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Curitiba, outubro de 2010

MARCO ZERO

Jornal-laboratório do Curso de Jornalismo da Facinter • Ano I • Número 7 • Curitiba, outubro de 2010

COMPORTAMENTO

Diferentes tribos

FANTASMAS URBANOS

José Rogério Barbosa

Na sociedade contemporânea, as tribos proliferam como forma de os jovens afirmarem sua identidade. Um exemplo são os jovens (foto) da Igreja Católica Sheliah, em Curitiba Páginas 6 e 7

TRABALHO

Quando o comum se torna especial A Lei de Cotas, existente desde 1991, tem colocado muitas pessoas com algum tipo de deficiência no mercado de trabalho.

Página 8

Excluídos da sociedade

Moradores de rua contam como é a vida debaixo das marquises e fora do convívio familiar. Página 5

Prédios antigos e mal cuidados no centro de Curitiba colocam em risco a segurança das pessoas. Página 9


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EDITORIAL

Ao leitor Nesta edição, você vai conhecer, em uma reportagem sobre as tribos urbanas, um pouco da imensa diversidade cultural existente em Curitiba. Nessa matéria, você verá os jovens que não têm vergonha de assumir suas identidades. São os tatuados, os rockeiros, os anti-baladas e os denominados Geração Y, jovens da era digital, considerados multitarefas e apontados como a tribo mais preocupada com a sustentabilidade. O Marco Zero percorreu as ruas do Centro de Curitiba e descobriu também que os prédios antigos podem colocar em risco a vida das pessoas. Esta edição traz ainda uma matéria sobre Rafael Gobi, garoto portador de Síndrome de Down que foi beneficiado pelas leis de cotas para portadores de deficiências. Você vai curtir também um papo descontraído com o jornalista e romancista Felipe Pena e com André Vianco, autor de fantasia mais vendido do Brasil, sobre literatura pop, vampiros, a falta de atratividade dos livros acadêmicos e outros temas interessantes. Essas são apenas algumas das matérias presentes nesta edição que está imperdível. Boa leitura!

Expediente O jornal Marco Zero é uma publicação feita pelos alunos do Curso de Jornalismo da Faculdade Internacional de Curitiba (Facinter) Coordenador do Curso de Comunicação Social: Gustavo Lopes Professores Responsáveis: Roberto Nicolato Tomás Barreiros Diagramação: André Halmata (6º período) Facinter: Rua do Rosário, 147 CEP 80010-110 • Curitiba-PR E-mail: assessoriajr@grupouninter.com.br Telefones: 2102-7953 e 2102-7954.

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CRÔNICA

Apenas um vendedor

O centro de Curitiba oferece boas opções de lazer?

Afonso Padilha

Acabo de fazer minha dedor dá desconto pra quem primeira compra pela inter- compra pouco. net. Foi um misto de emoções. ���������������������� Precisamos de vendedoAnsiedade para que o produto res (menos os de trânsito), e chegue logo, medo porque não não estou fazendo apologia ao tenho como ter certeza se vão uso de vendedores. A internet entregar e saudosismo pela falta tenta mostrar que não precisade contato humano. mos deles, que podemos fazer Tenho que admitir que isso sozinho, porém, é um “tiro senti falta dos vendedores, no pé”, porque o ser humano é aqueles que tanto querem nos dependente. Nossa relação com o vendedor é como ajudar. Eles um “namoro”. O realmente estão “O vendedor vendedor é alguém ali para ajudar, é alguém que que sempre vai ditanto que estão com uma camisa sempre vai dizer zer o que queremos ouvir. Se ele fica escrito “Posso te o que queremos em cima, ficamos ajudar?”, e essa é bravos porque ele a primeira frase ouvir” está sufocando; se dita por eles. Essa foi é a primeira aborda- ele não atende, ficamos bravos gem de efeito criada pelo maior porque não está dando atenção. vendedor que já existiu, Jesus, E sempre pedimos um desconcujo lema era “Posso ajudar?” to. E é esse “relacionamento” Apesar de que o produto dele que faz com que dependamos era mais fácil de “vender”, afi- deles. Porque entramos numa nal de contas, quem não precisa loja, na maioria das vezes, certos do que queremos, porém, de um milagre em casa? A parte ruim de fazer isso queremos a opinião deles mespela internet é que você está mo que for para discordar, e a comprando por conta própria, compra pela internet acaba com não tem ninguém para auxi- liar isso, é a quebra de um círculo. Talvez daqui um teme isso é ruim porque você acaba julgando por instinto, o que não po não exista mais vendedor, e é uma boa coisa. Caçar ��������������� é instin- todo mundo esteja comprando tivo, sobreviver é instintivo, mas pela internet. Seu neto vai percomprar, isso não. Comprar é guntar: emocional, você não consegue - O que o senhor fazia quando se controlar, e essa é a função era jovem, vovô? do vendedor, fazer você parar. - Eu era vendedor. O vendedor é bem mais um - E o que um vendedor fazia? repelente do que um atraente, - Ele era uma pessoa influente, pois ele não o influencia a com- que ajudava na hora da compra, prar, ele o instiga a parar. Você ele instruía, guiava pelos camisabe que está na hora de parar nhos dos cabides e gôndolas. de comprar quando o vendedor - E por que não existe mais? diz que vai conseguir um des- - Isso é uma longa história. Quer conto, esse é o momento, é a comprar? Eu consigo com dessua deixa, porque nenhum ����������� ven- conto pra você.

Suzayne Machado “Sim, principalmente para o público feminino. O centro tem várias opções de lojas, sem falar nas praças e parques que aos finais de semana reúnem famílias para passar uma tarde agradável.” Fernanda Rulka, 19 anos, estudante de Publicidade “Sim, e o que mais se sobressai no centro é o Largo da Ordem, onde há muita variedade de pubs e bares para as pessoas se divertirem à noite, e também para um happy hour.” Jaqueline Rosário, 32 anos, tatuadora “Sim, tem vários shoppings, com muitas opções de lojas, sem falar na parte histórica da cidade, que vale muito a pena conhecer.” Louriane Regly, 23 anos, publicitária “Não para o público masculino. Fora o Largo da Ordem e alguns bares, não tem muita coisa para homens, principamente se você curte rock.” Douglas da Silva Oliveira, 27 anos, cobrador de ônibus “Sim, adoro as ‘pracinhas’ do centro, elas são limpas, bem cuidadas. As lojas e shoppings são de fácil acesso. Os teatros também são uma ótima opção para o lazer em Curitiba”. Ana Cláudia Garcia, 39 anos, secretária “Sim, o centro da cidade é cheio de praças onde podemos praticar caminhadas e corridas, e bares variados para curtir a noite e dar uma relaxada.” Carlos Almeida Santos, 25 anos, vendedor “O centro da cidade está repleto de praças e shoppings bacanas, entretanto, existe uma falta constante de segurança. Se o policiamento fosse reforçado, iria possibilitar que a população curitibana pudesse passear com mais tranquilidade.” Daniel Izidoro Ross, 27 anos, advogado


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PERFIL

DO LÍBANO PARA CURITIBA

Jornalista abandona carreira para morar em Curitiba e vira dono de cafeteria Janiele Delquiqui

