pontos: a diferença entre a linguagem da prosa e a da poesia, a frase diferente do verso, sem metáforas demais, imagens, etc, era algo que tinha ouvido acho que há uns dez anos de alguém que fazia oficina com o Assis Brasil, na PUC. Achei interessante essa abordagem, a de procurar na prosa a frase da prosa. Mas nunca tinha feito nada com isso. Quando li o Machado de Assis, esse saber do Assis Brasil ficou mais claro. Olha só, é muito legal um texto assim também. Não só a prosa de invenção é tri, mas essa também, se feita com arte narrativa em elevado grau de inteligência criativa. Outra coisa que ajudou a ter fôlego para a frase foi escrever minha coluna quinzenal na Zero Hora. Ali, tenho que escrever 30 linhas de word em corpo 10. No início, foi difícil. Chegava na metade e me perguntava "e agora?". Depois de um tempo, 30 linhas passou a ser pouco! Meus três primeiros contos têm 30 linhas de word em corpo 10! E fui desenvolvendo o discurso, o tamanho, escrever uma história maior, ver até onde eu ia. Isso nos contos-contos. Já no conto Play, o próprio projeto era ir longe mesmo, para um lugar que sabe-se lá onde ia dar, até quando conseguisse escrever e até onde o texto dissesse "bem, chegamos ao fim". É claro que também tenho um exercício da frase em ensaios literários, mas cada gênero tem seu aprendizado.

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Roga-se a quem... o areal o sol criava as ilusões próprias da reverberação, ondas de calor provocavam pequenos enganos, atiçando a imaginação de uns, confundindo outros. Adultos e crianças saíam da água molhada, pedras e restos de conchas, franzindo o sobrolho, em estado de vigia, em busca do guarda sol, da toalha, da família. No mar, exibindo efeitos de uma vaidade aquática, uma mota de água. Um pouco mais à frente uma gaivota de pedais com um escorrega incorporado. À beira mar dois homens observavam um grupo de crianças. Uma mãe construía uma pista para uma perigosa e concorrida competição de caricas, com cuidado, a mão alisando a areia, as crianças à espera com as caricas na mão. Um bebé de fralda molhava os pés e fugia, rápido, rindo alto. O cenário do verão concentrava-se naqueles metros quadrados de famílias, de sombrinhas às riscas, coloridas e em apetrechos de época, bóias, baldes, raquetes e bolas para desafiar os adultos ao fim do dia. Não havia, porém, uma algaraviada descontrolada, a praia, generosa, abrigava cada história com extensão, cada um no seu sítio. Não havia uma concentração de meter medo ou a sensação de aperto. As pessoas deitavam-se ao sol e conseguiam sentir-se sozinhas, sozinhas à espera de ficar secas e brilhantes, bronzeadas e bem dispostas. Umas liam em cadeiras coloridas, outras dormiam simplesmente. Era o fim do verão e esse fim, temido por uns, ansiado por outros, podia ser o pretexto para mais uma ida ao mar, uma bola de berlim com creme, uma salada de tomate ao fim do dia temperada com cerveja ou vinho branco. E, claro, havia sempre espaço para gelados. Gelados de chocolate, de morango, com bolacha, em cone, em misturas de sabores. O Verão permitia tudo isso e o passar das horas era quase indiferente. De repente, inesperado, um altifalante gritou para o areal

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Por momentos, a praia agitou-se, as pessoas levantaram as cabeças, verificaram a informação, repetiram-na. Uma mãe disse a quatro jovens Sigam para aquele lado, procurem o menino. Uma mulher, mergulhada no seu livro de capa amarela, tentou manter-se serena sem qualquer sucesso. Levantou-se e encarou o resto da praia. De certeza que os pais estavam desesperados, de certeza que procuravam o Carlos de cinco anos com afinco. Pensou nisto por segundos e depois começou a andar. Não tinha um destino exacto, seguiu pela parte de cima da praia. Percebeu que o marido a seguia. Não trocaram uma palavra. A mulher pensava na criança perdida, imaginava-lhe o rosto, o cabelo escuro, o sorriso traquina. Cinco anos. Um princípio de vida. O marido disse que o menino podia ter saído da praia, ter atravessado a rua. Nesse instante, a voz repetiu 04

Perdeu-se um menino de cinco anos. Chama-se Carlos, tem um fato de banho castanho com flores. Roga-se a quem o encontrar que se dirija de imediato ao banhista. A mulher estranhou serem as mesmas palavras, a mesma entoação, como se fosse um modelo qualquer escrito há muito tempo, como se não tivesse um nível de importância que levasse à emoção. Suspirou. Viu os seus filhos, seguros, a regressar de mais um banho. Mirou-os com olhos que não eram seus. Tremeu com o crescimento que a ultrapassava, com a autonomia. Ainda se recordava de os ter aos cinco anos, aos seis... por aí. Bebés pequenos de sorrisos mágicos e pés comestíveis. As saudades tomaram conta de si, sentiu as lágrimas nos olhos. Uma criança é um milagre que não sabemos apreciar quando devemos. Estamos demasiado ocupados com as coisas do diaa-dia para nos enternecermos com a fragilidade da vida que está preste a entrar no mundo para nos dizer, para nos ensinar algo mais. Os filhos da mulher correram para as toalhas, os cabelos molhados, a pele morena. Queria tanto que voltassem para trás. Queria ser ela a rir-se do bebé de fralda que molhava os pés desafiando as ondas. Ela a carregar uma mochila extra com comida passada, chupetas e fraldas, mudas de roupa e aconchegos, brinquedos em plástico, formas para desenhar estrelas na areia, baldes para construir os mais belos castelos. O marido estacou e concluiu que na praia havia muita gente, não fazia sentido procurar o Carlos que não conheciam. A mulher olhou para o mar e ele disse Não está no mar, está aí algures a ver alguma coisa, distraído com uma coisa maravilhosa.

Ela assentiu e começou o caminho de volta para debaixo da sombrinha laranja. Passou por duas senhoras de idade que conversaram em espanhol a uma velocidade tal que não permitia qualquer compreensão. Sentiu-se estrangeira. O marido instalou-se na sua cadeira de praia, livro na mão. Ela hesitou ainda, abriu a geleira, bebeu água e o filho mais novo pediu uma sandes de fiambre. Pediu como deve ser, acrescentando “se faz favor” e, no fim, agradecendo. A mulher sorriu. O mais novo é sempre o protegido. A mulher sabia disso desde sempre, era a irmã mais velha de um rapaz que, ainda hoje, todos protegiam. Sentira na pele essa diferença e não sofria com isso. Tudo o que é pequeno tem mais graça, dizia-lhe a mãe. E ela concordava e ainda hoje concorda. O Carlos, com cinco anos, será decerto mais engraçado que os seu filhos, apenas por estar ali, nos cinco anos. A pequenez e a respectiva graça não são sobre o amor. O amor dos filhos é incontornável às coisas do crescimento. Ter filhos é ter o coração fora do corpo. Ela também sabia disso. Sentou-se afastando outros sonhos e necessidades. Queria regressar ao livro e esquecer-se de tudo por momentos. Começou a ler. E, como no princípio da tarde, a voz anunciou Avisam-se os senhores banhistas que o menino já foi encontrado e está com os seus pais. A praia inteira desatou a bater palmas. A mulher sentiu as lágrimas a escorrer, escondidas nos óculos escuros. O marido não deu conta, embrulhado na leitura. A praia voltou à sua rotina. O tempo do amor não permite partilhar tudo, sobretudo a dor. A mulher também sabia isso há muito tempo.

