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As “Safos Galegas” pg.33 / Crítica: Aos Nossos Amigos pg.36 / Vitor Silva Tavares: O editor subterrâneo pg.37

Jornal de Informação Crítica

Resort de Jogos de guerra Luxo ameaça em Portugal págs. 4 e 5 mata do Bom Sucesso

Três anos a provocar suores nos gabinetes

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NÚMERO 11 OUTUBRO-DEZEMBRO 2015 TRIMESTRAL / ANO III 1500 EXEMPLARES PVP: 1€ WWW.JORNALMAPA.PT

Petróleo e gás de Norte a Sul pág. 6

pág. 3

Numa zona em que outros projectos de resorts turísticos têm sido abandonados o Beltico Group aposta na construção do Resort Falésias Del Rey na Mata Nacional do Bom Sucesso, em Óbidos. O projecto, classificado de Interesse Nacional conta com 475 moradias e apartamentos de luxo, um hotel de 5 estrelas e um campo de golfe. Entre a destruição de zonas naturais e a interdição do acesso às praias, este é mais um exemplo do despotismo da indústria turística numa situação em muito semelhante à de outras zonas como a Costa Vicentina, no Alentejo, ou o já conhecido Algarve.

Trident Juncture 2015 é o nome do exercício a realizar pela NATO entre Outubro e Novembro de 2015 em diversos locais da Europa. A partir da simulação de um conflito fictício por causa de questões relacionadas com o acesso à água, terá lugar a maior demonstração de força dos senhores da guerra no período pós-guerra fria. O exercício deixa, no entanto, antever o conceito actual de guerra híbrida e das operações em contextos urbanos cada vez mais frequentes pelo globo. Em Portugal decorrem exercícios em locais como Beja, Setúbal ou Tróia.

O número de contratos de concessão para a extracção de gás e petróleo tanto na costa como em terra assinados pelo Estado tem aumentado gravemente nos últimos anos. Sob os argumentos do aproveitamento energético e da crise económica, está em curso a venda de uma enorme extensão de território a empresas como a Repsol e a Galp. No Algarve, o problema da actividade extractiva, bem como os seus impactos, começa agora a chegar à praça pública. No resto do país o silêncio tem sido a norma.


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2 O “NÓS” E O “OUTRO”

Jornal de Informação Crítica MAPA: Jornal de Informação Crítica Número 11 Outubro-Dezembro 2015 Propriedade: Associação Mapa Crítico NIPC: 510789013 Morada da redacção: Largo António Joaquim Correia, nº13, 2900231, Setúbal Registo ERC: 126329 Diretor: Guilherme Luz Editor: Ana Guerra Subdiretor: Frederico Lobo Director adjunto: Inês Oliveira Santos

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a esquerda à direita, todos os partidos políticos se propõem governar de forma a “resolver os problemas do país”. Foi esta a retórica que apelou ao voto e é este o discurso que, decorrendo no terreno do espectáculo e da mediatização, pretende legitimar o regime e empalmar o apodrecimento da democracia. Um jogo permanente, que não se inicia nem se acaba, mas que normalmente sobressai em alturas de campanha. Nas últimas legislativas, tal como noutras votações para cargos de poder, os seus actores tentaram escamotear os valores da

abstenção, uma das mais altas de sempre. Enquanto os políticos portugueses se digladiam por lugares e interesses no parlamento, os fluxos migratórios mostram que as bases desta Europa em que vivemos são a violência dos exércitos e das polícias, e a propaganda racista do “nós” e do “outro”, cujo objectivo é unicamente propagar o ódio contra os mais desprotegidos e fragilizados pelo sistema. Os centros de detenção para migrantes relembram, perigosamente, campos de concentração ou Gulags. A necessidade que uns têm de alcançar a Europa gera também um boom de fluxos monetários na área

da segurança, onde se compram novos drones, barcos, armas e sistemas de monitorização. O Estado português não é excepção e tem disponibilizado meios humanos e materiais nas operações de controlo à migração no mediterrâneo, da agência Frontex. Ao mesmo tempo, negligencia os meios destinados ao socorro a náufragos na costa portuguesa, deixando os pescadores à sua mercê, como demonstra a recente tragédia com o arrastão Olívia Ribau, na Figueira da Foz. Em operações de salvamento, apenas a banca é prioridade máxima do governo. O circo eleitoral e os próximos capítulos têm dominado a agenda dos

média nos últimos dias, e neste corrupio, ignora-se que é também em território português que decorre já o exercício da NATO Trident Juncture 2015, com a consequente invasão das nossas praias. É justamente em algumas destas zonas que se procura petróleo e gás e, a avaliar pelo número de concessões do Estado português à indústria dos combustíveis fósseis, Portugal é já uma zona de férteis investimentos. Com este número, o jornal MAPA completa o seu terceiro ano de Informação Crítica, e lança a sua 11ª edição, desta feita com 40 páginas que continuarão a fazer tremer os cadeirões dos gabinetes.

