Jornal Vaia edição 15

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BRASILEIROS: Abegg, Bezerra, Castilhos, Cagiano, Derengoski, Domingues, Florez, Lavareda, Lehmann, Machado, Moura, Pedrazzi, Prates, Portella. Ribeiro, Scherer, Siqueira, Vianna...


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AUTORITARISMO E AMBIGÜIDADE EM MACHADO DE ASSIS

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obras de da Assis segunda fase dePóstumas Machadodede Através das obras da 2° través fase dedas Machado (Memórias Assis -Borba Memórias Póstumas de Brás Cubas Brás Cubas (MPBC), Quincas (QB), Dom Casmurro (DC), Esaú(MPBC), e Jacó Quincas Borba (QB), Dom Casmurro(DC), Esaú e Jacó (EJ) e Memorial de Aires(MA) -, percebemos a sociedade machadiana com suas várias facetas de autoritarismo e ambigüidade presentes na formação do Estado brasileiro e seus reflexos nos membros dessa mesma sociedade, no final do século XIX e início do século XX. Fato que se deve ao ensejo de ostentar uma aparência modernizada, capitalista, exportadora, mas que é baseada num sistema de mão-de-obra não capitalista, sistema escravocrata e patriarcal. A análise feita sobre o conjunto desses romances suscitou uma leitura de uma pirâmide social às avessas, partindo da integração sem culpa de Brás Cubas (MPBC) com o padrão patriarcal até alcançar o isolamento melancólico de Aires(MA). Nessa sociedade, as pessoas viviam sob um sistema de conduta convencional, no qual predominava um conflito entre a essência do ser humano e a aparência que a sociedade exigia desse. Esse regime de conduta era uma forma de violência sobre o indivíduo que tinha de ser sufocado para que um outro ser social transparecesse. Esse comportamento social é bem justificado pelo Humanitismo, doutrina que é uma tentativa de simbiose do Evolucionismo de Darwin e do Positivismo de Comte, de onde se pinça detalhes convenientes de cada doutrina, justificando sua aplicação na realidade como um dogma. Essa doutrina está presente em MPBC e em QB, justificando o instinto de conservação em prol da sobrevivência. A violência é apresentada, nessa ocasião, como uma ação que constitui o ser humano e que, conseqüentemente, reproduz-se nas suas relações sociais como autodefesa. Segundo o Humanitismo, há ocasiões em que para a sobrevivência de um, a morte de outro é inevitável, é o caso citado no capítulo VI de QB: “ Quincas conta a Rubino que duas tribos inimigas, ambas com fome, encontravam-se numa plantação de batatas, nesse caso, a supressão de uma tribo é a condição de sobrevivência da outra; se as duas tribos dividirem em paz as batatas, elas não chegam a nutrir-se e morrem. Nesse caso a paz seria a destruição e a guerra a conservação.” Esse comportamento violento, no qual apenas o mais apto sobrevive é visto em MPBC através de Brás. A formação de Brás foi constituída sem limites estabelecidos, seus erros de infância eram repreendidos pelo pai na frente dos outros, mas na intimidade do lar os mesmos passavam a ter uma feição de gracejo. Brás criou-se com direitos ilimitados, veio a exercê-los na sua vida adulta conforme a sua vontade – vale ressaltar que o mesmo pertencia a classe social dominante, o que lhe aumentava as licenças para agir. Brás era um legítimo representante da elite brasileira. MPBC mostra o problema social da elite patriarcal ambivalente (normas burguesas e patriarcais) e autoritária (reflexo do sistema escravocrata), que exerce seu poder sobre escravos e nega o trabalho livre, sem culpa nem questionamentos – fica claro nestes representantes da sociedade machadiana o desprezo pelo trabalho, como se fosse algo degradante a sua postura social. QB mostra a inadaptação de Rubião em preservar a herança recebida, em contraste com Sofia e Palha que ascendem socialmente através de negócios comercias – facção dirigente da elite no século XIX – aproveitando-se da ingenuidade de Rubião. Neste período os negócios comerciais eram um grande meio para se ascender socialmente. As relações sociais, regidas pelo interesse de ascensão social, são claramente descritas em QB. Já em DC, é descrito o caráter patriarcal e autoritário da sociedade do século XIX. Bento Santiago, convencido de que teria sido traído por sua esposa Capitu, condena-a sem provas. Sendo Bento o “chefe de família” sua versão é incontestavelmente a única verdade. E o que comprova esse comportamento da época é que o narrador tenta e consegue convencer o leitor de sua opinião. Só após esse comportamento patriarcal ter começado a ser atenuado na consciência social, devido a queda da supremacia do patriarca gerada por mudanças sociais como o abolicionismo, a república e o surgimento da indústria brasileira, é que começou-se a perceber que não havia provas que comprovassem a afirmação do narrador. Capitu não teve direito a se defender, visto que não tem voz na narrativa, logo a verdade do narrador teria sido imposta ao leitor. Essa nova concepção de leitura está em “A poesia envenenada de Dom Casmurro”, de Roberto Schwartz. Bento, por trás de uma máscara de vítima, tenta esconder seu comportamento autoritário, de antigo senhor de escravos, capaz de desejar a morte do filho e exilar a mulher. Nos dois últimos romances de Machado da segunda fase, essa sociedade ambígua e autoritária age opressoramente sobre o indivíduo; esse, não podendo conviver com a norma social, isola-se da mesma, anulando-se a si mesmo ou fugindo do sistema através da morte e/ou da loucura. Em EJ, a refinada Flora, que toca piano e fala francês, amando os dois gêmeos, não aceita ficar com um e perder o outro, então internaliza o desejo senhoril de fundir os dois homens em um só objeto,, escravo de seu desejo. Flora, protótipo do romantismo, foge da realidade, pois não é capaz de ser fria como Aires e morre enlouquecida pelo seu desejo de “fusão, difusão, confusão...” O diplomata Aires (MA), de ampla circulação internacional, vive dissociado entre o social e o individual. A cordialidade do conselheiro mascara a fria indiferença pelo destino dos outros, próprio de uma elite modernizada de início de século que ainda conserva os costumes e preconceitos patriarcais e escravocratas. O conselheiro Aires vive uma morte em vida, pois não opina à direção nenhuma, apenas vive como se não pertencesse a esse mundo. Aires abstêm-se de viver e apenas sobrevive, libertando-se um pouco mais em seu diário, com o qual divide suas observações sobre a vida dos outros – mas não da sua. Em síntese, a ambivalência do comportamento humano, socialmente constituída e literariamente representada pode ser vista como fundamento da loucura de Rubião e de Flora, do autoritarismo violento de Bentinho e da indiferença agressiva, de Brás Cubas, e fria, de Aires.

ANDRESSA CAMBRAIA MACHADO andressacambraia@yahoo.com.br

mistura &manda BEZERRA DA SILVA, UMA VOZ DO MORRO

Bezerra & Moreira

O mundo passou a ser um lugar mais triste desde a manhã de segunda-feira, 17 de janeiro, quando faleceu o sambista José Bezerra da Silva. Bezerra era o legítimo intérprete dos compositores do morro do Rio de Janeiro, cantando seus sambas que relatavam a visão de mundo e a situação do morador da favela, destacando-se os que contavam histórias sobre conflitos do favelado com a justiça e disputas dentro do próprio morro entre malandros e manés.

Tanto em "A Semente" quanto em "Defunto Grampeado" (Evandro do Galo - Pedro Butina, 1986), a gravação é aberta com um diálogo entre Bezerra e outra(s) pessoa(s). "Defunto Grampeado", aliás, também tem sirenes e som de tiros. Desta forma, Bezerra dava ao samba de partido-alto uma cara de "radionovela", semelhante à encontrada em parte da produção de samba-de-breque de Moreira da Silva (1902-2000) nos anos 1960.

Do Recife aos anos difíceis no Rio

Muita gente confundia Bezerra e Moreira. É compreensível. Embora seus estilos de cantar fossem diferentes (Moreira fazendo o acompanhamento parar e conversando com o público, Bezerra numa linha mais tradicional), ambos se constituíram em cantores da malandragem. Moreira, daquela malandragem "romântica", de pequenos golpes, que dominava os morros no começo do século XX, e Bezerra, da malandragem atual, sem um pingo de "romantismo".

Não há muita certeza quanto a datas de vários fatos importantes de sua vida. Nascido em 1927 em Recife (PE) - em 23 de fevereiro, segundo o pai, ou a 9 de março, de acordo com a mãe -, cedo mostrou inclinação para a música, o que desagradava sua família. Chegou a aprender a tocar trombone escondido. Em busca de mais liberdade, fugiu de casa no fim da adolescência - em vários depoimentos, Bezerra disse que isso foi aos 15 anos, mas o mais provável é que fosse com 18 anos, em 1945-46, pois ele buscava se alistar na Marinha Mercante, como seu pai, que vivia então no Rio de Janeiro. Não sendo aceito pelo pai, tornou-se pedreiro e foi morar no morro do Cantagalo. Ali conheceu o compositor Alcides Fernandes, que o levou em 1950 à Rádio Clube do Brasil, onde atuou como ritmista. Bezerra tocava na rádio de novembro a fevereiro, acompanhando os cantores que interpretavam ao vivo os sucessos de Carnaval. No resto do ano, voltava à construção civil. Em 1954, porém, aconteceu algo que o levou,, num curto espaço de tempo, a perder os dois empregos e ser rejeitado pela família de sua irmã, que viera morar em Niterói. Bezerra declara ter passado os três anos seguintes como mendigo, vivendo na rua, tentando até pôr fim à vida. Em 1957, uma das poucas pessoas que ainda falavam com ele no Cantagalo, uma senhora chamada Paula, o encaminhou a um terreiro de candomblé onde ele ficou morando por quatro anos até que, cumpridas suas obrigações rituais, foi aconselhado a não mais trabalhar na construção civil e se dedicar por inteiro à música. Bezerra freqüentou o candomblé até 2002, quando se tornou evangélico.

O compositor A partir de 1961, Bezerra retoma suas atividades musicais como ritmista free-lancer e depois contratado da gravadora Copacabana. Tocava todos os instrumentos de percussão e dedicou-se ao estudo de violão(mais tarde, já no fim da vida, chegou a estudar piano). Também começou a compor. Sua primeira música gravada foi um samba, "Nunca Mais Sambo", que Marlene lançou em 1965. Mas ele logo preferiu compor coco (um ritmo pernambucano, irmão do samba, mas bem menos conhecido), conseguindo gravar dois com seu ídolo Jackson do Pandeiro: "O Preguiçoso" e "Meu Veneno". Compôs pouco, porém, e os sambas de sua autoria são raridade. Bezerra justificava-se dizendo que "não tinha jeito" para compor samba. Sua biógrafa, a antropóloga Letícia Vianna (autora de Bezerra da Silva, Produto do Morro, Jorge Zahar Editor, 1999), acredita que, ao não assinar sambas em que possivelmente tivesse contribuído com letra, melodia ou sugestões, Bezerra reforçava sua legitimidade como porta-voz dos compositores do morro. Letícia cita como exemplo o samba "O Preço da Glória" (Caboré - Pinga - Jorge Portela, 1983), que fala de alguém que saiu do Nordeste, sofreu muito, morou na rua, foi preso várias vezes, nunca se revoltou e morava no Cantagalo... Quem será, hein?

O cantor Em 1969, Bezerra conseguiu gravar como cantor dois cocos num compacto da Copacabana: "Mana, cadê meu Boi" e "A Viola é Testemunha". Em seu primeiro LP, lançado em 1975, pela Tapecar, ele era apontado como O Rei do Coco, imagem reforçada pelo disco O Rei do Coco Vol. 2, do ano seguinte. Só em 1978 é que, já em novo selo, a CID, ele começa a gravar partido-alto. Mesmo assim, a gravadora impôs ao disco o nome Genaro e Bezerra da Silva - Partido Alto Nota 10, apostando mais no líder do grupo que acompanhava o cantor, o Nosso Samba, do que em Bezerra. Mas já no ano seguinte saía só o nome dele: Bezerra da Silva - Partido Alto Nota 10 - Vol. 2. Assim foi até seu último disco, Meu Bom Juiz (CID, 2003). Curiosa essa demora no encontro entre Bezerra do Silva e o samba de partido-alto. Ouvindo qualquer gravação dele, você diz que eles foram feitos um para o outro. Bezerra é um cantor irrepreensível, além de rechear a gravação com frases faladas cheias de malandragem. Em geral, no espaço dedicado ao improviso no final que é marca do samba de partido-alto, Bezerra limitava-se a repetir trechos da letra, mas ele improvisou de verdade em pelo menos uma gravação - "Defunto Cagüete" (Adelzonilton Franco Teixeira - Ubirajara Lúcio, 1984). Se fosse possível destacar apenas um samba gravado por Bezerra, eu citaria "A Semente" (Walmir da Purificação - Tino Miranda - Roxinho - Felipno, 1987), um partido-alto muito bem construído, inclusive com uma bela escala ascendente no trecho "Quando os federais grampearam e levaram o vizinho inocente...". E os instrumentistas que gravavam com ele eram de primeira água. Basta ouvir o cavaco que abre "Na Hora da Dura" (Beto Pernada - Simtes PQD, 1987).