Patrícia Reis V VI V

Perdeu-se um menino de cinco anos. Chama-se Carlos, tem um fato de banho castanho com flores. Roga-se a quem o encontrar que se dirija de imediato ao banhista.

ilustração GUILHERME MOOJEN


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m resposta a uma outra solicitação que lhe fizeram

a inércia o jornalismo cultural bodhisatwa a espera de oferendas o provincianamente tolerável o ubíquo professor extra-muros acadêmicos a retranca etc lá vem um moleque em seus tênis voadores tudo isso cabe na bitola metafórica parecem maiores do que ele do cavalo que não se move parecem novos porque não foi chicoteado ele fala com todos acena pra um, pra outro e a quem é necessário que a literatura depois olha pra baixo conferindo seus ocupe um lugar especial? brinquedos ou ela estará todos os dias sorri como se acabasse de descobrir o mundo. no jornalário todo parece aconchegante, ali, dentro daqueles e em cada página ou sapatos engraçados ela absolutamente não é necessária sua vida agora vale a pena nem pertinente lá vem um moleque descalço aponta uma arma para o moleque que acabou vá à merda essa literatura de descobrir o mundo que é servida ab este rapidamente se agacha e segura as pontas dos tênis sorvida como sobremesa em festins parece um nadador prestes a pular na piscina onde prosadores e poetas dão o ar seu rosto se contorce da graça grita alguma coisa pro moleque da arma apresentando preleções ponencias continua segurando as pontas dos tênis sem potência a propósito de seus se esquece de si mesmo respectivos gêneros leva um tiro no olho sem que para isso para este mico frátrio cai agarrado aos tênis embolsem um puto sequer o outro moleque, com pressa, desamarra os porque toparam participar e cadarços fazer a coisa - pois é - assim “no amor” parece um corvo arrancando os olhos de um cadáver vicários contistas da obesidade ata-os e joga-os sobre as costas reluzentes poetas do melos melífero desaparece como apareceu, do nada da música gaúcha angola-conguense some na grande avenida estou andando para vocês o moleque sangra na calçada manos rápidas no engendramento vai morrendo no agendamento de suas carreiras chora, se contorce, grita; e pelotas de gordura (a cada meus tênis, meus tênis pão-com-banha o que lhe é de direito) sua vida agora não parece mais valer a pena a emperrar a máquina há frio em seus pés gutemberguiana do pensamento jungidos ao orçamento do passado teuto-israelitas tedesco-açorianos nostálgicos (mesmo quando em distópicos lances dadaístas perturbam animam mimam com paradoxos poéticos os cabeças-de-bagre responsáveis pelas programações de rádios am e fm que demandam para o seu dial - sabe-se lá por quê - uns minutos fundamentais de literatura contemporânea) nostálgicos de seus opulentos antepassados pampícolas - que habitavam o pampa - mini-prosadores ambiciosos pensadores do frio deixemo-los agora bebemorarem a arre-água inchada e fedorenta desse rio (há muito emurado pela politicalha do lugar) pois já restam e espojam-se nas próprias fezes jubilosos e amortecidos no culto estético do crepúsculo porto-alegrense

Ronald Augusto

Reynaldo Bessa

autônomo não tenho os papéis. Como profissional autônomo é dever manter-me aberto e espacioso entre os quatro tubarões dessa espera. Que decidam: minha vida. Por exemplo, uma transferência (haja vista o placar em que se corre) parecia-lhes fora de questão. Ao fim e ao cabo. Oferecem-me o último turno. E aceito, não me sinto tão à mercê. Faz três madrugadas nesse escritório branco, sinto medo pela primeira vez; a estridência branca das luzes & os canos que continuam teto fora. Não tenho os belos chamamentos para fixar coisa alguma. Será com essa mesma impaciência. Tanto ódio haverá constelando em mim que me presentearei o trato com as mais velhas imagens. Aquela sombra, por exemplo, fará metástase. E será com esse mesmo inverno. Tomarei vistas ao céu quando de alguma alva burra à roda de todas as fitas em PB carceradas nas tevês da cidade. Ao fim e ao cabo. A mesma. Pretenderei a ela & quando tornar à razão de meus amigos mais modelares direi que o amor e o trabalho me renderam, que nunca jogarei bombas no Ministério da Saúde, que não vejo mais porquê em tantos die-ins. Continuarei mentindo para os médicos e adiando as segundas vias

Ismar Tirelli Neto V VI

memória íntima tua boca universo de versos que desenho sobre o nada é como um pássaro no vôo beleza distante tatuada em mim

Lau Siqueira

De um litoral a outro Abri demasiadamente forte o livro do Pessoa que caiu. E, minha baianice, fez-me pegar o que estava mais próximo às mãos. O quadrinho “Linda Adora Arte”. O desenho de Linda felando a careca de um homem, como a um falo. Levou-me a refletir sobre mim, pirocando entre as quatro paredes desse apê. Pirocando e fingindo para o espelho. Fingindo de normal, usando loção para queda de cabelos, pagando o aluguel das paredes, entrando em fila de banco, lendo o Kama Sutra. Brilhando demais para me curvar.

Cláudio Portella

Rayuela A palavra salta na calçada. Sem respeitar os rejuntes do concreto, os entremeios intocáveis dessas lajes, lança um protesto pelo que ainda não foi dito. Existirá, enfim, o paraíso? Nas solas saltitantes dos sapatos, a sombra arde, entre riscos de giz, entre inocências, rabiscos permanentes, não lavados, a sombra arde. Esquinas transbordam possibilidades. A inocência não conduz ao paraíso, há que tomá-lo de assalto, arrojando pedras, A poesia, resíduo imenso muito além do meu limite, diz que nada sei e a vida é curta. Estou comprometida com a palavra, divido o mesmo chão, a mesma estrela, sobre tardes poeirentas e cidades, quebro a vontade das pedras piso nos riscos e rasgo as regras reverentes da rayuela.

Ana Mariano

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Amilcar Bettega foto ROGÉRIO RAMOS

utor de três livros de contos - “O vôo da trapezista”, “Deixe o quarto como está” e “Os Lados do círculo” -, agraciado com os prêmios Açorianos e Portugal Telecom de Literatura, colunista do site Terra Magazine, tradutor dos contos de Guy de Maupassant, o escritor Amilcar Bettega, radicado em Paris há oito anos, esteve em Porto Alegre em agosto deste ano e concedeu a entrevista destas páginas a Leandro Dóro e Fernando Ramos.

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Além da alta qualidade estética e linguagem rigorosamente elaborada as narrativas construídas por Amilcar oferecem ao leitor, conforme bem observou o ficcionista Luiz Antonio de Assis Brasil, um “afetuoso espelho de todas as suas inquietações”. Seus contos ajudam-nos a descobrir a estranheza do mundo e do humano. A vida, diz-nos a sua ficção, é uma eterna trapezista a voar sem rede de proteção. Escapa à nossa compreensão e nos fascina, a vertigem nos humaniza. Em seus contos, o banal se revela - num relance - denso, o cotidiano familiar nos assombra. O que era segurança se esquiva. Na falsa quietude do dia-a-dia nossa voz diz, perdida, suas falas banais, sem notar, muito próxima, a voragem do abismo. Seu livro mais recente, “Os lados do círculo”, é um dos mais elaborados e vertiginosamente pungentes livros de contos dos últimos dez anos publicados no país. Bettega encara agora o desafio de escrever uma novela sob encomenda para o projeto Amores expressos, idealizado pelo produtor Rodrigo Teixeira para a editora Cia. das Letras. Quase finalizado, mas sem data prevista para lançamento, o livro deve ser publicado a partir de 2010 e já causa alguma expectativa nos leitores admiradores de sua apurada e certeira escrita.

Me considero um escritor intuitivo

Essa fase é em São Gabriel ou Porto Alegre? O que tu trazes na memória desse período? É São Gabriel. Saí de lá com 14 anos. E na memória vem muita coisa da paisagem. Até os 8 anos eu morei pra fora da cidade, porque meu pai tinha lá uma pequena propriedade e trabalhava nela. Nasci e vivi no campo essa fase. Fiz meu primeiro ano primário numa escola rural, onde havia somente uma professora, que vinha da cidade de ônibus pra dar aula para todas as crianças, era uma coisa bem pobre e rústica. Já o segundo ano eu fiz em São Gabriel, ainda morando fora, ia pra cidade (viagem de 12km) e voltava todos os dias. Em alguns contos tu colocas algumas cidades de fronteira, características da cultura da metade sul do RS. Tu tens isso ainda arraigado em ti ou é uma construção que tu fazes baseada nessa cultura?