Colaboram no jornal MAPA com Artigos, Investigações, Ilustrações, Fotografias, Design, Paginação, Revisão, Site e Distribuição: M.Lima*, M.Lima*, IA*, Filipe Nunes*, Gastão Liz*, Teófilo Fagundes*, Delfim Cadenas*, C. Custóia, Samuel Buton, J. Barreira, José Smith Vargas*, Guilherme Luz*, Cláudio Duque*, P.M*, A.P, Ali Baba*, Júlio Silvestre*, Inês Rodrigues*, Granado da Silva*, Olegário Bigodes, X. Espada, José Carvalho*, Huma*, Finja Delz, Palinho, J. Martins, κοινωνία, Manuel Dias, Susana Costa, Pedro Cerejo, Jorge Valadas, Miguel Carmo, Maria Luz, Manuel Bivar, Cota + Jano, Andrea Staid, Guilhotina.info, un singe en hiver, Mamadou Ba, Rita Alves, Pedro Casto, Eduardo de Sousa, Carlos C. Varela, Tiago Alfaiate, Giakoumis Nekta,MC. * Colaboradores permanentes / Pensamento, discussão e desenvolvimento do projecto editorial (colectivo editorial) Periodicidade: trimestral PVP: 1 euro Tiragem: 1500 exemplares Contacto: geral@jornalmapa.pt Distribuição: distribuicao@ jornalmapa.pt Assinaturas: assinaturas@ jornalmapa.pt Site: www.jornalmapa.pt Facebook: facebook.com/jornal. mapa Twitter: twitter.com/jornalmapa Depósito legal: 357026/13 Tipografia: Funchalense-Empresa gráfica S.A. Morada: Rua da Capela da Nossa Senhora da Conceição, nº50 Morelena 2715-029 Pêro Pinheiro - Portugal Os artigos não assinados são da responsabilidade do colectivo editorial do jornal MAPA. Os restantes, assinados em nome individual ou colectivo, são da exclusiva responsabilidade dos seus autores.


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NOTÍCIAS À ESCALA 3 GRANADO DA SILVA GRANADODASILVA@JORNALMAPA.PT

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s últimos hectares de mata atlântica (maioritariamente pinhal) com mata natural do Bom Sucesso, em Óbidos, estão ser destruídos para dar lugar a mais um PIN. Em causa está o Resort Falésia D’El Rey, um projeto imobiliário com 475 moradias e apartamentos de luxo, hotel 5 estrelas, boutique hotel, piscinas e campo de golfe de 18 buracos, que se estende até 500 metros das falésias, que estão a desabar, pondo em perigo a segurança das pessoas na praia. Os acessos às praias estão fechados ao público devido às obras e a população sente que perdeu as suas praias. A história do Bom Sucesso com o turismo é a repetição do que passou no Allgarve quando Gerard Fagan (considerado um dos donos do golfe em Portugal) decidiu que “é aqui (Algarve) que queria passar a minha reforma”. Em 2000 conhece o Inglês Simon Burgess, com quem decide criar um projeto turístico, o Estrela da Luz, na Praia da Luz, e desde então nunca mais pararam indo até Silves, comprando também os cinco campos de Albufeira e chegando inclusive aos Açores e a Óbidos. Ou como o caso da Costa Vicentina onde se verifica a violação e usurpação de espaços protegidos, a privatização de praias1 em nome da economia e do interesse nacional, recorrendo, para isso, a gastos de água astronómicos, a exploração laboral resultando na perda de território comum e na deterioração das condições sociais. O projeto de Óbidos vai ocupar o último espaço “natural” usado para férias pela população local, bem como por imigrantes e alguns turistas das classes mais baixas. Aí faziam-se piqueniques e churrascos em família, ia-se às praias, realizavam-se pequenos encontros/festas, praticavam-se desportos, fazia-se campismo selvagem, ia-se namorar e ver o pôr-do-sol. Era o sítio onde os habitantes locais iam apanhar cogumelos, ervas medicinais selvagens, lenha, pastar e/ou passear os animais. Para quem conhecia e frequentava o local deste pequeno ex-oásis no meio de construções e praias “com condições para o usuário e o comerciante”, é desoladora a imagem do derrube das árvores, dos muros e das cercas, das constantes obras, das placas “proibido passar/propriedade privada”, dos seguranças em vez dos guardas florestais. O caso é, também, semelhante ao que se passou na Meia-Praia, em Lagos no Algarve, em 2011, aquando da interditação da circulação nas estradas de acesso às praias em Odiáxere, devido à construção do Palmares Resort, junto à praia de Alvor. Para construir o Resort Falésia D’El Rey foram também cortados os acessos às praias do Rio Cortiço e Olhos de Água (Lapinha). A Câmara de Óbidos congratula-se por ter conseguido, em 2007, reduzir o projecto inicial de construção de 15% dos 240 hec-

Os senhores e a conquista de Óbidos

Um Projeto de Interesse Nacional (PIN), no município de Óbidos, corta acesso a praias para se construir mais um resort de luxo e golfe.

“Aqui houve um local de merendas. Tinha uma grelha, mesas e até caixote de lixo...” Retirado de: forumobidos.blogspot.pt

tares para 5% após negociação com as empresas. O resort em questão faz parte de um projeto promovido, desde 1997, sob o nome Silver Coast, constituído por vários campos de golfe e habitações de luxo com grande presença na Zona Oeste, entre Torres Vedras e Nazaré. Na verdade são dezenas de mega-projectos de “interesse nacional” dedicados ao golfe, nesta área de turismo, sendo este apenas mais um, contabilizando-se cinco na área do Bom Sucesso. Como admitiu uma moradora a um jornal local, moradores, ecologistas e comunicação social têm estado a dormir. Esta expressou que “ O aviso do empreendimento estava lá, mas deu-se a crise, os outros resorts faliram ou estão em insolvência e nunca pensámos que de repente fosse avançar. Os outros empreendimentos na zona não deram certo e nós achávamos que esta área estava protegida” 2. O Resort Falésia D’El Rei é uma iniciativa do Beltico Group que tem como missão: “A promoção e gestão de resorts e propriedades enquanto investimentos a longo prazo.” O grupo está presente no