Os dois atuaram juntos algumas vezes. Bezerra tocou tumbadora num disco Odeon de Moreira nos anos 60. Durante algum tempo, circulou o boato de que gravariam um disco chamado Malandros da Silva. Mas eles foram cantar juntos mesmo numa faixa do LP Ataulfo Alves Leva Meu Samba (Som Livre, 1989), em que Bezerra interpretava "Vestiu Saia Tá pra Mim" (Ataulfo - J. Batista) e Moreira, "Desaforo Eu não Carrego" (Ataulfo). Novo encontro aconteceu no CD Os Três Malandros in Concert (CID, 1995), em que, ao lado de Dicró, os dois cantavam sambas novos e clássicos, numa idéia que buscava parodiar o encontro dos três tenores Plácido Domingo, José Carreras e Luciano Pavarotti, ocorrido no ano anterior. Para entrar no clima, os sambistas posaram para a capa do disco vestindo casaca nas escadas do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Pena que, quando Bezerra & Moreira puderam cantar juntos, a voz de Moreira já estivesse bastante comprometida pela idade. Imagino o que poderia ter sido um disco dos dois até por volta de 1986, no máximo.

Malandro versus mané Bezerra trazia para a sociedade temas e fatos que muitos preferem ignorar. Chegaram a denominá-lo cantor de bandido por relatar em seus sambas conflitos entre favelados e policiais. Fingiam não ver que, em vários sambas, como "Na Hora da Dura", o foco de Bezerra não é a marginalidade em si, e sim a falta de ética de alguém que, tendo sido preso e com medo de apanhar, entregou à polícia o nome de companheiros do morro (culpados ou não). Para conseguir lidar com um cantor que insistia em dar voz aos humildes, parte da mídia passou a tratá-lo como um folclórico ou excêntrico, que viveria repetindo a frase "Malandro é malandro, mané é mané". É verdade que ele dizia isso mesmo, e até aproveitou a frase como título de seu CD de 2000, mas reduzir o valor de Bezerra a ter consagrado esta "máxima" é ridículo. Era inevitável: em toda entrevista sua vinha a pergunta sobre quem era malandro, quem era mané. Durante muito tempo, Bezerra apontou como manés os alcagüetas (ou seja, os delatores, como o medroso de "Na Hora da Dura"), enquanto os malandros seriam os que, trabalhando honestamente, conseguiam sobreviver. Era isso que ele dizia no filme Coruja (Márcia Derraik e Simplício Neto, 2001), que retratava os seus compositores. Na última versão, porém, Bezerra mudou tudo. Leiam o que ele declarou em entrevista a Zé Mangini, Bia Sant'Anna e Ricardo Cruz na Revista da MTV nº 29 (setembro de 2003): MTV - Essa máxima "malandro é malandro, mané é mané" quer dizer exatamente o quê? Bezerra - Num programa de televisão me fizeram a mesma pergunta, e eu respondi: "Olha, eu não sei dizer para você realmente porque eu não entendo nada de malandro, eu não sei nem o que é isso, para que lado vai. Conheço o trabalho, esse negócio de malandro não sei o que é, honestamente". E eu não sabia e fui perguntar ao Neguinho da Beija-Flor, ele além de puxar samba é um compositor muito bom, porque o autor quando escreve sabe porque está escrevendo. (...) Perguntei ao Neguinho, e sabe o que ele me disse? "Bezerra, mané é o povo, somos nós, Bezerra, tu não se manca, não? Malandro são eles, Bezerra, que matam, roubam, pintam o diabo e fica tudo por isso mesmo, rapaz! Mané é o povo brasileiro". Tá vendo aí? (...) Não existe malandro pobre, malandro está tudo em Brasília! São os deputados, senadores, juízes. (...) Eles são os malandros, e nós os otários. Dei nota 10 pro Neguinho.

FÁBIO GOMES www.brasileirinho.mus.br


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Eu quero ser escritor para financiar minhas próprias edições, encaderná-las com um luxo que nem sei, forrá-las com o papel grosso em que eu fazia desenhos na infância, imprimi-las com letras em altíssimo relevo, para ter um editor que fizesse tudo isso ao contrário, para encalhar escandalosamente, mas sempre satisfeito, os 300 exemplares que não se venderam na minha própria residência, para poder dispô-los na minha biblioteca, uma biblioteca que eu finalmente poderia denominar pessoal, para poder aclimatar o grande orgulho de ser meu maior admirador.

caminho percorrido foi o mais tradicional. Nuno Gonçalves ganhou um concurso de poesia e com concurso de poesia e com o o prêmio bancou seu livro de estréia, esse O sol e a maldiçno. Quantos bons escritores fizeram e ainda fazem esse rali? Política literária (melhor: completa ausência da mesma quando o assunto é Ministério da Cultura) à parte, mercado editorial à parte, o que Nuno fez foi um livro originalíssimo. Vemos, nesse livro, que o caminho percorrido para chegar a ele pode ter sido antigo, mas o livro sinaliza a poética, ainda em construção, desse novo século. Uma poesia que cozinha no caldeirão da memória, da pele e nos serve um prato que nunca comemos antes, mas que nos chega ao estômago com a sensação de termos saciado uma fome que mal suspeitávamos que tínhamos.

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Esteticamente o livro tem seus desvãos: os tipos utilizados poderiam ter sido melhor escolhidos e pequenos fragmentos de poemas mal redimensionados em suas páginas. Os desenhos de Júlia Manta (um talento colossal para a poesia e o cinema), tirando o da capa que coaduna sincronicamente com a poética de Nuno, não mantêm o equilíbrio do conjunto. Mas tudo isso se deve à generosidade do autor. Ele deixa claro no texto de abertura que compartilhou sua estréia (tanto que há um poema de Júlia no livro) com os amigos Júlia Manta e Gleizer Freitas, o segundo, encarregado da arte gráfica da obra. Por mais talentosos que sejam ambos, falta-lhes maior experiência. De pronto mesmo só o poeta.

Carlos Besen

Eu quero ser escritor para exibir minha grafia para a família, para mostrar minha facilidade em deslizar a caneta pelo papel e ainda por cima com frases, para me tornar conselheiro dos primos e amante das primas, para aconselhar aos primos que não sejam tolos de se amancebar com as primas, para ganhar ocasionalmente incentivos monetários dos tios e freqüentemente ter prometido meu futuro pelas tias, para justificar o dispêndio semanal da mesada mensal com livros de sebo, para exigir um quarto maior para minha traçaria, para invejar aos irmãos que eu não tive com uma parca caligrafia, para ser assunto de voz aguada nas conversas de telefone de mamãe, para ser assunto fogoso nas idéias de engenharia de papai. Eu quero ser escritor para ser o escritor da família.

carlosbesen.blogspot.com

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arte Cerezo Barredo

DESEJO

u quero escritor parasupor suporque quetem tem alguma alguma Eu quero serser escritor para importância aquilo escrevo,depois depoispara para ter importância aquilo queque escrevo, convicção mesmotenho tenho aa minha minha convicção de de queque eu eumesmo importância nesse mundo, mas depois, sim, sim, logo depois, para supor que eu poderia ter um certo grau de importância se tivesse escrito coisas talvez mais inteligentes, talvez mais populares, talvez mais eruditas, talvez mais cristalinas, para finalmente ter absoluta certeza de que tudo é vão e e vil e nada importa.

Eu quero ser escritor para lapidar a postura importante com que eu irromperia nas livrarias e nos cafés, para não ser anônimo nessas livrarias e nesses cafés, para me reservarem um lugar à mesa mesmo quando estiver em um outro lugar em que me reservaram a mesa inteira, para poder ser solicitado nos saraus e ler os meus próprios textos sem ser tomado como louco ou como arrogante, para que me respeitem quer como louco quer como arrogante, para assinar meu nome ilegível no livro dos outros nas seções de autógrafos, para pensar em aforismos importantes à hora da rubrica e escrevê-los e esquecê-los, para me alegrar, alegrando aos outros, se, ao lado do nome, eu fizer um desenho de sol irregular ou de flor desproporcional e sorrir para o dono do livro e receber o sorriso de volta, por puroconstrangimento descontrangido.

Pintando o meio-fio ao sol do meio-dia CLÁUDIO PORTELLA* O sol e a maldição divide-se em quatro partes. Na primeira, que dá título ao livro, tirando o poema de Júlia Manta, só se salvam os três últimos: O tempo da vida entre o ouro e as pedras, Trajetória de um maniqueísta e Memórias de uma solidão. Esses poemas me lembraram os poemas-prosas de Francis Ponge. Na segunda parte, Mundo, há um jogo com os quatros elementos da natureza, completamente dispensável. Os demais poemas dialogam com os poemas esparsos de Charles Baudelaire. A carroça de fogo é a terceira parte, que se subdivide em outras dez. Nessa, o poeta tece uma crítica historiográfica à pintura, desde a rupestre, passando pela surrealista e chegando a belas imagens do Nordeste brasileiro. O livro fecha com Bazar de penínsulas, a última e melhor parte da obra. Até o desenho, há um para cada parte, que abre essa é o desenho da capa invertido: uma bela imagem de um homem nu incrustado num tronco de uma árvore. Bazar de penínsulas é um longo poema genial no título, genial na forma (o poema baila formando, a cada página, verdadeiras penínsulas) e genial no conteúdo.

Eu quero ser escritor para sublinhar meu nome nos jornais, mesmo se às vezes escrito lamentavelmente errado, para recortar minhas fotografias da revista, para economizar na confecção do meu álbum de família, quem sabe para comprar um baú no qual enfiar minhas notícias mas não minha fama, para dispensar espelhos, para descobrir o penteado torto do cabelo no dia seguinte, sobretudo para poder posar no flash com modos absurdos: com uma das sobrancelhas erguidas, com um olho mais aberto, com um olho mais fechado, com um dedo erguido na bochecha, com um dedo erguido rente aos lábios, com um dedão enfiado na boca sem muito escândalo, com os dentes à mostra mas sem raiva nas bochechas, com os dentes à mostra e com raiva na cara inteira, com uma mão apoiando o queixo que, de outra maneira, eu deixaria cair para mim mesmo, com uma mão entre o maxilar e a orelha, com as duas mãos fazendo concha para uma cabeça tão suntuosa, com a barba grisalha, com a pele imberbe, com a cabeça raspada, mas sem câncer. Eu quero ser escritor para, reconhecido entre o público, me encastelar, para mitificar meus mais mínimos hábitos maximamente inúteis, para fazer notar que minha solidão não é senão um grande troço espiritual, para não responder a cartas sem precisar explicar, para trocar correspondência com quem outrora me rechaçou e o perdoar, para às vezes rechaçar toda correspondência imperdoavelmente, para encerrar as raras entrevistas no ponto em que me aprouver, preferencialmente com uma oração pela metade, para cometer desaforos e responder a eles e ter quem me defenda, para incrementar meus fragorosos preconceitos e ter quem os considere geniais, para indicar efusivamente os livros lidos com pressa e tédio e os não lidos com saliva e ódio, para aumentar a casa com uma nova peça em que armazenarei os irrevogáveis prêmios literários e seus troféus de fórmula um, para ser pressionado, até aclamado, para um livro que não saberei escrever, o próximo. Eu quero ser escritor: para me recusar.

Não resisto e divido com vocês um fragmento do poema: “como não esperava nada, interroguei francamente: / em que península vive? / (silêncio) / e não me / venhas com / nada de aldeota, / papicu, bairro de / Fátima, messejana, / acaracuzinho, dunas / da praia do futuro, / praia de iracema, / conjunto ceará, / conjunto palmeiras, / caucaia, bom jardim, / dionísio torres ou / outra patifaria / qualquer. / aqui nós temos / a península do medo, a península / da esperança, / a península da / crise, a península da / morte, a península do mistério, / a península dos ossos, a península da / perversão, a península do moinho, a península / do fígado devorado, a península da penitência, / a península da expiação, a península dos peixes, e / por aí vai, até o fim o mundo. / eu, é claro, já / sabia, que o mundo era um abismo sem fundo, só / me faltava àqueles olhos arregalados suspeitos / e suspensos frente-a-frente com o meu / último devaneio do dia. Quando já / cerrava as portas da frente do palácio. / Tomou-me por alguém possuído por alguma / espécie de idiotia catalogada nos anais / da psicopatologia da vida cotidiana e / se foi. Abandonando-me à paz de chumbo / carregado da península de fumaça que me / envolvia”. Dizer que esse bazar é a loja onde o poeta Nuno Gonçalves Pereira se vende (queiramos ou não, poesia é a arte de se vender) aos pedaços é muito fácil. Difícil será fazer, ao menos parecido, até o final desse século, poema melhor que esse. * escritor e crítico de arte, autor de “BINGO!”, poesia, 2005.


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O menino que vai cavalgando o jumento Arranhando suas pernas nos espinhos das árvores, Arremedos de plantas que não servem pra nada, Por estreitos caminhos de poeira e sol forte, É o retrato fiel de um povo descrente Que não sabe porque sua sina é a morte.

Até quando, meu Deus? !

m dos contos mais conhecidos (sempre aparece em antologias e seleções de leituras obrigatórias para vestibulares país afora) de Machado de Assis, Pai contra Mãe, serviu de base para Jaqueline Pinzon e Paulo Brody escreverem a peça homônima que fica em cartaz - sextas, sábados e domingos, às 19hs - até 1º de Maio na Sala Carlos Carvalho, da Casa de Cultura Mário Quintana (Andradas, 736, 2º andar). O espetáculo aborda a escravidão. O país subjugado, o povo subjugado, a raça subjugada, a cultura subjugada - todos subjugados por um sistema político e social autoritário, que legitima e reproduz a opressão e a miséria há séculos. O olhar crítico dos autores abrange a época escravocrata, as mudanças sociais advindas da lei da abolição, a transformação ocorrida com a expulsão dos moradores dos cortiços para as favelas e a alteração da mão-de-obra escrava para assalariada.

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alexflorez@yahoo.com

A MISÉRIA DE UM PAÍS

Até quando, seu moço, essa praga se alastra? Até quando seremos só um dado estatístico Nas planilhas dos homens que não têm coração? É a infância sem riso, sem rumo, sem escola, Trabalhando na roça, sem comer, sem beber, E o povo morrendo, sem saúde, sem pão.