Acho que em “O vôo da trapezista” tem muita coisa disso. Há uma parte do livro – o livro é dividido em duas partes - em que os personagens dos contos são crianças e traz essa coisa da infância. Trazendo a infância vem junto esse universo da fronteira. Claro que é uma coisa que me marcou. Sou muito sensível à paisagem, a essa geografia que há na região da nossa campanha. E o teu trajeto de escritor, desde o início, passando pela prática da escrita na oficina literária ministrada pelo Assis Brasil, a publicação do primeiro livro, (“O vôo da trapezista”), depois os outros dois (“Deixe o quarto como está” e “Os lados do círculo”), até agora? Bem, o grande ensinamento das oficinas literárias é ensinar a ler mesmo. Você fica um leitor mais atento e muito mais capacitado depois de fazer uma oficina literária. Outra coisa que funcionou pra mim: a oficina foi o lugar que pude conhecer pessoas que estavam na mesma busca, que curtiam literatura. Porque sempre fiquei muito sozinho nessa história. Na família, amigos, e depois na faculdade (fiz engenharia, que não é exatamente um ambiente literário), nunca tive alguém que dividisse comigo esse gosto pela literatura. A ponto que comecei a encarar isso como algo meio proibido, ligado à punição, uma coisa estranhíssima.

Isso tudo acabou adiando um pouco o meu encontro com a literatura. Sempre li bastante, depois das Hqs, gibis, essas coisas, sempre li ficção, Kafka, Dostoievski, Cortázar, mas nunca com a idéia de escrever. E foi bem por acaso, de repente me flagrei escrevendo uma história, sem nada planejado. Num momento de crise existencial extrema. E mais ou menos nessa época, então, eu li no jornal uma nota sobre oficina literária, coisa que eu nem sabia que existia e nem como funcionava. Fui lá ver e acabei gostando. E continuou escrevendo depois da oficina? Não. Continuei direto. Logo depois eu finalizei “O vôo da trapezista”, mandei para o IEL. O livro foi aprovado. Isso já me deu mais estímulo para continuar escrevendo. E a partir daí como seguiu a tua trajetória literária e pessoal? A partir da oficina, rapidamente eu me dei conta de que era aquilo mesmo que eu queria fazer.

Eu não tenho essa experiência do “profissional” V VI V

Como foi a tua formação, as leituras da infância e adolescência, os primeiros contatos com o universo literário? Lia muito gibi, Hqs. Uma coisa que lia muito, lembro até hoje, era o “Tex”, livrinhos de faroeste. O faroeste é uma coisa que curtia muito, foi minha primeira leitura. Outras leituras eram as revistas, já antigas, datadas dos anos 50/60, que meu pai tinha, de coleções da Manchete Esportiva – revista que corresponderia a Placar de hoje, algo desse tipo.


Tomei essa decisão, e o resto que se fodesse. Logo em seguida caí fora da engenharia. Tinha uma poupança desse trabalho com a engenharia que me sustentou por um ano. Fiquei esse tempo só lendo e escrevendo. E fiz concurso para o Banco do Brasil. Fui trabalhar no banco com aquela ideia de que teria um salário razoável, trabalharia 6h por dia, teria tempo livre pra me dedicar a escrever. Mas depois vi que não era bem assim: nem o salário era bom nem o tempo de trabalho era pouco. Não aguentei e caí fora. Comecei o mestrado com a intenção de fazer uma carreira acadêmica. Me decepcionei também. Tinha a impressão de que em vez de me aproximar eu me afastava da literatura. A parte teórica do estudo era muito chata. Eu também não tinha uma graduação em letras, era muita lacuna em alguns pontos, tinha que ir atrás de muita coisa. Terminei só porque surgiu a oportunidade de mesclar ficção com trabalho teórico, senão não acabaria. Isso foi na parte pessoal. Na parte literária, segui escrevendo sempre. Logo depois de publicar “O vôo da trapezista”, comecei a trabalhar no “Os lados do círculo”. Trabalhei uns quatro anos nele. Em 98, fui tentar viabilizar a publicação. Achei que com a boa recepção que teve o primeiro livro (aqui em Porto Alegre, pelo menos, recebeu o prêmio de literatura Açorianos, foi bem resenhado e comentado etc), não teria muita dificuldade em arranjar editora pra publicar o segundo.

E como foi essa batalha? Penei muito atrás de editora interessada em publicar o livro, enviei para todas as editoras daqui e de fora daqui. Recebia negativa atrás de negativa. E nessa foram alguns anos. Até que larguei de mão e comecei a trabalhar no outro livro, que seria o “Deixe o quarto como está”. Comecei a escrever esse livro nos Estados Unidos, numa residência de escritores da qual participei, fiquei dois meses por lá só escrevendo. Eu tinha enviado o “Os lados do círculo” para a editora Cia das Letras. Recebera uma resposta da editora, na pessoa da Heloisa Jahn, dizendo que tinha lido, e o Luiz Schwarcz também tinha lido, e que eles tinham gostado de alguns contos, e ficavam em dúvida se publicavam ou não. Mas que outras pessoas tinham lido também e que reunindo todas as opiniões acabaram concluindo que o livro estava irregular, que havia uns contos que não estavam muito bons para o conjunto, e que por isso decidiam não publicar. Mas ficaram interessados em conhecer outros trabalhos e que, se eu tivesse outro livro, eles estariam interessados em ler. Então tinha sido uma negativa mas que ao mesmo tempo deixava uma frestinha. Quando terminei o “Deixe o quarto como está” enviei logo pra eles, aliás, foi a única editora para quem remeti o livro, e eles toparam publicar imediatamente. Então, foi assim: “Os lados do círculo” foi rejeitado, mas de certa maneira foi ele que me abriu as portas na Companhia das Letras. E, para minha surpresa, “Deixe o quarto como está” foi super-bem recebido, houve excelentes resenhas de jornais e revistas do centro do país, e isso fez com que eles revissem a sua posição em relação a “Os lados do círculo”. E a editora decidiu publicar o livro que tinham rejeitado, “Os lados do círculo”. Claro que não era bem o mesmo livro, pois fiz algumas alterações. E foi ótimo porque o livro mudou nesse período, alterei algumas coisas, a forma dele ficou mais interessante. Há dois textos, por exemplo – que abrem e fecham o livro – que não existiam. E daí ficou esta coisa de que eu gostei, esses dois fragmentos, que de certa forma colocam o livro entre parênteses, e que dá uma ideia de círculo. O mais irônico disso tudo, e o que mais gostei no fim das contas, é que no ano seguinte, em 2005 portanto, esse livro rejeitado por todo mundo, inclusive pela editora que agora o publicava, ganhou o prêmio literário mais cobiçado do Brasil, o Portugal Telecom.