Reino Unido, Europa Continental, América do Sul, Norte de África e Extremo Oriente. Em Portugal desenvolveu o Praia D’El Rey Golf & Beach Resort, que descreve como “uma região intocada” e “um dos desenvolvimentos mais exclusivos e atraentes resorts de Portugal”, tendo a empresa Crisser, SA como promotora. O projeto Praia D’El Rey foi o primeiro projeto do Beltico Group no final dos anos 90. Em 2015 recebeu o prémio Hall of Fame do Tripadvisor. Neste mesmo ano foram encerrados restaurantes e demolidas cerca de 60 moradias de luxo devido a insolvências. O Praia D’El Rey Marriot Golf & Beach, - no qual a seleção nacional de futebol costuma ficar alojada durante os estágios - em Óbidos, não foi englobado na insolvência, sendo salvo pela Blue Shift Portugal, empresa de consultadoria para investimento e rentabilidade de hotéis e resorts. O Praia D’El Rey e estes empreendimentos têm recuperado algum dinheiro ao acolherem encontros de empresas, comícios, férias para representantes de empresas, reuniões e ações filantrópicas. Foi assim que em 2007 recebeu

a reunião “Troika Alargada de Chefes da Polícia da União Europeia”, que teve a participação de 30 representantes da polícia europeia, do secretariado-geral do Conselho Europeu e da Comissão Europeia, sem faltar a Interpol e a Europol. O objetivo do encontro prendeu-se com “a forma de antecipar e prevenir o crime, ou seja, como travar e conter organizações criminosas internacionais a todos os níveis”. O encontro dedicou-se também a “aprofundar a relação das polícias ao Frontex (Agência Europeia de Gestão de Fronteiras)”3. No empreendimento Praia D’El Rey foi construído o primeiro hotel de cinco estrelas da Zona Oeste, o Marriot Hotel. Também o projeto turístico Bom Sucesso-Design Resort, considerado um dos melhores empreendimentos turísticos da Europa, financiado pelo BES, foi obrigado à insolvência em 2014 pelo tribunal, que nomeou uma administração para gerir a massa falida. As casas custavam entre 300 mil e 1 milhão de euros e têm gente como Ricardo Salgado ou José Mourinho como proprietários das habitações de luxo. Neste empreendimento

O projeto de Óbidos vai ocupar o último espaço “natural” usado para férias pela população local bem como por imigrantes e alguns turistas das classes mais baixas. Aí faziam-se piqueniques e churrascos em família, ia-se às praias, realizavam-se pequenos encontros/festas, praticavam-se desportos, fazia-se campismo selvagem, ia-se namorar e ver o pôr-do-sol.

estão investidos cerca de 14 milhões de euros para a construção de um hotel de luxo cuja obra está parada há quase um ano. Os investidores estão protegidos por um Plano Especial de Recuperação (PER) do Estado português. Em 2006, 95% dos compradores de propriedades provinham da Inglaterra, Dinamarca, Holanda e Espanha, que pagavam pelas casas mais baratas 500 mil euros usando Vistos Gold, mecanismo que permite que cidadãos de Estados-Terceiros possam obter uma autorização de residência temporária para atividade de investimento, com a dispensa de visto de residência para entrar em território nacional. O projeto do Bom Sucesso chegou a ser classificado com cinco estrelas pela Direção Geral de Turismo. As receitas de quase 2 mil milhões de euros são a justificação para a aposta do Governo no golfe e nos resorts. Foi devido a este valor que o Estado decidiu integrar o golfe dentro dos produtos estratégicos para o desenvolvimento do turismo. O Conselho Nacional para a Indústria do Golfe (CNIG) criou o projeto Golfe 200 mil, que consiste em disponibilizar zonas de treino gratuitas a estudantes por um determinado período de tempo, de forma a incentivar a prática do golfe. Mas a realidade mostra o falhanço destes megaprojetos. Em Torres Vedras, o Resort Campo Real também chegou a estar em insolvência em 2011, mas com a venda do ativo tóxico por parte do BCP à Discovery, um fundo do próprio BCP, que mais tarde passou a responsabilidade de exploração para as mãos da norte-americana Dolce, o projeto continuou ativo. António Carneiro, enquanto presidente da Região de Turismo do Oeste, declarou, durante o seminário “Turismo: Nos caminhos da qualidade”, realizado em 2007 em Óbidos e organizado pela Escola de Altos Estudos de Turismo de Óbidos, que “na região há espaço para todos, desde que tenham qualidade”. Hoje, todos os projetos de golfe e resorts da Zona Oeste já apresentaram insolvência e os que não fecharam só funcionam a 50% ou menos. Ainda assim, surge o Resort Falésia D’El Rey, com dinheiros públicos para destruir a ultima parcela verde e livre e que vem cortar o acesso a praias públicas. Em 2014 tiveram lugar manifestações de trabalhadores em resorts e hotéis de luxo da região Oeste, onde se reivindicava o direito à reunião e melhores condições de trabalho. Em Março, houve duas manifestações organizadas por sindicatos junto ao Hotel Marriot na Praia D’El Rey, na pousada do Castelo de Óbidos e em frente ao Sana Silver Coast, nas Caldas da Rainha. As ações foram levadas a cabo depois da Administração do Marriot, no Bom Sucesso, ter interrompido as negociações com os trabalhadores, onde estava a ser discutida a forma como os trabalhadores tomam conhecimento de quais os turnos a realizar (visto que normalmente eram informados na


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4 NOTÍCIAS À ESCALA continuação da página anterior.