Marco Vasques, gaúcho que mora há mais de 20 anos em Santa Catarina, é jornalista cultural de arguto conhecimento. Poeta, contista e dedicado editor, esteve a frente do jornal literário Capitu Traiu! e colabora regularmente com os suplementos literários dos jornais A Notícia e Ô Catarina! (SC) e Rascunho (PR). Diálogos com a Literatura Brasileira é um projeto idealizado para abranger autores do RS, PR e SC. Neste primeiro volume, Marco apresenta entrevistas com os autores Adriana Lunardi, Carlos Nejar, Cristóvão Tezza, Domingos Pellegrini Jr, Lya Luft, Salim Miguel e outros. Marco Vasques leu atentamente todos esses autores, discutiu com todos as suas obras e, nesse livro, nos dá uma leitura aprofundada da produção literária feita nesta extensa “região submersa” que é o Brasil-Sul, conforme expressão do crítico Miguel Sanches Neto, que assina o prefácio.

Noel Rosa costumava tomar umas

...Chove, finalmente. Antes havia pouca cidade, se tinha de caminhar algum tempo até a sanga caudalosa. Um córrego vivo de água límpida. Onde nas tardes de verão eu ia. Munido de samburá, rede feita de saco de batatas e o inseparável bodoque. Não um bodoque verdadeiro (artefato indígena) forquilha flexível para atirar pelotas de tabatinga. Um bodoque – estilingue, com sola de couro e borrachas de caminhão. A forquilha toda certinha, polida pelo manuseio, era feita de pereira. Forquilhas de goiabeira não prestam, goiabeira é uma madeira lenhosa, esfiapada, muito fraca.Laranjeira também é ruim. As boas forquilhas, simétricas e resistentes são confeccionadas de pereira (pêra d’água), de aroeira e camboim – este último difícil de trabalhar por sua dureza. Mas, de resistência inigualável. Sol a pino, eu ia para a sanga com meus petrechos. Uma ou duas latas vazias de leite em pó pra pôr os lambaris, os pitus, as cobrinhas d’água pegos na rede. Seres valiosos nos tempos da minha infância. Itens apreciados para o escambo entre a molecada. Alguns “molecos” se davam à caça das “avis canora”. Sabiás, coleiros, cravinas, cardeais e canários da terra. Eu não. Era muito fácil apresar esses bichos. Levavase uma gaiola com um exemplar da espécie desejada como chamariz, e ao lado armava-se o alçapão ou a arapuca, pronto, bastava esperar. O bichinho preso cantava, outros da espécie se achegavam. Machos defendendo território; no caso do ocupante da gaiola ser macho. Quando era fêmea apareciam machos jovens solteiros no ímpeto de acasalar. Quando viam a isca no fundo do alçapão, um pouco de quirera bem fina ou miolo de pão, não resistiam petiscar e zás. Cadê emoção? Comigo não. Meu ramo era os pitus graúdos de garras afiadas, camarões de água doce. Os lambaris listrados duas cores, as cobrinhas d’água de barriga amarela e um ou outro cascudo desentocado ao alcance da minha tarrafa certeira. Tardezita, sol brasil vermelho sangue, eu voltava com meu espólio. Gurizada reunida na esquina da Bento em frente ao velho plátano. A feira ia começar. - Olha a cravina solteira, boa pra chocar. Quero vinte e cinco figurinhas, cinco carimbadas. Ou um maço de continental sem filtro. Quem vai? - Dou dez, cinco repetidas e meia carteira de LS. É pegar ou largar! - Pego. - Quanto quer pela cobra d’ água e cinco lambaris? - Um cruzeiro. - Dou cinqüenta figurinhas, dois pares de borracha nova e dez tampas de pepsi novinhas. - Vinte tampas, a cobra é fêmea. - Tu não sabes se é fêmea, isso é bobagem. - Sei sim. - Como tu sabes? - A primeira coisa que fez quando eu tirei da rede foi se enroscar no meu pulso. Se fosse macho tinha tentado me picar. ...Chove! O córrego não comporta a limpidez da água de antanho. Os bichos morreram envenenados. Eu perdi minha inocência a tal ponto de não saber mais distinguir as cobras macho das fêmeas sem lhes pedir carteira de identidade. Mas enfim chove, meu amigo, e eu guardo cá infinitas saudades de ti. ALEXANDRE FLOREZ

PEQUENO TRATADO SOBRE

No casebre de barro, lamparina acesa, Espalhando fuligem na meia escuridão. Já de noite, com fome, sem sentir o cansaço, Ajudando a família que não pode ir lá, O menino transmite o pouquinho que ouviu Da menina que ensina, junto ao pé de cajá.

Brasil-Sul Literário

Noel Rosa

Carta para um amigo

A camisa rasgada, sem botões pra fechar, Calça rota, disforme, um pedaço de pano Que sua mãe recebeu quando foi trabalhar, Lá bem longe de casa, ao cavar um açude. Sem caderno, sem lápis, pés descalços, sem sonhos, Mal terá condições de assinar o seu nome.

Wellington Lavareda

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Até quando?

wlavareda@terra.com.br

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carraspanas e ia curar a ressaca na casa de Cartola, na Mangueira onde ele morava com Deolindao amor que veio depois da conturbada Donária, e antes de Zica assuKÖLE mir seu posto de definitiva Divina Dama no coração do poeta. Tiravam a roupa de Noel, jogavam o compositor numa bacia, e toma-lhe água morna nas partes pudendas, empoeirando-as depois com polvilho. Dona Neuma, ainda menina, a tudo assistia. E Deolinda: “Já que não comes, bebes” - e mandava mais água naquele pau que, segundo diziam as usuárias, competia com outros pés-de-mesa famosos como Donga e João da Bahiana. “É verdade, Neuma?” - a nossa roda é em São Paulo, nosso café da manhã é champanhe, e a filha de Saturnino, um dos fundadores da Estação Primeira, coloca os pingos nos is: - Que nada, meus filhos. Noel tinha 200 réis de pau.

Hermínio Bello de Carvalho Sessão Passatempo MAURÍCIO SANTIL (foto), autor da capa desta edição, veio a Porto Alegre com o propósito de fomentar Arte Análise e expor realidades sociais através de Arte Visual e Sonora. Baiano, natural de Salvador, Maurício passou o período de janeiro a abril de 2005 em Porto Alegre. No nordeste brasileiro, após três anos de vivência na Espanha, compôs pinturas em tela, papel reciclado e desenhos a lápis, com os quais montou três exposições diferentes em bares e espaços culturais da Cidade Baixa. No Zelig Bar, apresentou Cenas Sonoras da Atual Etnia Bahiana, junto com o guitarrista Marcos Sampaio, em que misturou berimbau e djembé (tambor africano) com textos políticos-sociais e poesia regional, para mostrar musicalmente costumes, tradições e caracteres resultados da miscigenação “LUSOTUPYAXÉ”. No Charla Café, INTELIGENCIAMENTO ATRAVÉS DAS CORES foi realizado com som e palavras que procuravam envolver a sensibilidade da visão, a tonalidade das cores, colocando em questão a absorção da arte na vida de cada um. Com desenhos a lápis, PLURIFOCAL foi exposto no Bar Lado B com a intenção de propor um perspectivo aprofundamento no poder da mente através da visualização auditiva dos desenhos idealizados em diferentes ângulos. De volta a Salvador, Santil espera “ter plantado sementes de Terapia Artística em terras do sul, agradecendo a todos que lhe abriram espaço, mostraram realidades e fizeram possível semeadura de idéias para Arte analítica”. Para conhecer o trabalho do Maurício, podese acessar www.santilbrasil.brasilflog.com.br, www.santil.blogger.com.br ou contatar com o artista no e-mail santilmauricio@yahoo.com.br.

Parece que é um tema atualíssimo, não? E até quando? Muita coisa aconteceu, mas nada aconteceu - diz, no final da peça, a personagem Arminda, interpretada por Denizeli Cardoso. A mãe preta escrava, sequestrada na África, ou teve seus filhos abortados ou viu-os morrer de inanição. A utopia da liberdade sempre esbarrou no poder da propriedade, eis o tema que perpassa toda a história do país e que Machado de Assis expôs no conto. Brody e Jaqueline captaram muito bem a crítica machadiana e enfatizaram a sutileza irônica do texto, fazendo um pequeno tratado sobre a miséria do país. O Grupo Teatral Arnesto Nos Convidô, sob a direção geral de Paulo Brody, tem no elenco Denizeli Cardoso, Carlos Azevedo, . Vanderlei Santos, Wagner Padilha e Larissa Cardoso. O espetáculo tem duração de 50 minutos, o ingresso custa R$10,00 e há desconto de 50% para estudantes, idosos e afrodescendentes. FERNANDO RAMOS


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MINHA PÁTRIA ESPERANÇA

surtos

Em homenagem a Ledo Ivo

POÉTICOS hoje trancei meu cabelo. pus prendedores de criança nele. se tivesse um vestido rodado, vestiria. se tivesse jogo de damas, brincaria sozinha. meu cabelo comprido, quase louro. semi-infantil. não tenho mais essas coisas, ficaram na casa da infância. mas os cachos cresceram. não estivesse chovendo, sairia a comer um sorvete. de flocos. era meu preferido. todas as alternativas já bem explicadas pela lógica, viagens no tempo são impossíveis. não quero mais impossibilidades lógicas. quero a modalidade mais alta: a da necessidade. se preciso, aí eu faço. dane-se se não posso, isto não é um tratado analítico. isto é um poema, ou não? como não tinha histórias infantis pra ler, resolvi escrever uma. TELMA SCHERER autora de Desconjunto - IEL, 2002

O Acerto É chegada a hora de entregar o sangue, Desarmar as mãos com calma, Pois a terra pede à alma Que devolva a carne e ganhe: A escuridão na treva da incerteza. Para o outro mundo irá sozinho, Pagando por ser tão mesquinho, Aprisionando para si toda beleza.

E devolver o que já alcançara à putrefação Para que possa descansar em paz e na podridão; Que esta é a única paga que leva o poeta.

CHARLES ABEGG autor de Mortalha e outros poemas, ed. do autor, 2004

REVOLUÇÃO ESTÉTICA

FÁBIO CEZAR autor de Palavrexposta (poesia)

Entardecer O coração está lá Onde a tarde alcança E onde o sol descansa Para repousar em sonhos

Meus Filhos A natureza emprestou o cinzel. Esculpi três obras inacreditáveis! Jamais as venderia. Ao invés de ventre ou útero, gosto, mesmo, da palavra barriga - bem popular muito fêmea e doce que guarda de um jeito maternal a capacidade maior de uma mulher. Cada seio que derramou lavou minhas fraquezas. Cada parto me redimiu por um terço de meus erros. Estes filhos coroaram os meus gestos e premiaram a minha luta. De cada tropeço, levanto depressa, porque eles aguardam pela minha retidão.

MAGALI VIDAL DOMINGUES

Do sorriso e da flor, querias o cheiro todo, Para enfeitar esse teu mundo de lodo. Então é chegada a hora de largar a caneta,

morrem de inveja todas as vênus de milo esteticamente estáticas quando vêem passar impune atentando contra os clássicos preceitos de beleza a cachorra popozuda.

Sou órfão, não tenho pátria aqui nem no distante, perdi-a ao nascer.

PRENDA

O umbigo transborda o éter alva, lisa sem marca de cansaço epiderme de mulher o mar do nome doce, leve peixe a dança refresca o belo namora a boca e as pernas

O ventre de minha mãe foi minha pátria. O ventre de meu amor foi minha pátria. O ventre de minha esperança espera por mim. Não tenho pátria, não tenho língua. A morte não fala, a morte não tem língua, a vida é só esperança de não morrer. Na morte, perde-se a esperança De língua, de pátria, de amor.

FRANCISCO MIGUEL DE MOURA poeta, mora em Teresina - PI

ABSURDO POESIA É GENTE FEITO LIRA MORTE É FIM FEITO AMANTE FILOSOFIA DUVIDA FILOSOFIA NA INCERTEZA DE TODA A MENTE. RIDÍCULO, MESQUINHO O RITMO DO MUNDO TUDO E NADA É ABSURDO TUDO ISTO É NADA COMO A VIDA É TUDO. ATRÁS DE MIM VEIO A VIDA CUSPINDO SANGUE PELAS MADRUGADAS A HUMANIDADE TERNA COMO A CLAVE CANTA A RIMA DA ALMA HUMANA. ALMA NÃO EXISTE? EXISTE A DÚVIDA DE EXISTIR O SANGUE FERVE A ALMA CANTA FADO: CORAÇÃO NA GARGANTA!

ALMANDRADE

ITA ARNOLD músico

autor de Arquitetura de algodão

Uma coisa tão simples, esta prenda! Às vezes formada de vermelho. Elementar que o seja no terno vagar insone. Só que eu a veja e queira. O original tinindo e me tostando a língua. É quando mais a amo sob a anca arqueada lisa, sevada, límpida, minha.