Não consigo ganhar minha vida com literatura V VI

Como é o teu trabalho de escrita, o esmeril no trabalho da forma? Como são produzidas as histórias na tua cabeça e depois a passagem para o papel? Começo sem saber muito bem onde vou chegar. No início é muito frequente o ponto de partida ser uma imagem, uma frase, um encontro de palavras que, de repente, estalam alguma faísca criativa. E isso serve como começo. E vou escrevendo sem saber onde vou chegar. Mas depende, cada texto é de um jeito. Por exemplo, o primeiro conto de “O vôo da trapezista” foi assim: saí pra caminhar e escrevi toda a história na minha cabeça durante a caminhada. Não exatamente a ideia para a história do conto, mas o conto mesmo, inteirinho, veio durante essa longa caminhada, mas longa mesmo, fiquei umas 6 horas andando pelas ruas de Porto Alegre. E o conto me veio inteiro, quase as mesmas frases que eu imaginei durante a caminhada estão ali escritas. Foi impressionante. Mas foi a única vez que isso aconteceu, foi super bacana. Gostaria que me acontecesse mais vezes. E as dificuldades para escrever os contos? Cada conto apresenta uma determinada situação para solucioná-la durante a escrita do conto? Existe uma grande dificuldade, um nó que se apresenta, e você tem que deixar o conto de lado, ou mesmo abandoná-lo? Como funciona isso pra ti? Sim. Há contos que são bem mais difíceis de escrever do que outros. Uns vem assim, quase de uma vez só, e outros são construídos ao longo do tempo e vão sendo reescritos. O conto O círculo vicioso, por exemplo: levei uns 4 anos trabalhando nele. Trabalhava uma versão, reescrevia, sabia que não estava satisfeito com a solução, reescrevia, avançava, voltava a ele. A reescritura é grande. Faço uma primeira versão sempre à mão. E essa é a parte mais angustiante da história, quando tu não sabe ainda se vai terminar aquele texto, ou pelo menos escrever algo parecido com a ideia imaginada. E quando finalizo essa primeira versão, que ainda está muito longe do final, dá uma certa segurança, sinto que tenho material para trabalhar, que o conto não escapa mais, e daí pra frente é trabalhar, burilar. Depois, passo para o computador e vou imprimindo, reescrevendo à mão de novo, trabalhando no papel, e assim por diante, até umas dez, quinze versões do texto. E vai lendo em voz alta essas versões? Não leio em voz alta. Lembrei de um comentário do Ferreira Gullar sobre como ele usa a técnica na hora de escrever um poema. Ele diz que a linguagem técnica era algo incorporado a ele – no sentido de estar entranhado no próprio corpo mesmo. Era como se ele fosse um jogador de futebol, com extremo domínio e habilidade, capaz de executar inúmeras jogadas em qualquer situação do jogo dependendo de como a jogada se apresentasse a ele, um drible, um chute, uma disparada, um chapéu, enfim. Como se ele fizesse com a ideia poética o que o jogador faz com a jogada certeira. É bem interessante essa analogia. Eu concordo com isso. A ideia já traz a técnica ou a solução técnica. E é uma coisa totalmente intuitiva. Às vezes a solução vem quando você está escrevendo mesmo, sem premeditação, sem que se diga “a solução para esse texto é isso”. Não, ela vem ao mesmo tempo com o texto. É coisa de intuição. E às vezes as pessoas me dizem, principalmente por este livro “Os lados do círculo”, que tem uma organicidade bem evidente, está bastante amarrado, que eu sou um escritor cerebral. Um escritor que usa muito a técnica. Mas, na verdade, não. Todas as ideias vêm pela intuição. Eu me considero um escritor intuitivo. Totalmente intuitivo. Um cara que vai escrevendo e descobrindo as coisas ali na hora.

No “Deixe o quarto como está” quase todos os contos apresentam a mesma estrutura, o clímax já aparece nas primeiras linhas dos contos, e com narrativa invertida. Isso foi planejado para esse livro, ou foram reunidos os contos que tinham essa característica formal? Trabalhei esses contos pensando sempre no livro. Sempre de olho numa unidade. E essa unidade seria temática e linguística, digamos assim. A maneira de contar, de narrar, é uniforme. Então, foram contos escritos mais ou menos na mesma época, com essa ideia do livro. E no “Os lados do círculo” foi o contrário, nesse queria explorar, em termos de linguagem, maneiras diferentes de contar as histórias. Que diferença há entre o escritor “amador” entendendo por amador o cara que somente escreve, cujo objetivo principal é o trabalho de escrita e que publica livro quando é possível publicar, e não participa do mercado editorial - e o “profissional”, esse o que escreve visando o mercado, ou seja, interessado em publicar todo e qualquer livro que escreve ou lhe for encomendado, enfim, que se insere na indústria editorial? Eu não tenho essa experiência do “profissional”, não consigo ganhar minha vida com literatura. Direito autoral não me dá quase nada. Agora, tenho a experiência em publicar no site Terra Magazine. Está rolando faz quase dois anos. É muito legal. Me colocou uma certa pressão de ter que fazer um texto a cada duas semanas. É super estimulante. Depois do prêmio (Portugal Telecom de Literatura Brasileira, em 2005) sugiram convites para escrever alguma coisa, assim por encomenda e com prazo. Às vezes, funciona, outras não. Por exemplo, a Publifolha me pediu um conto para um livro/cd com músicas da MPB. Pediram pra cada autor um conto que tivesse relação com a música escolhida. E pra mim tocou a “Construção”, música do Chico Buarque. E foi legal, consegui fazer um texto que me agradou, achei bem bacana, falando de uma coisa que nunca havia falado, que é minha experiência na engenharia. E deve ser publicado. Mas, outras vezes, não funciona. Há pouco tempo me encomendaram um texto para o centenário de morte do Machado de Assis. Era para uma antologia onde cada autor deveria reescrever um texto do Machado. Para mim tocou o conto “A cartomante”. Nunca gostei muito desse conto. Tentei, escrevi algumas coisas. Não gostei. Fiz uma coisa que o cara não topou. Eu sabia que ele não toparia. Fiz a minha versão: escrevi o conto “A cartomante sem sobrenome”. E que é exatamente o mesmo conto do Machado, mas assinado por Amilcar Bettega. Com o título modificado. No final coloquei uma biografia mais ou menos assim “Amilcar Bettega nasceu em 1964, não é unanimidade nacional, não faz parte do cânone, não é e nem vai ser considerado o melhor escritor do Brasil.” A ideia era ver como um texto como esse, se fosse descoberto hoje, e escrito por alguém que não era o Machado de Assis, seria lido. Machado tem alguns contos geniais, mas esse “A Cartomante”, não está entre os geniais. Mas, enfim, embora nos últimos tempos, com o prêmio e tal, eu tenha ganhado mais dinheiro do que antes, não dá pra dizer que ganho a minha vida com a literatura. Pretendo um dia ganhá-la com isso, mas sei que é um grande perigo essa coisa de escrever para publicar porque disso vai depender o teu sustento. Tu pode começar a escrever coisas que não são tão legais, que não tiveram o tempo necessário para o amadurecimento do texto e tal. Mas ao mesmo tempo tem muita gente que trabalhou assim e conseguiu fazer uma obra maravilhosa. Por exemplo, Dostoievski. Ele foi um cara que escrevia para comer, para jogar. O próprio Walser, escritor que é minha paixão do momento. Acho os textos dele maravilhosos (é incompreensível que não seja mais traduzido no Brasil, só há um romance dele traduzido). Esse era outro que escrevia e mandava para o jornal e tirava o sustento disso. E há vários escritores profissionais e que construíram uma obra magnífica. Acho que no fim vai depender mesmo é do talento.