Arquivo Pessoal

Janiele Delquiqui

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guerra entre Líbano e Israel e a Copa do Mundo: evidentemente, esses dois acontecimentos não têm nada em comum, mas para o libanês Haissan Daher Haissan foram esses fatos que mudaram seu destino. Em 1979, Haissan começou a carreira como jornalista no jornal Al Safir, na capital do Líbano, Beirute, onde nasceu. A partir daí, o jovem de 18 anos enfrentou muitos desafios. Em 1982, Haissan foi um dos 13 jornalistas, de 286, que permaneceram no jornal quando Israel invadiu o Líbano. “Por causa da guerra, todos os jornais da cidade fecharam. No Al Safir, a maioria dos meus colegas desistiu da profissão, mas essa foi a minha oportunidade. Minhas fotos circularam pelo mundo, e recebi até prêmio por elas”, conta. A guerra durou três meses. Depois disso, um colega de trabalho assumiu a direção de uma revista de esportes, a Alwatan Alriyadi (A Pátria do Esporte). Ele foi trabalhar com o amigo. Assim como hoje, o esporte que movia o mundo esportivo era o futebol, e Haissan foi à caça de quem dominava o campo. Com cinco mil dólares no bolso e passagens compradas, Haissan veio ao Brasil em 1986. “Estava acontecendo a Copa do México, e eu, sem saber falar português, vim ver qual era o segredo do sucesso dos jogadores brasileiros”, lembra. O jornalista ficou no Brasil por três meses. “Cheguei perdido. Procurei uma jornalista que pudesse traduzir o que eu dizia. Eu falava inglês, e ela traduzia em português. Entrevistei vários jogadores, entre eles alguns que haviam se destacado em outras competições. Lembro-me de Rivellino, Müller, Casagrande e do Dadá Maravilha”. Trabalho cumprido no Brasil, Haissan voltou para o Líbano. Mas seu retorno para o Brasil parecia já estar predestinado. O jornalista foi cobrir um encontro de embaixadores, em Beirute. Ele lembra que no coquetel toda a imprensa ficava “em

O libanês Haissan na Cafeteria Boca do Brilho, no centro da cidade...

cima” dos embaixadores dos Estados Unidos e da União Soviética. Quando ele viu o embaixador do Brasil, foi conversar com ele. “Não consigo me recordar qual o nome dele, mas lembro que ele gostou de eu ter dado atenção a ele. Já tinha me familiarizado com os brasileiros. Fiz uma foto de todos os embaixadores e mandei a lembrança. Depois disso, ele começou a me ligar. Queria que eu tirasse meu visto permanente para o Brasil. Na época, estava muito difícil para nós, libaneses, entrarmos no país, pois vínhamos de um país de guerra, mas muitos estavam se refugiando. Uma porta de entrada era o Paraguai”, revela. Em 1988, Haissan decidiu tirar o visto de trabalho para o Brasil, para entrar no país quando precisasse. “Sou o caçula em casa, e, como o meu país estava em guerra, meus pais se preocupavam comigo. Então, decidimos que eu viria para o Brasil passar de dois a três meses”. O jornalista conta que voltou para passear. “O Líbano estava ‘pegando fogo’. Quando decidi voltar, o aeroporto de lá estava fechado por causa da guerra e ficou fechado por seis meses. Dava para voltar pela Síria ou outros países, mas eu

queria voltar pelo meu país”, lembra Haissan. Durante os seis meses em que o aeroporto de seu país ficou fechado, o jornalista teve que se virar no Brasil e começou a fazer contato com agências internacionais. Foi contratado por uma agência da Suíça e tinha como missão no Brasil procurar fatos que mostrassem a miséria do país. “A agência, assim como os demais países considerados de primeiro mundo, via o Brasil como um país de terceiro mundo. Para isso, eu tinha que frequentar favelas, presídios, procurar pessoas envolvidas com drogas. Com isso, o trabalho por aqui passou a ser mais perigoso que no Líbano. Eu corria o risco de morrer por causa de uma câmera, por exemplo”, revela Haissan. Em 1989, ele veio a Curitiba para se comunicar com a agência, no consulado da Suíça. Foi quando conheceu a jovem Samira Kadri. “Um rapaz árabe, novo na área, bonitão, homem forte, a mulherada ficava atrás”, brinca o simpático libanês. Enquanto a situação no Líbano não se acalmava, Haissan começou a namorar Samira, mas deixou claro que iria voltar para seu país. Os dois se casaram em 1990. Na época,

...e durante suas aventuras como fotógrafo.

o pai de Samira era dono do tradicional Café da Boca, no centro de Curitiba, e ele passou a se envolver com os negócios da família da esposa. O primeiro filho do casal, Taher, nasceu em 1991. No ano seguinte, nasceu a filha Samar. Haissan acabou montando o café Boca do Brilho, na Praça General Osório, no centro de Curitiba. Hoje, ele divide o espaço com a ex-mulher (eles estão separados há dez anos). Cada um segue com o seu café, que é ponto de encontro para muitas turmas, desde os senhores dos sábados até aos universitários que estudam no Campus Garcez da Facinter. O jornalista libanês, que não visita o país natal há sete anos, vende centenas de cafés e chopes todos os dias. Ele construiu sua vida em Curitiba, mas revela que pretende voltar ao Líbano, mesmo com os pais já falecidos. “Gosto de Curitiba. O clima aqui é bem parecido com o do Líbano, as pessoas são bonitas, e meus negócios ficaram relacionados com as pessoas. Meu café é um ponto de encontro para muita gente. Estou há 22 anos em Curitiba, mas quero viver na minha pátria também”, afirma Haissan.


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Insegurança De babão, ele no Terminal não tem nada Guadalupe TRILHAS DO TEMPO

Usuários do local afirmam conviver com assaltantes, viciados em droga e prostitutas Luís Fernando Matoso

Laiz Marina

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ocalizada no centro de Curitiba, mais especificamente na Praça do Rosário, a escultura do “Cavalo Babão”, como é popularmente chamada, tem uma história e tanto para contar. Inaugurada no dia 25 de maio de 1995, época em que Rafael Greca era prefeito da cidade, a Fonte da Memória (seu nome oficial) era um convite para a reflexão de que “o tempo não existe quando a memória do homem permanece”, como dizia o escultor da obra, Ricardo Tod, referindo-se às antigas feiras de colonos em torno do bebedouro para animais do vizinho Largo da Ordem. Quem escolheu o tema da escultura foi o próprio ex-prefeito. Greca, na época, distribuiu convites para a inauguração da fonte e ainda relatou, todo inspirado: “Um cavalo de um carroção

imaginário tenta chegar à fonte do Largo da Ordem”. Obra feita de bronze, separada por um bloco de granito, a Fonte da Memória possui 3 metros de altura, 1,5 metro de largura e 2,5 metros de profundidade e pesa 14 toneladas. O ruído da água que escorre da boca do cavalo é um ótimo estímulo para a distração e a reflexão, mas não é só para isso que a fonte serve. Karen Correa, frequentadora do local, admite: “É um bom lugar para me encontrar com meus amigos. E como todo mundo conhece, se tornou um ponto de referência”. Como qualquer outro lugar público, a Fonte da Memória também já foi alvo de polêmicas e reclamações quando moradores e turistas diziam que a fonte fedia. Greca não gostou nada das reclamações e defendeu a escultura.

