Jornal Vaia edição 16

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Número 16 - julho de 2005

apim sabe ler? Escrever? Já viu cachorro letrado, científico?Já viu juízo de valor? Em quê? Não quero aprender, dispenso. Deixa pra gente que é moço. Gente que tem ainda vontade de doutorar. De falar bonito. De salvar vida de pobre. O pobre só precisa ser pobre. E mais nada precisa. Deixa eu, aqui no meu canto. Na boca do fogão é que fico. Tô bem. Já viu fogo ir atrás de sílaba? O governo me dê o dinheiro da feira. O dente o presidente. E o vale-doce e o vale-linguiça. Quero ser bem ignorante. Aprender com o vento, tá me entendendo? Demente como um mosquito. Na bosta ali, da cabrita. Que ninguém respeita mais a bosta do que eu. A química. Tem coisa mais bonita? A geografia do rio mesmo seco, mesmo esculhambado? O risco da poeira? O pó da água? Hein?O que eu vou fazer com essa cartilha? Número? Só para o prefeito dizer que valeu a pena o esforço? Tem esforço mais esforço que o meu esforço? Todo dia, há tanto tempo, nesse esquecimento. Acordando com o sol. Tem melhor bê-á-bá? Assoletrar se a chuva vem? Se não vem? Morrer já sei. Comer, também. De vez em quando, ir atrás de preá, caruá. Roer osso de tatu. Adivinhar quando a coceira é só uma coceira, não uma doença. Tenha santa paciência! Será que eu preciso mesmo garranchear meu nome? Desenhar só para a mocinha aí ficar contente? Dona professora, que valia tem meu nome numa folha de papel, me diga honestamente. Coisa mais sem vida é um nome assim, sem gente. Quem está atrás do nome não conta? No papel, sou menos ninguém do que aqui, no Vale do Jequitinhonha. Pelo menos aqui todo mundo me conhece. Grita, apelida. Vem me chamar de Totonha. Quase não mudo de roupa, quase não mudo de lugar. Sou sempre a mesma pessoa. Que voa. Para mim, a melhor sabedoria é olhar na cara da pessoa. No focinho de quem for. Não tenho medo de linguagem superior. Deus que me ensinou. Só quero que me deixem sozinha. Eu e a minha língua, sim, que só passarinho entende, entende? Não preciso ler, moça. A mocinha que aprenda. O prefeito que aprenda. O doutor. O presidente é que precisa saber ler o que assinou. Eu é que não vou baixar a minha cabeça para escrever. Ah, não vou.

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MARCELINO FREIRE “Totonha”, Contos Negreiros, Ed. Record, 2005


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ENGRENAGEM EM CADEIA

O poeta Torquato Neto teria completado 60 anos em 9 de novembro de 2004. Nascido em Teresina (PI), Torquato morou pouco tempo no Piauí, pois aos 15 anos foi expulso do colégio em função de atividades políticas. Os pais o colocaram num internato em Salvador, onde ficou até 1963, quando seguiu para o Rio de Janeiro, pretendendo cursar Jornalismo. Desde a época de escola já escrevia poemas. O contato, na Bahia e depois no Rio, com Gilberto Gil e Caetano Veloso levou-o a fazer as primeiras letras de música. A parceria com Gil decolou quando, em 1966, Torquato passou algumas semanas na casa do atual ministro, em São Paulo. Dessa temporada, saiu “Louvação”, que Elis Regina e Jair Rodrigues lançaram no LP Dois na Bossa nº 2 e que a Rede Record transformou em sucesso por causa de... um incêndio. Esta era a música que estava sendo tocada na Rádio Jovem Pan (São Paulo) quando a programação foi interrompida para noticiar que o prédio-sede da rede estava pegando fogo. Nos dias seguintes, sempre que se conseguia colocar alguma das emissoras no ar, só se tocava “Louvação”, o que ajudou muito a projetar Gil. Depois de compor com outros parceiros, como Edu Lobo (com quem fez “Pra Dizer Adeus”), Torquato foi figura de destaque no movimento tropicalista, do qual redigiu o manifesto, além de compor pérolas como “Geléia Geral” (com Gil, citando Décio Pignatari e Oswald de Andrade). Também se destacou por buscar manter vivos os ideais que nortearam a Tropicália, mesmo depois da prisão e do exílio de Caetano e Gil. Este era um dos motes de sua coluna Geléia Geral, que manteve no jornal carioca Última Hora entre 19 de agosto de 1971 e 11 de março de 1972. Diariamente, seus leitores recebiam, geralmente em primeira mão, notícias de Caetano, Gil, Gal Costa, Milton Nascimento, Roberto Carlos, Novos Baianos, Hélio Oiticica, Júlio Bressane e outros. Além de música, qualquer manifestação artística que pretendesse fugir dos padrt es academicistas (a contracultura, o cinema marginal, o rock, a vanguarda nas artes plásticas) recebia a adesão de Torquato. Já entre seus alvos preferidos de críticas, estavam as gravadoras e os festivais de música popular das TVs - principalmente o Festival Internacional da Canção (FIC), da TV Globo. O poeta lembrava constantemente, por exemplo, que as músicas premiadas no FIC só tocavam em rádios do Sistema Globo...

HEITOR DOS PRAZERES, Sem título, óleo sobre tela (1946)

TORQUATO NETO, 60 ANOS

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esultante de uma cultura sincrética, pluralizada e singularizada pela redefinição de traços culturais dela oriundos - as suas matrizes étnicas formadoras a cultura e o povo brasileiro se fundem e se completam num novo gênero humano, em nova gente que constantemente tem se mutabilizado e perpetuado em novos desdobramentos, inclusive de si mesma. Uma engrenagem em cadeia* que se tem texturizada em constantes trocas, permutas, Talvez tenha sido o FIC a causa do rompimento entre Torquato e Jorge Ben que a leitura dos apropriações, reapropriações, revisitando-se e textos dá a entender. Jorge, vivendo um grande momento, era sério candidato a personagem freqüente da Geléia. Mas só o foi no início. Numa das primeiras colunas, a 23 de agosto, redescobrindo-se mutuamente num diálogo Torquato anunciou para breve um novo disco do autor de “País Tropical”: silencioso, constituído pela herança corporal (leia-se dança) e da fala (leia-se canto). “Uma variedade de “Está pronto o novo LP de Jorge Ben. Foi produzido por ele mesmo e a CBD [Companhia fisionomias, um organismo mutante” (Luiz Tatit) Brasileira de Discos, representante da Philips no Brasil] está preparando o lançamento com O ritmo que se dissolve no corpo, a palavra que se bastante badalação para setembro, lá pro fim do mês”. derrete em novos dialetos, em novas gírias, em novas palavras, que aos poucos perdem as rudezas, a Já a 13 de setembro, Torquato informava que o lançamento seria adiado para início de dureza, os ossos, as intempéries, como bem disse outubro. Poucos dias depois, porém, o poeta caiu de pau na participação de Jorge no 6º FIC. Gilberto Freyre. Os acentos que se deslocam, Torquato referiu-se à aparição de Jorge como “inteiramente melancólica”, “horrível”, “pobreza desestabilizam e se reencontram, os cantos que se total” (29 de setembro). A situação culminou com a nota seca de 9 de outubro. Leiam vocL s mesmos: perdem e se retomam em novos cantos, resgatam passado e presente. Leonel Kaz converge: “Na “Já está nas lojas o disco novo de Jorge Ben - Negro é Lindo. Podes crer, criancinha: não é música, o Brasil não destrói o passado. Ao contrário, legal não.” ele irrompe, espontaneamente, e se reconstrói todos os dias”. Depois disso, Jorge jamais voltou a ser citado na Geléia Geral. Darcy Ribeiro percebe sensivelmente esse conflito: “a confluência de tantas e tão variadas matrizes Nos últimos anos, Torquato compunha menos e enfrentava a depressão, que o levou a se formadoras poderia ter resultado numa sociedade internar nove vezes em clínicas, tanto no Rio como em Teresina. Isto o levou ao suicídio, em multiétnica, dilacerada pela oposição de 10 de novembro de 1972, um dia após completar 28 anos. Seu único livro, Os Últimos Dias de Paupéria, foi organizado em 1973 pelo poeta Waly Salomão e pela viúva, Ana Maria Silva de componentes diferenciados e imiscíveis. Ocorreu Araújo Duarte. Nova edição, incluindo letras de música e as colunas da Última Hora, saiu em justamente o contrário...” . 1982. O livro é excelente no todo, mas destaco os textos de Geléia Geral como uma excelente O corpo deste país que se compõe num vasto painel fonte de informação sobre a música brasileira no começo dos anos 70. de criações populares onde espontaneamente as danças, as formas melódicas e o instrumental se Provavelmente o maior sucesso assinado por Torquato seja uma parceria póstuma: “Go constituem em utensílios de germinação, tem se Back”. O tecladista Sérgio Brito musicou este poema que deu nome ao LP ao vivo que os Titãs desenhado e reconstituído em gêneros, ritmos, e gravaram em 1988. Os Paralamas do Sucesso cantavam esta música em seus shows em danças. 1992, além de gravar uma versão em espanhol assinada por Martin Cardoso e incluída como O instrumento violão é um dos tantos faixa-bônus na edição de Severino em CD (1994). Herbert Vianna acrescentou nesta gravação a declamação de outro poema de Torquato: Andarandei. protagonistas deste processo. Ao se misturar (na gestação do que viria a se tornar o cancioneiro Ironicamente, uma das músicas mais conhecidas atribuídas a Torquato não é de sua autoria. popular brasileiro) com tambores, rituais, Num caso raríssimo em matéria de direito autoral, ele lutou para ter reconhecido que não era sincretismos, cânticos, folguedos, naturalmente co-autor de “Soy Loco por Tí, América”. incorporou também, através do aprimoramento de seus recursos técnicos e necessidades artísticas e A música foi feita por Gil e Capinam a pedido de Caetano após a morte de Che Guevara, em coletivas, novas fisionomias, novos sons, novas 1967, e incluída no LP Caetano Veloso (1968). Por algum motivo, o nome de Torquato surgiu texturas. no selo do disco como parceiro. Durante anos, ele e depois Ana Maria solicitaram à editora Em suma, no processo de construção da música que retificasse a informação, sem sucesso. A questão só foi corrigida na década de 90, brasileira, o violão se muniu de um raro poder quando Gil retomou os direitos de edição de toda sua obra. aglutinador e de síntese. * * Se isso ainda tivesse se refletido no recebimento de direitos autorais, tudo bem. Mas a família de Torquato nunca recebeu nada por “Soy Loco...” - nem por músicas de que ele efetivamente é parceiro e tiveram várias regravações, como “ZabelL ” (parceria com Gil) e “Pra Dizer Adeus”.

FÁBIO GOMES Editor de Brasileirinho - O seu site de Música Popular Brasileira www.brasileirinho.com.br

FELIPE AZEVEDO compositor e violonista - felipaz@terra.com.br * José Miguel Wisnick, em entrevista à jornalista Monica Waldvogel, citou: “a canção brasileira tece uma sinuosa e subliminar rede de recados”. ** No livro “Feitiço Decente”, Carlos Sandroni alerta também para este potencial do instrumento.