V


Aprendizagem velho vivia na floresta há muitíssimo tempo. O rapaz o procurou, depois de de alguém lhe dizer que o vira e a seus desenhos. Encontrou-o refazendo um traço na parede. Muitos anos mais tarde o rapaz ainda continuaria estranhando que tenha visto primeiro o velho e só depois o desenho que tomava conta da parede inteira. Ficou impressionado com a força dos traços, o equilíbrio da figura, a beleza quase trágica do desenho, mas o que não conseguiu entender foi que aquilo pudesse ser obra de um homem e não de Deus. Disse, como se tivesse um deserto na boca: - Quero fazer igual. Eu posso aprender. - Você pode aprender - respondeu o velho, mesmo que não se tratasse de pergunta o que acabara de ouvir.Qualquer um pode aprender como se faz, mas ninguém pode dizer o que você vai chegar a fazer. - Posso começar copiando esse desenho. - Antes - disse o velho - é preciso escolher os gravetos na mata, tirar-lhes a casca, esperar que o sol os seque para depois queimá-los e ter o carvão. Depois você vai preparar a parede: misturar aos poucos a água à cal até o ponto em que ela não se deixe escorrer com facilidade nem se fixe muito à trincha. É o momento de limpar bem o reboco para aplicar-lhe as três demãos. Depois de seca, de bem seca a parede, você pode experimentar os primeiros traços, repetindo o modelo até sentir que consegue fazê-lo de olhos fechados. Aí você vai começar a enxergar o que de fato pode fazer. Vai tentar, vai procurar formar a figura que o aguarda, a forma que necessita de você. Vai colocar no traço o que não existe em traço, vai começar várias vezes e abandonar quase tantas, vai fazer e refazer até que o seu trabalho comece a lhe mostrar alguma coisa. E, principalmente, você vai duvidar de que é capaz de fazer aquilo que tem em mente. Enquanto houver essa dúvida há esperança. O rapaz olhou outra vez para o desenho na parede, sentindo-se ao mesmo tempo alegre e humilhado. A alegria talvez viesse de um prazer que ele ainda não sabia ser estético; a humilhação, certamente era pela beleza ostensiva de algo que ele percebia inalcançável, mas que ainda assim desejava. Dois impulsos quase simultâneos e com sentidos opostos o fizeram ver que estava de fato sobre a grande bifurcação de sua vida. O primeiro foi o de sair daquela casa o quanto antes e nunca mais voltar à floresta. O outro também foi o de sair, mas para iniciar imediatamente o seu aprendizado, jurando para si que aprenderia a fazer desenhos tão ou mais bonitos que o do velho. Optou pelo último, e achou que assim fazia apenas por ter sido, aquele, o último. - Vou buscar os gravetos - disse, com sincera intenção. Mas a floresta é extensa e diversa, até o tempo lá se perde. E no homem, a vida quase nunca é mais do que a pressa de viver. O rapaz, homem feito, entregou-se a sua obsessão como quem briga por uma pátria, uma honra ou uma mulher. Queria muito - e em cada gota do seu sangue pulsava a certeza de que podia - ser tão grande e tão forte na sua arte quanto aquele velho no meio da floresta. Desenhou muito, compôs inúmeras figuras, elaborou quadros, painéis grandiosos e murais eloquentes. Era um artista. Decidiu aquela visita quando algum cansaço nos ossos e um espelho antigo o fizeram ver que em sua face desciam, desde as abas do nariz, umas cavas diagonais que se juntavam às pequenas rugas no canto da boca. Viu que esta mesma boca estava flácida e ligeiramente maior. Viu pela primeira vez - e viu também que isso, o fato de não ter visto antes, era absurdo - que seu cabelo não tinha alguns mas muitos e grossos fios brancos. E viu por fim, e aí foi como se estivesse vendo outro homem, os olhos de cão doente, perdidos na prata do fundo do espelho.

ilustração LEANDRO DÓRO

O

- Veja, senhor, todos esses desenhos são valiosíssimos. Fiz um e as pessoas gostaram. Continuei fazendo e todos achavam bonito e se espantavam com o meu talento. Fiz muitos, muitos quadros. Em pouco tempo, todos queriam me ver. Por todos os lugares que andei, e eu andei por muitos lugares, vieram em multidões para apreciar e comprar os meus desenhos. Fiz muito dinheiro, senhor, e todo o mundo conhece meu nome e me admira. Dão inúmeras festas por onde eu passo, me rendem homenagens. E estão sempre querendo ver meus novos desenhos. Veja também o senhor. Disse isso e sentou-se no assoalho, com a sensação de ter vomitado um bicho. O velho observou todos os desenhos, um por um, com evidente respeito. Apanhou outra vez o carvão que depositara junto ao rodapé e continuou seu trabalho, de costas para o homem que ainda trazia na mão o saco com o punhado de gravetos. Como se adivinhasse a ansiedade do outro, o velho disse: - Agora você deve tirar-lhes a casca, esperar que o sol os seque para depois queimá-los e ter um bom carvão. É importante ter um bom carvão. Então sim vai preparar a parede e a cal. Depois de seca, de bem seca a parede, você pode experimentar os primeiros traços. É bom repetir várias vezes uma figura bem simples, até sentir que pode fazê-la de olhos fechados. Aí é que se começa a enxergar as coisas. Vai tentar, sentir, procurar, mas isto não é garantia de nada. Sobretudo é preciso sentir que falha, que a sua certeza não é nada mais do que o sinal da sua ignorância. O desenho, se vier, virá daí.

Amilcar Bettega V VI V

Não foi difícil encontrar a casa, era ainda a mesma clareira em meio à floresta. Tinha medo que o velho não o reconhecesse. Por isso juntou uns gravetos num saco e entrou. Como da outra vez, encontrou-o desenhando sobre a parede, concentrado num detalhe no canto inferior de sua figura. Ao contrário da outra, o velho voltou-se. E ele então pode ver a ríspida magreza daquele rosto, a testa ampla, uma tormentosa barba a lhe ocultar a boca, e, no fundo do rosto, como que nascendo da escuridão de duas cavernas, um violento olhar azul. Ficou, por um instante ou por dois séculos (na floresta o tempo está perdido), preso à imagem do velho, como quem vê uma coisa que não existe. Com esforço desvencilhou-se do rosto à sua frente e olhou para o desenho. Foi impossível não sentir-se acossado pela força expressiva do desenho. Admirou-o furiosamente e soube, naquele instante e com nitidez, o que eram a raiva e a inveja. A beleza ali era como algo natural, já própria do traço. Achou, mas com sincero respeito pelo velho, que aquele desenho existira desde sempre, que era impossível de ter sido composto, que esteve, desde sempre, pronto. Como que para espantar aquele pensamento, que ele supôs transparente e que por isso o encabulou, o homem apanhou os vários desenhos que trazia consigo em folhas de cartolina e telas de juta, todos com sua própria assinatura, um risco breve mas enfático no canto inferior direito dos desenhos. Enfileirouos junto às paredes da peça:


um autor

Tirésias Um homem com Visão perfeita Encontrou um Cego andrajoso, Um cego sem Nada, incapaz De ter um bem.

As ninharias de uma poética

Fabriano Rocha

rigorosa Sidnei Schneider poeta e ficcionista, autor de “Quichiligangues”, Editora Dahmer, 2008

| Início e trajetória Minha primeira língua não foi o português, mas o alemão. Cresci em Santa Maria (RS), ao lado do matriarcado de pindorama, enorme terreno de casas favelizadas. Queria ser químico, explodi a casa sem querer. Gostava de explorar cascatas e cavernas. Entrei nas artes via Grupo Porão de Teatro. Cursei Engenharia Florestal, algumas cadeiras de Artes Cênicas. Entrei na luta contra a ditadura, e por conta disso vim para Porto Alegre. Fiz longas viagens de aventura. Li Robinson Crusoé aos oito anos, muito gibi, e uma biblioteca pública infantil. A seguir, José de Alencar, Simões Lopes Neto, Edgar Allan Poe, Franz Kafka, Julio Cortázar, Manuel Scorza, James Joyce. A poesia veio com Ferreira Gullar. Escrevi o primeiro poema após assistir o anúncio da bomba N, que destruía apenas os seres humanos, não as construções. De modo artesanal, publiquei Poemas 1987-1992, bastante vanguardeiros, pelo menos de acordo com a concepção concretista de mundo. Outros três livrinhos enfeixaramse em Plano de Navegação, de 1999, com dicção mais popular. Em jornais e revistas, saíram artigos, colunas, poemas e traduções. E lancei Quichiligangues em 2008. Ainda vou anexar Traduções, de 1994, com poetas de diferentes línguas, a um projeto de Poesia Traduzida. A tradução de Versos Sencillos, de José Martí, saiu em 1997. Depois, tradução e lingüística no curso de Letras da UFRGS. Com a prosa, iniciei nos anos 90, e há contos em jornais e antologias. | Referências poéticas Cabral, Drummond, Bandeira, Gullar. Cecília e Gilka, Marcus Acciolly e Iracema Macedo, Oliveira Silveira e Nei Duclós, os novos e o cânone. Fernando Pessoa e Gonçalo Tavares, Baudelaire e Rimbaud, Maiakóvski e Khlébnikov, Po Chu-yi e Li Tai Po, Dante e Leopardi, Borges e Benedetti, Walt Whitman e William Carlos Williams, Arakida Moritake e Takashi Arima, Agostinho Neto e Manuel Guedes, Emily Dickinson, Elisabeth V VI