As pessoas que utilizam o Ter- tar sem arma e saiu correndo. minal de Ônibus Guadalupe, no centro O cobrador de ônibus, Anderde Curitiba, não se sentem seguras ao son Luiz Ferreira Lima, 38 anos, diz ser transitarem pelo local ou quando pre- muito grande a movimentação de marcisam esperar o ônibus. A sensação de ginais dentro do terminal. Ele conta insegurança e o medo surgem por ser que já presenciou um assalto na fila do grande o número de usuários de dro- ônibus enquanto organizava as moedas gas que ficam no terminal. Muitos de- dentro do veículo. “O problema é ver e les são moradores de rua que passam não poder fazer nada”. o dia todo ali. À noite, vão procurar O autônomo José Nilton Pereiabrigo e comida na Fundação de Ação ra Vieira, 36 anos, que há dez anos traSocial (FAS), mas retornam logo ao balha no terminal, concorda que a maramanhecer. Há muita reclamação por ginalidade cresceu significantemente. parte dos passageiros que precisam es- Para ele, deveria haver uma viatura da perar o ônibus, pelo grande número de Polícia, pelo menos nos horários de pedintes. Poucos pedem comida, pois maior movimento. “Quando tinha o a maioria quer dinheiro. posto da polícia aqui, era bem menor Os dias de maior movimento o número de usuários de droga. Mas são os finais de semana. A circulação até onde eu sei fecharam o posto para intensa de pedintes começa na sexta- reforma. Só que já jaz um ano mais ou feira, estendendo-se até domingo de menos e não abriram mais. De vez em madrugada. Também há um número quando, passa uma viatura, mas só pasconsiderável de garotas de programa sa e vai embora, não fica aqui” que ficam por ali. De acordo com a Assessoria Um comerciante que não quis de Imprensa da Polícia Militar (PM), se identificar ponderou ser ali o local é diretriz do governo não haver mais que mais tem pessoas policiais parados em drogadas e alcoólatras “De vez em quando postos, como antes. Os no centro de Curitiba. antigos postos policipassa uma viatura, ais, como o do GuaEle afirma que todo dia mas só passa e vai dalupe, são utilizados se depara com pessoas assustadas reclamando embora, não fica aqui” pelos PMs apenas para que acabaram de ser asefetuar a troca de turno. saltadas e diz ter presAs viaturas podem até enciado roubos de celular. Segundo o circular próximo do terminal, mas não comerciante, os traficantes que ficam podem ficar paradas vigiando o local. A no local geralmente estão bem traja- PM alega que os policiais poderão indos, sem despertarem suspeita. tervir se presenciarem alguém infring O segurança Valdecir dos indo a lei. A assessoria assegura que Santos Oliveira, de 44 anos, confir- quem deve garantir a segurança do termou ter recebido voz de assalto pou- minal, que é do município, é a Guarda cos minutos antes. Segundo ele, en- Municipal (GM). Já a GM diz não ser quanto aguardava para atravessar pela ela a responsável e sim a Urbs, que, por faixa de segurança, o assaltante lhe deu sua vez, declara ser a PM a responsável. voz de assalto, pedindo dinheiro. Val- A Urbs informa que mantém um vigidecir respondeu em tom ameaçador: lante no terminal, mas ele só pode in“Não tenho nada, tente fazer alguma tervir se flagrar alguém depredando o coisa”. Felizmente, o rapaz devia es- patrimônio público.


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Solidariedade, pobreza e revolta estão juntas na rua

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Moradores de rua de Curitiba contam como é a vida na condição de excluídos da sociedade Ezequiel Schukes

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uritiba está no caminho de se tornar uma grande metrópole e, a exemplo de São Paulo, é dona de problemas típicos, como o dos moradores de rua. São diversas as explicações para justificar o fenômeno de abandono e condições subumanas em que a maior parte dessas pessoas vive – os excluídos sociais. São muitas as histórias de fracasso, falta de oportunidades, drogas e álcool envolvendo a vida delas. Em sua maioria, são alcoólatras. Muitos já usaram ou usam drogas. Entre eles, há os que tentam sair desse meio e aqueles que estão na rua por opção. É um círculo vicioso de falta de oportunidade e discriminação. Nas imediações da Praça Tiradentes, no centro de Curitiba, há uma figura caricata, conhecida por Baiano. O nome dele é Marcos Silva. O apelido não lhe faz jus, pois é oriundo de Fortaleza-CE, porém, isso é um detalhe sem importância no seu círculo de amizades. Ele tem 47 anos e apenas o ensino fundamental. Já serviu o Exército e se orgulha de dizer que tem profissão: torneiro mecânico. Há cinco anos, deixou para trás a cidade natal e foi para Apucarana-PR a fim de conseguir emprego, porém, segundo palavras dele, foi enganado por um amigo e acabou sem trabalho e sem perspectivas naquela cidade. Chegando em Curitiba, Baiano não conseguiu se estabilizar em um emprego e começou a beber. Diz que não tem contato com a família, mas gostaria de procurá-los e saber de suas filhas gêmeas e dos quatro netos gêmeos que afirma ter. Sua rotina se resume a procurar abrigo e alimento. Faz alguns “bicos” limpando jardins quando aparece alguém que lhe ofereça traba-

Baiano (à esquerda) e Alemão em meio com seus pertences: “Todos aqui estão no mesmo barco”

lho. “Os comerciantes da região me ajudam muito”, conta ele, alegando que muito da ajuda que recebe vem dos donos de lojas. Eles guardam seus pertences para que os agentes da limpeza pública não recolham suas roupas e cobertores. Também recebe ajuda de igrejas, que lhe dão algum alimento e roupas. Comentando a ação da Fundação de Assistência Social (FAS), órgão da prefeitura que presta auxílio a pessoas em situação de risco, como moradores de ruas, viciados e vítimas de violência, ele é contundente: “Aquele lugar é um porcaria”. Conta que permaneceu por quatro meses em uma antiga fazenda que a FAS mantinha fora dos limites da cidade, onde era realizado o trabalho de socialização daqueles que para lá eram levados. Não reclama das instalações do local, mas da índole das pessoas que ali estavam. “Lá só tem bandido e maconheiro”, desabafa. Sua principal reclamação é quanto ao furto e roubo de objetos, ocorridos dentro das dependências do abrigo. Por fim, diz que na rua não é muito diferente, por isso, mantém-se

sempre nas proximidades do centro, onde procura manter contato com as demais pessoas que, como ele, vivem em situação degradante. Apesar de embriagado, a frase dita por Baiano mostra que ele tem consciência de que sua condição de vida depende, em certo grau, de seus companheiros de situação. Outro morador de rua muito conhecido na região é Jose Neosmar Silva Abreu. Aparenta uns 50 anos de idade. Diz que há cinco vive nas ruas, mas que já morou em uma casa no Alto Maracanã. Foi casado, porém, devido a uma traição, largou esposa e casa para morar na rua. José limita-se a dizer que tinha família, mas não tem contato com eles. Ao contrário de Baiano, parece bem mais debilitado e apresenta confusão mental. Enrolado em um cobertor e deitado sob uma marquise, diz que dormia ali para cuidar da loja, a pedido do comerciante dono do local. Como muitos, ele depende da solidariedade dos proprietários de estabelecimentos comerciais da região. José também tem profissão: pintor

letreiro. Conta que estudou até a quarta série do antigo primário. Por questões de saúde, hoje não pode trabalhar. Recebe auxílio de igrejas e conta com a sorte. Sobre o auxílio da FAS, dispara: “Aquilo não presta”. A referência negativa dele, assim como a de Baiano, deixa claro que eles não gostam do sistema de atendimento da FAS, ou sentem-se inseguros. O assessor de imprensa da FAS, Guilherme Pinto Dala Barba, argumenta: “A maioria das pessoas que vivem na condição de morador de rua está nessa situação por vontade própria”. A FAS apenas oferece o abrigo e serviços de higiene, porém, cabe ao assistido concordar com o atendimento. “Eles não gostam da FAS porque lá é preciso seguir certas regras, e é exatamente isso que eles não querem”, alega. Segundo ele, a FAS realiza parceria e convênios com órgão particulares, como igrejas e ONGs, a fim de ampliar sua ação social. Os relatos de Baiano e José endossam essa informação. Eles comentam que muito do alimento que recebem vem de doações de igrejas e outros grupos de ajuda. Nos dias de inverno, algumas igrejas organizam mutirões para servirem sopa, arrecadar cobertores, roupas, distribuir material de higiene e fazer encaminhamento de casos especiais para clínicas ou abrigos. Esse tipo de ação é fundamental para essas pessoas, pois, para muitas delas, é mais do que um auxílio material: é uma ajuda psicológica e espiritual. A Igreja Quadrangular, por exemplo, indica as estatísticas referentes a uma ação realizada em 27/03/10: das 42 pessoas atendidas, 29 são do Paraná e cinco de outros estados. Apenas seis delas eram mulheres, ou seja, 86% são homens; 18 são de Curitiba e 11 do interior do estado.