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O grilhão da ideologia

Quem leu em Fevereiro de 1993 o primeiro número de “Poiésis”, dificilmente poderia prever o futuro desse título, então constituído de duas páginas de poesia editadas pelo poeta Camilo Mota. Era apenas um encarte no tablóide cultural “Obelisco”, na cidade de Petrópolis, na serra fluminense. Após nove edições em sua primeira versão, o “Poiésis” migrou em 1994 para o “Culturarte”, também petropolitano. Em 1995, em uma notável arrancada, ousou lançar-se como tablóide independente, contando com a importante colaboração do poeta carioca Fernando Py (tradutor da obra de Marcel Proust no Brasil). A partir daí, o periódico foi somando pessoal a seu Conselho de Redação - por exemplo, o inquieto e multifacetado Márcio Salerno bem como colaboradores de vários Estados. Passou a manter-se com o patrocínio de seus assinantes e o valor das assinaturas de seus, já à época, inúmeros leitores. Como periódico independente, o “Poiésis” amadureceu rápido. Já em 1996 e 1997 lançava ediçt es memoráveis como, entre outras: - a de nº 39, setembro de 1996, trazendo na capa o conto Errância de Uilcon Pereira (que faleceria prematuramente logo a seguir, em 25 de outubro); - a de nº 47, maio de 1997, na capa o conto História de dois que sonharam, de Borges, e a chamada para Um Tributo a Allen Ginsberg ( páginas 9 a 12), bem como a do texto sobre Antiuniverso de Fernando Py; - a de nº 52 Ano V, outubro de 1997, com sua frente tomada por Redação sobre a Lua, do escritor mineiro Jarbas Medeiros;

ANGELO AGOSTINI

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Etienne Arago

orPor 388388 anos anos a escravidão foi parte do a escravidão foicotidiano parte do do povo - a escravidão indígena eindígena principal-e cotidiano dobrasileiro povo brasileiro - a escravidão mente a negra. É como se em 24 horas de um dia principal-mente a negra. É como se em 24horas de um vivêssemos 19 19 de escravidão. dia vivêssemos horas de escravidão. Escrever sobre o assunto é muito difícil, pois envolve não só o passado: a discriminação ainda é uma constante. Essa herança de nossos antepassados serve a todo o tipo de exploração social, assim como a discriminação sobre a mulher. Sempre que um tema histórico encontra-se tão vivo por suas conseqüências presentes, mais complicado é discutilo e, sem dúvida, mais essencial. Um tema que dói na carne deixa as pessoas propícias a achar que qualquer opinião que escape ao mantra politicamente correto cheira a reacionarismo. Mas quem não se arrisca, não faz história. A “imparcialidade científica” é muito mais do que um mito. Na realidade trata-se de uma falácia, de um ardil de controle ideológico. Parece claro que os historiadores comprometidos com as elites procuram suavizar e/ou justificar a escravidão como necessária para o processo de desenvolvimento do continente americano. Como denuncia Maestri em A servidão Negra: “a escravidão é o calcanhar de Aquiles da historiografia nacional-burquesa norte-americana (...) o quase total controle ideológico do mundo acadêmico, os imensos recursos técnicos e financeiros postos à disposição das ciências sociais (...) permitiram não desprezíveis resultados a esta operação ideológica” (pág.08) A metástase desse controle estadunidense se fez sentir em toda América Latina. No Brasil, tem fórum privilegiado nos meios pós-modernos da nossa historiografia. A atuação conservadora reflete e, ao mesmo tempo é refletida, na postura dos teóricos “progressistas” brasileiros que, por sua vez, na refrega política, se olvidam da imensa complexidade e diversidade que a realidade histórica impõe ao tema. Se é fato que a escravidão é a forma de exploração de trabalho mais abjeta produzida pelo homem, não é menos fato que o principal meio de controle das massas escravizadas não era o açoite ou os grilhões e sim o controle ideológico e o desterro. O escravista compreendia muito bem a importância do mecanismo de coerção ideológica, os laços familiares, a utilização das rivalidades tribais, dos estranhamentos étnicos, da falta de consciência antiescravista da maioria escrava. Não raro um escravo, quando conquistava sua liberdade, logo que possível adquiria o seu próprio escravo de ganho. Um dos principais artífices da destruição de Palmares foi o Quinto de Henrique Dias que era composto de vários negros, sendo ele mesmo, Henrique Dias, negro. O açoite, o grilhão é reservado para minoria rebelde, para os fujões inveterados, para os indolentes. Como de resto é em qualquer sociedade. Nenhum poder se mantém pelo simples uso da força e do terror, mecanismos vitais em qualquer sociedade de classes.

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A principal forma de opressão sempre é a ideológica, que cria um consenso social poderoso e difícil de destruir. Esse controle é tão presente que se torna invisível. O único organismo produzido pelos trabalhadores escravizados que fez frente ao escravismo foi o quilombo. Nem sempre esses organismos ofereceram perigo de fato aos escravistas, mas eram, em si, a mais poderosa arma antiescravista e anticolonialista. O grande exemplo, sem dúvida, foi Palmares, sendo por muitas décadas o cutelo negro sobre o pescoço escravista. Daí, duas conclusões: primeira, o trivial não era o uso do pelourinho e dos ferros, mas a submissão de classe; segunda, a principal arma antiescravista não era a identidade de cor e sim a consciência, a fuga e o quilombo. Gilberto Freire, em Casa Grande e Senzala, diz que os portugueses buscaram a miscigenação não apenas por lascívia, mas principalmente para constituir um segmento intermediário entre eles e os escravos. Os índios catequizados e os negros forros faziam parte desse importante segmento de controle social. A experiência haitiana, de expulsão dos franceses e de criação de uma república negra, deixou clara a necessidade desse segmento intermediário. Os primeiros estudos de escravos, mais especificamente os de engenho de açúcar, geraram essa imagem de controle absoluto que foi passado erroneamente como regra geral do escravismo no Brasil. Com o estudo dos negros nas cidades, essa visão começa a vazar. Mesmo admitindo que os trabalhadores escravizados iam e vinham perambulando pelas ruas das cidades brasileiras, muitos historiadores vacilam na hora da conclusão, talvez por temor de parecerem reabilitadores da escravidão.

Mas, se o principal controle era o ideológico, por que se diz que nos engenhos o controle era absoluto? Como pode? Bem, em qualquer sociedade as rotinas laborais são determinadas pelas características especificas do trabalho a ser realizado. Os engenhos, como as charqueadas, eram indústrias capitalistas na forma como organizavam suas atividades, a divisão do trabalho, a produção intensiva e extensiva e o controle do ritmo desse trabalho. O engenho era um complexo industrial rural onde se plantava, transportava e moía a cana, produzia e embalava o açúcar. A charqueada recebia das estâncias a matéria-prima (o gado) e todo o resto do processo era feito naquele espaço, obedecendo aos mecanismos do trabalho dividido e organizado. Nesses dois casos, o controle absoluto não era um produto da mente sádica do feitor e sim uma necessidade do tipo de produção de ambas as mercadorias. Em geral, nos sistemas capitalistas típicos, esse controle do ritmo de produção é feito através da constante ameaça do desemprego. O exército de reserva serve principalmente para dois fins: como mecanismo de pressão para manter o ritmo da produção e como maneira de desvalorização da mercadoria “trabalho”. Como no escravismo não há desemprego, os métodos de coerção para manter ritmos de produtividade eram as ameaças e o açoite. Já nas cidades, o predomínio dos escravos era o de ganho. O pequeno burguês conservava com zelo a tradição da vagabundagem herdada da nobreza européia e considerava qualquer esforço físico, no sentido de trabalho, como uma indignidade que ameaçava seu status social. Maestri conta que um cidadão branco não podia ser visto carregando pacotes. Havia escravos para isso. O que me lembra a canção “A Banca do Distinto”, de Billy Blanco: Não fala com pobre, não dá mão a preto Não carrega embrulho Pra que tanta pose, doutor Pra que esse orgulho” (...) Cada cristão desses, tendo algum recurso, possuía cinco ou seis escravos. Eles saíam de manhã pelas ruas da cidade à procura de trabalhos. No fim do dia, traziam “o ganho“ para o seu Senhor. Uma espécie de gigolagem “distinta”.

GIOVANNI MESQUITA tataranariel.bol.com.br Este texto é resumo, adaptado, de um dos capítulos de trabalho em andamento sobre a contribuição do negro na cultura gaúcha, coordenado por Claudio Knierim.

Em seu novo endereço, o tablóide passou a assimilar gente nova e um público ainda maior foi incorporado àquele que já alcançava. - a de nº 54, dezembro de 1997, estampando o E haveria de chegar o tempo em célebre conto Uma Galinha, de Clarice Lispector; Bacaxá/Saquarema de se comemorar os primeiros - a de nº 59, maio de 1998, com toda a capa dez anos de circulação do “Poiésis”. Sem incluir, é tomada por fragmentos de “Euismo”, um dos volumes dos claro, o ano de 2001 na contagem. A ocasião diários do escritor paraibano Ascendino Leite, que compt e escolhida foi o mL s de julho do ano de 2004, para um conjunto dos mais importantes de nossa literatura. coincidir com o lançamento da centésima edição do tablóide. Ao completar os seus primeiros cinco anos de A 17 de julho, em torno de cento e cinqüenta circulação, em março de 1998, o periódico passou a pessoas lotaram em Bacaxá a Casa da Lagoa, belo denominar-se, com justiça, “Poiésis, Literatura, lugar de espetáculos, misto de bufL e galeria de arte, Pensamento & Arte”, com sua nova linha especificada no para o evento comemorativo. O ensejo teve também o editorial (que veio na capa) Um Novo Limiar. Editado em objetivo de homenagear os empresários, profissionais Petrópolis, o tablóide já lograva uma boa circulação entre liberais, artistas e escritores que vL m apoiando escritores de várias regit es do país, sempre mantendo as “Poiésis” nos municípios em que o jornal atua. Cada duas páginas centrais para a publicaçn o de poemas. um deles recebeu um diploma de Mérito Cultural. Durante o ano de 2001, “Poiésis” infelizmente não Estiveram presentes, entre outros, o jornalista circulou, mas retornou no ano seguinte, ainda publicado na responsável por “Poiésis”, Francisco Pontes de cidade serrana de origem. No entanto, em 2002, Camilo Miranda Ferreira (Rio), os membros do Conselho de Mota e esposa mudam sua residência para a orla marítima Redaçn o (Fernando Py, Marcelo Fernandes, Gerson de Bacaxá, em Saquarema, na Região dos Lagos. A edição Valle, Sylvio Adalberto, todos de Petrópolis), o mais nº 80 Ano VIII, de outubro de 2002, veio noticiar que a novo integrante da equipe - o jornalista André Kano, publicação também mudava de ares e que passara a ser vários representantes da comunidade Bahá’í (Niterói). distribuída em maior número de livrarias da cidade do Rio Em um país onde revistas literárias dificilmente de Janeiro. Tal edição foi inteiramente dedicada ao primeiro ultrapassam um segundo ou terceiro número, e onde centenário de nascimento de Carlos Drummond de periódicos literários não completam comumente o Andrade, trazendo textos de José Maurício Gomes de primeiro ano de vida, “Poiésis” destaca-se com sua Almeida, Fernando Py, Gerson Valle, além de entrevista bela carreira e a louvável folha de serviços que vem concedida por Affonso Romano de Sant’ Anna ao professor prestando à causa da literatura brasileira. Marcelo Fernandes, em que muito se mencionou o grande ARICY CURVELLO Poeta. Poemas sobre Drummond, de vários autores, curvello.vix@terra.com.br fecharam o número.