SEM a mulher não é um rio não é um lar o amigo quanto somos sem clareza e sem flor e divididos mais que entretanto carentes metades demais sem completamento

FERNANDA PEDRAZZI

ASCENDINO LEITE

ARICY CURVELLO

autora de Espelho de estrelas Editora Alcance, 1997

autor de Loas a Chile, ed. Idéia, JP, 2005.

autor de Mais que os nomes do nada

HAI KAIS Céu tão azul Milharal seco As primeiras geadas Nuvens e sombra de nuvens Como castelos medievais Dança, no horizonte Brilho fugaz... Um vagalume Ou Andrômeda? PAULO RAMOS DERENGOSKI Lages - SC


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m dos bares mais tradicionais do bairro Passo das Águas Um dos bares mais tradicionais do bairro Passo das Águas era sem era sem dúvida o bar do seu Rolinho. Um bar que abriu dúvida o bar do seu Rolinho. Um bar que abriu na década de 50 e na década de 50 e que findou expediente na entrada do que findou expediente na entrada do século XXI, quando desistiu século XXI, quando desistiu de existir. Foi suicidado pela voracidade de existir. Foi suicidado pela voracidade dos cassinos eletrônicos, dos cassinos eletrônicos, que, de tão infames, não tinham vocação que, de tão infames, não tinham vocação e charme nem para ilegae charme nem para ilegalidade, mas que ainda assim reúnem toda lidade, mas que ainda assim reúnem toda sorte de otários sem sorte. sorte de otários sem sorte.

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Porto Alegre vivia a época de ouro dos bares, da boemia e da boa malandragem. Neguinho emborrachava os cornos, fosse por vício ou guampa, ao som do Lupi. Tropeçava nos trilhos do bonde e pingava limão para fugir da gonorréia; essa, talvez, a menos provável e mais saudosa coisa daquele tempo. Tudo isso junto com o futebol, porque gre-nal era hábito freqüente para um hômi de bem e pinguço de responsa naquele tempo. Nessa época, em que jogador tinha jeito de macho e bebia assumidamente como macho, alguns botecos tornaram-se pontos de encontro, não só dos boleiros, mas também das comissões técnicas, dos cartolas, da imprensa especializada e de quem quer que fosse entendido de futebol e de birita. Nesse tempo, a farmácia do seu Rolinho teve seu apogeu. Sendo uma das bodegas preferidas desse povo, passou a ser tratada como uma referência nos meios futebolísticos. E nada era gratuito; o seu Rolinho tinha esse apelido por causa do famoso “Rolo Compressor”, time colorado da década de quarenta, lendária esquadra alvo-rubra, da qual ele, à época um jovem entusiasta do nobre esporte de Charles Müller, tornara-se fã absoluto. Era tão incentivador da equipe que diziam ter chegado ao ponto de enfiar um 38 de quatro polegadas nas fuças de um dirigente que declarou ser normal um empate do Rolo Compressor em um jogo-treino contra o time dos reservas. Evidente que seu Rolinho sabia a escalação do Rolo de cor e de trás pra frente; só não ousava repeti-la porque era temente ao Véio lá de Riba e suas mandanças. Em função desta predileção clubística, virou conhecida figura folclórica no Estádio dos Eucaliptos, e de tanto o homem só falar nesse time, ganhou o apelido de Rolinho, o que o deixou tão faceiro que abandonou seu nome de registro e batismo. Era como se ele tivesse sido rebatizado em uma religião qualquer, de forma que quando seu Rolinho abriu o raio do buteco, não tardou esse a se transformar, de imediato, em um templo etílico do futebol. Com a poeira das décadas, esse perfil histórico foi sofrendo profundas alterações. O centro espírita deixou de ser freqüentado por esse povo da bola, que emboiolou de vez e passou a beber nos cavaco, às escondidas e em lugar de fresco, onde se pede suco de laranja com birita pra esconder-se dos críticos, o que, na opinião do seu Rolinho, era uma puta viadagem, pois birita é coisa de macho, e futebol também. Logo, era palhaçada esse negócio de questionar o rendimento do perneta só porque ele encheu a lata num bom cabaré honesto (do tipo familiar, coisa muito bonita na época). Mas opiniões à parte, a freqüência do mundo da bola no bar do seu Rolinho foi diminuindo, até que não sobrou meia chuteira pra arrotar ruindade. Nem por isso a casa ficou triste, pois passou a ser freqüentada pela comunidade que arredondava a bodega, ou seja: a moçada da Vila do IAPI e do bairro Santa Maria Goretti, duas bocadas de gente boa. Boa de copo, de briga, de piadas, trambiques e sobrevivências em geral. E do mesmo jeito que a natureza depura suas raças pautando a perpetuação das espécies, privilegiando os genes mais fortes, o acaso (ou sei lá quem diabos poderia ter feito um troço daqueles!), enfiou toda aquela catrefa naquele cubículo de balcão pegado à parede, parede-estante forrada de títulos iluminados de nossa literatura. Títulos como: “Os Sete Campos de Piracicaba”, “O Velho Barreiro”, dentre outros igualmente festejados entre as letras doutas de nossa vasta literatura. Essa rapaziada passou a vida se emborrachando junta, fazendo daquela tinturaria sua primeira casa e daqueles cupinxas sua verdadeira família. E que figuraços! Puta que los parió! Essa grande fraternidade etílica revezava-se em seu cotidiano para não deixar a casa a bangú, de modo que sempre mantinham um quorum mínimo para encher o saco e esvaziar as garrafas do seu Rolinho. O futebol continuava a ser o papo mais importante, é claro, mas assuntos como economia, política, trabalho, família e outras besteiras passaram a ser faladas também. Mal é lógico. Esse plantel de bons bebedores passou a vida socado nesse jardim de infância tardia. Conheciam-se mútua e intimamente. Sabiam da vida uns dos outros, o nome dos filhos, dos pais e das mulheres (e seus apelidos, obviamente), sem nunca terem se visitado. Conheciam das casas dos outros apenas as fachadas (pelo menos oficialmente, é claro). E era uma turma extremamente unida em torno do ideal da boa piada, tanto que uma vez esse pessoal se liberou da zaga (patroas), e foram todos à inauguração de uma casa noturna em um bairro vizinho. Foi grande a festa, que terminou de manhã. Eram seis e meia da matina; a turma resolveu tomar a saideira no escritório coletivo, quando alguém lembrou que era domingo, e portanto não dava pra ir trabalhar. Outro lembrou que, sendo domingo, nada mais justo que ficar em casa com a família. E lá foram eles pro seu Rolinho, que ficava a uns três quilômetros dali. O pobre do seu Rolinho estava abrindo a firma, e começava à servir algumas médias, para um ou outro trabalhador que no sétimo dia ia encarar a desgraça de um dia de labuta, quando aquela turba insana invadiu o palácio aos berros!

Bar do Rolinho Charles Abegg* - Salta uma rodada de médias, seu Rolinho! Cachaça com manteiga! - berrou Chupeta, irmão do Charanga e do Betão Banguela, vulgo Banga da Baixa Gogô, um dos mais acirrados combatentes da freqüência dos co-irmãos da Vila do IAPI nas dependências do seu Rolinho Esporte Clube, academia de halterocopismo. O Betão da Baixa Gôgo gostava de ser chamado de Banga da Baixa Gôgo: - Sou da parte de baixo da Vila Santa Maria Goretti porque a parte de cima é muito perto daquela merda de Vila do IAPI, que só tem veado. Então, porra, me chama de Banga da Baixa Gogô, caralho! dizia o Banga, que parece ter sido coroinha, mas fazia um certo tempo. Estes elogios à vila vizinha, evidentemente, serviam pra começar um bate-boca, que depois de certa hora etílica, viraria um bate-cara também. Voltando a sinistra matutina, seu Rolinho, que no decorrer da semana passara acompanhando as engenharias dos amigos para driblar a defesa inimiga das donas encrencas para poderem ir ao rala bucho em questão, ao ver aquelas singelas criaturas com jeito de horda de bárbaros, bêbados e alucinados, exigindo aos berros seu néctar sagrado, num tal de todo mundo berrar junto, gargalhando entre as lembranças dos conluios noctívagos, brecou a naba na hora, apontando pra porta de um depósito que havia nos fundos de sua catedral. Estava indicando à urbe, em um código interno, que era muito cedo pra que se ficasse na porta da lavanderia. E lá foram nossos heróis a beberem sentados em engradados vazios. De tempos em tempos, algum dos loucos abria o alçapão do sétimo selo e sinalizava o pedido a seu Rolinho:

arte SANTIL

Esta crônica do poeta Charles Abegg dá início a uma série que será publicada a cada edição. Nesta, Charles apresenta folclórico boteco da cidade e sua fauna de tipos. Outra época, outros botecos, pés-sujos, biroscas, bolichos que se perderam na poeira (serragem, porque os legítimos pés-sujos de unha encravada tinham serragem) do tempo, mas, para nossa alegria, não da memória de Charles.

- Mais soro, doutor! - pedia o Lagartão, e pela vigia da porta surgia, como que por mágica, a benfeitora mão do salvador, com a abençoada salvação líquida. Lagartão, diga-se de passagem, era indivíduo de cara débil, de quem dizia-se ter este apelido por defender-se com o rabo, ao que outros diziam ser porque era chegado em mamar num ovo. Pura intriga da oposição, é óbvio. Lá pelas tantas o Chupeta, o “bem de irmão”, resolve olhar para dentro de casa, e vê sentado, tomando uma taça com pão e manteiga, um humilde soldado da nossa Brigada Militar, ou como se chamava na época: um pé-de-porco. Imediatamente, o Chupeta, que era um mestre do bom humor, e um dos médiuns-chefe de incorporação na Terreira do Pai Rolinho, percebendo que iria receber seu habitual espírito de porco, não teve dúvida: mudou o corpo, ajeitou o olhar coisa de nêgo incorporado mesmo, cavalo de santo, esses troço tudo - e saiu caminhando resignado em direção à porta do consultório, levando em seu passo firme o olhar curioso e bêbado do resto da quadrilha, que se apinhava na mal falada porta. Mas só o olhar deles, pois seu Rolinho cuidava apenas de verificar a limpeza espelhativa de alguns copos, feito a porra de um sacerdote qualquer cuidando daqueles ostensórios e outras merdas de igreja. Chupeta, que se parecia muito com seu irmão Charanga, e pouco lembrava o Banga da Baixa Gogô, foi até a porta frontal do sério estabelecimento e ficou como que cuidando na rua o movimento dos distintos cidadãos de bem, até que viu o que procurava, sem saber. Foi até a pilha de jornais dominicais, e delicadamente retirou um exemplar, com todos os classificados a que se tem direito, sem que o jornaleiro percebesse, e pôs-se a folheá-lo escorado tranqüilamente na porta externa da academia, no que não despertou a atenção de ninguém, a não ser, é claro, do resto da cambada, que fresteava em silêncio, na porta dos fundos. No auge de sua tranqüilidade, Chupeta enrolou com firmeza o jornal e aproximou-se com naturalidade do porquinho que tomava seu café da manhã oferecido pelo sóbrio estabelecimento ao seu atento vigilante das esquinas. Os jovens de outrora devem lembrarse que os policiais militares de priscas eras usavam um penico na cabeça (o que, segundo o Banga, era financiado pela indústria cerâmica catarinense, para denegrir a imagem até então austera dos penicos, que eram de louça), indumentária tão indispensável quanto o menor chiqueiro conhecido, que era então o coturno (aquela bota preta, com ponteira de ferro usada para chutar e pisotear cabeça de estudantes).

