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TABARÉ #30

Quando parte da massa que tomou conta das ruas, em 2013, gritava a plenos pulmões “sem partido!”, “sem partido!”, imaginavam eles que seriam os próprios partidos políticos que incorporariam o sentido das suas milhares de vozes? No Rio Grande do Sul, Sartori, do PMDB (tu sabes o que significa PMDB?), venceu com o famigerado “meu partido é o Rio Grande”. Mas não é de partidos e coligações que uma eleição é feita? Não é em partidos e coligações que estávamos votando? Marina Silva “da Rede ou do PSB?” disputou a presidência no vácuo de conteúdo da Nova Política. Aécio e Dilma não ficaram para trás ao esconderem-se atrás de ataques e denúncias e ao deixar de lado os temas que deveriam realmente importar. No segundo turno, o PT tratou de não levantar suas bandeiras históricas – uma vez mais, colocando em dúvida quais são ainda suas bandeiras além da manutenção do poder. E o PSDB acabou por maquilar o passado de todas as suas. Eleições não foram feitas para debatermos propostas políticas e projetos de futuro? No fim das contas, não sabemos se votamos na melhor candidatura ou no melhor marqueteiro. Mais do que nunca, nos cerca o risco da semântica: o perigo dos conceitos vazios. Sustentabilidade, Transparência, Desenvolvimento, Inovação. E a rainha soberana da atualidade: Nova Política. São tantas as palavras repetidas, marteladas, introjetadas nas consciências dos eleitores e das eleitoras que esquecemos que estas palavras passam a significar o retumbante Nada. Os marqueteiros políticos de plantão sabem bem que esses conceitos invertem a lógica, se concretizam na falta de significado e, assim, podem ser utilizados de maneiras malabaristas por candidatos e candidatas de todos os espectros políticos. O que é o Desenvolvimento Sustentável apregoado tantas vezes por Aécio e Dilma? Em que bases se sustenta A Nova Política? Marina também não sabe ou, se sabe, não nos contou. Essas palavras de (in) significados nebulosos servem muito à retórica política e pouco ao fazer político de fato. Eles ganham, nós perdemos. Se é este sistema eleitoral que fazemos parte (por enquanto), exigimos questões que deveriam ser básicas a qualquer regime que se preze democrático. Básicas e ainda não cumpridas: 1) coligações políticas com programas definidos; 2) candidaturas com propostas estabelecidas antes das eleições; 3) compromissos firmados à tinta de caneta para que possam ser devidamente cobrados após o processo eleitoral. Foram t antas as m aquiag ens, as fantas r ias e as má eleito se pergunta: o scaras e u q s posta

“mas não é tudo a m esma coisa?”

Nós acreditamos que não, não é. E também acredi tamos, c omo jor

nalism

o, que é n osso de ver faz er que as fa que as m ntasia aquiagens borrem, s rasgu em, que as m áscaras, C todas e las, A I A

M

. Chico Gua z zelLi Coordenaç ão Administr ativo -Financeiro: Luís a S antos Le andro Rodrigues Coordenaç ão de Comunic aç ão: Rodrigo Isopp o Coordenaç ão Comercial: J ona s Lunardon Coordenaç ão Gr áfico: M artino Piccinini Editor: G abriel Jacobsen Re visor: M arcel Hartm ann Coordenaç ão de Jornalismo:

Coordenaç ão de Distribuiç ão:

#30 Ariel Engs ter, Chico Gua z zelli, G abriel Jacobsen , J ohannes Kolberg , J ona s Lunardon, Le andro Rodrigues , Luís a S antos , M arcel Hartm ann, M arcus Pereir a , M artino Piccinini, Pepe M artini, Rodrigo Isopp o e Ya mini Benites projeto gr áfico: M artino Piccinini diagr a m aç ão: dougl a s cordova e J ohannes Kolberg c apa: LUÍSA HERVÉ col abor adores: CRISTIANO GOULART, dougl a s cordova , J éssic a Menzel , LUÍSA HERVÉ, NARA A MELIA , M ARCUS Meneghe t ti, M ATHEUS CHAPARINI e VASCO tir agem: 3 mil e xempl ares Contatos: comercial @tabare.ne t / tabare@tabare.ne t / facebook .com/j tabare conselho editorial

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(

O D E A O VA Z I O

)


por Matheus Chaparini

E aí, Tabaré, tudo belezinha? Bah, nem te conto. Esses dias tive que ir no xópim - coisa que evito ao extremo. O causo é que tinha pouco tempo pra comprar um presente e não teve jeito. Caralha, que experiência traumática, bicho. Daí me lembrei que, diante das mais variadas e perrengosas situações da vida – como um atraque, uma garrafa de vinho bebida entre duas pessoas que se desejam e que não podem se comer ou mesmo aquela mijadinha em algum banheiro público mais boca braba –, o Tabaré sempre tem meia de dúzia de valiosas e salvadoras dicas. Então compartilho convosco um pouco do aprendizado que obtive através desta experiência. "Quanta gente, quanta alegria, a minha felicidade é um crediário nas Casas Bahia." (Dinho [Alecsander Alves] e Julio Razec [Julio César Barbosa])

Não vai ao xópim Sério, de boa, por que diabos tu iria ao xópim? Loja loja loja, vitrine vitrine vitrine, consumo consumo consumo. Pra quê? Gente pra cacete, andando pra lá e pra cá, por corredores todos iguais. Além do quê, quase tudo que tu compra em um xópim tu pode comprar numa loja do teu bairro, ou no centro, ou na internet. Mas tudo bem, a gente entende, essa vida corrida e tal, às vezes não tem jeito e, por uma questão de praticidade/emergência/desespero/ cinema/arcondicionadonumdiadecalormedonhonoescaldanteverãoportoalegrense tu acaba tendo que optar pelo xópim. Neste caso:

Não vai de carro Na chegada tu certamente vai pegar uma tranqueira. Se não trancar na entrada, tranca na saída. Daí tu nem chegou e já tá no stress. Quando tu conseguir entrar, vai ver que o estacionamento custa a passagem de ida e volta mais um mandolate e uma Mirinda. Prejú. Geralmente os xópins são acessíveis de ônibus. E muitos têm bicicletários. Se puder vai de bici e já salva uns pila.