Os dez anos de “Poiésis”


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CARTA DE HORACE COMPLETA E NÃO ALTERADA

TEREZINKA PEREIRA

Copiosamente chorava, agachado, na escada; não tinha forças para subir ou descer... O grito, a angústia, vinham do lado de fora do condomínio onde chorava... Aqui dentro, o silêncio. Nem meus tri-gemidos são ouvidos. A escada vai serpenteando do começo ao fim... Estava no meio desse caracol, nem me lembro mais do primeiro degrau; arrisquei olhar para cima, bah... É impossível alcançar o último degrau! Por isso choro, as portas estão todas fechadas, não conheço ninguém, vizinhos são vozes atrás das paredes úmidas, guris... Não mais respiro e o vetor a girar bem devagar, a sombra vai rodopiando na parede, triturando lentamente... Não ouso olhar, capaz... Até que o tempo se esgotou e a luz do condomínio se apagou.

vivavaia@ig.com.br

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VV

L.G

to sek . In

http://jornal_vivavaia.blogspot.com

P.O. Box 352048 - Toledo, OH 43635-2048 - USA

QUEM TEM BOCA

Alô, alô, confrades do VAIA. Nas quintas-feiras à noite (21horas) o bar e restaurante São Jorge e o Dragão (rua Sofia Veloso, 61, Cidade Baixa tel. 30611233) abre suas portas para receber-nos. Faremos encontros pra cantar, tocar, recitar, beber, namorar (não exatamente nesta ordem, ou tudo ao mesmo tempo em desordem), enfim, para celebrar a vida. Sempre haverá um convidado que irá puxar o cordão das melodias e dos versos. Nas quintas de julho o convidado é João Mayer, que mostrará músicas de Chico Buarque, Aldir Blanc e outros bambas no show Saravá!, Com a parceria de Mozart Dutra e Márcio Sobrosa nas percussões e discotecagem do fino da MPB. Tudo em nome da alegria e da amizade. Saravá!

arte INSEKTO

LEMBRANÇAS DE ESTEIO

STROGONOFF FINAL O lado sádico da natureza espera sempre uma guerra, de preferência atômica, porque então festejará a desgraça com o último jantar comemorando o fim do mundo servindo um strogonoff das miríades de cadáveres recheados de cogumelos nucleares.

NANO COSTA nanocosta_poeta@yahoo.com.br

LUIZ NICANOR Santo Antonio da Patrulha - RS

Hai Kais do Derengoski

TANTO QUANTO Palavras: Folhas secas Ao vento fraco

Araucárias ao vento - circunvoluções de galhos Príncipes dos abismos

Esmeraldas Na noite: Vagalumes?

PAULO RAMOS DERENGOSKI - Lages - SC Vertige épicé de rauques vocalises. Qualques notes de musique orientale projettent des postures que la morale fustige. Chairs de moelleuse maturité. Quelle proie pourra se repaître de ces abandons?

arte Claudine Goux

compilado por

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A onda de calor da Califórnia continua. Também os tiros idiotas dos jovens dos bandosgang de pivetes. Há guerra nas ruas da América por causa de nada que valha a pena dar tiro nem matar. Ah, América! Quando será que vamos compreender que a “nação de bandidos” mais do que tudo nos fere a nós mesmos! A maior ameaça para a “América” é principalmente os super-americanos.

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Jacques Canut AUCH, França

ARQUIVO VAIA

Desde o onze de setembro vão-se os mesmos rituais; até dez, se bem me lembro eram todos tão iguais. Nenhuma coisa mudou à luz do nosso rosto, em cada passar de agosto mais um cão contaminou. Nós, movidos por osmoses, acreditamos em datas, só mudam os psicopatas seus delírios e psicoses. À lupa do inconsciente acreditar é a fonte amanhã, agora ou ontem ninguém há de diferente: Bin Laden, Bush e Saddam Sharon, Hitler, Tony Blair Al-Qaeda e Taliban Stalin e Lucifer.

ARQUIVO VAIA

VILMAR DAUFENBACH Chapecó - SC RENEE CABRALES

MÚSICA POPULAR BRASILEIRA E COMPOSITORES INDEPENDENTES 4ª edição do projeto Música Autoral, produzido pelo VAIA com o objetivo de incentivar e divulgar a produção musical de compositores de música popular brasileira e que acontece sempre no 1º sábado de cada mês, ocorrerá dia 06 de agosto na Cia. de Arte (Andradas, 1780), às 21:30 horas. Os shows serão de Mário Falcão e Karine Cunha. Na abertura da noite se apresentará o compositor Leandro Maia. Participaram das primeiras edições os compositores Otávio Segala e Fernanda Lopes (maio), João Mayer e Felipe Azevedo (junho), Alexandre Florez e BandaNaVereda (julho). Ao lado, algumas fotos desses shows.

MARLENE REINALDO

MÁRIO FALCÃO começou sua carreira compondo a trilha sonora da peça A Exceção e a Regra, de Bertolt Brecht, adaptação encenada pelo grupo Oi Nóis Aqui Traveiz. Falcão já gravou com Carlos Patrício, no cd Subvertendo (1995), e com o ator e cantor Zé da Terreira, no cd Quem Tem Boca É Pra Cantar (2001). Em 2002 participou no cd do II Fórum Social Mundial com a música “Curiosidades” e, em 2004, no cd Uma Canção para Porto Alegre, com a música “Quando te vi”. Seu 1º cd, Mário Falcão (www.marioofalcao.com.br), gravado de forma independente e financiado pelo Fumproarte, foi lançado em 2004 e recebeu muitos elogios da crítica e a simpatia do público. Com esse disco, Falcão foi o vencedor de dois Prêmios Açorianos de Música - melhor disco e melhor compositor (categoria MPB).

Desde 1997 KARINE CUNHA vem se apresentando em diversos palcos e espaços culturais da cidade. Participou da gravação do cd da Orquestra de Mantras Rudraksha e fez parte do grupo vocal D’Quina Pra Lua, atuando como violonista, intérprete e arranjadora. Integrando o D’Quina, Karine fez o espetáculo Maria Vai Com as Outras, com o qual conquistou o Prêmio Açorianos de Revelação MPB em 2001. No ano seguinte, o grupo grava o 1ºcd e vence mais um Açorianos, na categoria Melhor Grupo de MPB. Depois de participar em cd no projeto Arte nos Trilhos, Karine volta-se para a divulgação de seu trabalho autoral, fazendo shows no Santander Cultural (Seis e Meia), Solar dos Câmara (Sarau no Solar) e Teatro São Pedro (Projeto Blue Jazz). Em junho de 2005, em produção independente, lança o cd Fluida, cuja intenção estética é o encontro das muitas águas que mesclam elementos da música regional, latina e “importados” (funk e soul), sempre primando por uma brasilidade sonora.

MARLENE REINALDO

ARQUIVO VAIA

DIVULGAÇÃO

ARQUIVO VAIA

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faz tempo preciso sair me libertar do estilo formal, do ato legal, do padrão oficial da ditadura do papel do maldito papel preciso sair escapulir dessa gaveta-arquivo-morto-gigante onde gente cinza (NÓS) fica amarela num instante preenchendo a vida com mapas, relatórios, inventários pareceres esperando o fim do mês, o fim do ano, o fim de todo tesão

Sinfonia

surtos

POÉTICOS ENCOMENDA Quando não mais amar ninguém Escreverei um poema de amor Recolherei os pedaços do amor que tive Um amor que sirva inteiro Para o poema

funcionam mesmo os funcionários? qual o tempo de vida útil dos funcionários? o que se faz com os funcionários que deixam de funcionar?

Rosália Milsztajn Aqui Dentro de Mim,

Uma sifonia me fez chorar De olhos secos E eu não fiz a sinfonia Nem sequer a sintonia Sou apenas um brinquedo Nas mãos da Construção

ed. Aeroplano, RJ, 2003 rosaliamil@bol.com.br

preciso sair fugir o quanto antes desse hospício esquecer pra sempre da distância que se recomenda para a margem esquerda do ofício será que eu lembro como eu era antes disso? preciso sair voltar ao convívio dos normais fazer, quem sabe, um curso de arranjos florais tocar bandolim numa banda de jazz poder errar em paz preciso sair, recuperar a sanidade ir ao cinema, zanzar pela cidade aprender a dançar bater meu cartão-ponto num bar e depois de muito chope tonto e feliz analisar o balanço de uma morena que não esteja estudando pra concurso

Se falasse como quem desfalecesse talvez não merecesse a muda dicção de quem calasse se calasse como quem não esclarece talvez esfacelasse o som da voz de quem falasse DIEGO CASTILHOS PETRARCA diegocastilhosp@hotmail.com

preciso sair mandar às favas o regulamento, o regimento, o requerimento, o procedimento ah, e o chefe jumento

Uma sinfonia tem Uma peça de relógio Depregada Andando na contramão Entra-sai Foge das divisas Uma sinfonia é um mito Tanto quanto vomito Um cabaré-Beethoven Um algo boiando nas algas Um cair na vida de borco De onda precipite Um cair de chapa com o sol Da meia-noite pelo braço

ISAAC STAROSTA raistra@hotmail.com

ÁFRICA Quantas vezes este outro amor desejei penso em você terra negra, amiga sonho, volto a chorar entre os teus seios quero viver pra derrotar o castigo. Vida eu e você primavera sem cor caos, dias e noites, nosso caso perdido lágrima preta rola mansa corrosiva levo a tristeza, clamo a minha dor para longe destes puritanos sorrisos presente em todas cores dos teus olhos pretos, negros, azuis, verde mar profundo,

carimbos não! CARINHOS SIM! carimbos não! CARINHOS SIM! preciso sair mas antes vou quebrar o protocolo incendiar o almoxarifado invadir o gabinete virar o balde com vontade mandar a digníssima autoridade para a puta que o pariu depois voltar pro mato e mergulhar os pés descalços nalgum rio

RAUL BOEIRA músico e compositor

Carlos Besen

Fio a fio eu me desconfio. Aguço o agudo sob o algodão da superfície. O que guardo, deságuo, armazeno punhais de água. Sei umedecer por ocasião, sei quando não devo me consumir nos meus resumos. Rascunho é preferível, riscar já é tecido. carlosbesen@gmail.com

DESCONFIAR É DESFIAR

raulluar@receita.fazenda.gov.br

Do que desconfio, desfio. Minha nudez refrata farrapos. Para não me abandonar, eu me arrepio com perguntas terríveis, eu me ofendo com respostas indecisas. Arrepiar é a primeira maneira de se vestir, aprendi com meus nascimentos. Ofender também é uma maneira de se despir, tive que me desaprender No frio, não tenho cobertor para me resguardar. Todo fio me atravessa com uma poça de vento.

lento torpor desta eterna metáfora percorre nossas veias atingem o mundo como outra morte a sós na diáspora.