noite anterior pelo patronato), bem como horários, aumentos salariais e melhores condições para poderem planear férias em família. Em Óbidos, a manifestação serviu também para exigir melhores salários em todo o grupo Pestana Pausadas. Na Zona Oeste, os mega-projectos começaram a ser notícia depois de o Buddha Eden Garden, um espaço com cerca de 35 hectares idealizado e concebido pelo comendador José Berardo no município do Bombarral, ter levado ao abate de dezenas de sobreiros. Para 2016, está previsto o arranque do parque de diversões do Bombarral, um projeto considerado pelo Governo como sendo de interesse público e que o levou a desclassificar parcelas de área protegida dentro da Reserva Agrícola Nacional, de forma a permitir a construção de um parque de diversões, um mini-golfe, cinema 4D e uma montanha-russa. O parque é promovido pela empresa Sky Tower, e conta com investimentos do arquiteto Manuel Remédios e de Hartley Booth, ex-ministro britânico do Governo de Margaret Thatcher, entre outros. Ocupará 38 hectares, mais de metade da Disneyland de Paris, e no final de 2014 ainda esperava pelos resultados da Avaliação de Impacte Ambiental. Na Nazaré, investidores Alemães e Suíços planeiam também um mega-projecto de luxo com golfe, num investimento de 750 milhões de euros, na área de São Gião. O projecto tem o nome de Dubbed Golden Sunset Resort e é encabeçado pela empresa alemã Circle of Inovation Immobolien (COI). O representante da COI, José Ova, afirmou ao portal de notícias Dinheiro Vivo que a empresa tinha intenções de construir noutro país mas que “a entrega e esforço do Concelho da Nazaré levou-os a mudar de ideias” (4). O Presidente da Câmara Walter Chicarro, do PS, diz que tudo está ser feito para que os trabalhos possam começar o mais rapidamente possível. Em toda a área Oeste também vários condomínios fechados de luxo estão a ser construídos e grandes áreas estão a ser cercadas para reservas de caça. Há ainda hectares que estão a ser ocupados pela indústria da fruticultura e da agricultura intensiva. A zona das Caldas da Rainha e, mais propriamente a área da Serra do Bouro, é também a zona onde os geólogos da indústria petrolífera concentram os estudos de forma a analisar a viabilidade da instalação de reservatórios de gás natural. Enquanto os senhores brincam aos ricos, o povo fica cada vez mais pobre! /// NOTAS 1 Tivoli Marina Vilamoura. 2 Gazeta das Caldas, 7 de agosto de 2015. 3 Tenente-general Mourato Nunes. 4 Portugal Residente, maio de 2014, (portugalresident.com)

NATO: Uma lança em África A NATO lava a cabo um grande exercício e demonstração de força a ter lugar em diversos paises da Europa

Com os últimos exercícios militares torna-se evidente o interesse prioritário da Aliança Atlântica em África. Imagem do jogo de vídeo Call of Duty: Black Ops.

TEÓFILO FAGUNDES TEOFILOFAGUNDES@JORNALMAPA.PT

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Trident Juncture 2015 é um exercício militar da Nato de alta intensidade e alta visibilidade que se iniciou a 28 de Setembro e se prolonga até 6 de Novembro. Divide-se em duas fases. Uma, chamada CPX (Command Post Exercise), que se resume a gabinetes. Outra, de nome LIVEX (Live Exercise), que se desenrolará no terreno, com ensaio de várias operações navais, aéreas e terrestres, de desembarques a acções em ambiente urbano. Esta fase contará com 200 aeronaves, 50 navios de guerra e cerca de 36.000 efectivos de 28 estados da Nato e 5 nações parceiras e decorrerá em Espanha, Itália, Portugal, Mediterrâneo, Oceano Atlântico e também Canadá, Noruega, Alemanha, Bélgica e Holanda. Trata-se, de acordo com o Estado-Maior-General das Forças Armadas, do “maior exercício da história da NATO pós Guerra Fria e o evento de maior visibilidade realizado em 2015, envolvendo toda a estrutura de comando da Aliança”1. Trident Juncture 2015 Este exercício é o corolário de anos de preparação baseada no conceito estratégico aprovado em Lisboa, em 2010, onde a Nato deixou oficialmente de ser uma aliança meramente defensiva. A cimeira de Chicago, em 2012, instarou a Connected Force Initiative (CFI). Dois anos mais tarde, em Gales, o Readiness Action Plan instituiu a Força de Intervenção Rápida (força de 5.000 efectivos capazes de, em 48 horas, se mobilizarem para responder a

situações de crise a Leste e a Sul da Nato) e decretou seis medidas-chave dentro da CFI. Uma delas era a realização das manobras Trident Juncture 2015. O cenário deste jogo de guerra é um conflito entre dois países fictícios por causa de questões relacionadas com água. Na disputa, um dos países invade outro e, pela lógica da Nato, é altura de intervir. Em nenhum momento é levantada a hipótese da nação invadida ser membro da Aliança Atlântica. Apesar disso, Aguiar Branco não se inibe de afirmar que o “cenário do exercício demonstra uma natureza defensiva das actividades da Aliança”2. Uma mistificação que nem sequer está presente nas palavras da própria Nato, que afirma que o cenário permite uma “Operação de Resposta a Crises fora da área, não Artigo 5 [artigo que instaura a resposta militar da Aliança em caso de agressão a qualquer estado membro – N.T.], para parar uma guerra fronteiriça antes que se expanda a toda a região.”3 No mesmo texto, também se pode ler que se pretende confrontar as forças da Nato com um “espectro amplo de ameaças convencionais e não convencionais, incluindo a guerra híbrida”. Guerra total “Guerra híbrida” é um conceito escorregadio. Tão escorregadio que tende a resvalar para um outro, o de guerra total, que se alastra a todos os aspectos da sociedade. As referências a “ambientes urbanos” nos documentos do Trident Juncture 2015 deixam antever que também se treina a presença do exército nas ruas, fora e dentro dos países da própria Nato para quando a polí-