Bishop, Nicanor Parra e Nicolas Guillén, William Blake e T.S.Eliot, Göethe e Brecht, Homero e Kaváfis, etc. | Processo de criação Parto de alguns versos concebidos antes da escrita. Trabalho e retrabalho muito, várias horas seguidas no primeiro dia. Continuo, antes e depois da gaveta. Reviso diante de qualquer possibilidade de publicação, e até depois. O limite é quando digo, vai ficar assim porque pertence a uma época tal. Não tem milagre, é trabalho mesmo. Pode nascer do acaso, de uma motivação qualquer, ou de uma situação planejada. Mas planejada como expressão de um desejo. Gostaria de escrever um poema assim, ou sobre tal tema, ou com tal forma. Um conto ou poema que refletisse humor, ou terror e piedade como queria Aristóteles, ou instigasse a um posicionamento. Isso não fica na memória imediata, só percebo que realizei um desejo quando estou com o texto diante dos olhos, após meses. Mas poemas e contos nascem de infinitas maneiras, e ler é essencial.

Jane Tutikian, que assina as orelhas, mostra que alguns poemas fazem ponte com a cultura grega para trazer reflexões sobre nossa época. E fala do interesse pela água: o rio a ser atravessado, a tina de água quente onde se dá o amor, a enchente que traz a morte. E há algo sobre ter a visão e não ver, ou o seu simétrico, que é ser cego e ao mesmo tempo sábio. E o tema da música em instrumentos menos óbvios. Vai do amor à luta de boxe. | A seleção e a forma dos poemas Escrevo muito e apresento pouco. Então a seleção é sempre trabalhosa. Levo quase um ano para montar um livro, mesmo um como esse, de poucos poemas. Mas quem vai julgar são os leitores e a crítica do tempo. Já joguei muito napalm na palavra, seguindo a senda do poeta adraugnav, que é vanguarda de trás para frente, principalmente no livreto de 1992. Hoje estou mais amplo, posso usar a terza rima dantesca em Elegia da cantora de ópera, poema que a exigia, ou buscar a nasalização no final do verso, pouco conhecida.

| O livro e o título

Tal homem com Não conhecera De perto assim Em toda vida Um cego sem, Logo quis ter Informação. Se muito ruim Não conhecer Da vida o vão E tanto olhar O espaço sem Uma só flor Por impressão. Se cada som Vem substituir A imensidão, Se a natureza Do tato tem Perspectiva E lente zoom. Se o cheiro bom Ou o gosto vil Da cor retém Uma parcela, Se ouvidos lêem Com equilíbrio Paisagem zen. Se é um dom Ou sacrilégio Esconder assim Mundos de si, Se teria fim A dependência Ao próprio cão.

| A arte e poesia Quichiligangues é uma palavra já existente na língua portuguesa. Um dos meus dicionários acabava caindo sempre na página que a continha. Ela tem um balanço, algo assim como paralelepípedo, que também é uma palavra que dança. Vem da língua banto, segundo o compositor Nei Lopes, estudioso das línguas africanas, e pode ser escrita com xis. O sentido está ligado a insignificâncias, ninharias. No fundo, é uma brincadeira irônica, tentativa de chamar a atenção para o gênero poesia, com pouca atenção crítica da mídia. Tento tirar do ostracismo uma palavra saborosa da nossa língua. Não trato de coisas pequenas, necessariamente. Drummond perguntava: “Como fugir ao mínimo objeto, ou recusar-se ao grande?” A poesia pode tratar de um detalhe ou ser a épica de um mundo.

No plano geral, a literatura e a poesia mexem com as pessoas, sim. A arte tem uma função, se não tivesse não existiria. Se pensarmos em perspectivas históricas, a arte sempre ajudou o ser humano a viver. Fortalece aquilo que nos liga uns aos outros, busca tornar o mundo habitável. E quem tem amor a algo, odeia o seu exato oposto. Daí o senso crítico. Poesia é crítica, exaltação e indagação do mundo e de nós mesmos, do coletivo humano, da nossa experiência sobre a terra. Com minha poesia, gostaria de provocar uma reação, seja ela qual for. Um modo de sentir, independente do que trate o poema, que servisse para outros momentos. Se der, alguma reflexão. Prazer estético, enfim. Tudo ao mesmo tempo. Mas conseguir isso não é tão simples.

Ao homem com Respondeu o cego Em lento grão De ampulheta; Não tinha sim, Nem negativa, Nem emoções: "Pergunta quem Padece mais Do que a mim Coube sofrer. Tem a visão Mas nada vê, Vazado tão". 09

V


resenha

Um sete um

Divulgação/7Letras

Os fundamentais detalhes disfarçados de Ítalo Ogliari m sete um, novo livro de Ítalo Ogliari, devia trazer aquela cinta com os seguintes dizeres: “Caro leitor, não deguste estas linhas com ares de inocência, esteja alerta, do contrário você pode se auto-enganar”. O miolo, noventa por cento da narrativa de Ítalo, não apresenta novidade alguma, chega a beirar a literatura marginal. Marginal aqui no sentido mais amplo do termo, que vai do universo abordado à opção pela linguagem carregada de palavrões que não implica em transgressão de linguagem e sim em tortura para o leitor. Faz sentido a advertência em sugerida cinta às futuras edições, pelo fato de o grande mérito deste Um sete um esconder-se nos detalhes, detalhes que fazem sentido o inicio e o fim da narrativa, onde o autor apresenta várias armadilhas ao leitor. Este, caso dê uma olhadinha para fora do papel, sem dúvida deixará escapar uma pista indispensável à compreensão da trama que insisto não tem nada de original, é a mesma já explorada à exaustão tanto em telenovelas como em filmes. A grande diferença está no início e no final da trama, onde a criatividade do autor, a indispensável avalanche criativa, se faz notar. No detalhe, curioso leitor, no detalhe. A trama: homem, beirando os trinta anos, encontra entre mendigos homem que imagina ser seu pai (ao final o leitor saberá que não foi apenas imaginação), senta-se ao lado do mendigo e passa a limpo, em detalhes, sua vida. Com direito a muito palavrão e uma bem dosada porção de sentimentalismo. Arrisco dizer que em meio a tanto palavrão, violência, miséria, golpes e truques, em nome da sobrevivência, sobraria pouco espaço para a exposição dos sentimentos. No entanto, o autor soube distribuí-los entre a menina viciada que morre de overdose, os dilemas do protagonista ante o amor da mãe que se distancia e o momento onde confessa ao pai que num determinado episódio fez falta a figura paterna. Importante ressaltar a inexistência do maniqueísmo, farto em telenovelas e cinema, e em Um sete um, no universo de perdedores por onde deambulam seus personagens, até mesmo a mãe, modelo de honestidade, acaba por capitular. Esquece seus valores em nome de um valor mais alto, o amor, aqui disfarçado de amor de mãe, embora sempre amor.