Esferas você tem um olhar de planície e mesmo tão triste que lindo que é você tem um olhar que incide entre a argila e o grafite entre o granito e a guiné você tem um olhar de menina Carmen, Frida, bailarina e que lindo que ele é é que quando você me destina essas feras pequeninas não consigo nem pensar e azar é do passado o futuro foi tombado o agora é só o que há é que quando você vaticina minha desordem matutina meu moderno corroer estas esferas morenas divindades madalenas me fazem amar e tremer

MARCO DE MENEZES arrebaldeacao@hotmail.com

LUIZ CARLOS AMARO luizcarlosamaro@hotmail.com Poemas em Preto e Branco Ed.Scortecci, 2005.

há palavras velhas caducas novas todas elas me falam alguma coisa por exemplo amor abstraindo-se sua essência romântica é linda como a flor a palavra saudade até parece cristalizar o tempo e é tão presente no encontro e vida quando transformada em verbo é uma enorme solução

BARROS PINHO Planisfério, 2001, ed. Corisco


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entrevista

LIA DE ITAMARACÁ

Cirandando a vida na beira do mar Com foi o seu contato com a ciranda, a senhora aprendeu a cantar com alguém? Isso foi um dom que Deus me deu. Meu sonho sempre foi cantar ciranda. E o que é a Ilha de Itamaracá? É o seu mundo, a sua casa, o que significa a Ilha pra senhora? É o lugar onde nasci, me criei, lá me sinto muito feliz com todos. E acho a Ilha muito bonita, a praia linda. Existe uma preocupação de preservar a tradição da ciranda, algum centro cultural, alguém se preocupa em levar adiante essa tradição ou ela está enfraquecendo, acabando? Não acaba, não. Em Itamaracá, se eu morrer, a ciranda acaba. Mas no Recife tem muito cirandeiro. E cada um com mais coisas bonitas do que o outro. Mas, coitados, tá tudo muito parado, por falta de incentivo cultural. Com tanta coisa boa, e esse povo não enxerga isso... deixar isso se acabar aos poucos. Só eu que tomo coragem, sou muito guerreira. Porque se fosse dar moleza, já viu, né? Por que que a senhora acha que a mídia não dá o devido espaço pra cultura popular? Não sei. Eu não entendo o lado deles. Sei que a gente tem muito o que dar. E tem mesmo! Então é juntar essas pessoas que fazem a cultura do povo e fazer registro, gravar as músicas, incentivar essa gente, porque essa gente é muito boa.

Fernando Ramos e Alexandre Florez, entrevistadores

O que a gente viu hoje aqui no teatro foi uma grande celebração da música, da dança e da alegria entre os artistas e o público. É verdade. A gente sempre traz a música, a dança e toda a alegria. Eu gostei muito. As rádios divulgam a sua música? Divulgam, mas nem tanto. E tem jabá? Jabá, dinheiro? A mim nunca pediram jabá, não. Mas é porque eles me conhecem, sabem com quem tão lidando, que eu não sou besta. Vou bater prego sem estopa! Eles nem vêm falar disso pra mim. Quando a gente ouve as suas composições tem a impressão de que a senhora compõe as cirandas, cocos, maracatus, na beira da praia. Como é que a senhora compõe? É sim, é na beira da praia. Me inspiro é nas ondas do mar! A senhora chegou a estudar música formalmente, participando de alguma escola de música ou canto em algum momento da sua vida? Não. A minha escola é minha mente, minha inspiração, meu talento e Deus. E a senhora já cantou em coro de igreja? Não. Mas a senhora é religiosa? Sou católica apostólica romana. Qual foi a primeira composição que a senhora fez, a mais marcante? A ciranda registrada mesmo foi “Quem me deu foi Lia”, fiz ela lá nos meus 18/19 anos. E a Teca Calazans gravou em 1962. Essa é minha marca mesmo. Outra que me marca muito é “Eu sou Lia”. E essa ciranda, “Quem me deu foi Lia”, é um tipo de música muito antiga, tem um jeito ancestral, né? É sim. A senhora conheceu o Hermínio Bello de Carvalho? (É dele um dos textos que vem no encarte do seu cd “Eu sou Lia”). Vocês fizeram alguma parceria, tem alguma música gravada? Ainda não fiz nenhuma parceria com ele. Mas gostaria muito. Ele é muito bom, é maravilhoso aquele homem. Qualquer hora que tiver chance de fazer parceria com ele eu tô de pé e com a garganta afiada! A senhora ainda continua trabalhando como merendeira numa escola pública lá na ilha? Que plano a senhora tem pro futuro, vai sair outro cd? Como anda a sua carreira musical? Trabalho como merendeira sim, já faz vinte e poucos anos. E temos um grupo de ritmo lá na ilha. Tô preparando o meu 2º cd agora. Tem 44 anos que canto ciranda, já tô com 61 anos de idade. Sou feliz fazendo minhas músicas, vivendo na praia, graças a Deus.

Na Ilha de Lia

Quem viu jamais esquece, quem não viu não pode reconhecer. Noite do dia nove de junho, Salão de Atos da Reitoria da Universidade Federal do RS, mais uma das edições do Projeto Pixinguinha. Atrações: Roberto Mendes, compositor que pesquisa e divulga a chula (ritmo surgido no recôncavo baiano e que vem desde a época da escravatura), Antúlio Madureira, compositor e artesão de instrumentos como a cabala, a marimbaça, o pífano, que interpreta temas eruditos de forma popular e temas populares com técnicas eruditas, e Lia de Itamaracá. Errata: Lia de Itamaracá não é atração, é aparição. Entidade. Durante uma hora um imenso palco (sim, apenas palco, porque tudo era palco, não havia divisão entre platéia e palco) celebrou a dança, na forma de cirandas, e a música de modo transcendental. Uma imensa roda, formada por centenas de mulheres e homens, crianças e velhos de mãos dadas, se embalou imantada pela voz de Lia, festejando a alegria e a beleza de sua música. Era o consagrado ritual de um povo sofrido combatendo o banzo ancentral. A cirandeira-mor do Brasil, batizada Maria Madalena Correia do Nascimento - em Pernambuco toda Maria é Lia e toda Lia é Maria -, é uma senhora negra esguia, de mais de 1,80m, pés grandes, bonita, sorriso largo, sestrosa, majestosa, única entre os seus 21 irmãos dotada de talento musical, “pela graça de Deus e Iemanjá”. Mais do que talento, vocação, a arte da musicalidade lhe pertence. Sua voz rascante é uma fortíssima melopéia cadenciada. Seu jeito de cantar é particularíssimo, catalisador. Lia compõe suas melodias mesmo sem saber tocar nenhum instrumento e cria seus versos “no ritmo de onda” há mais de 40 anos. São cirandas, cocos, maracatus, muitas músicas de domínio público no seu repertório. Tantas, que a memória de Lia pode ser considerada patrimônio cultural da humanidade. Queimada do sol e do sal da ilha de Itamaracá, como dizem os versos de Paulinho da Viola (Eu sou Lia), animando festejos, bailados e cirandando no embalo do mar, foi que sua conterrânea Teca Calazans a encontrou nos anos 60 na ilha. Deste encontro nasceram os versos “Oh, cirandeiro/ cirandeiro,oh/ a pedra do teu anel brilha mais do que o sol” e “Essa ciranda quem me deu foi Lia/ que mora na ilha de Itamaracá”. Em 1977, Lia gravou seu primeiro LP (Rainha da Ciranda), pelo qual recebeu apenas 20 exemplares e nenhum centavo. Aliás, não foram poucas vezes em que Lia recebeu como cachê de seus shows algumas caixas de cerveja. Um exemplo da nossa proverbial “valorização” da cultura popular. Então, o jeito mesmo era ir ganhando a vida como merendeira de escola pública, que Lia não é besta, rapaz... Mas o anonimato de Lia parece que começou a acabar. Desde 98, quando participou do Abril Pró-Rock (“me meti no meio daqueles roqueiros lá em Recife e quase que não saio mais; êita!, que os roqueiros são danados!”), que Lia vem sendo citada nas músicas de Lenine, Otto e Nação Zumbi. E os turistas acorrem à Itamaracá pra dançar ciranda com a “diva da música negra”, assim definida pelo The New York Times. A Europa também caiu aos pés de Lia: o jornal francês Le Parisien comparou sua voz à cabo-verdiana Cesária Évora e os Djs europeus produzem versões sampleadas de suas cirandas e cocos, botando pra dançar os branquelos das oropa. E se você procurar por lá o cd de Lia, o encontrará nas prateleiras destinadas ao estilo trance music. Mas será que Lia sabe disso? Não sabe, não liga pra isso, porque ela quer mesmo é botar os pés nas areias da praia e olhar o mar de Itamaracá. Depois do show, no camarim, ela autografava, meio sem jeito, o seu primeiro cd - Eu sou Lia - e distribuía fartos sorrisos para alguns fãs que foram, reverentes, admirar aquela entidade. Desconfiada, quase calada, às vezes mal disfarçando a falta de jeito ao ser indagada sobre algo mais particular, ela nos brindou com algumas palavras, que contam um pouco da sua vida e música.

A Ilha de Itamaracá fica a poucos quilômetros de Recife. É uma pequena ilha um tanto atemportal. Não apenas por exibir fortes de 500 anos mas pela ausência de edifícios, viadutos, shoppings e outras parafernálias citadinas. Logo na estrada, um imenso presídio com colônia agrícola faz a gente trincar os dentes. Mas, ao penetrar no coração da ilha, percebe-se que é uma pequena comunidade de pescadores, muitos deles voltados para o turismo. Somos levados de barco para o outro lado do canal onde há uma pequena e paradisíaca ilhota de poucos metros. Lá a gente vai só para ser mimado, tomando água de côco ou algo mais “sério” e comendo um peixinho assado. Já ouviram falar em curral de peixe? Em Itamaracá tem. No mar, perto da praia, há uma cadeia de corais, onde, na vazante, a água fica pela cintura. Aí fomos levados para pôr a cara dentro da água e ver os peixinhos multicoloridos e nos deparamos com um cercado de taquara construído em pleno mar. O pescador/guia nos explicou que, quando a maré enche, a água cobre o cercado.

Com o cercado submerso, os peixes são atraídos para dentro por algum ardil que ele nos explicou, mas eu não lembro. Quando a maré vaza, os peixes ficam presos aí e são literalmente colhidos a mão. Por isso, curral de peixe. À amiga pernambucana que nos pajeava naquelas plagas comentamos que queríamos muito conhecer o maior tesouro da ilha: Lia. Prontamente ela nos levou até a casa de Lia. Mas não a encontramos. Uma menina que passava por ali de bicicleta nos disse que Lia estava bebendo cachaça no boteco. À caminho do bar encontramos uma negra muito alta, vestindo camiseta branca, bermuda de brim, e pés descalços - era Lia. Nos recebeu com a educação e a delicadeza típica das pessoas simples. Tiramos fotos, pedimos autógrafos, damos rédea a nossa tietagem. Esse encontro ficou talhado à faca nos nossos corações. No show que ela fez em Porto Alegre, descobrimos que qualquer encontro com Lia fica assim, tallhado no coração da gente.

Giovanni Mesquita


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Torquato Neto em si maior que

CLÁUDIO PORTELLA clautella@ig.com.br

Refreando justamente com o suicídio, a gás, num banheiro de apartamento na cidade maravilhosa, de Torquato Neto. Não morria naquela data, 10/11/1972, o compositor, jornalista e papa da Tropicália. Morria ali - assim como a morte de Janis Joplin, Jim Morrison e Jimi Hendrix (a trilogia do J), representou para os “porras-loucas” de seus países - o mais emblemático ídolo dos “porras-loucas” brasileiros. Um jovem que erguia e desmoronava pilares, que com arguta inteligência transava todas, desde a formatação de um movimento estético-cultural, que foi a Tropicália, passando pela música (que devido ao fácil acesso é a paixão maior de todo jovem) e o jornalismo (outra paixão) e desaguando no cinema udigrudi, o que com uma super-8 na mão e sem uma idéia muito clara na cabeça, fazia-se cinema de primeira. A biografia traz de polêmico a homossexualidade de Torquato, seu caso de vários anos com o piauiense Adherbal Tomas de Aquino e seu provável romance com Caetano Veloso. Revela também seu lado drogueiro. Torquato Neto era grande consumidor de entorpecentes: fumava maconha diariamente, bebia em demasia e tomava ácido. Toninho não reproduz esse texto na biografia, mas há no livro Os Últimos Dias de Paupéria, uma passagem dos textos que Torquato escreveu nos sanatórios, os quais chamava Engenho de Dentro, onde ele revela uma “experiência” com L.S.D; que constou no uso diário de L.S.D por mais de um mês. Aqui voltamos ao chavão: o homem é produto do meio e etcétera. Torquato fazia uma “experiência” perigosa, na mesma época, muito provavelmente influenciado pelo próprio, em que o psicólogo Timothy Leary fazia o mesmo. É fácil pensar que cultura e abuso de drogas eram indissociáveis nos anos em que a contracultura montava suas bases. Capinam até se sentia descriminado, naquela época, por ser careta. Busco um outro caminho e me arrisco a intuir que por mais bem feita, honesta e necessária essa biografia do Torquato, ficou, em alguns capítulos, por demais datada. Senti falta de maiores depoimentos da família. Devo confessar que sou bom amigo do pai de Torquato, Dr. Heli da Rocha Nunes, que atualmente mora na cidade natal de meu pai, Picos, PI. E cheguei a ouvir de Heli que seu filho, já nas últimas, confessara a ele que não conseguia se libertar do vício da droga, que queria muito, mas não conseguia. Não acredito nisso. Ele até poderia ter algum distúrbio, mas que se agravou, consideravelmente, por conta do uso abusivo de drogas. Pra mim, Torquato morreu agarrado à sua bandeira, como aconteceu com a trilogia do J. Recusava a encarar um mundo careta. No fundo ele sabia que se continuasse acabaria tendo que achar Peninha o máximo ou num cargo do Ministério da Cultura, que de Cultura só tem a “fachada”. Torquato procurou os sanatórios para tratar de sua dependência química, não de uma possível esquizofrenia. E é aqui que mora o equívoco: a droga não é e jamais será característica de geração alguma. Ela é sempre uma postura individual. Foi assim com a geração anterior à de Torquato.