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O rock visto como sinal de rebeldia Claudiane dos Santos

Os sociológos constumam chamar os agrupamentos juvenis encontrados diariamente em grandes cidades de ‘‘tribos urbanas”. O rock, por exemplo, reúne um grupo de pessoas para curtirem o mesmo som, entre outros interesses em comum, caracterizados pelas roupas escuras, camisetas estampadas com imagens de seus ídolos, acessórios como o piercing, alargadores e, é claro, tatuagens. As notas melancólicas e tristes, a dança e o som da guitarra pesada definem o rock. Techno, pop rock, reggae, blues, rock progressivo, trash metal, hard core, death metal, surf music, rockabilly e gótico dark, entre outros estilos, são adotados pelos jovens, cada um com a ideologia que o ritmo pode trazer. “Trabalho em um local que faz parte do meu jeito de ser”, conta Michel Schaffiel, de 25 anos, vendedor da loja Túnel do Rock, em Curitiba. Ele afirma que metal clássico, hard core e country americano são seus sons preferidos, mas que curte de tudo e gosta de variar ouvindo rock leve e pe-

sado. ‘‘Kiss, Pantera e Johnny Cash são as bandas que mais ouço”, declara. Ele conta também que na loja o público é diversificado, e o piercing é o acessório mais procurado pelas pessoas em geral. Também vendedor do Túnel do Rock, Diego Mathos, há quatro meses na loja, diz que gosta muito de rock e música em geral, mas, como existem várias vertentes, há muitas coisas que não aprecia, como os estilos punk, emo, hip hop, reggae, rap e pós-punk. A loja, diz ele, é muito abrangente. ‘‘O que mais vende é o que está na moda, que vem sendo lançado através dos programas de televisão musical, como o emo e Restart, mais procurados por jovens e adolescentes. No rock mais pesado, a procura é de pessoas mais velhas. O movimento na loja é muito grande durante o ano todo”, explica. Os roqueiros assumidos são adeptos de shows de heavy metal, vestimentas sempre de cor preta, coturnos e cabelos longos. A sociedade vê os amantes do rock como pessoas rebeldes, doidas, desajustados, viciados em drogas. A estudante Ana Paula Prestes, afirma que não usa roupas totalmente escuras: “Meu estilo é mais descolado. Gos-

to muito de usar acessórios de caveira, piercing, anéis, camisetas e All star”. Ela conta que nunca presenciou críticas às pessoas que curtem o rock, por mais que saiba que existam. ‘‘Não se pode criticar a opção de se viver de cada um, devemos conhecê-los e não podemos generalizar. Existem roqueiros que amam seu estilo, a música, mas achar que todos têm um jeito rebelde de viver já é julgar a pessoa’’, defende.

Quando uma nova geração entra em cena Juliani Flyssak Eles são impacientes, objetivos, individualistas, preocupados com a sustentabilidade. Para eles, a hierarquia que existia nos anos anteriores é algo de um passado distante. O objetivo da geração Y, que hoje tem entre 18 e 30 anos, é ter o que as outras gerações tinham dificuldade de conciliar: sucesso profissional e pessoal, sem esquecer a natureza. Quando se trata de mercado de trabalho, o executivo Fabio Luis Bonatto afirma que muda de emprego logo que percebe que há outro com maior possibilidade de crescimento. “Se estou em uma empresa, mesmo que há pouco tempo, e aparece um emprego em que eu vejo que posso ter um melhor resultado a curto pra-

zo, não penso duas vezes. Já peço demissão do atual, sem medo da instabilidade ou da mudança”, destaca. Em uma entrevista para a revista Galileu, a psicóloga Tânia Casado, coordenadora do Programa de Orientação de Carreiras (Procar) da Universidade de São Paulo diz que os jovens da geração Y “já vieram equipados com a tecnologia wireless, conceito de mobilidade e capacidade de convergência”. Essas pessoas também são multitarefas, fazem várias coisas ao mesmo tempo e não vêem dificuldade alguma nisso. A estudante Nicole Petri é um dos exemplos. “Quando estou no computador, fico fazendo trabalhos para faculdade, vendo meus e-mails, vendo alguma série, postando no Twitter, lendo blogs, quase sempre isso tudo junto.” E mais: eles não conseguem imaginar vi-

TRIB

Diego e Michel (à direita), na loja Túnel do Rock, escancaram o amor ao estilo

ver sem o mundo virtual. Quando o assunto é sustentabilidade, a geração Y é engajada. Ela já nasce pensando no amanhã e com isso acaba debatendo o assunto meio ambiente. “Todas as pessoas que têm um plano, nem que seja apenas para elas mesmas, devem se preocupar com a sustentabilidade. Pensar em como estaremos e como será nosso mundo no futuro é dever de todos”, afirma Nicole. Apesar de serem considerados um tanto preguiçosos e individualistas, essas pessoas se preocupam com o coletivo, mas de forma diferente das gerações anteriores, como aconteceu com a geração X (1961-1979), a considerada “geração perdida”, que foi obrigada a se conformar com o modo de vida implantado durante a Guerra Fria.

Na sociedade contemporâ proliferam como a

Jovens do Jucac reunidos para mais uma tarde de louvor


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TATUAGEM, ARTE VIVA GRAVADA NO CORPO Polliana Bianchini

Aplicação subcutânea realizada através de introdução de pigmentos por agulhas. Mais do que a definição dada pelo dicionário, a tatuagem é uma expressão de personalidade para os cultuadores dessa arte que ultrapassa barreiras, minimiza preconceitos e atinge todas as camadas da população. Ainda há alguma restrição por parte de algumas pessoas que não vêem com bons olhos essa alteração no corpo humano por meio de um desenho permanente. Algumas instituições e empresas também são definitivamente contra os tatuados. Já outras, principalmente ligadas à juventude, não encontram nenhum problema, pelo contrário.

BOS

ânea, as tribos o forma de os jovens afirmarem sua identidade Simone Leal

É possível levar uma vida regrada, sem baladas, sem bebidas alcoólicas, em plena juventude? Para os frequentadores de grupos de jovens cristãos com idade entre 15 a 25 anos, sim. É o caso do estudante de Pedagogia Eric Jean Santos, que participa do grupo de jovens da Igreja Católica Sheliah (que significa “enviados por Deus”), em Campo Magro, na Região Metropolitana de Curitiba, e de Jéssica Mariano, também estudante, que participa do grupo Jovens unidos cultivando o amor de Cristo (Jucac), da Igreja Batista Betel. Jéssica conta como foi sua a decisão de participar do grupo. “Não houve um momento certo em que decidi participar. Um dia, senti certa diferença naqueles jovens, comecei a me enturmar e de repente, quando

É o caso de algumas lojas de artigos esportivos (como as de surfe), ou musicais, entre outras. O coordenador de call center de uma empresa de telefonia em Curitiba, Fernando Castilho, de 36 anos, alega que a contratação de jovens com desenhos no corpo não interfere negativamente. “Assim, ocorre uma interatividade entre os funcionários. Cada um tem seu estilo, e eles se dão muito bem, lidando com as diferenças existentes aqui e lá fora”, explica. O vendedor Plínio Martini, de 19 anos, tem sete tatuagens. Entre elas, uma pimenta no punho, um par de asas nas costas, estrelas perto da orelha, um gato no braço esquerdo, os naipes do baralho na perna direita, cada uma com um significado e uma história. Ele fez a primeira escondido da mãe quando tinha 17 anos: seu próprio nome escrito nas costas, pouco abaixo da nuca. “Ela demorou um ano para descobrir e quando percebeu eu já havia feito mais três. Ficou apavorada, disse que isso era coisa de marginal e drogado. Hoje ela já aceita numa boa, tanto que também fez uma

Plínio esbanjando algumas de suas tattos, inclusive o seu próprio nome tatuado

no ombro, uma flor de lótus com um beija-flor. Mas ela ainda implica com os meus brincos”, relatou o jovem, que pretende fazer mais oito tatuagens. Já a estudante Karin Hanke, de 20 anos, é contra essa cultura. “Não concordo com essa demonstração de personalidade retratada por uma tatuagem. São minhas atitudes que com-

põem minha identidade, não preciso carimbar minha pele para exaltar minhas ideologias”, argumenta. Essa arte existe há mais de 3.500 anos e desde então só vem crescendo. Prova disso são os estúdios sempre lotados por aqueles que buscam fazer a primeira ou mais uma tatuagem.