Então Chupeta posicionou-se atrás do pobre, mirando sua nuca branca, esperando o momento exato, igual um retratista que aguarda imóvel a hora certa de clicar seu modelo, com a diferença óbvia de que nosso artista não dispunha de uma câmera, e sim de um porrete de celulose. O modelo deste fotógrafo, neste caso, era um desgraçado com uma xícara na mão, encostada no beiço, enquanto a manopla opositora segurava um pãozinho besuntado de manteiga. E seguia seu Rolinho a fingir estar absorto por seus afazeres butequísticos, quando na verdade observava o clima de tensão, preconizando um desfecho trágico. Observava a tudo com o cenho franzido, como quem não tem cagaço nem preocupação. Não; tinha ele um olhar de como quem busca a imortalização fotográfica mental, do momento exato do gol repetido no replay; algo como o queixo semi-erguido, no rosto semi-curvado, com todos os nervos ópticos esmigalhados entre as pálpebras seculares e ainda assim com a retina impressionada de registrar um momento único e espetacular. Ele aguardava ver o que a mente já sabia, e o que para o resto da camarilha que espiava na porta semi-aberta era um misto de descrença e excitação . Bem; aí a coisa aconteceu. Os comentários foram difusos dado o fato que cada um tinha uma posição pra apreciar o lance: - Bateu como se bate em desafeto de jogo ou chifre! - disse Lagartão. - Deu no puto como se tivesse batendo em um veadinho qualquer do IAPI! - disse o Banga, quase iniciando uma nova briga. - Foi um lance parecido com os gringos, com aquela merda de bastão, com pegação de jeito e tudo! - disse seu Rolinho, meneando positivamente a cabeça. Fato foi que o Chupeta mirou bem abaixo do penico e sentou o ferro, quer dizer, jornalaço enrolado, que espatifou na nuca do miserento, fazendo voar capacete/penico pra um lado, xícara de café pra outro e o policial atirado no chão, nocauteado por geladeiras, automóveis, casas na praia, anúncios de puta e dentaduras, que se apinham naqueles classificados de papel e desespero. O clima era tensão pura. Tanto para ver o que o cana ia fazer com o Chupeta, e o que o Chupeta iria alegar, pois aí é que tá a piada. O porquinho era ágil: mal caiu no chão e já levantou-se sacando o trabuco da cintura, e, pondo-se a gritar com o agressor, enfiou-lhe a naba nas fuças: - Mas que merda, tá preso, porra! A cara do PM era de um justo ódio crescente, rosnando pro seu algoz, ao ponto que a cara do Chupeta assumiu um ar súbito de pavor, e de olhos arregalados ele falou com a voz trêmula: - Pelo amor de Deus moço, calma. Eu jurei que tu era meu primo que faz um tempão que eu não vejo! Calma! Não atira, calma, eu juro que foi um mal-entendido! Nisso seu Rolinho olhou para a porta dos fundos, que como mágica fechou-se deixando no ar uma súbita sensação de riso abafado, e foi até o PM tocando-lhe levemente o braço da mão que segurava o canhão, e calmamente convenceu o injuriado a aceitar as desculpas do Chupeta, usando entre outros argumentos o fato de o bêbado em questão ser um conhecido empresário do bairro, bom cidadão, pacato, ordeiro e cumpridor da lei, e que jamais desrespeitaria um agente da segurança pública. A empresa que o mau-cárater tinha era um ferro velho do tipo “não pergunto não respondo”. Não respeitava ele nem agente de saúde. Enquanto seu Rolinho desfiava um rosário de qualidades para livrá-lo, Chupeta, entre desculpas e trejeitos de constrangimento, foi retirando-se para a peça dos fundos. Lá estavam todos eles, com os olhos cheios de água, parte por estarem contendo as gargalhadas, e em parte de emoção. Enquanto Chupeta recebia os apertos de mão da irmandade, lá no plenário do senado, seu Rolinho servia novamente o bom policial, que já havia se limpado com um pano que lhe fora dado, provavelmente o mesmo que segundo a lenda Rolinho usou quarenta anos sem lavar, o que prova que devia ser mesmo um bom pano, pois suportou secar copos e suvacos do seu dono, que suava bicas. Nisso, lá dentro do covil, Ali Babá mostrava aos seus babões como abateu sua vítima, quando o Chaveco, que tinha esse apelido por viver de alicate (ou seja: sempre apertando alguém para tomar algum), observou: - Porra, Chupeta! Estragou o jornal do guri aí da frente! Agora vai ter que pagar! Dá a grana que eu levo pra ele. O Chupeta conhecia todas as manhas do Chaveco, que além de apertar geral na grana, tava sempre aporrinhando alguém pra arrumar um cigarro ou copo de trago (se deixasse, os dois). Mandou ele à merda e disse que ele ia lá pessoalmente pagar o jornal. Alguém recomendou cuidado com o porco, que isso era coisa braba, ao que ele retrucou: - Então espia só como a fera tá mansa... Chupeta saiu pela porta dos fundos da bodega, cabeça baixa, andar encurvado, o jornal todo estropiado embaixo do braço, quieto que nem guri que fez cagada. Passou ao lado do cana dura que o seguia com os olhos de puto dos cornos, foi até a porta do estabelecimento onde encontrou o jornaleiro e pagou-lhe; olhou para dentro da biblioteca e viu o seu Rolinho limpando o balcão com o mesmo indefectível pano de quarenta anos; olhou para a nuca vermelha do porco, que tava um vermelho do tipo vai-ficá-roxo; olhou a porta entreaberta com aquelas latas dos borrachos a lhe espiar e não teve dúvida: caminhou até o meio do salão e - pimba! - outra porrada jornalística recheada de anúncios infames, e a dona justa voa do tamborete, tomando um tombo pior ainda, ficando espalhado no chão no meio de capacete, xícara, açucareiro, borracha de apagar ideologia e o caralho à quatro.


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07 Bar do Rolinho - final

Dessa vez foi surpresa geral mesmo. Nem seu Rolinho esperava. O pessoal saiu da moita e aproximou-se da cena. Seu Rolinho botou o pano no ombro, e ficou o brigadiano levantar-se, empunhando a arma com uma fúria que se misturava com incredulidade, enquanto Chupeta ficou com uma expressão estranha, com um cano enfiado na boca, tentando dizer desculpas, quando foi interrompido pelos urros de fúria: - Desculpa é a puta que os pariu, o filho da puta! Diz! Diz que foi engano de novo! Me diz, desgraçado, pra ver se eu não te estouro a cara, ô viado! Diz pra vê, diz! Quando o brigadiano tirou o cano da boca do Chupeta e mandou ele se explicar, o infeliz apenas disse: - Desculpa... é que eu não me controlei! - o que levou toda a catrefa a cair em risos e aplausos, fazendo com que o do coturno desviasse a atenção de nosso herói, que imediatamente foi cercado pelos seus asseclas, e arrastado por eles até a porta dos fundos. m março Hermínio Bello de Carvalho fez 70 anos. Quantas homenagens recebeu? Poucas. Por que? Por que a sociedade brasileira é desatenta a fatos como esse. Alguém da importância cultural de Hermínio merece novos discos com suas músicas, reedições de seus livros, um mês de programas no rádio e na tv lembrando todas as suas empreitadas culturais e shows o ano todo Brasil afora. Vimos alguma dessas celebrações?

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Hermínio é, com certeza, a personalidade que mais e melhores serviços prestou à música popular brasileira. Poeta, empreendedor cultural, produtor musical, historiador, compositor e descobridor de talentos, sempre viveu em prol da música e atuou na imprensa cultural. Já em 1958, trabalhava na rádio MEC, do RJ, criando e apresentando programas que cuidavam da memória musical do país - os nomes dão uma idéia: Violão de Ontem e de Hoje, Reminiscências do Rio de Janeiro. Além de compositor e letrista, HBC é poeta; e dos bons; não é bissexto, não. Hermínio joga nas onze e é craque. Tem mais de 20 livros publicados, alguns deles de crônicas que contam deliciosos causos de personalidades da MPB, um dos mais recentes é o Sessão Passatempo, ed. Relume Dumará,1995 (na pág.4 uma crônica sobre Noel Rosa). Nele Hermínio conta impagáveis histórias de Aracy de Almeida, Clementina de Jesus, Dona Neuma da Mangueira, Chico Buarque e tantos outros. Um dos acontecimentos mais importantes da música popular brasileira depois dos anos 50 foi um bar localizado no centro do RJ, na rua da Carioca, inaugurado em 1964 : Zicartola. Alí Hermínio foi figura de proa, animando e apresentando as noitadas de samba. Cartola cuidava dos bebes e da música e Dona Zica, sua mulher, chefiava a cozinha. Subiam no pequeno palco do bar duas vezes por semana Nelson Cavaquinho, Candeia, Zé Keti, Elton Medeiros, Carlos Cachaça, além de Cartola, é claro. E novatos como Maurício Tapajós, Paulinho da Viola, Hermínio e a moçada da bossa nova não demoraram a chegar. Uma grande novidade (ou revolução musical?), que Hermínio descobriu na Taberna da Glória (reduto outrora fequentado por Mário de Andrade e Noel Rosa) e que foi apresentada ao público pela primeira vez no Zicartola foi Clementina de Jesus.

fofos: Instituto Jacob do Bandolim

Ciro Monteiro, Hermínio, Dino 7 cordas, Clementina de Jesus e Nora Ney.

Esta porta dava acesso ao salão de reuniões da ala nobre do palácio presidencial. O Charles Bronson seguia o Chupeta de arma em riste, até que foi interrompido pelo seu Rolinho, que com uma mão fazia o típico sinal de pare, e com a outra fechava a porta do depósito. O PM tentou argumentar, começando a berrar, mas baixou o tom quando seu Rolinho fez-lhe o gesto de silêncio de quem sinaliza o quarto de criança dormindo. Concomitante a isso, foi conduzindo o moço alterado até a porta principal da repartição pública em questão, parando no caminho para abaixar-se e pegar o penico e o porrete do rapaz que, apesar da raiva, aceitava o gesto daquele austero senhor, que parecia um pouco com seu avô, sendo levado por este até a rua. Não se teve mais notícia a respeito de que fim levou o raio do soldado. Reza a lenda que o cara saiu pra rua com cara de quem acaba de acordar de um sonho

estranho, talvez procurando um telefone pra pedir reforço, mas foi-se embora pensando que merda foi aquela. Seu Rolinho abriu a porta da sala do congá, aonde um bando de entidades rolava no chão e babava-se de tão bêbados, entre engradados de bebidas, todos loucos, em volta do Chupeta, que imitava mais uma vez a cara do porco brabo. Seu Rolinho mandou que todos saíssem dali, pois o salão principal estava às ordens de seus donos, e foram todos assumindo seus lugares, pois a rotina ali era deliciosamente cansativa. O bom soldado nunca mais foi visto; dizem que foi demitido quando contou a merda para seus superiores, que não gostaram de saber que um de seus homens havia arrumado confusnão numa região de gente tão boa. Boa no copo, no gatilho, na briga e nas trapaças em geral. Mas deve ser só lenda. Nada sério. * porto-alegrense, autor de Mortalha e outros poemas, 2004.

Mas quem disse que eu te esqueço FERNANDO RAMOS

“Poema do Contradigo”

Quelé, junto com Aracy Cortes, foi convidada especial do espetáculo Rosa de Ouro, idealizado por Hermínio. A música era o samba do morro e tinha Elton Medeiros, da Unidos de Lucas Jair do Cavaquinho, da Portela, Anescar, do Salgueiro, Nelson Sargento, da Mangueira e Paulinho da Viola, da Portela. O cenário era uma pequena mesa de bar e os todos os artistas, vestidos de branco, usavam cada um na gravata a cor de sua escola de samba. O show ficou vários meses em cartaz, voltou em 67 e resultou em dois clássicos discos de samba editados pela Odeon. Quem primeiro gravou uma música de HBC foi Nara Leão. Uma parceria com Zé Keti, Cicatriz, que foi incluída no espetáculo Opinião em 1965. Daí pra cá são mais de 150 composições, interpretadas pelas maiores vozes de nossa música: Elizeth Cardoso, Clara Nunes, Bethânia, Gal, Zezé Gonzaga, Alaíde Costa, Ciro Monteiro, Elza Soares e, mais recentemente, Luciana Souza. Pouco solitário na hora de compor, Hermínio fez quase todas as suas músicas em parceria com nomes como Baden Powel, Cartola e Carlos Cachaça (Alvorada), Pixinguinha (Fala Baixinho), Dona Ivone Lara (Mas quem disse que eu te esqueço), Jacob do Bandolim (Noites Cariocas e Doce de côco), João Pernambuco, Chico Buarque (Chão de esmeraldas), Maurício Tapajós e Paulinho da Viola (Sei lá, Mangueira e Timoneiro). Versos inesquecíveis e primorosos feito “Me sinto pisando/um chão de esmeraldas/quando levo meu coração/à mangueira”, “Vamos só nós dois/sem olhar pra trás/sem termos que ligar pra mais ninguém”, “Você também me lembra a alvorada/ quando chega iluminando/meus caminhos tão sem vida”, “Mangueira/teu cenário é uma beleza/que a natureza criou...”, “Vista assim do alto/mais parece um céu no chão/sei lá,/em mangueira a poesia fez um mar, se alastrou”, “Amar é um dom, há que saber o tom/e entoar bem certo a melodia”, “Não sou eu quem me navega/quem me navega é o mar/é ele quem me navega/como nem fosse levar”, “Sei que ao meu coração, só lhe resta escolher/os caminhos que a dor sutilmente traçou para lhe aprisionar”, “Doce de côco, meu bombocado/meu pedaço de fato és o esparadrapo/ que não desgrudou de mim” saíram da genial pena de Hermínio. Se parasse por aí, ele já mereceria toda nossa admiração, mas, não, ele sabe tudo de quase tudo. Produziu os melhores discos (Cartola, Nelson Cavaquinho, Jacob do Bandolim, Elizeth Cardoso, Clementina, Turíbio Santos, Paulinho). Dirigiu os melhores shows, desde Rosa de Ouro, passando por Elizeth, Jacob e Zimbo Trio no Teatro João Caetano, até O Samba é minha nobreza, há dois anos.

Metade de mim é ego e a outra metade, muda. De um lado, parede cega de outro, hera no muro. Metade de mim esconde o que a outra metade vê uma se caga de medo a outra bota pra foder. Uma só diz palavrão e a outra, padre-nosso. Se uma tem fogo nas ventas a outra se mói de remorso. Metade de uma é falaz e a outra se faz de surda uma de tudo é capaz e a outra, caramuja. Aranha caranguejeira, uma se esconde entre espinhos a outra, feito vieira, se abriga em concha e arminho.

Sempre brigando pela melhoria de nossa cultura, Hermínio participou, nos anos 70, junto com Gonzaguinha, Vitor Martins, Ivan Lins, Aldir Blanc e Maurício Tapajós da fundação da Sombrás, entidade idealizada por Jards Macalé e Sérgio Ricardo e criada para defender o direito autoral dos compositores. A primeira diretoria da Sombrás era composta por Tom Jobim (presidente) e HBC (vice). Se algo melhorou nesse corrupto charco da arrecadação de direitos autorais foi graças a essa guerra iniciada aí. Ainda nos anos 70, o produtor musical Albino Pinheiro chamou Hermínio para implementar um projeto (Seis-e-Meia) no Teatro João Caetano, que aproveitava o ocioso horário de fim de tarde do teatro e oferecia shows a preço popular. Um ano depois, trabalhando pela Funarte, usando a mesma idéia do Seis-e-Meia, Hermínio lança o Projeto Pixinguinha. Projeto que foi a mais bem sucedida iniciativa de levar a música brasileira a seu povo. A primeira apresentação estreou com João Bosco e Clementina de Jesus. Sucesso entrondoso. Na festa dos seus 60 anos, segundo palavras de Aldir Blanc, “Hermínio estava com o anel de Cartola, o relógio do Jacob do Bandolim, o terno da Comissão de Frente Bi-Campeã da Mangueira, o lenço do Pixinguinha, os sapatos do Jota Efegê, o sutiã da Dalva de Oliveira todo ele, para nossa glória, feito de pedaços, recados, bilhetes, luares e violões, assim no corpo como na alma, amém”. É isso - Hermínio feito de memórias; da música e da cultura brasileira. Já se disse por aí: memória é cultura, cultura é memória. Hermínio Bello de Carvalho, mas quem disse que eu te esqueço, saravá!