Não come no xópim Praça de alimentação. Coisa bem boa que é sentar pra comer, bem à vontade, com mais umas mil pessoas bem à vontade, e mais algumas não muito à vontade te olhando feio de pé com uma bandeja na mão desejando o teu lugar. A comida também não é lá essas coisas. Fésti fúdi. Pouca comida com pouco gosto por muito dinheiro. Experimenta almoçar num xópim center. A melhor opção que tu puder encontrar – tipo assim, comida normal – vai ser alguma coisa que tu comeria em qualquer restaurantezito de bairro ou prato feito do centro com o dobro da quantidade pela metade do preço. Sem falar nas filas. Na boa, vai comido de casa. Ou sai pra comer depois.

O xópim não é um lugar para se passear Che, é simples: entra, faz o que tem que fazer, sai. Objetividade. Foco. Tudo ali é pensado pra te destrair e te fazer gastar tempo e dinheiro com coisas que tu não precisa. É um labirinto, uma armadilha. Tem que pegar e se cuidar.

Eu tenho uma pauta, é sobre o amor livre. Florência de Alencastro, jornalista. Ah, que ótimo! Estamos mesmo procurando repórteres! Faz assim ó, Flor: manda teu currículo e tua matéria pro tabarejornalismo@gmail <3 <3 <3 Muito boa a matéria da edição passada com o dramaturgo Silvero Pereira. Adorei. Só fiquei com uma dúvida: o que é LGBTTT? Julemar da Silva, aposentado. Joga no Google Let me be your little dog till your big dog comes. Cau Pãrquins, adestrador. Late que tô passando.

Vai ao banheiro Vai mesmo. Número um, número dois, números três, uma mera lavadinha nas mãos ou só um conferes no espelho. Os banheiros são ótimos: confortáveis, bem limpos, raramente falta papel, sabonete ou alguma outra coisa. E o principal, este é o único atrativo gratuito de um xópim center. Tá valendo.

Não seja pobre E se for, não tenha cara de pobre. E se tiver, não vá em grandes grupos. E se for, não chama de rolezinho. E se... na real, ignora essa dica. Pode ignorar. Mas esteja ciente de que sempre pode dar b.o. E tem o outro lado, né? Um pouco menos evitável. Que é quando a praga do xópim vem até ti. Que o digam os moradores duma vila ali da zona sul que meia duzia de anos atrás foram corridos de casa pela chegada de mais loja loja loja, vitrine vitrine vitrine, consumo consumo consumo.

Acho que às vezes falta um feedback das edições antigas. Por exemplo, na reportagem do Mc Marcinho da edição 3, ele diz que vai virar pastor e fazer funk gospel. Pô, ele continua cantando glamurosa e não virou pastor coisa nenhuma. Austregésilo Pinto, revisor de textos. Ainda. Car@ Tabaré, sou leitora assídua e quero dizer que não gostei nada da atitude d@ jornal em fazer piada com @ veícul@ d@ concorrênci@ “Revista Bastião” (edição 29, outubro de 2014). Achei inadequada e antiética. Elisangela Toledo, professora. Isso que tu não viu o que a gente fala do Jornalismo B.

Pelo menos o Tabaré não ficou correndo atrás do Mujica quando ele teve em Porto Alegre. Juan de la Riva, paratleta. Até corremo, mas não alcancemo. Aquele fuca avoa! Conheci o Tabaré na edição passada. E não gostei nada. Só o que vi foi gay, travesti, índio, preto: tudo o que não presta. Luis Carlos Heil, político. Tá falando sério? É verdade que nas reuniões vocês ficam pelados? Bruno Antunes, voyeur. Ai, sério, gente! Sempre essa pergunta?


E N T R E V I S TA

Foto: Divulgação Kronnus

Engajado em desmascarar “paranormais”, ilusionista mais famoso do Brasil fala ao Tabaré sobre a tênue linha que separa os profissionais da ilusão.

por Chico Guazzelli

Além dos espetáculos que apresenta pelo país, Kronnus é conhecido pelas suas participações em programas de TV, nos quais trata de casos de fantasmas, videntes e explora as percepções humanas que, para a felicidade dos mágicos, frequentemente nos traem. O caxiense Thiago Battastini Neves, 34 anos, é, antes de tudo, um cético. E foi isso que o atraiu para a mágica. Aos 15 anos, ganhou do pai uma série da revista Timelife sobre os mistérios do desconhecido, conheceu a história de paranormais como Iuri Geller e lembrou-se das brincadeiras de mágica que praticava na infância. Dedicou-se, então, a entender os truques que aqueles “paranormais” executavam. A fama chegou quando o programa Fantástico, da Rede Globo, promoveu o Desafio Paranormal, elegendo Thomas Green Morton (o Homem do Rá) como maior paranormal do Brasil. Kronnus entrou em contato com a emissora, repetiu com exatidão os feitos de Morton e demonstrou através de vídeos que o badalado “paranormal”, guru de celebridades como Elba Ramalho e Tom Jobim, utilizava na verdade truques de mágica. A carreira e a vida de Kronnus se cruzaram, então, com a de James Randi, famoso mágico e cético canadense que há décadas desmascara paranormais. Randi criou uma fundação que, visando a desmarcarar charlatões, oferece um milhão de dólares a quem provar ser paranormal em condições neutras - isto é, em laboratório. O representante da fundação na América Latina é, desde então, Kronnus. tabare.net


Quantas

pessoas já aceitaram refazer

M as

os truques dos mágicos são patenteados?

a mágica em laboratório?