Explicação do Fato

(Poema inédito)

I Impossível envergonhar-me de ser homem. Tenho rins e eles me dizem que estou vivo. Obedeço a meus pés e a ordem é seguir e não olhar à frente. Minúsculo vivente entre rinocerontes me reconheço falho e insisto. E insisto porque insistir é minha insígnia. O meu brasão mostra dois pés escalavrados e sobram-me algumas forças: sei-me fraco e choro. E choro e nem assim me excedo na postura humana: sofro o corpo inteiro, pendo e não procuro a arma em minhas mãos. Sei que caminho. E só. Joelhos curvam-se, amaziam ao chão que queima e me penetra e eu decido que não posso envergonhar-me de ser homem. A criança antiga é dique barrando o meu escôo e diz que não, não me envergonhe. Não me envergonho. Tenho rins mãos boca órgão genital e glândulas de secreção interna: impossível. No entanto sinto medo e este é o meu pavor. Por isso a minha vida, como o meu poema, não é canto, é pranto e sobre ela me debruço observando a corcunda precoce e os olhos banzos.

II Também tenho uma noite em mim e tão escura que nela me confundo e páro e em adágio cantabile pronuncio as palavras da nênia ao meu defunto, perdido nele, o ar sombrio. (Me reconheço nele e me apavoro) Me reconheço nele, não os olhos cerrados, a boca falando cheia, as mãos cruzadas em definitivo estado, se enxergando, mas um calor de cegueira que se exala dele e pronto: ele sou eu, peixe-boi devolvido à praia, morto, exposto à vigilância dos passantes. Ali me enxergo, à força no caixão do mundo sem arabescos e sem flores. Tenho muito medo. Mas acordo e a máquina me engole. E sou apenas um homem caminhando e não encontro em minha vestimenta bolsos para esconder as mãos, armas que, mesmo frágeis, me ameaçam. Como não ter medo? Uma noite escura sai de mim e vem descer aqui sobre esta noite maior e sem fantasmas. Como não morrer de medo se esta noite é fera e dentro dela eu também sou fera e me confundo nela e ainda insisto?

Divulgação de PRA MIM CHEGA - A BIOGRAFIA DE TORQUATO NETO

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roust repudiava as frases feitas, ofeitas, sensoocomum. Também Proust repudiava as frases senso comum. não me o que parece uma opinião pública. Ao Também não agrada me agrada o que ser parece ser uma opinião me Ao deparar com com um um consenso geral, pública. me deparar consenso geral,tento tento logo cortar caminho, procuro outras veredas que levam a outra explicação. Falo de Pra mim chega – a biografia de Torquato Neto, que agora parece ganhar os louros que lhe são devidos. No período de menos de um ano, ganhou dois tomos de sua obra, Torquatália de Paulo Roberto Pires, e essa biografia narrada pelo jornalista Toninho Vaz. Mas eu falava era dos consensos, do primordial consenso que parece pautar as biografias e os tratados de história: o homem é produto do meio. Parece ser inviável dissociar o homem de seu tempo, da época, do período político-sócio-cultural determinado pelo seu natalício e falecimento. E é seguindo essa linha, de não só traçar a história pessoal de Torquato Pereira de Araújo, neto (isso mesmo, com minúscula e vírgula), que Toninho Vaz conta também a história do desbunde cultural brasileiro, que teve seu auge de 64 a 72.

No Brasil podemos citar Assis Valente, se suicidou na terceira tentativa, ingerindo formicida e se atirando do Corcovado, e Vicente Celestino (esse, participando de um programa tropicalista, se escandalizou com uma cena onde os tropicalistas faziam da banana a hóstia sagrada - em referência à Santa Ceia. Saiu irritado da gravação para morrer horas depois num quarto de hotel, literalmente, do coração) que não conseguia parar de beber. Da geração seguinte: Raul Seixas, Cazuza, Renato Russo e Elis Regina, que embora tenha começado a gravar quando Torquato ainda vivia, inclusive gravando o próprio, só veio se firmar anos depois. Fora do Brasil, cito Billy Holiday, Charlie Parker, Elvis Presley e o emblemático Kurt Cobain.

Estive com o autor da biografia de Torquato, o Toninho Vaz, aqui em Fortaleza. Conversamos bastante, e eu lhe dei meu livro BINGO! e a primeira edição da revista Arraia Pajéurbe, que traz como destaque uma grande e curiosa entrevista com o pai de Torquato, o já citado Heli da Rocha Nunes. Essa primeira edição da revista é de nov/dez de 2000. A entrevista, apesar de algumas dissonâncias, foi um marco importante após a morte de Torquato. E que não foi citada na relação de acontecimentos importantes que traz o livro de Toninho Vaz. Outra ausência significativa da listagem foi a publicação de Explicação do Fato. Longo, e talvez o mais elaborado poema de Torquato Neto, foi publicado pela primeira vez na revista literária piauiense Pulsar, editada por Paulo Machado, em 1999. Aliás, Toninho Vaz foi extremamente feliz ao publicar Explicação do Fato nessa biografia, não se importando com o tamanho do poema e se mostrando entendedor de boa poesia. O mesmo não aconteceu com Torquatália, lançado há alguns meses: a ausência desse poema talvez seja a maior lacuna dessa antologia. Brindamos os leitores do Vaia com a reprodução do poema em questão. O que mais poderia acrescentar a uma obra tão completa como essa biografia? Lembro-me de uma historinha me contada pela própria Olga Savary, esposa do Jaguar naquela época, quando essa esteve aqui em Fortaleza, em 2001: que o Torquato, enfurecido, na redação de O Pasquim, deu um forte empurrão em seu marido, o que resultou na fratura de uma perna do Jaguar. Esse era o Torquato Neto, o piauiense que não levava desaforo de ninguém e que cobrava explicações não só do fato - em alusão ao poema aqui reproduzido e que na biografia não é revelado o título, provavelmente porque Toninho não tenha tido acesso à revista Pulsar nº1, de 1999 -, mas também da coisa, de qualquer coisa que cheirasse à vanguarda. Torquato trabalhou desde a adolescência num livro de poesia intitulado de O Fato e a Coisa. Tenho também uma carta do jornalista e musicólogo Ary Vasconcelos (a mim endereçada em abril de 2000), onde me conta do seu encontro com Torquato Neto: Ary era jornalista musical da famosa revista O Cruzeiro quando Torquato, em visita à sua redação, se depara com ele e os dois conversam bastante sobre música. Na carta, Ary me fala que era visível a genialidade de Torquato. O musicista Ary Vasconcelos foi responsável por vários dos textos da coleção MPB, da editora Abril, que nos 80’s era comercializada nas bancas de revista. Essa afamada coleção ajudou a cunhar de vez a sigla MPB. Essa minha matéria busca ajudar no perfil do homem, acima do mito, Torquato Neto; que optou, em vida, encurtar sua biografia. Pra mim chega, agora em alusão ao título do Toninho, dessa ladainha do poeta que morre jovem, buscando a consagração antes das rugas. O que o Torquato quis foi dar as pistas para a maturidade de sua geração, a qual, sem o seu suicídio, jamais pararia pra uma prova dos nove. Lendo essa biografia do Toninho Vaz, sinto o Torquato, um senhor de 60 anos, ao meu lado. III Vou à parede e examino o retrato, irresponsável-amarelo-acinzentado-testemunha. Meus olhos não se abrem e mesmo assim o vejo. E mesmo assim te vejo, ó menino, encostado à palmeira de tua praça e sem querer sair. E mesmo assim te penso dique, desolação de seca na caatinga, noite de insônia, canção antiga ao pé do berço, prata fósforo queimado poço interminável, seco. Ouço o teu sorriso e te obedeço. Eu que desaprendi a preparação do sorriso e não o consigo mais. Estou preso a ti, ainda agora, apesar do cabelo escurecido, as mãos maiores e mais magras e um súbito medo de morrer, amor à vida, tolo. Tenho presa a ti a palavra primeira e o primeiro gesto de enxergar o espelho: ouço-te, sou mais desgosto em mim, incompreensível. À tua ordem decido não envergonhar-me de existir nesta forma disforme e de osso carne algumas coisas químicas e uma vontade de estar sempre longe, visitando países absurdos.

Não posso envergonhar-me de ser homem. Tenho um menino em mim que me observa e ele tem nos olhos (qual a cor?) Não é viável. Nem eu mesmo sou viável, e como não? Não sou. O que é viável não existe, passou há muito tempo e eram manhãs e tardes e manhãs com sol e chuva e eu menino. Eram manhãs e tardes e manhãs sem pernas que escorriam em tardes e manhãs sem pernas e eu sentado num tanque absurdamente posto no meio da rua, menino sentado sem a preocupação da ida. E era todo dia. Havia sol e eu o sabia sol: era de dia. Havia uma alegria do tamanho do mundo e era dia no mundo. Havia uma rua (debaixo dum dia) e um tanque. Mas agora é noite até no sol. todas as manhãs e tardes e manhãs com sol e chuva e eu menino, que me alumiava. Tenho um menino em mim e ele é que me tem: por isso a corcunda precoce e os olhos banzos: tenho o corpo voltado à sua procura e meu olhar apenas toca, e leve, a exata matriz da calça molhada em festa vespertina da bexiga.


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08 ra o barEra mais freqüentado daquele quarteirão, o bem bar mais bem freqüentado daquele pois lá pois havialáum bando pinguços de responquarteirão, havia um de bando de pinguços de sa que responsa quese seentupiam entupiam de cangibrina cangibrina e bom humor continuamente. É claro que um grupo tão distinto, tão imbuído de ideais tão nobres, altos e lúcidos, não poderia passar incólume pelas línguas soltas e detratoras de alguns críticos que, só porque não tinham mais o que fazer ou porque eram patrões sem funcionários, pais sem famílias, senhorios sem aluguéis e todo tipo de aporrinhação que existe nesse mundo, resolviam criticar os bons hábitos de nossos heróis.