U

Ítalo Ogliari surpreende, arrisca-se em um enredo que pode parecer arremedo de Dostoiévski, ao dar voz aos excluídos abusando dos estereótipos. Apesar de tudo isso não se vislumbra o tédio ao longo das páginas de sua narrativa e faz deste romance um livro no mínimo curioso, e curiosidade é o motor das descobertas, das transformações e das indispensáveis transgressões. Caso o leitor não se mantenha extremamente atento, não perceberá as nuances da narrativa, tampouco as sutilezas que movem o protagonista frente ao mutismo do mendigo que ele afirma, ao final apresentará as provas, ser seu pai. Ítalo convoca os temas permanentemente na ordem do dia do nosso viver brasileiro ao seu romance - do tráfico de droga ao universo da pirataria, o protagonista alcança seu melhor momento financeiro justamente quando ingressa nesse lucrativo negócio, só que ele encontrará seu “nicho de mercado” graças a sua atenção aos detalhes, suas imitações serão facilmente confundidas com as originais e devido a essa aparente qualidade podem custar mais que as imitações descuidadas. Temos policiais corruptos, prostitutas, homem que bate em mulher, miseráveis, traficantes, traficantes miseráveis, de chinelo, como é dito, a permanente opção em enganar o outro, seja parceiro de ofício ou não, tanto faz. O outro tema que infelizmente nunca sai de moda, e Ítalo sabe apresentá-lo, é a miserável condição humana, a animalização do protagonista que mesmo reconhecendo o pai, ele tem as provas eu já disse, está mais preocupado com umas máquinas que pretende arrematar de uma fábrica que faliu e pode ser útil no seu negócio de falsificar os produtos Nike. Seu pai continuará na mendicância se encharcando de cachaça, aquela que o filho diz ser responsável pela grande caganeira do dia seguinte. É isso, o humano em segundo plano, afinal de contas o que é um pai? O que é um pai bêbado e mendigo diante de um próspero negócio, pouco importando que seja dos mais escusos? Recomendo, amoroso leitor, que, após concluída a primeira leitura, recomece, imaginando-se no lugar do pai. Leia essa história com os olhos de um mendigo. Não? Não quer nem experimentar? Dormir na rua, não ter o que comer, imagine-se no lugar daquele pai reconhecendo aquele filho. Frio e imerso na geleira do lucro a qualquer preço, a sobrevivência a qualquer custo é missão do pai, do mendigo, do bêbado.

Um sete um é mais uma obra a revelar as estranhas relações entre a ficção e a realidade, por mais que essa se revista do imponderável, no caso a ambição pela sobrevivência como motor existencial. O leitor é conduzido pela mão da ficção aos meandros que radiografam a condição humana, com seus medos, seus anseios e suas contradições. O curioso é que mesmo fazendo a opção pela influência ou radiografia antropológica e social, são inquestionáveis os procedimentos morais sempre carregados de violência e opção pela burla. O humor é utilizado como fato circunstancial e ao encararmos esse aspecto exclusivamente pelo ponto de vista restrito dessa narrativa chegaremos à conclusão de que a natureza humana pode ser traduzida como um misto do trágico com o cômico. Aqui abro um parêntese para lembrar o que disse Ferdinando Camon a Primo Levi: “Há algo na cultura cristã que recomenda as relações com 'O outro', com o único propósito de conquistar sua conversão [...] O destino do 'Outro' não é nada, comparado com sua conversão. Se você examinar bem essa asserção, ao cabo de algum tempo poderá ver o extermínio”. Cabe ressaltar que o desfecho não permite apontarmos vencido tampouco vencedor, mas talvez possamos, em última instância, afirmar que só existe um perdedor, a condição humana. Em torno dos protagonistas gravita uma quantidade enorme de personagens que podemos identificá-los como o coro dos Serafins, que nos permite uma digressão pelo terreno das tragédias gregas e pelo desperdício dessa possibilidade o autor se impediu de dialogar com a mais significativa literatura universal. Escolhemos uma frase de Mefistófeles, após estabelecer o pacto com o demônio, para encerrar este trabalho. Pacto que lhe permitiria passar dos limites proibidos: “Cinzenta é toda a teoria, e verde a árvore de ouro da vida”. E por aqui ficamos, com o fracasso de Faustus, simbolizando uma humanidade que errou buscando desesperadamente um rumo que a conduzisse ao ideal de divindade. Capitalista leitor, Um sete um é leitura obrigatória, e você irmão socialista leitor que sabe do que estou falando, tenho certeza que se ainda não leu está a caminho de uma livraria para adquirir este brilhante trabalho de Ítalo Ogliari.

Luiz Horácio

Rua Vasco da Gama, 165 - Fone: 3268.4260

nas livrariaswww.palavraria.com.br V VI V

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SYLVIA PLATH A poeta norte-americana, nascida em Boston (1932), autora de The Colossus, Crossing the Water, Winter Trees, The Collected Poems e Ariel (1965), célebre livro traduzido e publicado no Brasil em 2007, em edição restaurada e com manuscritos originais, por Rodrigo Garcia Lopes e Cristina Macedo, para a editora Verus, tem sua obra cada vez mais lida e comentada em língua portuguesa. Razoavelmente conhecida aqui no país por conta do filme Sylvia – paixão além das palavras (2003), estrelado por Gwyneth Paltrow, e do romance A redoma de vidro (tradução de Beatriz Horta, Ed. Record, 1999), Plath agora pode receber mais e mais leituras graças a tradução, bem cuidada e trabalhada a quatro mãos por Rodrigo e Cristina. Ariel foi publicado postumamente, em 1965, editado e organizado (de modo diferente do concebido por Sylvia) pelo poeta inglês Ted Hughes, com quem Sylvia foi casada e teve dois filhos. Em 2004, Frieda Hughes, filha do casal, resolveu trazer à luz a edição definitiva de Ariel, da maneira que havia sido pensada pela poeta, apresentando a publicação fiel da obra, que traz inclusive fac-símile dos manuscritos originais datilografados, rascunhos, além das provas de quatro versões do poema-título e notas sobre todos os poemas e respectivas datas de composição. Sylvia Plath viveu apenas 30 anos. Em 11 de fevereiro de 1963, em Londres, cometia suicídio inspirando gás na cozinha de sua residência. Artista da palavra e possuidora de uma voz poética inconfundível, a sua genialidade vibra com toda força em Ariel - livro que já é um clássico da poesia contemporânea. Apresentamos aqui dois poemas traduzidos por Rodrigo Garcia Lopes e Cristina Macedo. V VI

The Other

A outra

You come in late, wiping your lips. What did I leave untouched on the doorstep –

Você chega tarde, limpando os lábios. O que deixei intocado no degrau da entrada –

White Nike, Streaming between my walls?

Branca Nike, Flutuando entre minhas paredes?

Smilingly, blue lightning Assumes, like a meathook, the burden of his parts.

Sorridente, o relâmpago azul Assume, como um gancho, o peso de suas partes.

The police love you, you confess everything. Bright hair, shoe-black, old plastic,

A polícia te adora, você confessa tudo. Cabelo brilhante, sapato preto, velho plástico,

Is my life so intriguing? Is it for this you widen your eye-rings?

Minha vida é assim tão intrigante? É para isso que você abre bem os olhos?

Is it for this the air motes depart? They are not air motes, they are corpuscles.

É por isso que as moléculas partem? Não são moléculas, são glóbulos.

Open your handbag. What is that bad smell? It is your knitting, busily

Abra sua bolsa. Que mau cheiro é este? É seu tricô, ativamente

Hooking itself to itself, It is your sticky candies.

Enrolando-se nele mesmo, São seus doces grudentos.

I have your head on my wall. Navel cords, blue-red and lucent,

Tenho sua cabeça em minha parede. Cordões umbilicais, vermelhos, azuis, reluzentes,

Shriek from my belly like arrows, and these I ride. O moon-glow, o sick one,

Guincham em minha barriga como flechas, e nelas cavalgo. Oh, brilho da lua, oh, doente,

The stolen horses, the fornications Circle a womb of marble.

Os cavalos roubados, as fornicações Circundam um ventre de mármore.

Where are you going That you suck breath like mileage?

Onde vai você Que chupa o ar como milhagens?

Sulphurous adulteries grieve in a dream Cold glass, how you insert yourself

Adúlteros sulfurosos sofrem em sonho. Vidro frio, como você se insere

Between myself and myself. I scratch like a cat.

Entre mim e mim. Eu arranho feito gato.

The blood that runs is dark fruit – An effect, a cosmetic.