cia, eventualmente, deixar de ser suficiente para conter multidões. Um conceito escorregadio que inclui, como parte do exercício, uma batalha de narrativas, ou seja, “trabalhar num ambiente informativo arriscado tanto nos países da Nato como na região em que a intervenção terá lugar”4. O convite a várias ONGs5 para participarem deve ser visto a essa luz. Com o objectivo afirmado de melhorar a interacção entre a Nato e actores civis essenciais, trata-se, afinal, duma espécie de botox pacifista que pretende legitimar uma prática imperialista, aproveitando para integrar algumas instituições na sua estratégia militar, impondo-lhes a sua lógica. Um treino militar com uma visibilidade que se pretende dissuasora. Com um enfoque em intervenções fora do espaço da Aliança. Com cuidados de relações públicas. E com “um cenário artificial e fictício que tem lugar em SOROTAN, que é algo como uma parte de África”, nas palavras do general Hans-Lothar Domröse6. Objectivo: África De facto, mais do que demonstrar força perante a Rússia e de treinar conjuntamente forças da Nato e da Ucrânia (que participa neste exercício), é de África que se trata. O continente rico. O continente que o Ocidente está a per-

der economicamente para a China e que pretende dominar militarmente. O continente com mais potencial de exploração. Em que as guerras pelos recursos se tornarão ainda mais inevitáveis depois disto. E em que as alterações climáticas serão razão de migrações e conflitos, desafio a que a Nato decidiu dar atenção pelo menos a partir da cimeira de Lisboa7. Ou seja, o objectivo central destes exercícios é treinar intervenções militares no continente africano, promovendo uma escalada militar que mais não fará do que potenciar novos conflitos e garantir uma fatia de leão na exploração de recursos para as empresas ocidentais. Recursos esses que não são de desprezar. África tem, por exemplo, um terço das reservas mundiais de minérios. Para além disso, apenas 12 das 54 nações africanas não têm hidrocarbonetos, havendo ainda zonas quase inexploradas. Mesmo nos locais considerados maduros há uma vastidão enorme de território que ainda promete esconder recursos. O alegado voltar de atenções para Sul poder-nos-ia fazer pensar unicamente no norte de África. A realidade vai mais longe. De acordo com o general Breedlove, citado por Manilo Dinucci8, “os membros da NATO desenvolverão um grande papel no Norte de África, no Sahel e na África Subsa-

Em Portugal decorrerá maioritariamente a componente marítima. Com bases em Santa Margarida/Tancos/Alter do Chão, Pinheiro da Cruz/Tróia, Base Aérea n.º 11 de Beja e o porto de Setúbal como placa fundamental.


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NOTÍCIAS À ESCALA 5 hariana”. Com o mundo ocidental a cuidar de dar uma resposta policial e militar ao que chama “crise de refugiados”, não nos espantemos de, em breve, ver a Nato em acção no afastamento dos requerentes de asilo para longe da vista dos europeus, contendo os fluxos migratórios na origem ou, pelo menos, em locais ainda não visíveis a partir de dentro da fortaleza. Como habitualmente, os discursos oficiais chegam tão carregados de pacifismo que nem parecem ter origem no maior e mais agressivo exército mundial. De qualquer forma, não se esconde que se pretende fazer treino militar para testar a CFI e, sobretudo, a Força de Intervenção Rápida. E ninguém com alguma independência poderá deixar de notar que a mensagem central se mantém: é possível fazer a paz através da guerra. Uma mensagem que não cabe na imagem que o Ocidente quer dar de si próprio quando anuncia treinos de invasão ao mesmo tempo os varre para debaixo do tapete da retórica da “defesa colectiva”. O papel de Portugal Para além de ser território em que estes jogos de guerra se vão desenrolar9, Portugal tem tido e continuará a ter um papel fundamental no Trident Juncture 2015. Com os objectivos declarados no despacho do primeiro-ministro em Diário da República (despacho nº 5472/2015, de 5 de Maio). Por exemplo o de “sedimentar a imagem externa de Portugal e, no âmbito do Fórum da

Indústria da OTAN que decorrerá em paralelo ao exercício, promover a internacionalização das empresas nacionais e criar um ambiente favorável à atração dos agentes económicos estrangeiros pelo mercado português”. Nas diferentes fases de preparação do exercício já decorreram diversas actividades em Portugal, algumas de grande dimensão como uma reunião em Maio último de 291 representantes de 28 países, onde o desenho militar desta operação começou a ser definido. É preciso ainda notar que foi a diplomacia conjunta de Portugal, Espanha e Itália que acabou por determinar a estrutura final do Trident Juncture e a sua localização na bacia mediterrânica. A participação no terreno é ambiciosa, de acordo com um comunicado do governo, de 2 de Julho, onde se afirma que “além dos militares que participam diretamente no exercício (940 integrados na Força de Reação da NATO 2016 e 2220 nos meios complementares), Portugal disponibilizará ainda mais 3000 militares que funcionarão como forças de apoio, totalizando em cerca de 6000 os efetivos portugueses envolvidos neste exercício. Em Portugal, o exercício (…) mobilizará mais de 10 mil efetivos de 14 países participantes.” As operações aéreas concentrar-se-ão em Itália e as terrestres em Espanha. Em Portugal (9) decorrerá maioritariamente a componente marítima. Com bases em Santa Margarida/Tancos/Alter

(...)o objectivo central destes exercícios é treinar intervenções militares no continente africano, promovendo uma escalada militar que mais não fará do que potenciar novos conflitos e garantir uma fatia de leão na exploração de recursos para as empresas ocidentais.

do Chão, Pinheiro da Cruz/Tróia, Base Aérea n.º 11 de Beja e o porto de Setúbal como placa fundamental. De acordo com o Correio da Manhã10, o “exercício inclui ainda três dias compostos por cerimónias que contam com a presença de vários visitantes. O primeiro dos quais terá lugar em Itália, a 19 de outubro, e o segundo a 04 de novembro, em Espanha. Portugal receberá o dia dos visitantes ilustres a 05 de novembro, que juntará chefes militares da NATO e chefes militares portugueses”. Um empenho impressionante que não se esgota em jogos de guerra. Antes se estende para o tabuleiro dos negócios, promovendo um fórum onde empresas que lucram com a guerra podem apresentar as suas novidades e discutir formas de criar novos nichos de mercado para as suas novas ferramentas repressivas. Fórum11 que decorrerá no Hotel Pestana Palace, em Lisboa, nos dias 19 e 20 de Outubro. Resistência As manobras Trident Juncture 2015 são o reflexo das prioridades do mundo rico. E não podem deixar de ser contestadas por quem pugna por um planeta de paz. Nesse sentido, as movimentações da Nato não passarão sem contestação. Um documento12 conjunto da Alternativa Antimilitarista. MOC e da Rede Antimilitarista y Noviolenta de Andalucía, convida a acções descentralizadas e promete desobediência civil para Barbate, de 30 de Outubro a 3 de