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- Quem fala da quantidade que eu bebo, nunca me pergunta o tamanho da minha sede - respondia assim, em axioma filosófico, o Betão Banguela, mais conhecido por Banga da Baixa Gogô. Baixa, sim, pois a parte de cima cheirava mal, segundo o mimoso. Era muito perto da vila do IAPI, o que, nas palavras carinhosas dele, significava lugar de gente pobre, porém fodida. Achava-se um incompreendido na sua arte de beber. E bebia, puta merda! Não só o Banga, mas toda aquela galera. Vão beber assim lá no bar do Rolinho, cacete! E iam, toda aquela catrefa reunida: Charanga, Chupeta, Chaveco (o lagartão, baba ovo), o Zizão, que ficava eternamente na porta do bar (conhecido nas interna como o “cara da porta”), o Zé Limão (que gostava de pedir “um martelo de limão, por favor, mas sem limão que é frescura”), o Paulinho PC (que tinha esse apelido em função do meigo hábito de chamar todo mundo de “paunocu paunocu paunocu”, assim rápido, várias vezes e bem rápido), entre outros representantes da loucura humana. Essa turma unida em torno do ideal de tirar sarro de tudo e de todos, enquanto enxaguavam o verbo, também tinham suas discórdias, que começavam no futebol e encerravam no futebol, passando por tudo quanto é besteira que se possa imaginar, como família, política, religião... E volta e meia o pau comia entre eles mesmos, desde que ficasse claro que só caceteavamse mutuamente quando não tinha nego de fora, já que, por questão de educação, a visita tem sempre prioridade.

Bar do Rolinho - 2

BRIGA FEIA - Não,,, Fica tranqüilo que isso se resolve com bom senso e os costumes. Agora garra jeito de hôme que o resto da corja tá chegando! - afirmou seu Rolinho. Zé Limão secou os olhos e a baba no canto da boca e foi pra casa cuidar dos assuntos de família. Nisso começam a chegar os outros integrantes do covil: – Salta uma água mineral francesa aromatizada com flores da montanha, seu Rolinho, berrou Zizão (aquele que sempre ficava parado na porta do bar), já emendando: - Se não tivé, me traz uma loira e um martelo, e se tivé bota fora essa merda e me dá uma loira e dois martelo, que aí já é desaforo! Era o deleite do seu Rolinho, que ficava admirando aquilo enquanto murmurava: - Espetáculo... E logo o templo estava lotado de freis, ocupados da sagrada missão de beber e falar mal da vida alheia. Até que lá pelas tantas alguém perguntou pelo Zé Limão, ao que seu Rolinho explicou: - Deu uma merda grossa com o coitado; pegou o filho acocando no patL . Coisa mui feia... Silêncio geral. Seu Rolinho meneava a cabeça para os lados, e em um movimento simultâneo trocava o pano da esquerda para a direita, enquanto o palito que sempre ficava no canto da boca rolava no sentido contrário (coisa de louco!). Diante da estupefação geral, seu Rolinho acrescentou: - E com o priminho! O Nandão, filho do falecido João Marreta! - Priminho o escambau! O cara é um boi de grande. Quer dizer: pelo jeito boi não; o cara é um touro! -falou Zizão.

Pois aconteceu que um dia chegou o Zé Limão, no horário em que a livraria de seu Rolinho tinha um trânsito menos intenso de autores. Chegou com cara de quem havia comido Mário por Maria, senta num daqueles tamboretes mágicos da tinturaria, fita o velho mestre e pede: - Faz favor seu Rolinho, uma pinga pura. O pastor Rolinho, que conhecia seu rebanho pelo passo, serviu o remédio ao paciente deixando a garrafa na frente do Zé Limão, que depois de virar a solução salvadora em um só gole, olhou para a garrafa do Aladim na sua frente e perguntou: - Esqueceu a arma capitão? - Esqueci não. Deixei pra ti, pois pelo jeito a guerra vai ser longa. E capitão era minha mãe, que nessas horas deve ter virado marechal. Zé Limão apenas recarregou a metranca e nem retrucou, o que fez seu Rolinho ficar ainda mais preocupado. Deixou o Zé reabastecer umas oito vezes, parou na frente do confrade e disse: - Solta logo enquanto o resto não chega. Vomita o sapo duma vez. REST - 1929

- Baita duma merda, seu Rolinho! Baita duma merda! Troço de corá até nego do PDS, seu Rolinho! Uma baita duma merda! Zé Limão estava com os olhos marejados. Seu Rolinho, que fez especialização em psicologia na faculdade de garçom, respondeu: - Merda feia é ser primogênito em época de praga, o resto se dá um jeito. - sentenciou o terapeuta, trocando da direita para a esquerda o indefectível pano de limpar sovaco & balcão, para comprovar que a coisa era séria. - Pois é, seu Rolinho! Aí é que tá a merda! Taí a GB, caralho! Pra tudo se dá um jeito e nem sempre é só o jeito que se dá... Puta que os pariu, seu Rolinho: agora há pouco cheguei em casa pra tomar um banho e tava lá o meu guri, o Chandinho, sabe, de frescura com o primo dele, o Nandão, sabe? Aquele que tem a mesma idade dele, mas porra, tem o dobro do tamanho do piá. - disse o Zé Limão, antes de sorver seu décimo martelo de pinga. - Coisa de guri, Zé. Curiosidade... Dá uma camaçada de pau e depois compra umas revistas do Carlos Zéfiro pra ajudar na catequização. Nada sério. - observou o doutor Rolinho, terapeuta familiar. - Pois é, Rolinho. Guri é foda, né? Doze, treze anos, aquela tesão fodida e tal e coisa. Então tu acha que não é coisa de mandá o desgraçado pra fazê arquitetura em Pelotas? Tu acha que é só carência afetiva da madeira de dá em doido, ô Rolinho? Tu acha mesmo, hein Rolinho? - perguntava o Zé Limão, com seu peculiar ar de cachorro bêbado.

- Caralho de guri veado de merda. Nunca me enganou. - falou o Banga da Baixa Gogô. - Mas que nunca te enganou o quê? - indagou seu Rolinho. - Se tu mal via o guri. - Mas quê guri nada! Tô falando que viado é o Zé Limão, porra, que botô o veadinho no mundo! - tascou o Banga, entre as gargalhadas gerais. É necessário compreender que quando alguém confidenciava algo a seu Rolinho, este percebia que o constrangimento do depoente estava na vergonha de contar para os outros a desventura. Resolvia então o problema contando tudo para todo mundo logo de uma vez, pois seu terreiro não era lugar de frescura. Algumas caixas depois, chega o Zé Limão, bem mais tranqüilo. Senta, pede logo uma pinga de limão, mas sem limão e aquela coisa toda, quando o Chaveco dispara em sua direção: - Acho melhor servir com limão e bastante açúcar, seu Rolinho, que é um caso de viadagem paternal. Todos caíram no riso amigo e franco em solidariedade ao querido amigo Zé Limão, que a essa altura da liça, percebeu que seu infortúnio já era conhecido. Baixou a cara no balcão, escondendo-a entre os braços enquanto desabava a chorar de vergonha e repetir desolado: - Já tomei uma garrafa de pinga, já dei uma puta duma surra nesse merda, e nada adiantou, que essa minha dor não passa. Me dá outra garrafa que depois eu vou lá dar outra surra naquele ingrato! - dizia o pobre Zé Limão, entre soluços.

- Calma! - disse o Paulinho PC - Esses filho são tudo uns paunocu paunocu paunocu. É tudo assim mesmo. A diferença que esse teu é no sentido mais prático: não só é, como levou - acrescentou Paulinho PC, no auge de sua meiguice. A todas essas, seu Rolinho, que era pai e não padrasto, consolava o amigo: - Calma, Zé. É só uma fase... De fezes, mas só uma fase. Ruim pra diabo, mas ainda assim só uma fase. Coisa que dá e passa. Ao sentir o apoio do amigo de todas as horas, o humor do Zé Limão começou a melhorar, e ele já começava a enxugar as lágrimas, quando Paulinho PC deu a L nfase que faltara às palavras do mestre: - O brabo é se, mesmo dando, não passar essa velha! O Zé, que assim como o PC e o resto tava mamado pra diabo, não entendeu bem e pediu pra ele se explicar melhor: - Que merda é essa de passar a velha? indagou o Zé, novamente babando-se de bL bado. – É isso mesmo, Zé. O brabo é se mesmo dando, não passar essa velha vontade que ele deve ter de agasalhar um croquete! – explicou o Paulinho PC, com os olhos esbugalhados de loucura e bebedeira. Nisso o Zizão, eternamente parado na porta do bar, tentou serenar as coisas, lembando ao Paulinho que o veado em questão era apenas um moleque, ao que PC retrucou: - É? Então vão vê que a velha vontade que ele tem deve ser de brincar de mágico e esconder a varinha, que inclusive, ao que me consta, de varinha não deve ter nada, a julgar pelo tamanho do priminho Nandão.

Foi aí que o Zé Limão estourou. Pulou do tamborete e foi pra cima do PC, e ficaram os dois, focinho contra focinho, empurrando-se feito dois rinocerontes bL bados, rosnando um para o outro, soltando seus bafos de tigres loucos em uma cena dantesca, até que foram parar na rua. Seu Rolinho rapidamente foi para a extremidade do balcão que oferecia melhor visão da rua, carregando várias garrafas de remédio para melhor servir aos apreciadores da contenda, que nesse ponto estavam apinhando-se na porta daquele coliseu, esperando um delicioso debate filosófico entre amigos. Alguns já começavam a preparar as apostas, espantando o Lagartão (alicate de profissão) a chutes para longe, quando a violL ncia da incompreensão humana desnudou-se aos olhos atônitos de todos, através das habilidades de combate de nossas feras ensandecidas: Paulinho PC resolveu começar a luta com um nobre pontapé no saco do opositor, enquanto este, sem tomar conhecimento do perigo que corria, armou seu melhor gancho lateral de esquerda, mirando as fuças do colega de infinitas bebedeiras. E por falar em bebedeiras, a do dia em questão estava especialmente forte; tanto que nenhum dos gladiadores tomou conhecimento dos golpes desferidos contra eles, já que o Paulinho PC errou o pontapé que mirara nas pudendas partes de Zé Limão. Como sua perna não encontrou o alvo, não parou de subir rumo o infinito, levando o corpo desengonçado que dela dependia para manter o equilíbrio a estatelar-se no chn o, numa etílica falta de coordenaçn o motora só comparável a idL ntica falta do Zé Limão, que errou seu golpe, fazendo com que seu punho cruzasse o espaço rumo ao nada, não parando a não ser quando chegou ao fim de sua trajetória, levando o ébrio pugilista ao desequilíbrio e ao conseqüente tombo no chão. Nossos guerreiros terminaram ambos desmaiados por seu porre total e pela completa inaptidão à briga de rua. Ao acabar o evento esportivo, todos os olhares voltaram-se para o seu Rolinho, que meneava a cabeça para cima e para baixo, com o queixo franzido, como que corroborando em gesto a frase imortal, que entraria para sempre no corolário daquela catrefa: - Ô briga bem feia. Feia de se assisti.