O que para outros é menos, para grupos religiosos é mais vi, já estava fazendo parte do grupo. Foi uma escolha minha. Eles me chamavam sempre para participar, mas nunca tive interesse. Quando pintou a vontade, entrei”. Já para Eric, a decisão se deu após ele ir ao retiro jovem “Eu quero é Deus”. Desde então, ele participa do encontro do Sheliah todos os sábados. “Temos os cultos às terças, quintas, sábados e domingos. O culto jovem geralmente acontece no sábado. Nos reunimos na igreja mesmo, ou às vezes, nas casas uns dos outros. Não rezamos e sim oramos, pois orar é o mesmo que falar com Deus, deixar ele falar com você e também agradecer por tudo que ele fez. Também adoramos com louvor, danças, teatro... Não existe uma maneira fixa de se comunicar com o Criador, pois cada um de nós é livre para adorá-lo da maneira que quer”, ressalta Jéssica.

Mesmo em religiões diferentes, os jovens cristãos são semelhantes em se tratando de comportamento. Eric cita uma passagem bíblica – “Tudo posso, mas nem tudo me convém’’ – para lembrar que um jovem, para ser cristão, não precisa deixar de ser jovem, mas deve entender que para ser feliz não precisa de bebidas, cigarros ou qualquer tipo droga. “É preciso renunciar a si mesmo e viver para Deus, abandonar coisas que não convêm a um cristão para darmos bom exemplo. Não precisamos de bebida, droga ou sexo para sermos felizes. Claro que depois do casamento o sexo não é pecado. Muitos acreditam que um cristão só faz sexo para se reproduzir, mas não, cristão também sente prazer’’, completa Jéssica. Para chamar a atenção dos adolescentes e falar a mesma lingua-

gem que eles, os grupos promovem eventos como festivais de música, shows, bailes cristãos, peças de teatro e retiros, nos quais a intenção é mostrar que é possível se divertir participando de atividades sadias. Para muitos jovens da sociedade atual, esse tipo de comportamento é considerado “careta’’, ainda mais quando a questão é namoro. Esse tipo de relacionamento, normalmente, só vem a acontecer entre dois jovens cristãos engajados nesse grupos após um longo período de conhecimento dos dois. Quando duas pessoas estão se gostando, entram em uma amizade especial justamente para conhecer melhor um ao outro. Só depois de muito orar e pedir confirmação de Deus, eles falam com os pais, o pastor ou o coordenador do grupo e então iniciam o namoro. Sexo, só depois do casamento.


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INCLUSÃO SOCIAL

Quando o comum se torna especial Rafael Gobi, portador de síndrome de Down, é um dos beneficados pela lei de cotas para os portadores de deficiência.

Rafael Gobi trabalha como empacotador em um supermercado de Curitiba

Diego Gianni

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afael Gobi tem 24 anos e trabalha há cinco como empacotador no supermercado Mercadorama, no centro de Curitiba. Também faz parte de sua rotina empilhar as cestinhas do mercado e organizar os carrinhos de compras. Ele parou de estudar na 4ª série do primário e está no seu primeiro emprego. Sonha em ter um carro e uma casinha na praia. É uma pessoa bem quista pelos colegas de trabalho e diz ser tratado com igualdade por todos. Uma história comum, exceto pelo fato de Rafael ser portador da síndrome de Down. A Lei de Cotas (Nº 8.213/91), existente desde 1991, colocou Rafael e muitas outras pessoas com algum tipo de deficiência no mercado de trabalho. Por força dessa lei, as empresas que têm mais de cem funcionários são obrigadas a reservar parte de suas vagas para deficientes. Quanto maior for o número de funcionários, maior deve ser a porcentagem de vagas para esses empregados. Profissionais da Associação dos Deficientes Físicos do Paraná (ADFP) contam que, ao contrário do que muitos podem pensar, tais empresas é que disputam a contratação de pessoas deficientes, e não o oposto. “O Ministério Público fica em cima das empresas para a lei ser cumprida”, relata um funcionário da ADFP que preferiu não se identificar. “Há uma multa alta para a empresa que não cumpre essa lei, e as que cumprem podem ganhar desconto no Imposto de Renda”, explica. A ADFP capta recursos para se manter e é conveniada com algumas empresas, entre elas, a Copel e os Correios. “Pessoas deficientes não pedem tratamento especial”, diz a psicóloga e assistente social Andréa Regina Macedo, de 44 anos. “Claro que é preciso levar em conta os cuidados especiais que cada uma delas necessita, mas, de forma geral, o que elas desejam é

serem tratadas com igualdade, com respeito”. Essa é a opinião também de Helena Bueno, 49 anos, que trabalha como voluntária com crianças excepcionais. Na opinião dela, o que há de mais comum entre as crianças, deficientes ou não, é o quanto elas sonham com o que vão ser um dia. “É preciso pensar com carinho nessas pessoas e não esquecer que elas precisam de oportunidade e não de pena”, defende Helena. Em se tratando de oportunidades, na internet também é possível encontrar serviços de grande utilidade para os deficientes. O site deficienteonline.com.br apresenta artigos pertinentes às dificuldades que portadores de deficiência encontram no cotidiano e também conta com um banco de dados que auxilia no direcionamento deles para o mercado de trabalho. O interessado deve se cadastrar e informar seus dados pessoais, tais como escolaridade e o tipo de deficiência que apresenta. No cadastro, deficientes auditivos devem informar se sua surdez é moderada, acentuada ou grave. O mesmo devem fazer os deficientes visuais, indicando o grau de sua visão (que pode ser baixa ou cegueira total), assim como os deficientes físicos precisam informar especificamente quais são suas limitações e se necessitam de alguma adaptação no local de trabalho. Para os deficientes mentais, fatores como capacidade de comunicação e habilidade social também são indagados no cadastro, de forma que eles possam ser direcionados para vagas adequadas a eles e seus contratantes. Pequenas empresas e pessoas físicas em geral também podem ajudar os portadores de deficiência. A ADFP está localizada na Rua XV de Novembro, 2.765 (CuritibaPR) e precisa de serviço voluntário, assim como doações em dinheiro, roupas e utensílios.