Novembro (em frente ao Campo de Treino Anfíbio da Serra do Retín), e actos de protesto para Saragoça de 3 a 6 de Novembro (“o Campo de San Gregorio será de novo o protagonista da barbárie militarista”). Também em Itália há um mês de protestos contra a Nato e um apelo13 a uma coordenação internacional de acções. Em Portugal, apesar de toda a importância que a estrutura militar e política lhes dá, as manobras da Nato não despertaram mobilizações visíveis. Apenas o Conselho Português para a Paz e Cooperação tem feito algum trabalho de oposição, tornando público um documento onde expressa o seu “mais expressivo repúdio” pelas Trident Juncture 2015, organizando debates e recolhendo assinaturas num abaixo assinado onde se exige a “dissolução dos blocos político-militares e o estabelecimento de um sistema de segurança coletiva, com vista à criação de uma nova ordem internacional capaz de assegurar a paz e a justiça nas relações entre os povos”. /// NOTAS: (1) goo.gl/n82o8l (2) goo.gl/sqXnTU (3) goo.gl/tbuLx9 (4) goo.gl/tbuLx9 (5) Por exemplo, Comité Internacional da Cruz Vermelha, Save the Children, Assistência Médica Internacional, Human Rights Watch. (6) goo.gl/YS4DcM (7) goo.gl/FwXA0q (8) goo.gl/7bh4Ei (9) Para uma ideia das actividades em Portugal, ver: goo.gl/NMJ9xu (10) goo.gl/dTqy2P (11) goo.gl/LlQ4R2 (12) goo.gl/N0Fvn0 (13) goo.gl/v4SqL0


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Algarve vai ter mais uma empresa a procurar petróleo. A Portfuel - Petróleos de Portugal, sediada em Lisboa e liderada pelo empresário José de Sousa Cintra, obteve no dia 25 de Setembro luz verde do Governo português para iniciar a prospeção. Depois de, no início deste ano, ter sido confirmada a Bacia Lusitânica como fonte de gás de xisto (shale gas) e se ter anunciado mais dois locais com possibilidades para o shale gas no Alentejo, na Serra da Ossa, Extremoz e Algarve, a Entidade Nacional para o Mercado de Combustíveis (ENMC) assinou um contrato com a Portfuel para a prospeção e produção de gás e petróleo. Os blocos cedidos à empresa são em terra (onshore) e o trabalho consiste em continuar as pesquisas já iniciadas mas consideradas “sub-avaliadas” pelo ENMC. Os contractos de exploração têm a duração de 4 anos e destinam-se ao uso de métodos tradicionais utilizados até hoje para extração de hidrocarbonetos. No final dos 4 anos a ENMC sublinha que, caso as petrolíferas queiram continuar os trabalhos recorrendo à técnica de fratura hidráulica (Fracking) ou outra técnica não convencional de extração de gás ou petróleo, terão de haver estudos de impacto ambiental. Em 2013 a UE aprovou uma lei que obriga a um estudo de impacto ambiental para todas as atividades de hidrocarbonetos não convencionais, o que não acontece por exemplo nos EUA. Sousa Cintra comporta-se, assim, como qualquer investidor já que qualquer negócio com possibilidades de ser rentável é uma aposta viável. Depois de ter visto os seus bens confiscados após o 25 de Abril comprou a empresa Vidago, Melgaço & Pedras Salgadas (VMPS), que mais tarde vendeu a Jerónimo Martins. Nos anos 90 fundou a Drink In no Brasil, que se tornou a quarta maior produtora de cerveja do Brasil. Em Portugal o negócio da cerveja não correu bem e, em 2002, vendeu a fábrica à Iberpartners. Cintra investe também em Africa região que, juntamente com o Brasil, constituem duas grandes fontes de hidrocarbonetos não-convencionais. Poderemos voltar a ver os empresários portugueses a explorar as antigas colónias. O empresário aposta agora no petróleo seguindo os passos de outros conhecidos nomes em Portugal como Joe Berardo que investiu em ações da Mohave Oil and Gas, uma corporação registada no Texas em 1993, que reiniciou os trabalhos petrolíferos em Portugal na bacia Lusitânica em 2007. Após ter perfurado um poço em Alcobaça e ter decidido “não ser economicamente viável” e apesar de ter mais concessões onshore a Mohave abandonou Portugal em 2014 e saiu, inclusive da bolsa Canadiana TSX mantendo, no entanto, os seus estudos sísmicos

Algarve onshore!