CHARLES ABBEG charlesabegg@yahoo.com.br

Autor de “Mortalha e outros poemas”, editora do autor, 2004


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Como um sol que explode NILTO MACIEL autor de Pescoço de Girafa na Poeira Bolsa Brasília de Produção Literária - 1998

REST - 1929

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odo dia Abelardo seguia os passos de Camilo. Porque quase nunca este se encontrava com Maria no mesmo lugar. Um dia Camilo perguntou se Abelardo gostava de sofrer. Ficou mudo e se afastou do irmão. Não sabia explicar por que necessitava ver, de perto e sempre, aquelas cenas animalescas. Mordia os lábios, arregalava os olhos e estremecia. Talvez devesse apresentar-se no momento do êxtase do casal e interromper aquela semvergonhice. Não, não tinha coragem para nada na vida. Um covarde, um medroso. Certa vez não precisou seguir Camilo. No dia anterior ouvira, por três vezes, Maria e o namorado se despedirem assim: "Amanhã na ponte". Saiu de casa antes do irmão. Escondido, viu a moça chegar. As águas do rio corriam lerdamente. Os mosquitos voavam e ziniam. E Camilo não aparecia. Maria olhava para os lados, sentava-se, andava e resmungava: "Amanhã na ponte. Ou amanhã na fonte? Na ponte, na fonte". Olhos arregalados na direção da amada, Abelardo mordia os lábios. Por que Camilo não chegava? Talvez perdido na fonte. E Maria já se preparava para partir. Oh! não partisse. Prometia-lhe mil beijos, carícias de mãos, um abraço imensurável e o amor mais ardente. Porém ela sumiu entre as folhagens, feito uma fada, e ele gemente, os lábios em sangue e o corpo todo em chamas. Em outro desencontro do casal, porém na fonte do Riacho do Marco, deu-se de Maria não aparecer. O chiado das águas parecia cantar: "espera, amor, já vou, já vou".

E Camilo sossegado, assobiando e às vezes rindo. Súbito levantou-se do chão e caminhou em direção aos olhos arregalados de seu irmão. "Por que você me segue todo dia?" O sol já não queimava tanto e os passarinhos voavam ao redor das árvores. "Enquanto você quer sofrer, eu quero me livrar do sofrimento". Abelardo pedia desculpas, perdão. Só faltava ajoelhar aos pés do irmão. "Você ama mesmo Maria? Por que não luta por ela? Eu não a amo, meu irmão. E ela tem piedade de mim. Ninguém me ama. Papai? Meu genitor. Mamãe? Minha genitora. Nunca me quiseram. Como você é diferente. E você sabe disso. Você é o filhinho predileto deles".

Camilo convidou Abelardo a sentaremse. E retirou um revólver da cintura. Pretendia matar Maria e, em seguida, se matar. Sua história acabaria ali, naquela fonte. No entanto, havia mudado de idéia. Não haveria mais mortes. Ou poderia acontecer apenas uma morte. Apanhou de novo a arma e girou o tambor cinco vezes, retirando cinco balas. "Você já ouviu falar de roleta-russa?" E propôs: primeiro o irmão, depois ele. Uma tentativa para cada um. Se Abelardo não morresse, ele apontaria a arma para a própria cabeça. E Maria seria do irmão. A entrega dela a Abelardo se daria no dia seguinte àquele, ali mesmo na fonte. Camilo ficaria atrás da moita, enquanto o irmão se apresentaria à moça. Falaria de seu amor por ela e de seu conhecimento dos encontros dela com Camilo. Se ela oferecesse resistência, ele prometeria contar para toda a cidade as semvergonhices dos dois. O pai dela a enxotaria de casa e todo homem daria mil réis por uma horinha de cama com ela. Nem Getúlio Vargas a salvaria da desonra. Convencida, Maria se deitaria no capim, e o próprio Abelardo retiraria suas vestes. No melhor momento da cena, Camilo surgiria do mato. E ela não teria mais como voltar para ele. No horizonte a luz vermelha do sol se misturava ao verde da serra. Os pássaros piavam melodicamente nas árvores. Abelardo mordeu os lábios, fechou os olhos e levou o cano da arma à própria cabeça. E deu-se um estampido como o de um sol que explode.

Todos os Cantos e Contos Negreiros

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MARCELINO FREIRE

CONTOS NEGREIROS

Tem negro de pele em negro de pele muito muito branbranca, quase albino mesmo, ca, quase trabalhando descalço, capinando diuturnamente sua lavoura de fumo no interior do município de Sobradinho, no Rio Grande do Sul. Neto de imigrante pomerano é semi-analfabeto e não tem a maioria dos trinta e dois dentes da boca. Os que restam estão em caco. Tem negro amarelo de olhinhos puxados cuidando das suas hortaliças e tomateiros e sorrindo para o atravessador que vem explorá-lo na periferia de Cascavel, no Paraná. Bisneto de imigrantes japoneses, vindo, não de Honshu a maior ilha, o Japão aristocrata, mas de Okinawa e Hokaido, um Japão plebeu, sem terra e sem honra perante seus senhores feudais. Tem negro de todo matiz, carregam um sinal comum: a pobreza, a falta de instrução. Porque se fossem azuis e possuíssem dinheiro branqueavam na hora. A sociedade brasileira é oportunista. Mas como disse – e muito bem - meu colega Bira Azevedo na sua canção Trânsito:

O livro Contos Negreiros de Marcelino Freire, pernambucano, brasileiro, negro assumido na linha de Xangô, trata de todos os matizes possíveis dessa nossa uma pele que se revela multicor, e sob qualquer derme é negra. Marcelino expõe de forma contundente o preconceito. Usando uma linguagem forte, lírica, enxuta, deliciosa. Ele conta como se falasse a nossos ouvidos, como se lesse para nós, entoando ao acordo a voz de cada personagem. Na mais pura tradição mourisca do contador de estórias que influenciou o cordel e o repente do seu amado Pernambuco...

"Enquanto Zumbi trabalha cortando cana na zona da mata pernambucana Olorô-Quê vende carne de segunda a segunda ninguém vive aqui com a bunda preta pra cima tá me ouvindo bem?” (Trecho do Canto Primeiro – “Trabalhadores do Brasil”) Não ouvem não, Marcelino! Os negros de pele mais clara deste país não ouvem os de pele mais escura, e os de pele mais escura que têm dinheiro já não ouvem os negros de pele mais clara que não têm, nem os de pele retinta, também paupérrimos. Porque o sonho de todos os negros, que são todas as gentes deste imenso negreiro chamado Brasil, é galgar o estrelato no Big Brother. É virar Xuxa. É darse a brejeiradas fiscais e movimentar zilhões para comprar o mundo. Marcelino, ainda que não ouçam nitidamente, continua firme teu canto. ALEXANDRE FLOREZ alexflorez2003@yahoo.com MARCELINO FREIRE - Contos Negreiros Editora Record, 2005.


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A POESIA DE CADA DIA apresenta poemas do

Sacrifiquei uma amizade por uma palavra a mais, um amor por uma palavra a menos, uma leitura pela falta de insistência. Modifico a infância ao avançar. Esqueço a data ao preencher o cheque. Uso chapéus dentro de casa. Deveria ser preso por atravessar uma praça ensolarada e não sentar. Atravessar uma vida sem atalhar pela praça.

Como no Céu

Todo o homem, antes ou depois de se revelar, é filho de um parto onde sua mãe morreu. Alcançar na terra o que o ventre cedia de água, vento e córneas.

** Perto do desenlace, todo marido é filho. Ninguém atravessa a morte casado.

Eu somente não sou cínico com as crianças; Mesmo com elas, tenho que me controlar.

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** Teus olhos iniciaram meus ouvidos. Não beijo sem morder. E até o teu pé na sandália é uma boca entreaberta.

** Nos longos períodos sozinha em casa, passavas café, logo tu que não gostavas de café. O cheiro de café diminuía tua solidão.

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Poe As palavras

São como um cristal, as palavras. Algumas, um punhal, um incêncio. Outras, orvalho apenas. Secretas vêm, cheias de memória. Inseguras navegam: barcos ou beijos, as águas estremecem.

Ela escolheu envelhecer comigo. Pode ter sido compaixão pela minha falta de jeito, acaso ou um acidente dos cabelos lisos. Ela escolheu envelhecer comigo. Pode ter sido amor, simpatia ou alguma perda fora de mim que despertou suas perdas. Pode ter sido a idade que pedia um marido, sei lá, o marido pedia uma idade. Ela escolheu e aqui fez sua noite. Suas mãos se toldam em uma tenda quando alivia minha barba de outros odores que não o seu.

sia empre Frente a frente Nada podeis contra o amor, contra a cor da folhagem, contra a carícia da espuma, contra a luz, nada podeis. Podeis dar-nos a morte, a mais vil, isso podeis - e é tão pouco!

Livro de Visitas

livro Como no Céu/Livro de Visitas de Fabrício Carpinejar

Quem as escuta? Quem as recolhe, assim, cruéis, desfeitas, nas suas conchas puras?

Correr do tempo ou só rumor do frio Onde o amor se perde e a razão de amar --- surdo, subterrâneo, impiedoso rio, para onde vais, sem eu poder ficar?

Surdo, subterrâneo rio de palavras me corre lento pelo corpo todo; amor sem margens onde a lua rompe e nimba de luar o próprio lodo.

Eu me coloco em seu lugar e vejo que não aprendi a ser discreto.

** Domino o impulso de sair para fora da vida para entrar cada vez mais nela. O sopro que apaga a vela reacende a chama.

O homem é resultado de suas mulheres. Abro a janela se escuto uma voz. Abro uma porta se pressinto passos. Eu me antecipo para depois me adiar. O homem é resultado de suas mulheres. Tive uma manhã, não uma noite, uma manhã como amantes casados. Com a luminosidade intensa, cerrei os olhos para enxergar. Tive um pouco mais do que uma vida em uma manhã.

Urgentemente

Não sei porque diabo escolheste janeiro para morrer: a terra está tão fria. É muito tarde para as lentas narrativas do coração, o vento continua a tarefa das folhas: cobre o chão de esquecimento. Eu sei: tu querias durar. Pelo menos durar tanto como o tronco da oliveira que teu avô tinha no quintal. Paciência, querido, também Mozart morreu. Só a morte é imortal.

Surdo, subterrâneo rio

Ela senta ainda com o sêmen entre as pernas, a invasão indefinida, pressionando o fluxo a lavar a promessa de filhos.

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Não sei

Desamparadas, inocentes, leves. Tecidas são de luz e são a noite. E mesmo pálidas Verdes paraísos lembram ainda.

O amor exige humildade. Recolher as roupas do quarto com a nudez morna, esquecida de seus transtornos.

É urgente o Amor, É urgente um barco no mar. É urgente destruir certas palavras, ódio, solidão e crueldade, alguns lamentos, muitas espadas. É urgente inventar alegria, multiplicar os beijos, as searas, é urgente descobrir rosas e rios e manhãs claras. Cai o silêncio nos ombros e a luz impura, até doer. É urgente o amor, é urgente permanecer.

*** Essa mulher, a doce melancolia dos seus ombros, canta. O rumor da sua voz entra-me pelo sono, é muito antigo. Traz o cheiro acidulado da minha infância chapinhada ao sol O corpo leve quase de vidro. (de ”O peso da sombra”, 1982)

Inauguramos nova seção prestando homenagem ao poeta português EUGÊNIO DE ANDRADE, morto no último 13 de junho aos 82 anos. José Fontinhas, conforme seu registro de batismo, é um dos maiores poetas contemporâneos, autor de mais de 30 livros de poesia e outros tantos de prosa.


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REFLEXÃO

A DEMOCRATIZAÇÃO DA MODA

A decadência talvez me atinge: não sei. Estradas tortuosas levam-me, por caminhos ainda mais tortuosos. Aonde vou parar? O sangue escorre macio em minhas veias e não tenho a mínima vontade de ser. Nem de me amoldar. Gosto como estou: parado. Depois, nada me anima, nada me conserva. Aprendo a viver, escutando lamúrias. As árvores já nem são árvores; apenas lamentações que se estendem à beira da estrada. Corpos, cuja sombra eu venero, mas que passam como o tempo em minha consciência. Velha casa. Bois. E o motor do carro, quente. Quanto mais ando, mais me distancio de mim. Vontade que se bebe num copo de cerveja, mas que depois a conseqüência e a morte nos separam como se fôssemos simples substâncias de um invólucro amarelo. Talvez ninguém me atenda e entenda profundamente. Às vezes, distraído, penso alto. O delírio começa. Passo a mão pelo rosto e vejo que está banhado de suor. Meio-dia.