Um olhar cego sobre um mundo que enxerga Keyla Rocha Wagner Bitencourt é um jovem de 24 anos portador de uma doença congênita que o deixou cego aos 15 anos. Ele conta que ao completar 11 anos, em 1997, teve o primeiro avanço da doença, ficando parcialmente impossibilitado de enxergar. “Doença de retina ainda é pouco estudada. Não muito esperançosos, meus pais começaram a me preparar. Colocaram-me em um curso de Braille e Orientação e Mobilidade, ou seja, comecei a andar com uma bengala para já ir me acostumando”, relata. Apesar das dificuldades enfrentadas, Wagner ingressou na faculdade para cursar Filosofia. “Eu sou bem curioso e escolhi Filosofia por ela ser, como eu chamo, a mãe da ciência”, explica, entre sorrisos. A faculdade não possui uma sala especial para ele ou outros com a mesma deficiência, mas eles contam com o Núcleo de Apoio aos Portadores de Necessidades Especiais (Napne). Wagner diz que faz muitos trabalhos da faculdade e, com relação às matérias, o Napne as escaneia para que, por meio de um programa de computador chamado Jaws, conhecido também como leitor de tela, ele possa ouvir todo o conteúdo. Wagner comenta que “falta conhecimento das pessoas sobre o assunto. Elas pensam que deficiência visual é deficiência mental, e até professores não sabem lidar com a situação”. Além de ir à faculdade, Wagner dá aulas de violão, guitarra e bateria para iniciantes. Todos os dias, ele pega dois ônibus para ir à faculdade e confessa que sente dificuldade em se mover e se orientar na cidade. Para saber o ônibus correto, geralmente há pessoas perto que o ajudam. “Mas uma vez eu estava só, estendi a mão, e o ônibus não parou. Penso que ele deveria ter parado e me informado que ônibus era aquele”. De acordo com o gerente de operação da Urbs, Luiz Filla, além de isenção de tarifa, o deficiente também pode ter a autorização para entrar no ônibus com um cão guia. A Urbs informa que motoristas e cobradores são treinados e preparados para auxiliar os portadores de necessidades especiais, caso estejam sozinhos, no que for preciso. Filla afirma que, para um melhor uso do transporte coletivo pelos portadores de necessidades especiais, a partir de 2007, tornou-se obrigatório, por determinação federal, que todos os ônibus tenham elevador para facilitar o acesso, já que um cadeirante ou alguém com dificuldades de andar, por exemplo, não consegue subir pelas escadas. A previsão é que, até junho de 2011, 60% da frota esteja renovada. Em 2014, todos os ônibus deverão ter o elevador.


Cheios de trincas e rachaduras MARCO ZERO

Curitiba, outubro de 2010

Cabe no Bolso Henrique Rigo

Prédios antigos e mal cuidados, no centro da cidade, colocam em risco a segurança de quem vive ou circula nas proximidades José Rogério Barbosa

José Rogério Barbosa

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a complexa composição das paisagens urbanas, eles se erguem rumo aos céus da cidade como verdadeiros fantasmas. Assombram não somente pelo aspecto físico, cheios de trincas e rachaduras, mas também pelo perigo que representam – muitas vezes ignorado – de um desabamento. Sustentam paredes marcadas pelo cinza enegrecido da fuligem dos dias, meses e até anos de descaso. Nessas condições, estão diversos prédios de Curitiba, com sinais visíveis de que uma hora ou outra ruirão. Alguns deles são centenários, já outros, não tão velhos, permanecem como construções estagnadas por irregularidades. Na Rua Riachuelo, bem no coração da cidade, há pelo menos três prédios em condições de abandono. Um deles, entre as ruas São Francisco e Treze de Maio, de arquitetura antiga, apresenta uma estrutura bastante precária: as paredes estão rachadas, e as sacadas com peitoril de ferro parecem apoiadas unicamente por troncos de madeira um tanto escurecidos. Mesmo inspirando pouca confiança, as pessoas passam exatamente embaixo das sacadas, ignorando o perigo de a qualquer momento acontecer a queda de parte da estrutura ou mesmo dela toda. Questionado se não sentia medo de passar pelo local, dadas as condições do prédio, Francisco Fábio Lima Rodrigues diz: “Medo tenho sim, mas só agora que eu observei, já que a vida é corrida. A rua passou por uma revitalização, está tão bonitinha a calçada, assim como o asfalto e os outros prédios do lado, e não poderia estar assim, não é mesmo? Tinha que estar caprichadinho”. Situação mais complicada viveu Otília, proprietária da Casa Hilú, loja de tecidos ao lado da construção. Segundo ela, a situação de abandono do prédio já conta uns dez anos. “O lugar virou moradia de maloqueiros. Eles invadiam, subiam até o telha-

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--------------Bienal do Design • Acontece em outubro a Bienal Brasileira de Design 2010 no Memorial de Curitiba. A exposição Design Urbano: Uma trajetória do arquiteto, urbanista e administrador Jaime Lerner apresenta projetos feitos para cidades, como o Ligeirinho, o programa Lixo Que Não É Lixo, a Rua Portátil e os Dock-Docks, veículos elétricos compactos. Local: R. Claudino dos Santos, 79 Entrada Gratuita Horário: terça a sexta, das 9h às 18h; sábado, domingo e feriados, das 9h às 15h Informações: (41) 3321-3328

Prédio na Rua Riachuelo é um elemento estranho na rua que acaba de passar por revitalização.

do e estendiam roupas lá. Uma vez, chegaram até a colocar fogo no lugar”, conta. Otília conta que, após uma reclamação, foi colocado um tapume no lugar, mas a coisa só piorou. Os invasores passaram a fazer o espaço entre o tapume e a parede do prédio de banheiro público: “O cheiro de fezes e urina era insuportável. Eu tinha que chegar cedo todos os dias e lavar o local. Após reclamação, a Prefeitura enviou algumas vezes um caminhão pipa para lavar o local”. Ainda conforme a comerciante, certa vez caiu um pedaço da construção na rua que por poucos centímetros não acertou uma senhora que passava pelo local. “O prédio teve muitas propostas, como a de ocupar o seu espaço com uma escola de música, mais tarde a de abrigar uma faculdade, mas nenhuma delas vingou”. Questionada a respeito da segurança da construção, ela diz que vez por outra os engenheiros aparecem para vistoriar, mas que apenas fica nisso. Não muito longe dali, precisamente, entre a Praça Tiradentes e o Largo da Ordem – ambos pontos turísticos da cidade – há outro exemplo de abandono. Trata-se do prédio situado atrás da catedral de Curitiba, na esquina da José Bonifácio com a rua Padre Júlio de Campos, onde antiga-

mente funcionava uma loja de ferragens. O prédio, em condições precárias, tem suas paredes sustentadas por um andaime construído em ripas de madeira cuja aparência é quase tão ruim quanto a construção que ele sustenta. Quem caminha pela Padre Júlio de Campos dificilmente deixa de perceber o odor de fezes e urina exalando do lugar que virou banheiro público, resultado do tapume colocado há pouco tempo no local. Um dos feirantes que trabalham no local e que não quis se identificar diz que “o prédio está nessas condições já faz uns dez ou 15 anos”. Acerca das condições pouco confiáveis do andaime composto por ripas escurecidas que dão a impressão de estarem podres, outro feirante diz que “os responsáveis pelo prédio vieram há pouco tempo atrás, trocaram meia dúzia de ripas e foram embora”. Eles dizem ainda que antes havia uma família morando e cuidando do prédio, mas depois foram embora, e os drogados invadiam a construção, inclusive chegando a morrer gente lá dentro. Questionados se o aspecto do prédio causa algum problema para o comércio no local, um deles argumentou que, “se não fosse a aparência da construção, haveria muito mais pessoas circulando no local e consequentemente muito mais comércio”.

----------------Passeio Público • Um dos parques mais antigos de Curitiba, o Passeio Público oferece entretenimento para o público. Apontado pela Gazeta do Povo como o parque mais indicado para visitar em Curitiba, tem como atrações duas pistas de corrida, restaurante, playground para crianças, três lagos, 40 animais e aquário com mais de 30 espécies de peixes. Local: R. Presidente Faria, S/N Entrada Gratuita Horário: das 8h às 18h Informações: (41) 3240-1116

-----------------------Hum Café • O Hum Café é ponto de encontro de curitibanos que apreciam um bom café colonial com mais de 50 itens, incluindo pães, bolos, tortas, biscoitos e geléias, além de cafés, sucos, chás e refrigerantes. No almoço, os clientes contam com um buffet de comida variada com 15 pratos frios, dez pratos quentes e saladas. Local: R. Emiliano Perneta, 665 Ingresso: R$ 10,00 Horário: terça a domingo, das 8h às 18h


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Curitiba, outubro de 2010

CULTURA

Literatura de entretenimento O jornalista Felipe Pena e o escritor de terror André Vianco participam de um bate-papo sobre literatura pop, livros acadêmicos chatos e vampiros Eliaquim Júnior