Nunca aconteceu. Mas teve dois casos que repercutiram na imprensa. O do Luiz Carlos Amorim, que dizia ter sido testado pela Universidade de Brasília e se gabava de ter entortado o brinco da princesa Diana. Ele aceitou o desafio. A TV Bandeirantes, então, tinha um programa chamado Jogo da Vida e armou para que o Amorim estivesse no programa e eu também. Quando nos encontramos, eu fiz antes dele as “atividades paranormais” que ele normalmente faria. Depois disso, ele disse que não estava à vontade para realizar seus feitos. Mas aceitou meu desafio, só que até hoje eu estou esperando. O segundo caso foi do Urandir Fernandes Oliveira, de iniciais UFO. É o cara que inventou o ET Bilu, tem um grupo que se comporta como seita e diz que tem contato com seres alienígenas, manifestando seus poderes através dos seres. Também aceitou o desafio e nunca entrou em contato. Eles aceitam para se promover. A mesma coisa foi lá em 2002, quando o Thomas Green Morton, que aceitou o desafio e no dia marcado disse que ia viajar (risos). Ele até tinha dito o que ia fazer, o “Milagre da Vida”: pegar um ovo qualquer e fazer nascer um pintinho de dentro. O Thomas foi o cara que eu vi mais preparado de todos, com técnicas elaboradas, elementos menos conhecidos para iludir.

Tu

Patentear não resolve porque somente algumas coisas são patenteáveis. Acho que tudo do David Copperfield e do Jim Steinmeyer [que desenvolveu algumas ilusões para Copperfield, incluindo a de desaparecer a Estátua da Liberdade] é patenteado. Na lei americana patentear não resolve. Tu consegue registrar o roteiro da mágica, mas não a mágica em si. Eu tenho o roteiro do meu espetáculo registrado, podem usar o mesmo número que eu, mas não usar a minha piada.

Reza

a lenda que mágicos só contam

para outros mágicos como são feitos os truques.

Que

mágicos te ajudaram?

Leitura fria é a técnica dos cartomantes. Por exemplo, vou dizer três coisas sobre a tua vida que não tem como errar: tu nasceu pelado, estás aqui comigo e vais morrer. Se eu evoluir nisso e detalhar sobre o que eu vejo, eu começo a dar um monte de informações que servem para um arquétipo teu. Por exemplo, quantos anos você tá?

Tem dois números que tão para entrar no show faz mais de um ano, e não entram. Não sei, tem alguma coisa… E claro, já deu muito errado, mas não dá mais. A sala de ensaio é o lugar em que tem que dar errado. a diferença entre apresentar os

quem acredite

que tu és um mágico com poderes?

e seis.

Minha opinião é bem simples: ele é um filho da puta. Aquilo não se faz. Mas tem momentos nos quais tu podes ter que revelar um segredo de mágica, como para desmascarar vigaristas.

deu errado?

Quando o cara olha no YouTube ou na TV, ele pode achar que é armado. Pensa bem, o cara saiu da casa dele, num sábado ou domingo de noite, gastou dinheiro para ir me ver... É muito difícil que ele vá para me incomodar, desafiar, que não esteja a fim do espetáculo. Se ele tiver a fim, isso já é 90%, e 10% é da minha habilidade de tornar essa experiência melhor ainda.

que é Leitura Fria e Leitura Quente e como usam essas práticas?

O que tu pensas sobre mágicos como Mister M, que revelam truques?

troques em vídeo e em espetáculos?

O

Eu ia chutar 27… Mais ou menos há seis, oito anos atrás, tu tiveste uma grande decepção amorosa. Eu tô falando de quando tu tinhas entre 18 e 21 anos. É estatístico, há um grande número de rompimentos, a pessoa está saindo da adolescência e está entrando na vida adulta, mudando de cidade, entrando na faculdade, e rompe um namoro de infância. Isso um vidente também sabe. Leitura quente é quando há investigação depois da primeira consulta. O vidente faz um cadastro com o nome do cliente, endereço e telefone, e passa a investigar. Hoje em dia, com Facebook, é uma delícia para o vidente. Mas uma coisa que era muito comum antes das redes sociais era pegar o lixo do cliente.

tempo demora para criar um truque

Qual

estudaste o mentalismo, uma escola da

Vinte

Quanto

e colocá-lo em prática?

Além de James Randi, referência em ética e combate à fraude e ao obscurantismo, na minha vida pessoal houve dois caras: o Vitor Cantero, um uruguaio que

mágica utilizada também por charlatões.

usar desde ilusão de óptica para tornar algo material invisível até um argumento psicológico para te guiar a uma resposta errada. Estudo mágica também, sobre a qual há várias teorias. É um universo discreto, mas não secreto. Por exemplo, na Califórnia, tem um pessoal da Universidade da Califórnia que fez um trabalho entrevistando mágicos para aprender sobre neurociência. Então eles já fazem um paralelo da neurociência com a mágica [os cientistas Stephen Macknik e Susana Martinez-Conde fundaram o estudo da Neuromagia a partir dos trabalhos que resultaram no livro "Truques da Mente: o que a mágica revela sobre o nosso cérebro"]. Eu enxergo a mágica como a arte do impossível.

morou e faleceu em Porto Alegre, e o Joe Márbel, um mágico de Canoas que tinha uma empresa que tá aberta até hoje chamada Multi Mágicas, faleceu há poucos anos. Esses dois caras me deram muita orientação na parte prática. Até hoje, em termos de técnica de destreza manual, eu digo: são os melhores cara que eu vi e botam muito gringo no bolso.

Qual

ciência que tu mais estuda?

Psicologia, neurociência, o cérebro… A percepção humana é muito importante, porque o que o mágico faz é te apresentar uma lógica falsa, criando um resultado impossível. Tenho que analisar elementos do cérebro, do raciocínio, da maneira como tu pensas, do teu comportamento humano e da maneira como tu estás condicionado para te enganar. Eu posso Verão 2014/15 . #30

Quando tu fazes números de mentalismo, as pessoas dizem: “Achei lindo teu show, mas aquela parte é de verdade, né? Como tu sabias para onde o cara queria viajar?”. Eu dou risada, não respondo. Porque para mim tá bem claro que aquilo é um espetáculo. É um elogio porque eu sou conhecido por chegar na pessoa e dizer: “Olha só, cara, eu vou te enganar, isso não existe e eu faço”. Teve um cara que tinha visto uma performance minha de flexão de metais e achou que eu iria curar as vacas dele que estavam doente (risos). E outra, sempre depois que eu desmascaro esses “paranormais” famosinhos, acontecem ameaças. Não sei se são deles, mas acontecem.