- Mova-se! Essa é a premissa para aqueles que desejam viver a vida sob luzes. E não bastam o sol, o neon, os fulcros de glórias, os rojões... Não!... Não bastam as cores. É preciso muito mais. Uma conquista diária, constante, solidária, perseverante, histórica, solitária, social. Enfim, uma CONQUISTA. Conforme sofismou nosso poeta, olha que coisa mais linda, mais cheia de graça. É ela, menina, que vem e que passa... Estava eternizada então a idéia de que a vida é uma passarela; os pequenos triunfos, as luzes; e o aparato que te veste e veste o mundo, as placas de indicação de uma unidade. Nos vestimos ou nos tornamos nus porque temos o poder da opção, porque somos animais civis. Queremos (e para sempre) dividir nossas memórias, êxtases e fantasias com quem nos note; veja que somos sol intenso, luz densa em neurônios substantivos e paixões adjetivas. Queremos tomar conta do mundo, mas com carinho; embalar o planeta, cantando uma velha canção de ninar; mimar a lua, abraçar o sol. Pois só somos felizes se nos vêem, se nos notam, se nos cantam. E a vida, e o mundo, nada mais são que a condição explícita para exercitarmos essa paixão. Paixão pelo bicho-homem, paixão pelas flores, pelas passarelas, pelo real e pelas telas...

P. J. RIBEIRO

INSEKTO

autor de Interlocutando, Ed.Totem, 2003.

“A grande vaia é mil vezes mais forte, mais poderosa, mais nobre que a grande apoteose. Os admiradores corrompem”. Nelson Rodrigues LEANDRO DÓRO

efranelas@yahoo.com.br

UM SAMBA DE VÁRIA$ NOTA$

MENSALÃO $

VERGONHA DA NAÇÃO

KÖ LE

UM PAÍS DE ROLOS

GOVERNO FEDEMAL

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CRUZADAS MANJADAS HORIZONTAIS - 1- Cosmético líquido usado nos cabelos(pl.)Tem conhecimento - 2- Instituição de Falcatruas Acobertadas (PT) - Concorrentes - 3- Namoro sem conseqüências- Cinqüenta, em romanos - Vogal - 4- Conjunção que expressa alternativa - Inventor da Teoria da Relatividade -5- Belisca Carta - 6- Partido sustentáculo da Ditadura - Flúor (simb.) Contração da preposição para - 7- Gravidade (simb.) - Genial vagabundo - 8- Organização Mundial do Comércio- Tipo de ligação química - 9- Transpira - Autorizar - 10- Raiva - Ele é o terrorista mais procurado - VERTICAIS - 1- Irmãos siameses 2- Convergir - Muito - 3- Filha da avó - Bebida dos deuses 4- Fósforo (simb.) - Domina - Artigo - 5- Erupção cutânea 6- Modelo de carro - Mamífero carnívoro, selvagem, do gênero canis - 7- Cinco, em romanos - Consoante - Agudos - 8Pula - Banheira - 9 - Gemido - Explodem -10 - Beijam, na língua de Cervantes - Colocara algo bem ao nível do terreno.

V Número 16 - Julho/2005 V I vivavaia@ig.com.br

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Florez + Köle

Se gritar “Pega ladrão!”, não fica um, meu irmão!

INSEKTO

COMPANHEIRA CRISE. FAREI UM DISCURSO PARA ACALMÁ-LA!

ESCOBAR FRANELAS autor de hardrockcorenroll - Scortecci, 1998

http://jornal_vaia.blogspot.com Editor: Marco Marques Redator: Serpílio Atrabílis Projeto Gráfico: Gil Pires Jornalista: Victor Hugo Silva - Mt4239 Capa: AUGUSTO DE AZEVEDO - MILITÃO. Retratos de Negros. 1864-1883 e MARCELINO FREIRE. “Totonha”, Contos Negreiros. Editora Record, 2005. Colaboram nesta edição: Alexandre Florez, Aricy Curvello, Barros Pinho, Carlos Besen, Charles Abegg, Cláudio Portella, Diego C.Petrarca, Escobar Franelas, Fábio Gomes, Fabrício Carpinejar, Felipe Azevedo, Fernando Ramos, Giovanni Mesquita, Isaac Starosta, Jacques Canut, Köle, Leandro Dóro, LuizCarlos Amaro, Luiz Gustavo Insekto, Luiz Nicanor, Macelino Freire, Marco de Menezes, Marlene Reinaldo, Nano Costa, Nilto Maciel, Paulo Ramos Derengoski, P. J. Ribeiro, Raul Boeira, Renee Cabrales, Ronaldo Cagiano,Rosália Milsztajn, Terezinka Pereira,Vilmar Daufenbach.

OS ARTIGOS ASSINADOS SÃO DE INTEIRA RESPONSABILIDADE DOS SEUS AUTORES ? Rua Demétrio Ribeiro, 706/601 - centro - Porto Alegre- RS- BRASIL- 90010-312- F:(51)9649-5087


Atmosfera joyceana numa epopéia infantil

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uarenta e duas nade vida um garoto sete vivente anos, vivente umado cidade do uarenta e duas horashoras na vida umde garoto de setedeanos, de umade cidade interior interior com suas primeiras conflitos eis o leimotiv goiano, com suas goiano, primeiras emoçtes, conflitos emoções, e descobertas - eise odescobertas leitmotiv do -romance Uma do romance Uma lenda,nascido de Alaor Barbosa, escritor emem Morrinhos e ralenda, de Alaor Barbosa, escritor em Morrinhos (GO) nascido e radicado Brasília (GO) há mais de dicado em Brasília há mais de duas décadas. duas décadas. Narrado em primeiro pessoa, Uma lenda é um mergulho na vida de Rafael Noronha, um garoto miúdo, mas precoce e observador, que vive na fictícia Imbaúbas e cedo experimenta a dores e delícias da vida. Aliás, Rafael e Imbaúbas são recorrentes nos diversos livros de Alaor, funcionam como espelho ou recriação da terra natal do autor. O menino vive a pacatez e a alienação de uma cidade nos meados do século passado, experimentando ali seus primeiros sonhos e frustrações, ao mesmo tempo em que empreende uma viagem dentro de si mesmo, no enfrentamento dos seus confrontos sociais e embates mais íntimos. A ambientação desse romance retoma a linguagem peculiar do povo e do local e recompõe cenários geográficos e momentos psicológicos muito singulares. O autor se investe do meninoprotagonista para reverberar aquele mundo, transportado para uma dicção cuidadosamente resgatada, permitindo ao leitor compartilhar suas mínimas tensões, como as disputas na escola, o relacionamento familiar, os antagonismos religiosos, a convivência tempestuosa com o irmão Galeno, a descoberta de um novo mundo pelo mundo de Belinha, figura basilar, que representa para ele um novo olhar, através do qual a vida exterior parecerá ter mais sentido e horizonte com a eclosão dos sentimentos. O menino Rafael vai conhecendo a cidade, onde descortinam-se situações inusitadas, deslindando universo até então ignorado mas que parece ter sentido a partir dos novos contatos, dos primeiros espantos e das novidades. O livro fecha com chave de ouro, culminando num desfecho surpreendente, mas que celebra o encontro do amor, ainda que perfilado por uma tragédia. Uma lenda é uma obra prima do realismo, autêntica, original e permeada de sutilezas estilísticas. Como se fosse um romance em que aprofunda um estudo de tipos e situações, o autor retrata com fidelidade um modo de vida, sem retoques e sem truques, flagra um Brasil distante mas cujos valores é que compõem aquela rara dimensão de universalidade de que nos falava Tosltoi. Alaor também consegue um equilíbrio semântico, pois ao preservar o coloquialismo do falar provincial, traduzindo seus modos, jeitos, costumes, atavismos, pronúncias, em nada rivaliza com a sua bem entalhada linguagem de autor. Ao contrário, instaura uma perfeita simbiose e empresta à narrativa uma beleza singular, fruto de sua perspicácia e de um agudíssimo senso estético. No decorrer da leitura, momentos de pura sensibilidade e poesia a partir da fotografia de um mundo natural e sem mistificação. Alaor Barbosa produziu considerável bibliografia, incluindo ficção (Campo e noite, O exílio e a glória, Picumãs, Caminhos de Rafael, A morte de Cornélio Tabajara, Memórias do nego dado Brtolino d’Abadia) e ensaios/estudos (Um cenáculo na Paulicéia, O ficcionista Monteiro Lobato, Epopéia brasileira: para ler Guimarães Rosa e Meu diário da Constituinte), além de títulos infanto-juvenis e obras jurídicas. No entanto, Uma lenda foi seu primeiro livro, escrito há quase quarenta anos, mas que foi sendo construído e revisto de forma sistemática, permitindo ao autor burilar a história, não só acatando seu senso de autocrítica na recomposição de situações, como no aperfeiçoamento da forma e na definição dos aspectos psicológicos dos personagens. Com esse esmero, o autor trouxe à sua uma precisão sociológica e humana, o que nos permite compreender culturalmente o Brasil através de seus habitantes, ainda que se referindo a uma época distante dos valores contemporâneos. Uma lenda não só proporciona o prazer da leitura, como enriquece a densa prosa de Alaor Barbosa. É um livro que, adotando a técnica joyceana de reproduzir com intensidade as poucas horas na vida de um personagem, com o seu fluxo de consciência e sua carga sensorial, instaura, como assegura Antonio Olinto, “uma narrativa inteiramente brasileira, colocada em palavras e frases que renovam o nosso modo de contar histórias.”

RONALDO CAGIANO autor de Concerto para arranha-céus Trechos: “Andando depressa, me senti bem o que eu era: um menino de sete anos de idade, esperto, bom para correr, bom para driblar, inteligente (mais do que todos os meninos de minha turma no Grupo), bom para ler (pronunciava bem as palavras e falava com voz sadia e espevitada), filho de Seu Teófilo Ferreira Noronha e de Dona Celina da Conceição Santoro, e que morava ali na Praçado Campo de Futebol, Praça da Liberdade". (...) "Mãe andava pra lá e pra cá com as chinelas fazendo um chapechapezinho que gostava de escutar. O dentro-de-casa era seguro, saudoso, bom. Mãe inteirava a nossa casa com a presença boa dela." (...) “Agora o choro secou, uma coragem me reanima a mente e me reacorda para a luz do dia. Torno a lê lembrar do Galeno: sinto uma vontade enorme de chegar perto dele um dia e chapuletar-lhe um soco bem na boca do estômago e quando ele agachar de dor, gemendo, sentar dois pontapés na canela dele: um em cada canela, e vê-lo dizer ai, ui, e abaixar-se gemendo, franzindo o rosto, e ficar prostrado rolando no chão de tanta dor! Ah!, se pudesse fazer isso contra o Galeno. Bater nele como fiz com o Antero, mas com Antero eu errei, foi uma injustiça e erro, um feio pecado de que me arrependo muito, o Antero morreu por causa do meu pontapé na canela dele, num posso nem lembrar. Com o Galeno é diferente, porque ele mau. E o Antero era bom. O Galeno se aproveita de eu ser pequeno. (...)”

LEANDRO DÓRO

Viu no que dá acreditar nos outros?

http:/leandrodoro.zip.net/

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