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lguém já o reprimiu porque você lê os livros de Stephanie Meyer ou de Stephen King? Já se sentiu deslocado porque não gosta dos livros de autores da Academia, porque acha a linguagem incompreensível? Não se deprima, pois a conversa a seguir tem a intenção de esclarecer de uma vez por todas que literatura de entretenimento também é literatura, mas com uma linguagem simples e histórias mais fantasiosas e atraentes. É um gênero que a cada dia se fortalece mais no Brasil e que veio para ficar. Num bate-papo realizado na Bienal do Livro do Paraná, em Curitiba, no mês passado, cujo tema foi “Literatura de entretenimento pop, que gênero é esse?”, dois escritores de perfis díspares foram convidados a responder essa pergunta e discutir outros assuntos relacionados ao tema. Não é crime Que gênero é esse, André Vianco? O escritor de fantasia e terror mais vendido do Brasil, autor de títulos como Os sete, Sétimo e Turno da noite, entre outros, responde: “É literatura de entretenimento. Mas é literatura.” Vianco conta que fica assombrado quando as pessoas lhe perguntam como ele se sente sendo autor de um gênero tão comercial. “É como se fosse um crime”, declara bem humorado. E para justificar sua escolha por livros de fantasia conta que cresceu lendo histórias de terror e vendo filmes com teor fantástico. Um dia, percebeu que poderia criar e contar histórias mais fascinantes do que aquelas que lia e assistia na TV. “As pessoas adoram histórias sombrias e fantásticas. Então, não sou comercial, sou apenas um escritor que gosta de escrever sobre esses assuntos”, revela o autor que já tem mais de uma dúzia de livros lançados e mais de 700 mil exemplares vendidos. Para o escritor, psicólogo e jornalista Felipe Pena, autor de oito livros acadêmicos e dos romances O analfabeto que passou no vestibular e o recém lançado O marido perfeito mora ao lado, literatura de entretenimento não é passatempo, é sedução pela palavra. “Toda literatura é entretenimento. Mas existe um grande preconceito com a palavra entretenimento. Como se fosse um pecado ler e se divertir com um livro. O fato de entreter não significa que o livro não cause reflexão”, argumenta.

Vianco e Felipe Pena durante o Café Literário, na Bienal do Livro do Paraná

Os pseudo-gênios Felipe Pena alega que há um grande problema na literatura contemporânea: os escritores não escrevem para serem lidos, mas para serem estudados pela Academia. “Está vendo o que eu fiz? Você não entendeu nada, mas olha como sou genial”, debocha o autor ao se referir aos textos de difícil compreensão, às vezes com a ausência de ponto, vírgula ou parágrafo, mas que são considerados geniais e ganham todos os prêmios do ramo literário: “Prêmio Jabuti, Tartaruga....”, brinca o escritor, que diz que durante o seu doutorado em literatura aprendeu o que não fazer ao escrever um livro. É sabido que nos dias atuais, em relação aos clássicos da literatura nacional, como A moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo, as pessoas têm uma percepção diferente daquela do tempo em que a obra foi publicada. É um romance que hoje não é visto como um livro de entretenimento. “Trata-se de um processo natural pelo qual passam as obras literárias”, explica Vianco. Ele acredita que seus livros têm a tendência de serem vistos de forma distinta no futuro. Ele revela que já tem um livro seu sendo estudado. A obra A casa, segundo o autor, já foi adotada por uma diretora de língua estrangeira da Força Aérea Americana para fazer um estudo do gótico na língua portuguesa. Falando em obras clássicas, Machado de Assis também foi citado na con-

versa. O autor é mencionado por Pena em um desabafo disfarçado de recomendação: “É um absurdo oferecer um livro de Machado de Assis para uma criança ou um adolescente. A criança tem que ler algo para se divertir, ou ela ficará traumatizada”, diz o jornalista, ressaltando que não desmerece o autor, mas justifica que existe um tempo certo para determinadas leituras. É verdade, Pena não está exagerando, pois as crianças não estão preparadas para a linguagem machadiana, e isso pode até causar um “trauma”. Uma maldição O autor de O marido perfeito mora ao lado – que não é um livro de autoajuda, embora se possa encontrar a obra nessa seção em algumas livrarias, mas Pena não se importa com isso – diz que a grande maioria que lê seus livros acadêmicos também lê seus romances. Prova disso são os e-mails que recebe e que faz questão de responder pessoalmente, assim como os recados dos leitores colecionados por ele. O escritor critica ainda a forma como as obras acadêmicas são escritas e se orgulha de ter logrado romper esse estilo. Se você é estudante, ou já foi algum dia, se identificará com o comentário do jornalista: “Aposto que muitos que estão aqui já pegaram um livro na faculdade, leram e não entenderam nada e depois foram perguntar ao professor o que o autor quis dizer. E o professor respondeu: ele quis dizer isso, isso e isso. E

você se pergunta: então por que ele não disse isso, isso e isso?” Era perceptível na expressão das pessoas presentes no Café Literário que todos já tinham passado por alguma situação parecida e concordaram com o escritor quando ele disse que os livros acadêmicos são herméticos, de linguagem difícil. E não parou por aí. Pena contou ainda que narrativa é também uma estratégia de poder. Ele argumentou que quando alguém entende um livro acadêmico e aquela linguagem que muitos não entendem, essa pessoa precisa dissecá-lo para aqueles menos sábios, e isso significa que ele tem poder e o outro não. “Rebelei-me um pouco contra isso. Meu livro Teoria do Jornalismo é um livro acadêmico, mas é escrito em primeira pessoa, falo sobre teorias e teóricos, mas uso exemplos da minha profissão como repórter”, afirma o escritor, que, assim como seu amigo Vianco, sabe muito bem o que o leitor espera encontrar numa obra: uma linguagem acessível, prazerosa e simples. Vampiro à brasileira “Escrevi Os sete – livro sobre vampiros – em 2000. A Bella – protagonista da saga Crepúsculo – estava no jardim da infância”, diz Vianco em relação à pergunta que muitas vezes lhe fazem sobre se a saga vampiresca teen o influenciou a escrever sobre as criaturas da noite. Vianco admite que leu o primeiro livro da saga, Crepúsculo, e que, apesar de elogiar a escrita da autora Stephanie Meyer, diz que seus dentuços são muito doces. “Já os vampiros brasileiros são mais machos”, diz o escritor brincando ao se referir aos personagens de suas obras de fantasia. Vianco – que tem a obra O fim da infância, de Arthur C. Clarke, debaixo do travesseiro – revela que não se incomoda com o sucesso de suas histórias ter tido a pequena ajuda da série escrita por Meyer. No final da discussão, Felipe Pena – cujo livro de cabeceira é O erro emocional, de Cristóvão Tezza – faz questão de pronunciar que é imprescindível o apoio da mídia à literatura de entretenimento. “A crítica literária precisa entender esse fenômeno, pois autores como André Vianco vieram para ficar”, diz o jornalista, que ainda deixou todos curiosos ao informar que Vianco e ele estão providenciando uma grande surpresa para o final de ano.