Quantos

mágicos vivem só da mágica?

No Rio Grande do Sul, uns 3 ou 4. Eu consigo viver só de mágica porque me destaquei muito. Eu sou o improvável e o cara que não pode servir de exemplo para nada. Tem mágicos infantis que vivem dignamente só da mágica. Comparado com outros países, com relação à profissionalização, o Brasil está muito atrasado.

Tu

ainda sofres ilusão de outros mágicos?

É quase impossível. Mas é muito difícil, porque os princípios são sempre os mesmos. Mas, quando acontece, é maravilhoso! 5


ECONOMIA

Latifúndio

os hectares

Em um estado marcado por duas realidades dist os efeitos da concentração de terras são p

texto e fotos por C

S entado no velho sofá da sala, o senhor Noble olha

fixo para um dos dois porta-retratos posicionados sobre a televisão. O do lado esquerdo traz seu pai, um militar uruguaio que, sem sorte na vida, morreu como veio ao mundo: miserável. Noble, não diferente do pai, também herdou a fiel pobreza que o acompanha até hoje, aos 58 anos. Nascido em Melo, capital do Distrito de Cerro Largo, no Uruguai, é divorciado, tem três filhos, mas nenhum mora com ele, embora o visitem com frequência. A foto da direita, encaixada sob uma moldura de madeira verde e sem retoques, não traz familiares, belas paisagens ou momentos de uma vida que poderia deixar saudades. A imagem é de uma moderna colheitadeira utilizada em lavouras de arroz. Mesmo sem nunca ter pilotado veículo similar, a fotografia o faz sorrir ao imaginar-se dentro da cabine de comando de um dos expoentes da modernidade no campo. No entanto, isso não passa de sonho alimentado pelo olhar cansado de Julio Cesar Noble. A realidade é um antigo sofá de dois cômodos na sala que Julio divide comigo e com uma câmera fotográfica. O resultado de uma vida de 40 anos no campo estava naquele corpo combalido e alquebrado

sobre o sofá. O cenário é uma casa modesta de alvenaria e reboco inacabado, adquirida ao custo de poucos salários e instalada no interior da Vila da Miséria, em Bagé. Conheci Julio ao acaso enquanto fotografava as grandes propriedades no entorno da cidade.

meio da Lei de Acesso à Informação (LAI). A maior propriedade pertence ao Exército brasileiro e fica em Rosário do Sul, na Fronteira Oeste, com 50.083 hectares. É o equivalente aos municípios de Alvorada, Cachoeirinha, Campo Bom, Canoas, Estância Velha, Esteio, Sapiranga e Sapucaia do Sul juntos.

O município da Metade Sul do Estado, como os demais da região, é cercado por latifúndios que se mantêm, há séculos, em tamanho igual ou superior ao delimitado originalmente. O resultado é a baixa densidade demográfica e a migração da população para a Metade Norte, região mais desenvolvida industrial e economicamente, onde também há uma divisão maior de terras. No Sul, ao contrário, predomina uma brutal e histórica desigualdade em relação à distribuição das riquezas produzidas. Essas diferenças contribuem significativamente para o subdesenvolvimento da região - e indiretamente em todo o Estado.

Dados divulgados recentemente pela Fundação de Economia e Estatística do Rio Grande do Sul (FEE) analisam o desenvolvimento socioeconômico das cidades gaúchas no período de 2007 a 2010. O levantamento, que agrupa os municípios em 28 Conselhos Regionais de Desenvolvimento (Coredes), mostra que, dos 10 mais desenvolvidos, nenhum pertence à Metade Sul do Estado.

Atualmente, o Rio Grande do Sul tem 65 áreas de terras com mais de 5 mil hectares. Destas, 49 ficam na Metade Sul. O levantamento com os maiores terrenos do Rio Grande do Sul é o último realizado pelo governo estadual e foi obtido pelo Tabaré por

tabare.net

- Na medida em que temos uma concentração maior de terras, especialmente em atividades da agropecuária transitória, ocorre uma colheita por ano e o proprietário recebe naquele momento todo seu recurso. Se ele tem uma grande propriedade, o recurso que recebe é suficientemente grande para gastá-lo no lugar onde tu tens mais oferta de serviço e bens materiais mais baratos - ressalta o economista Carlos Águedo Paiva, da Fundação de Economia e Estatística do RS (FEE).


os gaúchos

ectares do atraso

tintas de oportunidades, desenvolvimento e renda, parte do cotidiano de milhões de gaúchos

Cristiano Goulart

Nesse sentido, embora a região tenha imenso potencial produtivo, os latifúndios existentes no seu entorno impossibilitam a criação de um comércio local. Por conta disso, a riqueza gerada se desloca para os polos urbanos, onde os proprietários têm mais possibilidade de investir ou de gastar o que lucraram com pecuária ou lavouras. Sem uma economia local e emprego para toda população, restam apenas duas alternativas aos moradores da região Sul: disputar a pouca oferta de trabalho no campo ou se mudar em busca de melhores oportunidades. Os que têm mais recursos arrendam terras.

- Saí do Uruguai com 17 anos para cuidar de uns gados do doutor Lang em Caçapava do Sul [atualmente, o falecido médico e pecuarista é nome de rua e hospital no município]. Depois, ganhei uma casinha na Vila da Lata, em Aceguá, de um descendente de italiano, gente muito boa, e fui ajudar nas lavouras de arroz dele - relembra Noble que, apesar de trabalhar desde o final da década de 60 no campo, tem menos de 8 anos registrados na Carteira de Trabalho.