De Norte a Sul de Portugal são cada vez mais as concessões para a extração de gás e petróleo.

e geológicos á venda. Outro dos nomes envolvidos na exploração de hidrocarbonetos em Portugal é o da Fundação Gulbenkian proprietária da Partex Oil and Gas. Esta empresa tem luz verde para a extração de hidrocarbonetos nas águas algarvias, já que é detentora de concessões no offshore, juntamente com a Repsol. Esta ultima tinha anunciado o inicio das atividades de perfuração para Outubro 2015 mas entretanto requereu um adiamento para 2016 devido ao baixo do petróleo que dita os investimentos nos projetos. Sendo os projetos de prospeção para perfuração profunda (Deep Offshore) de gás natural, e que requerem o uso de técnicas mais caras, a Repsol tenta ganhar tempo para que as condições de prospeção em Portugal melhorem para os investidores. Ambas as corporações dividem blocos offshore, na Bacia de Peniche, com outos grupos investidores, tais como a Galp. 2016 promete ser o ano do

grande avanço da industria petrolífera. Na Bacia do Alentejo a Eni, petrolífera italiana que veio substituir a Petrobras, prevê iniciar as perfurações ultras profundas a sul de Sines. Mais a Norte, o Jornal da Economia do Mar notícia que o governo abriu a 1º concurso internacional para prospeção de hidrocarbonetos na Bacia do Porto1 O governo também anunciou que está a preparar um concurso público para mais prospeção offshore, depois de uma empresa internacional mostrar interesse nas águas muito profundas do Algarve. As apostas na extração de hidrocarbonetos em águas muito profundas assentam na grande extensão das águas territoriais portuguesas e na esperança (ou conhecimento efetivo) da quantidade de recursos que possam existir no subsolo marinho. Desde que, em 2014, a empresa Mohave abandonou os trabalhos de prospeção em Alcobaça a região do Algarve tornou-se a linha

(...)em contexto de crise económica, social, ambiental e energética, o petróleo e o gás são difíceis de colocar em causa já que nos são apresentados como uma riqueza material de um povo que na prática é explorada por empresas privadas ou o Estado.

da frente dos investidores da indústria petrolífera. De facto Bombarral, Cadaval e Alenquer têm sido apresentadas como a “mina de ouro” das empresas, mas pouco se sabe sobre os trabalhos nessa área. Na concessão de Alcobaça confirmou-se a existência de gás natural, em Aljubarrota a jazida de gás é tida como das maiores da península ibérica e, em 2015, o presidente da Partex anunciou também a Serra da Ossa e área de Estremoz como áreas com potencial de conterem reservas não convencionais de gás natural Inevitavelmente as empresas têm mais informação do que a população e os estudos e testes sísmicos realizados são dos mais completos atualmente. A pouco e pouco a realidade das reservas de gás e petróleo em Portugal podem levar a um investimento súbito e a um rápido início dos trabalhos de extração em vários locais do país. A informação produzida pelas empresas dificilmente será de acesso livre às populações diretamente afetadas e, a avaliar pela quantidade de estudos e prospeções, é de esperar um súbito Boom da atividade extrativa. Recentemente a ASMAA (Algarve Surf & Maritime Activities Association) publicou um mapa que compila as concessões concedidas em Portugal referentes à extração de petróleo. Como é visível no documento (acessível em

asmaa-algarve.org) a situação é de extrema gravidade, já que entre a localidade da Figueira da Foz e Vila Real de Sto. António a zona Costeira, tanto em terra como no mar, não existem praticamente zonas que não estejam concessionadas às diversas empresas que tencionam iniciar a exploração. Em 2012 os grupos ecologistas e ambientalistas não falavam de fratura hidráulica em Portugal, só em 2014 a Quercus publica um texto sobre o gás de xisto, no ano seguinte o Estado português autoriza a prospeção de gás e petróleo, as corporações salientam a necessidade de extrair gás ou petróleo através de técnicas não convencionais para que o investimento seja viável e que as reservas possam ser convenientemente exploradas. No Algarve, foi criada a primeira plataforma contra a exploração de petróleo, a PALP2 formada por diversos coletivos, grupos etc . O governo fala em benefícios económicos para a nação, mas os valores nos contratos das concessões no Algarve que Portugal vai receber variam de 0 a 10 cêntimos por barril de petróleo produzido de 3 em 3 meses da Repsol e da Partex. Segundo os contractos entre o governo e as corporações. Pela Concessão Lagostim o estado vai receber de 0,10 cent por Euro, menos que na Concessão Lagosta que é de 0,15 cent. As corporações anualmente pagarão por km2 ao estado 15,00 euros nos primeiros 3 anos, o valor vai aumentando atingindo durante a fase de produção 240,00 euros km2. A área total das duas concessões sé cerca de 3200 km2 que são cerca de 770,000 euros para os “Cofres do Estado” que comparado com os 1240 milhões de euros de lucro da Repsol em 2015 ou os 1750 milhões da Partex em 2012/2013 são uma moeda na “cuspideira”3. A aposta nos combustíveis fósseis traz consigo o aumento da atividade extrativa. Os impactos ambientais e sociais desta atividade são astronómicos e estão muito para lá das galopantes alterações climáticas. O problema é mais profundo e leva-nos à base do atual modelo económico que necessita de perfurações em alto mar e técnicas de extração nãoconvencionais d forma a manter os atuais níveis de produção e exploração. Inevitavelmente, em contexto de crise económica, social, ambiental e energética, o petróleo e o gás são difíceis de colocar em causa já que nos são apresentados como uma riqueza material de um povo que na prática é explorada por empresas privadas ou o Estado. O “crescimento económico” que preenche o discurso de empresários e governantes significa unicamente o crescimento dos lucros das empresas. /// NOTAS 1 Jornal de Setembro de 2015, pág. 40 2 Plataforma Algarve Livre de Petróleo 3 Pote ou bacia utilizado em saloons e pubs americanos e australianos no sec XIX para se cuspir o tabaco de mascar. Quando um pedinte, alcoólico, sem abrigo ou um índio entravam a pedir esmola eram humilhados quando se viam obrigados a ir apanhar as moedas que eram atiradas para as cuspideiras pelos outros clientes que se deleitavam com a visão.