O sangue que verte é fruto escuro – Um efeito, um cosmético.

You smile. No, it is not fatal.

Você sorri. Não, não é fatal.

Thalidomide

***

Talidomida

O half moon –

Oh, semilua –

Half-brain, luminosity – Negro, masked like a white,

Semicérebro, luminosidade – Negro, mascarado de branco,

Your dark Amputations crawl and appal –

Suas escuras Amputações rastejam e assustam –

Spidery, unsafe. What glove

Aranhiças, inseguras. Que luva

What leatheriness Has protected

Que espécie de couro Me protegeu

Me from that shadow – The indelible buds,

Daquela sombra – Os botões indeléveis,

Knuckles at shoulder-blades, the Faces that

Nós nas omoplatas, os Rostos que

Shove into being, dragging The lopped

Empurram para ser, arrastando O podado

Blood-caul of absences. All night I carpenter

Âmnio sangrento das ausências. Toda noite eu teço

A space for the thing I am given, A love

Um espaço para o que me é dado, Um amor

Of two wet eyes and a screech. White spit

De dois olhos úmidos e um grito. Branca secreção

Of indifference! The dark fruits revolve and fall.

Da indiferença! Os frutos escuros giram e caem.

The glass cracks across, The image

O vidro se espatifa, A imagem

Flees and aborts like dropped mercury.

Foge e aborta como gotas de mercúrio.

V


COLABORAM NESTA EDIÇÃO

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Amilcar Bettega - Nasceu em São Gabriel (RS) e mora em Paris. Publicou “O vôo da trapezista”(Movimento/IEL, 1994), “Deixe o quarto como está” (Cia. das Letras, 2002) e “Os lados do círculo” (Cia. das Letra, 2004) Ana Mariano - Nasceu e mora em Porto Alegre. Formada em Direito. Publicou “Olhos de cadela” (poesia, 2006, ed. L&PM), e em 2010 publicará seu primeiro romance Caco Galhardo - É um dos grandes cartunistas brasileiros, autor das tirinhas “Os Pescoçudos”, publicada na Folha de S. Paulo. Autor de, entre outros, “Dom Quixote em quadrinhos” (editora Petrópolis) Cláudio Portella - Nasceu em Fortaleza (CE) em 1972. Escritor e poeta. Autor de “Bingo!” (2003), “Crack” (2009) e “fodaleza.com” (2009), todos livros de poemas. É o antologista de “Melhores Poemas Patativa do Assaré” (2006, ed. Global) Cristina Macedo - Mestre em Literaturas de Língua Portuguesa, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com tese sobre Erico Verissimo. Traduziu "Ariel", de Sylvia Plath, com Rodrigo Garcia Lopes, Editora Verus, 2007. Fez a versão para o inglês da prosa poética de Liana Timm, no livro "Olhar Estrangeiro - New York" (Território das Artes Editora, 2007). É escritora, com contos na antologia "Ponto de Partilha" (Editora Kalligráphos, 2008) e na coletânea "Arca de Impurezas" (Território das Artes 2008) Fabriano Rocha - Artista plástico e editor do Mais Umas Coisas. muc-maisumascoisas.blogspot.com Guilherme Moojen - Artista gráfico e designer. Blog: http://6uilherme.blogspot.com Ismar Tirelli Neto - É carioca e nasceu no ano de 1985. Isso depois de Cristo. Acaba de lançar seu primeiro volume de poemas pela 7Letras, chamado “Synchronoscopio” Blog: http://sonetosoitavaserie.blogspot.com Lau Siqueira - Nasceu em Jaguarão (RS), mora em João Pessoa (PA). Autor de 4 livros, o mais recente “Texto sentido” (2007) Leandro Dóro - Jornalista, cartunista, contista e produtor gráfico. Nasceu em Passo Fundo (RS) e reside em Porto Alegre (RS). Autor do livro “Revolta dos Motoqueiros” e da revista em quadrinhos “Tempero Verde”. Criador da revista “Gauchinho”. Mantém os blogs: leandrodoro.zip.net; leandromalosidoro.blogspot.com; quadrinhos.blogspot.com; meiguinhaepolentinha.blogspot.com e portifólio virtual em www.flickr.com/photos/leandrodoro Lídia Pacheco - Artista plástica. Blog: http://7lidia.blogspot.com Luiz Horácio - Professor de Literatura, mestrando em Letras na UniRitter. Autor dos romances "Perciliana e o pássaro com alma de cão" (ed. Conex) e "Nenhum pássaro no céu" (ed. Fábrica de Leitura) Marcelo Benvenutti - Porto-alegrense nascido em 1970. Autor dos livros de contos "Vidas cegas" (2002), "O ovo escocês" (2004), "Manual do fantasma amador" (2005) e "Arquivo morto" (2009). Blog: marcelobenvenutti.blogspot.com Patrícia Reis - Nasceu em 1970, vive em Lisboa. Escreveu a biografia do ator cômico Vasco Santana, a novela “Cruz das almas” e o livro “Beija-me” - um álbum de fotografias do artista plástico João Vilhena. No Brasil, editados pela Língua Geral, publicou “amor em segunda mão” (2006) e “Morder-te o coração” (2008). Blog: http://vaocombate.blogs.sapo.pt Reynaldo Bessa - Poeta-músico potiguar, autor de “Outros Barulhos” - primeiro livro de poemas, lançado em 2008, pela editora mineira Anome Livros, com prefácio do poeta mineiro Wilmar Silva e orelha do poeta gaúcho Fabrício Carpinejar. Em 2009, “Outros Barulhos” entrou na lista dos 50 livros finalistas do Prêmio Portugal Telecom de Literatura 2009 e logo em seguida, nos dez finalistas do maior prêmio brasileiro das letras o 51º Prêmio Jabuti 2009 Ricardo Silvestrin - Lançou 13 livros. Os mais recentes são “O Menos Vendido”, poesia, “Play”, contos, “Transpoemas”, infantil de poesia, e “O Videogame do Rei”. É também músico da banda os poETs. É colunista do jornal Zero Hora. Recebeu por 5 vezes o prêmio Açorianos de Literatura Rodrigo Garcia Lopes - Nasceu em Londrina (PR) em 1965. Poeta e tradutor, formado em Jornalismo trabalhou em jornais e veículos literários em São Paulo ("Ilustrada") e Curitiba ("Nicolau"). Autor de "Vozes & Visões: Panorama da Arte e Cultura Norte-Americanas Hoje" (ed.Iluminuras,1996), "Solarium", “ Polivox”, “Visibilia” e “Nômada”. Traduziu, entre outros, a poesia de Ezra Pound, Sylvia Plath, William Carlos Williams, Robert Creeley, Gertrude Stein, Laura Riding, Gary Snyder, Charles Bukowski, John Ashbery, Jim Morrison e Samuel Beckett. Com Ademir Assunção e Marcos Losnak edita “Coyote” Ronald Augusto - Poeta, músico, editor e crítico de poesia. Autor de, entre outros, “Homem ao Rubro” (1983), “Vá de valha” (1992), “ Confissões Aplicadas” (Ed. Ameopoema, 2004) e “No Assoalho Duro” (Ed. Éblis, 2007) Sidnei Schneider - Poeta, tradutor, contista e articulista. Livros: “Quichiligangues” (Dahmer, 2008, poesia), “Plano de navegação” (Dahmer, 1999, poesia) e “Versos Singelos”/José Martí (SBS, 1997, tradução). Participações: Poesia Sempre 14 (Biblioteca Nacional/Minc, 2001), Antologia do sul, poetas contemporâneos do RS (Assembléia Legislativa, 2001) e outras. Tradutor de William Blake. 1º lugar no Concurso de Contos Caio Fernando Abreu, UFRGS, 2003 e 1º lugar em poesia no Concurso Talentos, UFSM, 1995 Victor Hugo Cecatto - Artista plástico. Alguns de seus trabalhos podem ser vistos no www.vhd.com.br


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