- Cerca de 28% de tudo o que o produtor de arroz arrendatário na região da Campanha produz vai para o proprietário da terra. Ou seja, um quarto da riqueza vai para o dono da terra que, muitas vezes, não mora lá, mas em Porto Alegre, Pelotas, São Paulo, Rio de Janeiro... - esclarece o membro do Centro de Estudos e Pesquisas Avançadas da UFRGS, Lovois de Andrade Miguel.

Aguador nas lavouras de arroz, ele admite que, mesmo trabalhando há décadas no campo, nunca teve condições de adquirir sequer uma pequena propriedade. Mesmo assim, não se sente injustiçado ou explorado, mas agradecido pelas oportunidades de emprego que recebeu. Com os pés enfermos por causa da ausência de condições mínimas de trabalho que o ajudariam a se proteger dos efeitos dos agrotóxicos aplicados nas lavouras, e sem ter tido tempo para estudar nos últimos 40 anos, não tem do que reclamar.

Julio Noble começou no campo com 14 anos, ainda no Uruguai, cuidando de gado. E foi essa experiência que, mais tarde, trouxe-o para o Brasil, a convite do mais velho dos três irmãos:

- Surgiram duas feridas no meu pé. Fui no médico, mas eu sei o que é. A gente deveria usar umas roupas especiais [para manusear os agrotóxicos], mas ninguém usa, ninguém dá – lembra o arrozeiro.

Verão 2014/15 . #30

Em geral, o território correspondente à Metade Sul do Estado, conhecido como Pampa, tem atualmente três destinações possíveis, mas com pouca empregabilidade: gado extensivo, que demanda um território com, no mínimo, 50 hectares; o cultivo de arroz; e o florestamento, embora as lavouras de soja e milho estejam se expandindo. Herança que se perpetua das doações de sesmarias a privilegiados brancos e católicos. Já na Metade Norte, o processo histórico de apropriação da terra fomentou a agricultura familiar, onde o solo é mais fértil e a agricultura é diversificada e distribuída em pequenas propriedades. Para o coordenador estadual do Movimento Sem Terra (MST), Cedenir de Oliveira, a solução à limitação econômica da Metade Sul gaúcha é, em suma, superar a estagnação do processo de reforma agrária: - Se você for verificar o mapa do Rio Grande do Sul, não precisará ser nenhum especialista da questão agrária para identificar onde está a linha de desenvolvimento e onde se concentra a miséria. Por trás desse processo de concentração da terra, vem o processo de concentração de renda e, sobretudo, a

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concentração da riqueza e dos recursos naturais do nosso Estado. A Metade Sul foi uma região sempre hegemonizada, com latifúndios improdutivos e que, neste último período, acabou sendo um espaço de expansão do agronegócio - defende Oliveira.

qualquer forma, já não refletem a riqueza produzida na região em que estão instaladas. Dessa maneira, não basta ser eficiente do ponto de vista produtivo, mas é preciso aquecer a economia da região de origem, o que é característico das pequenas propriedades:

Agora, num país com 200 milhões de habitantes, que tem uma demanda por emprego, tu não podes te dar ao luxo de grandes áreas que têm uma contribuição pífia para o emprego e o desenvolvimento local critica Lovois.

Experiências no Rio Grande do Sul indicam que, em tese, desenvolvimento econômico e reforma agrária andam juntos. Nas últimas décadas, por exemplo, muitos municípios gaúchos passaram por este processo, que também teve o acompanhamento de movimentos sociais ligados à luta pela terra.

- Mesmo tu sendo produtivo e altamente eficiente, tu não geras emprego suficiente, a tua riqueza é drenada para fora da região e tu precisas de grandes áreas. Agora, neste caso, a reforma agrária é algo que a sociedade tem que pensar: "Bom, eu vou desapropriar áreas produtivas?". É algo difícil, polêmico - questiona.

O presidente da Associação Gaúcha de Empresas Florestais (Ageflor), João Borges, por outro lado, diz que a atividade tem contribuído para a geração de empregos no Estado e, justamente por isso, as empresas que a executam recebem incentivos no Rio Grande do Sul:

- Tem vários pontos no Estado em que foi feita reforma agrária. Isso acabou levando à divisão de municípios. Hulha Negra, Candiota e Aceguá eram distritos de Bagé, por exemplo. Tu tens uma industrialização em Candiota, tu tens a reforma agrária em Hulha Negra e tu tens a colonização alemã, então eles conseguiram se autonomizar. Maçambará saiu de Itaqui. Por que saiu? Porque cresceu. Por que cresceu? Porque teve reforma agrária - exemplifica Paiva, da FEE.

Atualmente, cerca de 700 mil hectares de terras são destinados ao cultivo de eucalipto, acácia e pinus no Rio Grande do Sul, segundo a Associação Gaúcha de Empresas Florestais (Ageflor). A maior parte está concentrada na Metade Sul e é apontada por economistas como uma atividade que gera poucos empregos.

- A própria Celulose Riograndense, que está investindo uma nova unidade no Rio Grande do Sul vai gerar, depois de concluída planta, em torno de 2 mil e 3 mil empregos diretos. Como exemplo, há um estudo da Fundação Getúlio Vargas que mostra que a geração de emprego em uma unidade proporciona em torno de 30 mil empregos na sua cadeia. Ou seja, o potencial de geração de emprego é bastante alto defende.