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Curitiba, outubro de 2010

CONTO

O que há de mais íntimo em público

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Letícia Mueller

u pegava o ônibus ainda um pouco vazio, quase no início da linha. Antes de entrar, sempre examinava os vidros e as portas. Quanto mais espaços em branco visíveis, maior era a chance de eu entrar. Aquele mar de gente que enchia os ônibus formava sempre uma massa escura fácil de ser identificada e reprimida. Eu não entro em ônibus cheios. Era cedo... Faltavam dois minutos para as 18h. Os trabalhadores ainda desligavam seus computadores, guardavam suas ferramentas e tiravam seus uniformes enquanto eu já estava dentro do tubo, imponente, na primeira da fila. Que fila? Agora já começavam a chegar. Primeiro, uma moça de sandálias rasteiras. A sola branca do pé manchava a pele cor de chocolate que desenhava a unha do dedão. Pele grossa, ressecada, dura. Nem precisaria de sandálias. Antes assumisse e andasse descalça que estaria mais protegida. Chega um rapaz de terno e bolsa de couro. Alto, elegante, bem apessoado. Paga a passagem com o valor máximo. Uma nota de 20 novinha em folha. Um homem de 50 anos, usando um boné com o número 13 e o nome de Dilma estampado em letras amarelas, trajando uma camisa puída e calças de moleton, está do lado de fora, colocando as mãos no bolso em um ato de desespero. De tempos em tempos, junta todas as moedas na palma da mão, separando-as para um lado e para o outro em uma conta que só mesmo ele ou Deus para entender. Mais cinco pessoas vão enchendo o tubo. Entra uma jovem, de uns 25 anos. Bela, longos cabelos loiros, grandes olhos negros enfeitados com cílios curvos como de uma boneca. Usa salto alto, calça justa, blusa decotada que deixa à mostra os grandes seios siliconados. Vê-se pela bolsa que é universitária e estuda em uma universidade particular, paga, cara. Ela parece deslocada naquele ambiente, como se o único motivo por que estivesse andando de ônibus fosse seu carro estar na revisão e todos os seus amigos e parentes não a poderem levar ao seu destino. Entram mais pessoas. Chega o ônibus. Vou direto para a porta 4, já me prevenindo contra os futuros e inevitáveis congestionamentos de pessoas. Alguns companheiros de tubo parecem pensar como eu e ficam perto da porta de desembarque, até onde alcança minha visão. Uma jovem ao meu lado me chama a atenção. Encostada sobre um cano, parece não se mover com o balanço do veículo. Sua expressão, de tão estática, chega a assustar. Ela parece triste, braba, irritada, difícil definir. Fácil era sentir uma vontade incontrolável de consolá-la, de dizer que ela logo logo estaria em casa. Foi então, durante esse ímpeto de be-

nevolência, que comecei a notar seu perfil, única parte de seu rosto visível de onde eu estava. Devia ter uns 20 anos, era morena, prendia os cabelos no alto da cabeça, e a franja estava presa para trás, formando um topete. Tinha olhos amendoados, grandes e verdes, contrastando com a pele levemente bronzeada. Os lábios eram carnudos, sensuais, e algo dizia que um lindo sorriso escondia-se por ali. Era tão linda! Como eu queria ver seu rosto inteiro, de frente. Fiquei alguns minutos com o olhar preso nela, até que desisti. Nada no mundo a faria virar o rosto. Um celular toca. É um daqueles toques antigos de música clássica, tipo Beethoven. Eu procuro pelo dono do celular, mas fui lenta demais. O telefone já havia parado de tocar. O ônibus pára em uma estação, e a sensação é de que dezenas de pessoas foram desovadas ali. Já são 18h04min, e o ônibus está cheio, lotado. Mesmo próxima a porta 4, três pessoas disputam meu humilde lugar. Não se importam com minha presença. Faço manobras para evitar o máximo de contato corporal possível, mas parece tão difícil quanto plantar uma bananeira por ali. De repente, sinto a mão de um homem tocar repentinamente meu dedo, e, como reflexo, tiro-o imediatamente. O senhor de 50 anos, com o boné da Dilma, me olha constrangido e pede desculpas. Ele passa o resto do trajeto fazendo mil e uma macaquices, concentrando-se para não encostar mais em mim. O senhor de camisa puída. O telefone toca novamente, aquele com o toque do Beethoven. Me distraio por alguns segundos e, quando vejo, aquele homem elegante de terno e bolsa de couro está falando ao celular. Um celular velho, meio carcomido, feio. Quando noto que suas unhas combinam muito bem com o estado do celular, vejo que sua calça social está cheia de furinhos feitos por traças, e a bolsa de couro está toda desgastada. Enganou bem. Aliás, a bela jovem loira universitária foi flagrada coçando os ouvidos e, logo em seguida, roendo as unhas. Talvez ela tenha esquecido o álcool gel dentro do porta-luvas do carro na revisão. Mais uma parada. Estação Central. Como uma maré, várias pessoas deixam e várias entram no ônibus. Foi no meio desse movimento que, discretamente, a bela menina misteriosa ao meu lado se dirigiu para a saída e eu tive uma das maiores decepções. A garota de perfil lindo tinha os lábios tortos, olhos caídos e um queixo um tanto quanto avantajado. Resumindo: era feia, muito feia. Porém, poderia ser uma modelo de perfil. Decepcionada, eu me viro para a janela e não me movo enquanto não chego onde tenho que descer. Chego em casa pensando que deveriam proibir os passageiros de ficarem olhando uns para os outros. É impossível, eu sei. Nesse dia, fui dormir triste... envergonhada e triste.

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ESTANTE PARANAENSE Eliaquim Júnior

1822 (2010) Laurentino Gomes

Divulgação

O escritor maringaense continua em 1822 a aventura pela história do Brasil iniciada em 1808, best-seller nacional lançado em 2008. Agora o jornalista conduz o leitor numa viagem pela Independência do Brasil. A obra cobre um período de 14 anos, entre 1821, data do retorno da corte portuguesa de D. João VI a Lisboa, e 1834, ano da morte do imperador Pedro I. Graças ao escritor, a história do Brasil está na moda. Devido ao sucesso de 1808, outros livros de temáticas semelhantes estão ganhando espaço entre os leitores brasileiros. E grande parte do sucesso de seus livros deve-se à linguagem simples e didática, bem diferente dos livros de histórias escrito por historiadores. Gomes já prepara seu próximo livro: 1889.

Narrativas de um correspondente de rua (2008) Mauri König

Divulgação

O livro do jornalista Mauri König reproduz 15 das suas melhores reportagens, várias delas premiadas nacional e internacionalmente. König, que é repórter especial da Gazeta do Povo, tem seu trabalho caracterizado pelas denúncias de violações dos direitos humanos. Na obra, as reportagens ganharam comentários do Mauri. Ele conta o processo de construção de seus trabalhos. No caso da reportagem Infância no Limite, por exemplo, que mostra casos de abusos sexuais contra crianças, ele viajou por semanas pelas fronteiras do Brasil com diversos países e pelos estados do Sul. Destaque para a reportagem sobre a família Mello. Nela, Mauri conta a história do menino cujos artelhos estavam corroídos por bichos-de-pé (foto que ilustra a capa do livro).

Trilogia Alhures do Sul (2010) Manoel Carlos Karam A editora curitibana Kafka Edições relançou os três primeiros livros publicados por Karam: Fontes Murmurantes (1985), O impostor no Baile de Máscaras (1992) e Cebola (1997). As três obras formam a Trilogia Alhures do Sul. Ter seus livros reeditados era o grande sonho do escritor, que morreu antes de ver seu desejo concretizado. O escritor Paulo Sandrini, responsável pela reedição, revela que fazer a obra do Karam circular é uma grande conquista. O texto de Karam é conhecido por sua ironia, riqueza de detalhes e humor: “Poderia ser a notícia de jornal sobre o homem que foi matar a sede e morreu afogado.” O relançamento é uma boa oportunidade para apreciar a obra deste escritor cuja literatura ainda é pouco conhecida.

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Curitiba, outubro de 2010

ENSAIO FOTOGRÁFICO

Textos e fotos de Alexandre Gasparini

Visões incomuns de Curitiba

Nós que vivemos em uma grande cidade quase não temos chance de enxergar o horizonte. Vemos apenas prédios e mais prédios. Mas quando em algum momento temos essa chance, parece que a mente faz uma pausa. Obriga-nos a admirar aquele horizonte e nos faz lembrar que temos outras razões para viver além da correria diária. O mesmo acontece ao se observar a “cidade fervilhante” de um nível superior. É impossível não parar e refletir sobre algum aspecto diferente de nossas vidas.


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