RelevO - Dezembro de 2014

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- Há algumas décadas o Mário também foi açougueiro. Dizem que era dos melhores. Tão bom que o dono do matadouro o promoveu a gerente. Mas sabe como é, depois de um tempo trabalhando nessa coisa a gente vai ficando um bocado insensível e duro – Parou, deu outra golada e um trago no cigarro barato. – Bom, como gerente, o Mário tratava todo mundo como tratava a carne que destrinchava. Era direto, cortante e sem compaixão. O Jorge nessa época era um auxiliar de carne, como você, Juan Leon. – Mesmo? – Interrompi, assustado. – Exatamente, e também era dos bons. Mas o filho único que ele tinha caiu doente, uma doença séria, sabe? E naquela época se ganhava ainda menos que hoje em dia. O Jorge faltou ao trabalho alguns dias, correndo com a patroa e o filho a procura de um médico, mas o menino continuava cada vez pior. Quando apareceu no açougue para dar satisfação do período ausente, o Mário foi cruel. Mandou o pobre infeliz voltar imediatamente para o batente. – Caralho. Que escroto! – Pois é. Mas o Jorge se recusou. Aí o Mário disse que se ele não voltasse ao batente não recebia nada. Sem dinheiro, como ele ia comprar comida e remédios para o menino doente? O Jorge desde aquela época era sozinho no mundo. A mulher dele também. Nem parentes, nem amigos... Sozinhos. Sem escolha, Jorge voltou ao trabalho. No meio do expediente recebeu a notícia de que o filho tinha morrido chamando seu nome. Largou a faca e o avental e saiu alucinado, correndo. Ao chegar em casa viu um tumulto em frente ao barraco em que morava. Sua mulher estava estendida ao lado da cama do garoto com os pulsos cortados. – É, qualquer um ficaria maluco com uma coisa dessas. – Pois então. Desde esse dia Jorge não dirige uma palavra a ninguém, exceto para pedir uma coisa ou outra. Por remorso o Mário lhe dá essa esmola todo dia. Também passou a se interessar por essas coisas de santo, espiritismo etc. Quando terminou de contar a história, percebi que o Groto balançou a cabeça e suspirou fundo. Uma coisa triste mesmo. Também era triste para os bois que a gente sangrava todo dia. Mário era duro, escroto também, mas estava apenas fazendo serviço dele. Depois de tanto tempo procurando um jeito de passar pela trincheira sem sangrar, a gente desiste. De uma forma ou de outra, alguma coisa vai se partir. Às vezes, de forma visivelmente cruel, como aconteceu ao Jorge, às vezes de forma silenciosa e lenta. Terminamos a cerveja e fomos embora. No dia seguinte, mais sangue em nossas mãos.


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