Mesmo ilustrando a transformação econômica gerada pela reforma agrária, o economista pondera que seria necessário um investimento imensurável de recursos, por parte do Estado, para substituir a economia resultante das atividades exercidas sobre as grandes propriedades. Porém, mesmo que isso fosse possível, não se poderia garantir o desenvolvimento da região aos moldes da diversificação da agricultura implantada nas pequenas propriedades do Norte, dada a sensibilidade do bioma Pampa, que possui terras pouco profundas e muitas áreas inadequadas para plantio. O grande dilema, segundo Miguel, pesquisador da UFRGS, é que as grandes propriedades existentes no Estado não são, necessariamente, improdutivas. De

- Outra contradição apresentada há um tempo é que a produção de eucalipto seria uma alternativa para o desenvolvimento do Rio Grande do Sul. O que demonstra, mais uma vez, é que nesse tipo de produção em escala não há distribuição de renda para atender aos interesses do capital - contesta o dirigente do MST Cedenir de Oliveira. Retomando a comparação, a área destinada ao florestamento no Rio Grande do Sul - e que tem sido uma das apostas dos governantes gaúchos para o desenvolvimento econômico da região - é equivalente à soma dos territórios de 30 dos 33 municípios da Região Metropolitana de Porto Alegre. - O reflorestamento não é a solução. Se tu estivesses na Austrália, com 20 milhões de habitantes, tranquilo, podes ter grandes fazendas com pouca mão-de-obra. tabare.net

Julio Noble, ainda sentado, olha pela janela em direção ao fundo da casa. O que vê é uma estância separada da Vila da Miséria, de casas espremidas, apenas por um cerco de arame. O que vê é a miséria separada por um cerco de arame.


GÊNERO

Ao despertar já era outra

E stava tão em êxtase que poucas lembranças restaram da viagem à Tailândia.

Subiu às nove da manhã para o sexto andar e tomou café. Depois desse horário, nenhuma refeição pode ser feita. Já no quarto da clínica, sondas e aparelhos se integram ao corpo de Josi. Com os braços abertos, seus pulsos são amarrados. A enfermeira põe a máscara de oxigênio, e o anestesista pergunta “what’s your name?”. Não teve tempo de responder.

A cirurgia durou em torno de sete horas. “Quando acordei, não sentia nada embaixo, só na cabeça”, lembra. Josi acabava de realizar seu maior sonho: a redesignação sexual (popularmente conhecida como troca de sexo). As dores na cabeça vinham da operação de feminilização facial, que decidiu fazer de última hora quando o médico lhe mostrou algumas diferenças entre crânios masculinos e femininos. “Morfina, por favor. Acordava de madrugada e, please, morfina!”, relembra. Era difícil suportar a dor inicial de transformar o próprio corpo. O pós-opertatório são seis dias na cama do hospital, imóvel, com as janelas fechadas para que a luz do sol não marque os pontos no rosto. As enfermeiras entram, trocam a sonda, dão comida, banho, e assim as horas passam. Seis dias com um corpo transformado, sem saber o que a imagem do espelho reflete. No quarto dia já não aguenta, está em um país desconhecido, sem família e amigos. “Foi ali que eu comecei a pensar sobre diversas coisas. Muitas pessoas vão dizer que o que eu estou fazendo é errado. As pessoas precisam entender que para viver tem que ter diversidade, não só de sexo, mas de cores, de gosto, de tudo”, reconstrói Josi. É hora de descer. Os médicos fazem testes para ver se já é possível retirar a sonda. E Josi está pronta para ir ao quinto andar e descansar em uma suíte. Os movimentos têm de ser calculados nesse estágio da recuperação - as caminhadas precisam ser lentas. Se andar demais, a uretra pode inchar, impossibilitando a saída da urina. Quando se percebe, já não é mais a mesma. Tirar os curativos é tanto alívio quanto surpresa: “Fiquei bem, mas ao mesmo tempo chocada”. A neovagina – termo utilizado nos livros de Medicina - ainda está inchada e dói muito. Na vagina – o termo que Josi usa - os pontos são internos, não há nenhuma cicatriz. Foi Dora, uma alemã de Berlin que, em 1930, realizou de forma oficial a primeira operação para transformar o pênis em vagina. O médico responsável foi Magnus Herschfield e a operação, bem sucedida – apesar de outras prévias mal documentadas e posteriores com registros de grandes complicações. Mais de 80 anos de uma história escondida. Mais do que uma cirurgia, a questão da transexualidade tem sua narrativa própria, dificilmente encontrada nos manuais da História da civilização. Oito brasileiras estavam na Tailândia para realizar a mesma cirurgia. Uma delas, de 53 anos, é Paula, arquiteta em São Paulo, riquíssima. Assumiu-se transexual e resolveu fazer a operação. “Por isso que eu digo: nunca é tarde para ser feliz”, compartilha Josi. Outra fazia parte de um casal de transexuais. Sua companheira, que já havia feito antes a operação, viajou junto. As duas realizariam aquilo que entendem ser necessário para completarse e, assim, ficarem juntas amorosamente. Apesar da tirania dos discursos moralizantes, Josi revela outro dos aprendizados da jornada: “Esse mundo é um lugar de diversidade”. No Brasil, a rotina de trabalho no salão de beleza não muda, mas Josi dá sequência aos procedimentos de recuperação. Limpezas diárias com cotonetes molhados no soro fazem parte do processo de cicatrização da vagina. Um mês e meio depois da operação, as percepções já são outras: “Eu acho que teria vergonha de mostrar se tivesse dado errado, se tivesse ficado feio. Mas é uma vagina 100%, já tenho sensação e vontades. Nunca tive sonhos eróticos antes. Depois da cirurgia comecei a ter. Eu sinto que eu estou transando, eu sinto que estou tendo orgasmo, tudo”. A cirurgia redesenha, estabelece outras possibilidades do corpo para que as vontades do que se deseja possam ser cumpridas. O processo vai para além das mesas de cirurgia, dilatadores de cerâmica fazem parte dos exercícios pós-cirurgicos. Para Josi, o processo é fazer-se, fisicamente, mulher. Atos cuidadosos são necessários para que a vagina transformada possa ser bem utilizada. Tanto para o prazer sexual quanto para o funcionamento dos canais urinários. É necessário pôr os objetos dentro do órgão, ajeitá-los; uma atividade fisioterapêutica. “Eles te dão vários vibradores de cerâmica, e tem que ser desse material para entrar e ficar parado na mesma posição. Então, tu começa usando o zero, depois o um, o dois, o três, o quatro. Não aumenta o comprimento, mas aumenta a espessura, porque tu tem que ir trabalhando o músculo pra não fechar o canal. É a parte mais cruel. Mas também não é uma coisa para o resto da vida, é temporária. Até três meses”, conta. Os últimos ajustes são com o sexo. Ainda tabu de se falar sobre, é transando que Josi finalizará o processo. São recomendações médicas: “Depois, é para treinar transando. Mandar ver”. Mesmo com as dores e dificuldades, a vontade de Josi foi completamente suprida. “Eles são perfeitos”, afirma. “Seria mais fácil se eu tivesse ido com alguém daqui, amigos, amigas. Teria passado mais rápido. Parece que os dias não passam, mas ao mesmo tempo que não passam serve para alguma coisa: reflexão”. Muito mais do que um órgão genital, para ela, parece que todo um futuro é redesenhado. “A coisa mais estranha é que, desde que eu cheguei, parece que as pessoas me olham diferente. Parece que já sabem. E eu me sinto mais confiante, por que vão falar o quê? Qualquer coisa, eu fico pelada e mostro. A confiança que eu tô é 100%. Essa é a diferença”, conta. O processo ainda não terminou, mas falta pouco para Josi finalmente realizar seus desejos. Se antes se sabia mulher em um corpo que não sentia como seu, agora a sensação é mais do que se sentir fisicamente, é ter e dar prazer como sempre quis, é ficar nua como sempre quis: “Eu sempre falava que era realizada em tudo, menos no plano sexual. Então não adiantava eu continuar do jeito que tava”. Antes de embarcar, não sentia medo algum. Lembrava que estava de frente com o que sonhou uma vida inteira. Pensava na maioria das pessoas, felizes do nascimento à morte, dentro da moral e dos bons costumes, e se perguntava: “Imagina tu começar realmente a ser feliz na metade da vida?” Verão 2014/15 . #30