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Serendipity

O tempo fugiu lá de casa e o que me consola é que mesmo o mais prosaico dos perfumes resiste aos recorrentes sofrimentos humanos. Hoje descobri que os acasos são aromas materializados que encontramos em frasquinhos coloridos destampados, amoresaromas que topamos pelo ar. Outras vezes o acaso aparece em um traço de um parente morto, que insiste em se exibir no rosto de um bebê da família, assim como que para homenageá-lo, mas que logo desaparecerá. O tempo fugiu lá de casa e você se escapou com ele e por isto perscrutarei hoje à noite o cano de minha arma, bem junto ao meu ouvido e um perfume qualquer que por ali estiver, indicará o destino da solitária bala e certamente meu coração se alegrará, desta vez, infinitamente.” Estava claro para Viticent que o homem da carta era o pai que ele nunca conhecera. A sua mãe, em seu depoimento, afirmou saber apenas que o suicida era um homem de estranhos hábitos, que passava os dias trancado em seu apartamento a emitir impróprias gargalhadas, como as de um louco. Porém ontem à noite, em nossa conversa no bar, Viticent afirmou que consta no inquérito policial o testemunho de diversas pessoas informando das constantes visitas da mãe de Viticent ao apartamento do suicida. Sei que após este turbilhão de fortuitas e desafortunadas descobertas meu amigo é capaz de cometer atos insensatos contra si mesmo, ainda mais que Viticent tem certa predileção por filosofias que apregoam que o tempo é circular e crê em exotismos como no eterno retorno, em carmas inexoráveis, em indefectíveis armadilhas do destino. Serendipity* passou a fazer parte de seu vocabulário nos últimos tempos e oxalá eu nunca seja vítima destas inesperadas descobertas, impingidas contra nós, por este acaso sátiro e imperioso. Mas bem, chegamos, vou bater à porta, ouço passos, deve ser Viticent. - Júlia! O que tu tá fazendo aqui!? - Te acalma que eu vou explicar. - Entendi tudo! - Sai da frente! - Desgraçado! - E eu preocupado com ele! - Onde ele está? - Que risadas são essas!? - Do que ele está rindo!? - Tá no quarto!? - Que é isso Viticent!? - Larga essa arma! - Te acalma! - Não faz isso... Após o disparo, ainda pude sentir o perfume ordinário de minha mulher e o cheiro de um bebê que não reconheço, impregnando o quarto de Viticent. Logo depois, fulminado, tombei no chão.

“É o acaso que é infinito, não deus.” ( Artaud) Eric Fishl

enho que correr para que não aconteça o pior com Viticent. Por este motivo durante o percurso até a sua casa, enquanto dirijo meu carro, relatarei a vocês o infortúnio de meu amigo. Juliana, a namorada de Viticent, a guria mais concorrida de nosso tempo da Faculdade de Direito, me telefonou afobada, informando que havia recebido uma estranha carta de Viticent, rompendo a relação. Disse também que estava sofrendo com a separação. Nos tempos da Faculdade, antes de eu namorar Júlia, hoje a mulher com quem divido minha cama e que espera um filho meu, fui apaixonado por Juliana, e se minha amizade com Viticent não fosse tão sólida, certamente eu estaria me dirigindo ao apartamento de Juliana, e não à residência de meu amigo. Viticent sempre teve sorte com as mulheres. O seu aspecto sombrio e melancólico, associado a uma constante expressão de dor, alimentava o imaginário das universitárias. Não que ele não possuísse razões para externar tamanho sofrimento, já que Viticent não conheceu o pai, e sua mãe não aceita sequer a menção da palavra ´pai` dentro de casa. Viticent me confidenciou que, somente uma vez, quando de uma das suas diversas crises de depressão, a sua mãe deixou escapar que “quem sai aos seus não degenera”, o que de certa forma confortou o coração de Viticent, já que, pelo menos, uma doença o pai havia lhe deixado de herança. Viticent trabalha no arquivo judicial, onde grampeia, desgrampeia, cadastra e arquiva, atividades que estãomuito aquém da sua capacidade. Mas o que importa no caso é que ontem à noite - após a insistente oposição de minha mulher ao meu encontro com Viticent, objeções estas que beiravam a histeria, - eu fui auxiliar meu amigo em nosso habitual bar. Ele tinha em mãos dois documentos, um datilografado e outro escrito à mão, e estava visivelmente mais perturbado que o normal. Ele me disse que naquela tarde, enquanto carregava antigos processos para o arquivo morto, um daqueles calhamaços se espatifou no chão, espalhando diversos documentos. Dois daqueles documentos estavam ali, sob nossos olhos. O documento datilografado consistia num depoimento, até aí nada demais, não fosse ele assinado pela mãe de Viticent. O outro documento era uma carta que informava os motivos que levaram um homem a dar cabo de sua própria vida. Na porta do bar, Viticent confiou a mim os dois documentos, dizendo que aqueles papéis queimavam suas mãos. Bem... vou parar nesse posto de combustíveis e enquanto abasteço de gasolina o tanque do carro, lerei a carta a vocês. Peço paciência com o autor pelo pretenso tom literário que tentou imprimir à carta, pois penso que todos temos de encontrar epifanias, principalmente no dia de nossas vidas que escolhemos para ser o último. Eis a carta:

“O tempo fugiu lá de casa dizendo que iria buscar um amor, como se isto fosse possível, assim, só pensar e pronto, como se isto fosse libertá-lo da desinsofrida influência que exerço sobre ele e como se a sua partida impedisse meu coração de se alegrar. O tempo fugiu lá de casa e desde então os relógios não cumprem mais com suas tarefas e eu chego em meu trabalho no final do expediente, por vezes nem compareço à repartição, o que provoca admiração em meus colegas, o que provoca confusão no cérebro cartesiano de meu chefe, o que provoca alegria em meu coração. O tempo fugiu lá de casa e isto eleva em muito a probabilidade de o acaso se manifestar e assim aumenta o tempo em que o tempo fica a se entreter com sua ridícula procura, e tudo isso faz brotar gargalhadas insanas em meu rosto, que são ouvidas por vizinhos, e por você, o que alegra meu coração. O tempo fugiu lá de casa e você precisa ver como o ar aqui se tornou ainda mais irrespirável e você precisa ver como minhas doenças crescem sem parar e você precisa ver como minha saliva não afina mais - e com as minhas gengivas em papelno, o teu silêncio me parece ainda mais atroz - e você precisa ver como tudo isso alegra meu coração. O tempo fugiu lá de casa e eu me tornei religioso e rezo todos os dias para que o tempo não retorne, e eu me tornei mais livre e expulsei os amigos que tentaram me ajudar, e eu me tornei mais sábio e introduzi somente uma bala no tambor de meu revólver e tudo isso alegrou meu coração.

* Neologismo cunhado por Horace Walpole para designar a faculdade de fazer por acaso inesperadas “descobertas”. Penso que o ato de descobrir esta engenhosa palavra também se insere no seu próprio significado, isto é, Serendipity é uma armadilha semântica auto-explicativa, infinita e circular. No entanto esta proposição pode não passar de uma casual digressão de meu pensamento e que, estranhamente também se inclui na significação da palavra. Refutar esta proposição acaba nos levando a cair novamente na armadilha, e assim sucessivamente.

YURI FLORES MACHADO yuritextos@yahoo.com.br

CULTURA: do pensamento para o entretenimento

O discurso fica na superficialidade. Que a cultura é um bem de consumo, ninguém duvida, gera emprego, garante retornos significativos para a economia de uma cidade. Mas os profissionais do marketing, os políticos e os empresários ignoram na cultura a sua lógica: a do sentido, que ela é uma dimensão da existência do homem. “O que chamamos ‘cultura’, portanto é a ciência e a consciência com que o homem ocupa o espaço e o tempo de sua morada histórica. E o homem culto é aquele que cultiva essa ciência e essa consciência.” (Gerardo Mello Mourno). A cultura é um conjunto de práticas por onde transitam uma autonomia, a experiência de um saber e uma política específica. O patrocínio que substituiu o antigo mecenato reduziu os problemas da cultura às leis da economia e o poder do patrocinador acabou decidindo sobre padrões estéticos ou linguagens.

artista plástico, poeta e arquiteto almandrade2@hotmail.com.br

KTO INSE

N

ALMANDRADE

arte

ada mais desprezível e repetitivo do que certas falas sobre cultura que jorram nos congressos, seminários, na mídia, hoje em dia. A impressão é que houve uma perda da capacidade de produzir pensamento e a ausência de platéias seduzidas pela reflexão. Não se interroga a produção simbólica, faz-se reivindicações, relatos, comentários para animar um auditório acostumado ao olhar da televisão. Se algum dia na história, o filósofo, o intelectual, o crítico, o artista, o poeta ocupavam o lugar privilegiado de formar opinião, hoje, esse lugar é ocupado pelo produtor, o empresário cultural, o profissional de marketing. E a cultura é vista apenas como um agente de estímulo da economia de uma sociedade em declínio.

Há uma valorização arbitrária de um produto cultural em detrimento de outro e a divulgação fica submetida a um jogo de poder de quem manipula direta ou indiretamente com as mídias e o mercado. Somente com talento e invenção é difícil competir no mercado. Os profissionais que ganharam celebridade através do marketing cultural animam o espetáculo que faz da cultura um supermercado de entretenimentos. “Nos meios de comunicação, a confusão que se estabelece entre o princípio tradicional de celebridade baseado nas obras, e o princípio midiático baseado na visibilidade da mídia é cada vez maior.” (Pierre Bourdieu).

A cultura passa a ser apenas o que ela representa no campo da economia e da diversão. Enquanto se discute as leis de incentivo à cultura, não se discute a idéia de cultura e as instituições culturais não cumprem o papel de difundir um princípio de cidadania cultural. Uma política cultural indecisa, calcada em princípios poucos profissionais que desprezam ou desconhecem o fazer e suas materialidades específicas. E sem trabalhos, sem críticas, sem um suporte que sustente a formação e a divulgação da informação não vamos construir nenhuma credibilidade cultural. “A arte age e continuará a agir sobre nós enquanto houver obras de arte” (Merleau-Ponty). E não discursos sobre as obras. Uma cidade, um Estado, um País passam a ter uma existência cultural e conquistam um reconhecimento no futuro quando aprendem a respeitar seus artistas e intelectuais, quando aprendem a conviver e garantir as disparidades culturais. Entendemos que as instituições culturais como fundações, universidades, museus, etc. têm um papel importante a cumprir na produção e divulgação da informação dos produtos artísticos acima de compromissos pessoais e políticos que ignoram a natureza das linguagens artísticas. “No curso de grandes períodos históricos, juntamente com o modo de existência das comunidades humanas, modifica-se também seu modo de existir e perceber” (Walter Benjamin). A produção cultural participa dessas mudanças com a tarefa de transformar a realidade dentro de um território determinado da sociedade e do pensar onde a cultura age.


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M - Na maioria das vezes, independente. Mas tem o Fumproarte que possibilita gravar. No geral a maioria vem gravando pelo Fumproarte. A - O Fumproarte é uma saída, mas no nosso caso encontramos dificuldade porque não poderíamos participar, pois sou funcionário da Banda Municipal. E pro Fumproarte, quem toca na Banda não pode concorrer a financiamento. Uma coisa que é interessante falar: foi Luciano Gallo, do Abrigo do Som que abriu o estúdio pra gente, acreditando no nosso trabalho e viabilizando a gravação do CD, dando grande força pra gente. Porque sem esse apoio não conseguiríamos gravar. E os músicos que gravaram também acreditaram na proposta.

Marcelo, a tua preferência pelo choro vem dos tempos em que tu moraste no Rio de Janeiro ou antes tu já tocavas choro? M - Isso vem desde a década de oitenta, nesse tempo já arriscava compor algum choro. E a influência do choro na tua formação vem do estudo ou do estilo? M - A influência vem do estudo, mas muito da minha infância, porque ouvia em Cachoeira do Sul um regional do meu tio-avô, em que ele tocava bandoneon e violino. Eles tocavam bolero, tango e choro também. Mas a coisa do estudo, na verdade, vinha desde os dez anos. Lembro que tocava Tico-tico no fubá no piano. E tu, Alexandre, tiveste formação erudita? A - Fiz a faculdade de música na Universidade Federal de Santa Maria. Estudei e me formei em clarinete. Mas sempre fui mais ligado à música popular, me identifico mais com a música popular. Gosto da erudita, mas não pratico muito. Gosto mais é de escutar. Marcelo, fala um pouco do Tambo do Bando. M - Eu conhecia o Tambo desde a época em que morava no Rio. Era um grupo muito legal, de músicos experientes, com muita experiência em festival e presença de palco. Nesse tempo eu vivi quase cinco anos participando de festivais. Não só com o Tambo, mas também com outros grupos. E com o Tambo aprendi muita coisa. Musicalmente, foi uma experiência muito rica. Era uma época de muitos festivais de música regional, mas de vez em quando despontava alguma coisa diferente nos festivais, com uma pitada diferente. E esse diferencial fazia parte da própria história do Tambo. Isso já vinha acontecendo com o Raul Ellwanger, o Jerônimo Jardim, o Vitor Hugo, a Lúcia Helena, esse pessoal que tinha algo diferenciado. E tu achas que o Tambo sintetizava um pouco essa transformação, que apresentava um aspecto diferenciado nos festivais? M - É, pode ser. Por exemplo, existiam poucos grupos vocais pra bater a gurizada do Tambo. E a gente também levava prêmios nos arranjos. Mas, na verdade, hoje sinto muita saudade. Saudade de um grupo que, como tantos outros, gravou apenas dois discos e ficou por aí... E essa saudade tua é saudade da época, do grupo ou da situação musical que se vivia, saudade da efervescência de novidades que surgiam nos festivais? M - Eu acho que os festivais de hoje deveriam dar mais vazão a composições que realmente instiguem alguma diferença, seja em forma de letra, seja quanto à melodia ou arranjos. Ultimamente, o que tenho visto é que quase tudo é muito igual.