por Jéssica Menzel e Jonas Lunardon foto: Jéssica Menzel

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LITERÁRIA

Só percebi que Ela havia se infiltrado na minha solidão quando nos despedimos naquela manhã, olhares e cabelos amarrotados, sorrindo um beijo recíproco, a p or M arcus Meneg porta batendo atrás dos meus passos, o sol iluminando het t i a calçada que parecia não querer me encaminhar de volta para casa. Fiquei assustado ao me dar conta de que queria continuar na companhia dela. E se eu inventasse que esqueci qualquer coisa no quarto dela? “Querida, esqueci meu celular, posso subir para pegá-lo?”, explicaria no interfone. No entanto, concluí que seria ridículo, o que me deixou mais assustado. Afinal, devia estar muito apaixonado para cogitar tal subterfúgio para revê-la. De fato, estava. Por isso, resolvi caminhar pelo sábado de manhã, em busca dum lugar onde pudesse conjugar os pensamentos na primeira pessoa do singular – como era costume até pouco tempo, na rotina solteira. Instintivamente, percorri a rua José Bonifácio até a cafeteria do Parque da Redenção, onde as mesinhas dispostas na calçada haviam se tornado o escritório do ócio: ali eu encontrava amigos, observava os transeuntes, contemplava as belezas atléticas, assistia aos passarinhos, lia um livro ou escrevia num caderninho especulações sobre desimportâncias açucaradas. “Vai querer o expresso duplo de sempre, seu Marcus?”, adiantou-se simpática a atendente. “Sim, o de sempre.” Em seguida, enquanto aguardava o pedido, fiquei me perguntando por que aquele sentimento me pasmava tanto. Por que hesitava em cravar os dentes naquela emoção saborosa e suculenta? Por que não admitia, de uma vez por todas, que estava apaixonado o suficiente para assumir um relacionamento sério? Acho que, no fundo, não queria abrir mão daquela solidão autossustentável que havia conquistado aos trancos e barrancos, depois de muito amor e desamor, amor e desamor, amor e desamor... De fato, custei para mobiliar a vastidão da solidão. Mas consegui ocupar os espaços vagos da vida solteira com afazeres prazerosos: escritas, leituras, cinema, festinhas, amigos, politicagens, trepadas casuais e momentos como os da cafeteria da Redenção. Ao fim desse esforço, passei a me sentir como um daqueles estoicos gregos, que prezavam pelo equilíbrio, acima de tudo. Eu me equilibrava – faceiro e satisfeito – na corda-bamba da solteirice. Tudo sucedia tranquilamente, até que Ela apareceu. Aí, me desestabilizei diante daquela paixão – palavra que, por sinal, deriva dum conceito estóico (pathos) que significa algo como desequilíbrio. Aliás, o verbete grego deu origem não só à palavra “paixão”, como também à “patologia”. E há uma semelhança curiosa entre paixão e patologia: é difícil especificar o momento exato em que elas nos acometem. Eu, por exemplo, só desconfiei que estava apaixonado – ah, monomania maravilhosa! – quando os sintomas começaram a se manifestar na idéia fixa de revê-la, no frio no estômago, mãos suadas, taquicardia. Entretanto, os efeitos psicossomáticos são a última etapa das enfermidades – inclusive, dessa chamada paixão. Provavelmente, tenha me adoentado por Ela antes disso. Mas quando? Talvez tenha sido quando Ela me lançou aquele olhar de esfinge cansada da própria sina – “decifra-me, pelo amor de deus, ou te devoro.” Talvez tenha sido quando se levantou da mesa do bar e, de pé ao lado da minha cadeira, me beijou argumentando que “não queria esperar até o fim da noite para fazer aquilo.” Ou, ainda, quando me confidenciou um segredo doloroso, em cima dos lençóis amarrotados, sentada nos próprios calcanhares, corpo empapuçado duma beleza suada, olhos inundados de fragilidade, pronunciando palavras enfumaçadas pelo Marlboro, enquanto eu lhe alcançava o cinzeiro e os ouvidos, onde ainda repousavam as cinzas da conversa do dia anterior. Entretanto, no fundo, não dava para saber quando Ela havia invadido – delicada e sorrateira – meu cotidiano, meus pensamentos, meus planos para o futuro. Na verdade, não importava quando isso tinha acontecido. O que importava era que não conseguia mais me equilibrar na rotina solteira. Agora, eu desequilibrava uma paixão. E não adiantava ficar assustado, pois não existia cura para aquele sentimento. E, se existisse, tomaria o remédio? Acho que não. “Fazia tempo que não vinha, seu Marcus. Na última vez, veio com a namorada”, comentou a atendente, interrompendo meu devaneio, colocando a xícara na mesa. Pensei em esclarecer que Ela não era minha namorada. Mas não o fiz. Em vez disso, abandonei o café e voltei para o apartamento dela. Na frente do prédio, fôlego acossado, toquei o interfone e gaguejei minhas intenções. “Querida, sou eu. Pensei em dizer que havia esquecido o celular no seu quarto, porque queria revê-la. Mas achei ridículo. Estava assustado demais por causa dessa paixão. Não queria abrir mão da solteirice. Mas agora eu quero.” “Do que você está falando?”, indagou. “Quer namorar comigo?”. “Suba”, ordenou.

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LITERÁRIA

DÊ-ÉRRE -Nossa, Vasco. Como tu é egoista! -Tu acha mesmo, meu amor? -Acho não. Eu tenho certeza! Tu é a pessoa mais egoísta que eu conheço. -Pô... Brigado! -Eu to falando sério, porra! Será que tu não consegue falar sério uma única vez na puta dessa tua vida de merda, Vasco? -Eu sempre falo sério, meu amor. Tu é que não me leva. -Ah, vai tomar no teu cu, vai, Vasquinho? Não vem com esse papo de novo, tá? Tudo balela! (…) Ai, vasco... Olha. Não dá mais, tá? Desculpa, mas pra mim: não-dá-mais. Mesmo! Eu sei que não é a primeira vez que eu te digo isso, mas é a última. De verdade. Eu tento... Eu juro que tento. Mas não tem como. Há quanto tempo tu não trabalha? Tu tá virado num vagabundo! Fuma maconha o dia inteiro. E se não tá fumando é porque tá bebendo. E se bebe duas ou três já é desculpa pra começar a cheirar. E quem é que paga a porra da conta? Eu, né? Claro. Sempre eu! E não é só isso! Tu é egoísta pra caralho e isso não tem graça nenhuma. Tu tá cagando pro que eu penso, pro que eu sinto, pros meus problemas, tá cagando pra mim, Vasco! Tu só te preocupa contigo mesmo, aliás, acho que nem contigo tu te preocupa mais. Tá decadente. Sujo, mal vestido, barbudo e agora essa pança, que tu nunca teve. Nem escrever tu consegue mais. Não era o que tu dizia? Fuder e escrever, tuas duas habilidades? Pois tu não escreve mais nada que preste. E andou broxando, né, meu amorzinho? E não é só isso ! Tu é arrogante demais, intransigente, marrento, resmunga feito um velho, passa os dias de mau humor, não mexe um dedo pra nada e tá sempre cansado. É machista, escroto, tarado, infiel, irresponsável. -Eu sei, beibe-beibe. Reconheço isso tudo. E fico até lisonjeado com esse teu release. Mas não te esquece que eu também tenho defeitos, viu? É que eles só aparecem quando eu fico muito tempo ser dar teco ou quando eu tô apaixonado. E por falar nisso -Hahaha! Tu tá cada vez mais previsível, Vasco. Agora vai dizer que me ama pra tentar me comer, né? Vai lá, faz teu teatrinho romântico, vamos ver se... -Não, não. Na verdade... eu ia te pedir vintão pra pegar uma buchinha que eu tô na fissura, tem como? Vasco.

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Segunda-feira, 13 de novembro de 1933, Porto Alegre, RS, Brasil

Zero Réis

Coluna de Selmo Dias O domingo ontem foi um dia agitado! O domingão deste vosso colunista agitou-se da manhã à noite. Deixo minhas impressões sobre as relevâncias que aconteceram em meio a meu descanso semanal. Foi um dia ótimo e empolgante para todos que acompanham com emoção as notícias sobre Nessie. Finalmente, como apurou este colunista, temos provas fotográficas do nosso (não tão) monstro do Lago Ness. Após sermos destratados e menosprezados com os relatos de Georgie Spicer e Art Grant, o sempre confiável Hugh Gray em seu passeio dominical pelo Rio Foyers avistou a velha Nessie e fotografou-a para alegria de toda a comunidade fã do monstrinho escocês. Imagino a alegria do velho Hugh, penso eu num dos meus passeios de chinelas no Parque, em meio a idas e vindas ao Hipódromo do Moinhos, e avistar O Nessie, se ali estivesse um lago. Ai, que inveja! O Football Porto-Alegrense venceu ontem o Universal pelo contido placar de 10 a 2. Tudo pareceu nos conformes desde o primeiro gol de Sardinha II. O espetáculo foi orquestrado, claro, por Foguinho e Luiz Carvalho, estes galantes atletas. O escrete do Grêmio Footbal teve Leal; Dario e Sardinha I; Adão, Poroto e Sardinha II; Lacy, Comarú, Luiz Carvalho, Foguinho e Nenê. A final será contra São Paulo, de Rio Grande, ou Novo Hamburgo. No Rio de Janeiro, o glorioso Bangu venceu o Campeonato da Liga Profissional por 4 a 0 contra o Fluminense, mesmo com as ausências de Sobral e Sá Pinto. Os gols foram de Ivan (contra), Tião, duas vezes e Plácido. UUUU, viva o Bangu! Bola no centro e vamo Bangúúúú!

Me contenho com as notícias mais relevantes para uma pequena nota, ainda que de menos interesse. Apontam os responsáveis do antigo continente que, na eleição da Alemanha, os Nacionais Socialistas venceram com 92% dos votos para o Reichstag, o parlamento deles. Que Adolf e seus corregionários tenham boa sorte e façam um bom governo! Saudações a todos os fãs Nessies e curioso para as repercussões dos eventos de Domingo.

Verão 2014/15 . #30

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TABARÉ

Ficando aqui vou ter alívio Nara Amelia


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