Na edição de janeiro da revista Aplauso o jornalista Juarez Fonseca escreveu sobre a riqueza da música instrumental de Porto Alegre. Ele citou apenas violonistas que, segundo ele, mereceriam maior visibilidade mas que ficaram um pouco eclipsados pelo Yamandu Costa. E a lista do Juarez é longa, são muitos instrumentistas de qualidade. Então, voltando às gravadoras, como é que fica esse pessoal todo, como é que eles fazem pra gravar? É de forma independente?

Estamos num momento de resistência cultural. A cada passo que damos como zebras do sistema, o leão midiático surge opiniático e dá formato à burra bocarra que engole o que presta e exala seu arroto fedorento, dominador dos ares. O leão da festa no ap; chama o cachorrinho; dança o bundalelê, cria tv loira pra crianças; lança novelas em todos os horários; jornalismo sanguinolento, filme violento. Às zebras sobram poucas chances. Será por isso que se chamam zebras? Será que são um tipo de herói “tupiniquim mirradin”, sem muita bala na agulha, que, se incomodar muito, não passa da própria aldeia, e que, se não incomodar, morre na casca. É desse tipo meio sem saída que surgem os grandes idealistas, artistas independentes. Estranho perceber que vários nomes importantes das artes brasileiras estão dentro desta categoria, lutando do para ter espaço. Mas e a qualidade? A soberania cultural? Será que nós vamos acabar completamente dominados? Será? Esperamos que não! Enquanto um fantástico big brother se vira nos trinta e topa tudo por dinheiro, o teatro continua caro, o espaço para músicos locais continua sendo raro, o péssimo ator continua sendo bonitinho. Porém, há mais dois artistas revolucionários perto de você. Lutando para que a vida melhore. Veja. Perceba. Há mais um bom produto cultural bem pertinho do mercado, mas por questões fundamentais, de fato ou de direito, preservado e independente. Marcelo Lehmann (piano) e Alexandre Rosa (sax e clarinete) formam o Duo Araucária e estão lançando o cd Batucada, composto basicamente de choros, maxixe, modinha. São músicas de Marcelo e uma em parceria com Alexandre. Na entrevista eles falam de suas carreiras, da condição do músico gaúcho e das possibilidades de se fazer música instrumental na cidade.

E os espaços para se tocar choro em Porto Alegre?

O disco de vocês foi gravado de forma independente. Como é que vocês estão fazendo para vender o cd? Onde as pessoas podem encontrá-lo para comprar?

E o que vocês esperam que mude a partir do lançamento do Batucada? Como vocês estão trabalhando a divulgação do cd?

A - O disco agora pode ser adquirido com a gente. Somos independentes até agora, mas não é essa a nossa pretensão, porque trabalhar com música autoral e, ainda por cima instrumental, não é mole, não. Então, estamos tentando negociar com algum selo, do centro do país ou de fora do Brasil. Porque aqui em Porto Alegre a gente já fez alguns contatos e o interesse foi zero. E isso deixa a gente muito chateado, porque tem tanta coisa duvidosa que consegue espaço... Não quero dizer que o nosso trabalho seja diferenciado, seja o máximo, não é isso, mas tinha que ter espaço pra mais música qualificada e pra todo mundo que a faz. M - E tem uma outra coisa também: o nosso repertório é basicamente choro. Como a onda do choro tá mais em Brasília, Rio e outros lugares e o choro voltou a ser “moda” outra vez, e o modismo sempre chega depois em Porto Alegre... Aqui, o choro ainda é visto como música antiga e careta... A - Se bem que de uns anos pra cá tem aparecido uma gurizada muito boa, um movimento que vem crescendo, o Bem Brasil, o Camerata Brasileira, além do pessoal da velha guarda, do Clube do Choro, que vem de mais tempo.

E N T R E V I S T A

A- São poucos. Por exemplo, a livraria Cultura tem uma sala muito legal pra música instrumental. Mas eles só aceitam músicos que tocam jazz. Deixei o cd pra eles com a intenção de marcar uma apresentação, mas me disseram que era só pra jazz. O espaço pro choro é restrito. Fazer choro no RS é difícil. Mas será que o choro, sendo o jazz Brasil, não poderia também ser contemplado pelo projeto da livraria Cultura? M - Poderia haver mais espaço. Mais projetos. E o choro, pra mim, é o que melhor traduz a alma brasileira. A - Muitas pessoas acham que aqui só tem nativismo. Que aqui no RS ninguém gosta de jazz, de choro. Olha o que é o Mercado Público - um belo espaço, cartão postal da cidade, mas que não é aproveitado. Poderia ser um centro pra música. Poderia ter música todos os dias. Fazer projeto e usar lei de incentivo à cultura pra levar música pra lá.

A - Estamos na batalha, indo atrás dum selo que queira fazer uma parceria com a gente. M - Já pensei em mandar o cd pra dois críticos de música, o Zuza Homem de Melo e o Tárik de Souza, pra ver o que eles acham. O que vocês acham da crítica de música e da imprensa cultural de Porto Alegre? M - Acho que em Porto Alegre há bons jornalistas. Agora, matérias sobre a arte produzida aqui a gente tem visto poucas ultimamente. A notícia do show da Madonna em Buenos Aires parece mais importante de ser publicada... E quem vocês citariam da crítica? A - Acho que um dos sérios é o Juarez Fonseca. Talvez o que melhor escreve. E a imprensa não tem interesse em fazer matéria sobre arte ou música daqui? A - Será que a imprensa não se interessa ou faz que não vê o que acontece?

V por Fernando Ramos e Luiz Mauro Vianna

Atualmente, seu corte é proibido.

DUO ARAUCÁRIA

Marcelo - A gente começou a tocar juntos em 95, em Santa Maria. Mas nessa época a gente não tinha esta proposta de hoje, fazíamos MPB e não era só instrumental. Mas nossa história começou mesmo a rolar aqui em Porto Alegre, em 2000. Alexandre - Tocávamos muito lá no restaurante Pacífico, no Mercado Público. Daí pra frente começamos a acrescentar choros ao nosso repertório. O Marcelo se empolgou e passamos a tocar composições dele, e eu comecei a usar mais o clarinete. E a parceria musical foi crescendo.

Foto: Divulgação

Batucada - [ De batucar ] s. f. Bras. Ato ou efeito de batucar; batuque. Ritmo ou canção do batuque. Reunião popular, geralmente nas ruas, onde se toca o samba em instrumentos de percussão, com acompanhamento ou sem ele. (Aurélio)

Como é que vocês se encontraram?

araucariáceas, de folhas pequenas e aciculares, duras, flores com sexos separados, sementes (pinhões) reunidas em grandes cones e importantes como alimento, e cuja madeira, branca, tem grande utilidade.

Araucária - [Do tax. Araucaria (<top. Arauco {Chile} + lat. Cient. - aria)] s. f. Bot. Pequeno gênero de grandes árvores oriundas da América do Sul e da Austrália, da família das


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Se você quer compor um haicai, à moda de Bashô, mesmo imperfeito, verifique primeiro se viveu inúmeras vidas. Comece por despojar-se do supérfluo das vestes da alma: paletó de esnobismo camisas de inquietude, agasalhos de orgulho, meias de apegos. Deixe o espírito, em síntese, aquietar-se, desnudo. Perceba o cintilar da essência de tudo que o rodeia. Veja o mundo com o olhar dos anjos, faça de seus ouvidos concha de inocência, imite o Poeta Francisco. Deixe que o silêncio seja sua própria carne. Junte no embornal da viagem poucas palavras: lua, folhagem, templo, relva, primavera, garça, brisa. E, por que não? pulga, piolho, o mijo de um cavalo. Derrame sobre elas um punhado de estrelas e as espalhe no papel.

CLAIRE DE LUNE

ELEGIA Para Henriqueta Lisboa, in memoriam “O que se perdeu foi pouco mas era o que eu mais amava.” HENRIQUETA LISBOA

O poeta está morrrendo. O mundo faz um minuto de silêncio em sua lida e as coisas, em volta, se aquietam. Por um débil momento o poeta quer o colo da vida. Palavras se debruçam sobre ele e soluçam. A solidão da palavra é filete de chumbo derretendo o coração. O poeta sabe que vai morrendo, seu estro se cansou, não mais fala de amor. Sua poesia se achega ao lado da janela e busca a luz. Uma nuvem se derrama sobre o agora inexorável - mortalha em ouro e prata. Fecha-se, de vez, a caixa de Pandora quando frouxo laço ligando céu e terra se desata. LIBERDADE

YEDA PRATES BERNIS, autora de Entre o rosa e o azul, Enquanto é noite, Palavra Ferida, Pêndula, Grão de Arroz, O Rosto do Silêncio, À beira do Outono e Encostada na paisagem. Os poemas desta página são de Cantata, Antologia Poética (2004), mais recente publicação desta poeta mineira.

projeto Música Autoral produzido pelo jornal VAIA está sendo implementado com o objetivo de apresentar e divulgar a produção musical da cidade, principalmente o trabalho indenpendente de músicos, grupos, intérpretes e compositores que fazem música popular brasileira. Durante o ano de 2005, sempre no primeiro sábado de cada mês, haverá um show reunindo dois artistas (grupos ou bandas, intérpretes ou compositores) convidados, tendo na abertura do espetáculo um convidado que será um dos artistas a participar do show do mês subseqüente. A agenda será definida de maneira que as apresentações de cada noite reúnam artistas com afinidades estéticas e de estilos musicais. Na primeira edição do projeto, dia 07 de maio, se apresentarão Otávio Segala e Fernanda Lopes e banda.

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Voa o pássaro e a linha de seu vôo é geometria que desconheço e sofro.

Um poema se faz em contenda de mente e palavra (a mente à procura, a palavra esquiva). Depois de cativa, que a palavra trema de encontro a outra. Um poema carece de amor e do inusitado. E o sangue convulso em largas artérias abraçando o mundo, inundando a vida. Um poema é canto em silêncio.

Para Ana Amélia Faria

Há quase um conluio de silêncio entre os sons. Uma poeira de prata desce lenta. Um murmúrio de lamento (será dos enamorados?) é veludo na atmosfera. Mais prata num crescendo instaura beleza e quietude.

DESENHO O menino desenha coloridos pássaros e os aprisiona, na gaveta. Ao ouvir trinados no papel vê, saindo pela fresta, asas em festa buscando o céu.

O estrume do boi a seiva do lírio: alquimia.

Semitons esbatidos escorrem em nuance de sonho - mansidão de estrela intocada. Pouco a pouco a prata se desfaz: algo de muito puro morre nas teclas.

Cai da folha a gota d’água. Lá longe, o oceano aguarda.

música

A POESIA DE CADA DIA

RECEITA

RECEITA PARA UM HAICAI

fotos: arquivo Vaia

independente

Fernanda, mineira de Teófilo Otoni, mora em Porto Alegre há mais de 8 anos, possui um trabalho que visa à essência da música brasileira, tendo como influências marcantes o samba, o samba jazz, a bossa nova e o baião e os compositores João Bosco, Chico Buarque, Joyce e Djavan. Participou de três Festivais de Música da Cidade de Porto Alegre, classificando-se como finalista em duas edições. Participou, em 2003, como convidada especial, nos shows de divulgação do cd Otávio Segala, do compositor Otávio Segala, na sala Luiz Cosme da CCMQ, no Solar dos Câmara e no Foyer do Theatro São Pedro. Ainda em 2003, gravou, em participação especial, uma música no cd Caminho dos Engenhos do compositor Alexandre Florez. Também gravou com Rizomá Cordeiro nos cds Tribufu e A Corda Criança em 2005. Herdeira fiel do melhor da tradição musical brasileira e sempre buscando um estilo pessoal de interpretar e uma sonoridade própria, Fernanda vai mostrar neste show, em que estará acompanhada por Edu Saffi, no contrabaixo, Rosamúsicas Passos. suas e duas releituras, de Tom Zé e de sete

(“Gostei do trabalho do Otávio Segala. Compõe bem. Melodia, harmonia... tudo certo. Também gostei da sua voz. Canta bem.” Leila Pinheiro) Segala compõe há mais de vinte anos. Iniciou estimulado pela música de Ivan Lins e Vitor Martins, que descobriu através de Jerônimo Jardim. E o samba tornou-se o estilo de seu interesse depois de ouvir João Bosco e Aldir Blanc por volta de 1984, quando começou a participar de festivais universitários. Conheceu seus dois principais parceiros, Clóvis Itaquy e Alexandre Florez, entre 85 e 87. Apresenta seu primeiro show em Porto Alegre, em 1990, intitulado O Compositor, com textos inéditos de Luis Fernando Verissimo, escritos especialmente para a apresentação. Alessandra Verney, em 1994, no show Decolagem interpreta duas músicas de Otávio, O Homem e a Terra e Só Ela. Outra cantora que interpreta músicas de Segala, em seu primeiro cd, Corpo de Paliçada, é Ângela Jobim, gravando 2 músicas. (“Que felicidade termos Otávio Segala em nossa história de vida e arte! Um trabalho tão especial, autêntico e de primeira qualidade. Saravá, Otávio!” Cybele Freire - Quarteto em Sy)

Data: 07 de MAIO (Sábado) 22 HORAS Local: CIA. DE ARTE (Andradas, 1780) Abertura: JOÃO MAYER Ingresso: R$ 6,00

Depois de quatro anos trabalhando no Japão, Segala volta a Porto Alegre e tem mais duas músicas suas interpretadas na voz de outra cantora gaúcha - Lúcia Helena - no show Palcos da Vida, da TVE. Em 2001, Segala viaja para a Alemanha, onde apresenta-se no projeto Jazz Latino e Semana Brasileira, nas cidades de Freiburg e Konstanz. Estabelece parceria com a compositora carioca Regina Sávio e grava o primeiro cd, apresentando o show Acústicos Coletânea, da Casa Coletânea, em Porto Alegre, no ano de 2002. O cd Otávio Segala é lançado em 2003. Com ele, Otávio concorre ao Prêmio Açorianos de Música, na categoria de melhor cd de música popular brasileira. Ainda em 2003, participa do projeto Blue Jazz do Theatro São Pedro, do Quartas Musicais, no Solar dos Câmara e do Música na Luis Cosme, da Sala Luís Cosme, da CCMQ. Morando no RJ, em 2004, Segala apresenta o show Pitada Brasileira no Vinícius Bar(Ipanema) e Partitura Bar (Lagoa Rodrigo de Freitas), dois tradicionais espaços para MPB.


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MEDO

“É tão fácil ser poeta e tão difícil ser homem” Charles Bukowski

MEDIDA PROVISÓRIA No. 1000 Apesar da violência desenfreada do livre trânsito dos corruptos da mesa vazia de multidões... fica determinado cinco minutos diários de leitura de poesias antes do café da manhã.

arte Insekto

corda no meio da madrugada, como um personagem qualquer, um gosto de tudo que é ruim na boca e no corpo, o álcool apodrecido percorrendo-o todo, vai à cozinha, a frase do filho chamando-o de irresponsável ecoa na cabeça, achava que não servia mais para nada, a noite grasnando, confirmando que ele não servia mesmo para nada, era uma repetição, um outro a cumprir ritos; a mulher acorda, vai ao banheiro, o vê mastigando uma maçã e pensando, um filho imenso na barriga, será que aquele filho ia pensar como ele, gostar de cinema, o gato rosnando, vai compreender o essencial do Marxismo, a Primavera de Praga, o som da urina, Coluna Prestes, Doors, o gato passa entre entre suas pernas, qualquer forma de engajamento, uma chuva de sons em sua cabeça, qualquer definição ética, estética, etc? A mulher pergunta se está chovendo, e não está, só para provocar assunto, ele está com o resto da maçã entre o polegar e o indicador, não pensando mais nada, o mal-estar fugindo, ele se sentindo mais pronto, mais acabado, lembrando da vida como se tudo fosse só imagem e som, sem dor. Um personagem, era isso que ele era, decaía, ele era um personagem de todos, ele era todos, não era ninguém. Queria sair da lenda, daquele mar obscuro onde se fundiam criação e caos, achava que merecia estar vivo, desafiavam-se, ele e o mundo àquela, um duelo nu. Encerrar-se mas não morrer. Segurava o talo e as sementes, a madrugada virava uma eternidade, sons diversos - do vento, grilos, a vidraça batendo - viu que não precisava entender tudo, um laivo de utopia se perdendo no horizonte, as multidões aflitas em ver morrer mais uma crença, a realidade se firmando como a grande metáfora, pisando sobre os canteiros em que ele plantou as rosas da sua adolescência, não precisava entender, tinha o direito de passar pelo mundo, de ser atravessado pelo mundo, de não ser nada, de ser irresponsável, perdoar o filho, viver mais um dia.

Buk

O personagem A

LUIZ NICANOR FRANK

Sidney

KATITA

Anita Prado e Gisele

- Olhe, Elaine, não posso me lembrar daqueles dias, pois, meu corpo está remoendo na cama, e, de vez em quando, ouço vozes - parece até que tem alguém me chamando - e eu não faço nada, porque minhas coisas estão em cima da escrivaninha, mas você não pode ver, porque não está aqui por perto. E este detestável pijama tá fedendo a mofo. “O que passou, passou” esta maldita música de carnaval veio assim de repente na minha cabeça e a esperança e o tempo me apavoram, hoje é hoje, amanhã é um hoje morto, espinafrado, tonto, morto mesmo, é como a gente, amanhã nós todos poderemos estar mortos, terrivelmente mortos deitados na cama. Ora, quer saber de uma coisa? Esse telefone é uma droga, toda hora toca só pra me encher mais ainda, a linguagem é um troço podre mesmo, ninguém pode acreditar na linguagem, que muda tudo, mas que é muda. As palavras só têm um significado: o de tornar as pessoas escravas de tudo e de todos. Palavra! Agora mesmo estava preocupado com uma porção de negócios- sem dinheiro, ora, sem dinheironegócios de pensar, dizer, fazer. Mas o que mais me atemoriza é perder as pessoas porque s’eu já tô desse jeito sem um caminho e sem a porcaria da esperança, o que resta? Eu sei que cada um tem o seu caminho, sua trilha, babalaô! E você vem me dizer pra pensar positivo! Isso me lembra o Dale Carnegie. Quando eu li o Dale fiquei meio apavorado, porque estava numa insegurança tremenda, então fiquei pior ainda, antes eu nunca tinha tido uma coisa tão apavorante! “Como fazer amigos e influenciar pessoas” como se as pessoas fossem robôs ou coisa parecida. É o cúmulo, não?Mas tem hora qu’eu penso em quem poderia ter sido e não fui: um domador de elefantes, um carregador de embrulhos da Praça Mauá, um alfaiate de madames, um orador negro, um economista que só toma café com leite. Agora vou lhe dizer uma coisa: só não tenho o espírito aventureiro luso que me corre nas veias. Mas sou capaz de ter medo da bomba atômica, do elevador e da buzina.

PAULO SIQUEIRA

P. J. RIBEIRO

autor de Lâmina, ed. LGE, 2004

autor de Interlocutando - ed. Totem, 2003

JESUS

KÖLE

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CRUZADAS MANJADAS HORIZONTAIS - 1- “111 (...)”, livro de Dalton Trevisan - Descobridor “oficial” do Brasil - 2- Pequeno roedor - Música cantada por duas vozes ou tocada por dois instrumentos - 3- Raio(símb)Ácido lisérgico - Luz da lua - 4- Erva-doce - Razão entre o comprimento da circunferência e o de seu diâmetro - Iniciais do “Rei” - 5- Filme de Costa Gavras - Obsoleto - Vogal - 6- Amazonas (sigla) - Doença causada por vírus - 7- Ridiculamente sensível Sódio(símb) - 8- Gritaria (pl.) - Flúor (símb.) - 9 - 50, em romanos10- Antiga embracação de vela e remos - Mecha de isqueiros VERTICAIS -1- Combina - Vegetal aquático sem raiz, folha ou caule - 2- Imposto de Renda - Nitrogênio (símb.) - Mafiosos Protegidos pela Lei - Consoante - 3- A taxa dos juros - Média embarcação esportiva - 4- Assegurar - 5-Carbono (símbolo) Diâmetro (símb.) - Datilografa em teclado - 6- Altemar Dutra, cantor - Enlouquecido - 7- Inquieto - Vogal - 8- O demandado em Juízo - Art.def.masc. plural - Sistema da Última Saída 9- Prender - Ernesto Nazaré, compositor - Teófilo Cubillas, exjogador - 10 - García (...), escritor espanhol - Torna cortante.

Dois homens estavam condenados à morte, mas Pilatos, disposto a conceder a liberdade àquele que fosse o mais sábio, ordenou aos seus homens que trouxessem a ossada de um animal, as jogou em frente dos condenados e disse: "Nazareno, de qual animal pertence esses ossos?" Nazareno olhou e disse calmamente: "Esses ossos são de um burro, Senhor." "Prove?" "Não posso, mas afirmo que é de um burro." "E você, Barrabás, poderia me dizer de qual animal são esses ossos?" "Não a princípio, Senhor." Barrabás foi até os ossos e começou a juntá-los, como se fosse um quebra-cabeça, ao final se formou a imagem do burro, então Barrabás disse: "Agora posso afirmar, Senhor, que é de um burro!" e Pilatos disse: "Libertem Barrabás!"

NANO COSTA nanocosta_poeta@yahoo.com.br

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Trilogia Tupiniquim

Número 15 - Abril/2005 vivavaia@ig.com.br

Editor: Marco Marques Redator: Serpílio Atrabílis Projeto Gráfico: Gil Pires Jornalista: Victor Hugo Silva - MT4239 Capa: Maurício Santil Colaboram nesta edição: Alexandre Florez, Aricy Curvello, Ascendino Leite, Almandrade, Andressa Cambraia Machado, Anita Prado, Carine Castilhos, Carlos Besen, Charles Abbeg, Cláudio Portella, C. Ronald, Fábio Cezar, Fábio Gomes, Fernanda Pedrazzi, Fernando Ramos, Francisco Miguel de Moura, Frank, Gisele, Ita Arnold, Köle, Luiz Gustavo Insekto, Luiz Mauro Vianna, Luiz Nicanor, Magali Domingues, Maurício Santil, Nano Costa, . Ribeiro, Ronaldo Cagiano, Sidney, Paulo R. Derengoski, Paulo Siqueira, PJ. Telma Scherer, Yeda Prates Bernis,Yuri Flores Machado, Wellington Lavareda.

OS ARTIGOS ASSINADOS SÃO DE INTEIRA RESPONSABILIDADE DOS SEUS AUTORES ? Rua Demétrio Ribeiro, 706/601 - centro - Porto Alegre- RS- BRASIL- 90010-312- F:(51)9649-5087


arte Carine Castilhos

Concerto para arranhacéus L

ição que se repete a cada dia, para em cada um deles tornar-se irreconhecível: a cidade se converte na selva monolítica e gelada: matéria e cincunstância para os psicanalistas. Uma geografia sinistra nesse ambiente retórico de fumaça e decadência. Fuliginosa é a manhã que, em vão, aguardam esses seres ressabiados ouvindo som digital em seus tronos sobre rodas, de onde vêem menores esgueirando-se entre os automóveis fazendo o pregão de bugigangas, frutas e balas. Desmelodia para os tímpanos, arsenais de vozes e ruídos cambiantes se sucedem numa solenidade improvisada. Azáfama. A fera enjaulada na solidão de muitos ninguéns. Encapsuladas em suas estações de trabalho, respondendo e-mails e aos chamados sucessivos nos celulares, muitos deliram na miséria recalcitrante de cada dia. Ruas, avenidas, becos e vielas não escapam à aquarela insólita: artérias de cinza e enxofre, canais divergentes onde fluem rios de vivos-mortos que se entrechocam e não se olham. Orquestra de motores. Babel de tipos com sua artilharia de inquirições: engravatados, bêbados, mendigos, office-boys, entregadores de pizza, despachantes, funcionários públicos, prestadores, garotas de programa, michês, camelôs, desempregados, condutores de vans, diabéticos, cancerosos, soropositivos, gente que passa em meio à pressa febril de tudo, urgenciando as coisas. A lógica veloz, tumultuária e vulcânica, de todas as necessidades impedindo detectar a mínima parcela de consciência nos movimentos e de realidade nos sentimentos. Os edifícios formigando gente na monotonia das tarefas miúdas e enfadonhas. Essa longa convulsão de anonimatos e repetições, meus olhos em seu verde espanto, pulsações de auroras que não vingam, turismo de urubus sobre lixeiras, fast-foods cheios de pessoas vazias, gente como feras se nutrindo do inservível, escafandristas da solidão, mergulhando diuturnamente na cidade abissal, bancários bovinizados, o câncer comendo silencioso o homem que alimenta os pombos na praça em frente, um cemitério de sons confusos, os trens do metrô: serpente sempre igual sem sair dos trilhos impondo aos usuários o tédio que passa veloz como uma película sem fim de nossas vidas apoucadas.

Poluição de semáforos disciplinando o mar convulsivo de animais metálicos e assembléia de pedintes sobre o asfalto latejante. No abril em que me espelho, o amor parece sair de moda, pois inusitado é o casal entre beijos na faixa de pedestres, a metrópole regurgita seus fantasmas, labareda e carnificina nos rostos pressurosos das pessoas. Um homem limpa a boca na camisa e tenho a sensação de ter chegado a um final de festa. Somos feras intangíveis nessa coreografia de degredos, na imodéstia do perigo e da morte. Nas igrejas, transformadas em mercados de uma fé delirante e uma espiritualidade chantagista, com seus padres super stars e pastores eletrônicos que aleluiam pelas tevês e praças públicas com uma retórica tediosa e melodramática, muitas vezes escamoteando suas vidas dicotômicas (dividas entre a ereção e a oração), nesses verdadeiros shoppings centers da salvação onde se impõe a teologia da prosperidade e traficam a felicidade a qualquer preço, vejo a angústia dos que entram desorientados e saem sem saber para onde vão. As virilhas engomadas por espermas clandestinos dos que vivem o rescaldo de pantagruélica melancolia ensinam mais que todas as ideologias. No mundo político e econômico entre o canibalismo de uns e o terrorismo de outros, o neoliberalismo e seus fetiches (a canalhice e seus fantoches) vão construindo seus túmulos num país sem memória, cemitério dos vivos. Não sobra nada da guerra diária. O que quero ressuscitar nisso tudo? Uma faixa de gaza urbana com sua artilharia torpedeando ouvidos e emitindo certidões de óbito. Caminhos e descaminhos bifurcam-se nesses ermos modernos - centopéias de mil pés - que Dédalo projetou essas entranhas? Procuro a saída, antítese de tudo isso e me vejo só. Como inventariar o caos nesse difuso concerto para arranha-céus?

RONALDO CAGIANO Autor de Concerto para arranha-céus LGE Editora - Brasília, 2005


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