“Em relação à rota eles não a podem fechar. A não ser que electrifiquem o mar...” Depoimento de Ahmed do filme de 2008 Bab Sebta, de Frederico Lobo e Pedro Pinho

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ara o MAPA, tornou-se tão urgente como desafiante reunir relatos, análises e opiniões em torno da questão das fronteiras e da migração. Tornou-se urgente pelo absurdo que se perpetua há já demasiado tempo pela Europa, com a sua crescente militarização e o levantamento de cada vez mais barreiras para conter a passagem de milhares de pessoas, da Grécia às Canárias, dos Balcãs à Turquia. E desafiante ao procurar um outro lugar, para lá da torrente de informação que ciclicamente nos chega, através de todos os canais mediáticos, sobre os viajantes do nosso tempo. A limitação das palavras surge, logo à partida, com a facilidade com que se desgastam os termos que nos são próximos para definir estes homens e mulheres: emigrantes, refugiados, deslocados tiram lugar aos aventureiros, aos camaradas, aos que, inconformados com a realidade que encontram no seu sítio, alteram o rumo das suas vidas. Mas com o passar do tempo, altera-se o estigma deste viajante: afinal mais próximo de nós do que possamos imaginar pela distância mediática, deixa de ser somente alguém sobre o qual tudo parece ser imposto e que parte com a inconsciência absoluta do que o espera no caminho. Passamos também a poder falar de revoltados conscientes da sua situação e da sua legitimidade em procurar um outro sítio para lá daquele a que a lei os relega, e que deixa para trás a reduzida ideia do sem-papeis, do emigrante vulnerável e incapaz. Espelho disto são as sucessivas revoltas em centros de detenção e campos improvisados perante os abusos físicos e legais das autoridades e a pressão policial. Iguais a tantas histórias próximas de nós, feitas também de prisões, despejos e abusos policiais, diluem-se fronteiras geográficas e culturais perante a evidência das fronteiras sociais. Nos últimos anos as rotas mudaram, os riscos aumentaram mas as vontades e as necessidades de viagem permaneceram. Porém a viagem tende a ser possível apenas se for feita em classe turística. Num mundo feito de circulação permanente, as fronteiras existem apenas para quem nasceu do lado errado das leis da economia dominante. Sucedem-se os naufrágios, as deportações, as mortes no caminho, dentro e fora da Europa, colocando a narrativa europeia em xeque, fragilizando os seus sustentáculos morais e físicos. Torna-se bem presente a raíz das direcções das políticas montadas pelos sucessivos governos na construcção da União Europeia e a sua relação com os regimes dos países para lá das suas fron-

teiras. As práticas dos Estados, nas suas mais diversas derivas à esquerda ou à direita, demonstram a falência da ideia fabricada pela Europa para o Mundo, de uma civilização justa e solidária . Se, como ponto de partida, considerarmos estes fluxos migratórios como uma inevitabilidade da existência humana, enquanto uma corrente incontrolável que circula desde o início dos seus dias, seja movida pela fuga a um conflicto bélico, a uma calamidade, à impossibilidade de sobreviver no modelo económico imposto ou seja por um desejo e uma pulsão individual ligada ao desconhecido e à aventura que ele implica, facilmente deparamos com a absurda noção de justiça a que levam os actuais proteccionismo nacionalistas e patrióticos, justificação de lei e acções que levam a milhares de mortes todos os anos. Dos ataques militares perpetrados recentemente pelo exército da Macedónia aos 16 guardas civis ilibados da morte de 15 pessoas em Ceuta no ano passado(http://goo. gl/M0azr1( torna-se visível a forma como as autoridades europeias, para lá de todo o discurso humanitário, encaram na prática a defesa das suas fronteiras. Se formos mais fundo e assumirmos que uma grande parte destas deslocações se deve à exploração de recursos e matérias primas dalguns dos países de origem das pessoas, às relações económicas mantidas entre regimes, sejam eles democráticos ou ditatoriais, podemos assumir que permanece um conflicto aberto baseado na velha lógica colonial, uma lógica que a socialdemocracia escamoteia do seu léxico presente. Trata-se duma e da mesma moeda, o facto da prosperidade económica duns ter a miséria como reverso da medalha, aqui ou em qualquer outra parte do mundo. Alguns acontecimentos geopolíticos mais recentes, no presente os conflictos Sírio e Afegão, tabuleiros de xadrez das potências do mundo, com os êxodos populacionais daí resultantes, levaram à suspensão do estado de direito em várias partes da Europa central e de leste: desde o muro erguido na fronteira entre a Hungria até ao levantamento, na Alemanha e na Áustria, do espaço Schengen (designado de “espaço de liberdade, segurança e justiça” do território Europeu). A partir das retóricas várias sobre os “refugiados” e o seu acolhimento, militariza-se o território e concretizam-se no terreno fronteiras que, na verdade, mais não são mais do que fronteiras de classe. Neste Caderno Central mapeamos uma série de perspectivas do que vai acontecendo um pouco por toda a Europa, criando uma cartografia que une vários pontos duma mesma questão e que se encontra, permanentemente, tão longe e tão perto de cada uma de nós.

CADERNO CENTRAL MIGRANTES, REFUGIADOS E SOLIDARIEDADE SEM FRONTEIRAS NO VELHO CONTINENTE.


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UM VERÃO CONTRA AS FRONTEIRAS

suas embarcações, como fizeram em meados de Agosto os guardas-costeiros gregos ao largo da Turquia, seja de preferência matando pessoas. Em Calais, onde alguns milhares de pessoas tentam chegar a Inglaterra por ferrys e pelo túnel da Mancha, o Estado e a Câmara Municipal estão de acordo desde há anos para reprimir os migrantes. Mas esta repressão acentuou-se ainda mais nestes últimos meses, com as expulsões dos migrantes dos diferentes lugares onde viviam (squats e jungles*) e o aumento da pressão policial. Ao mesmo tempo, numerosos reforços policiais chegaram à região e enquanto estes matracam, gaseiam e prendem, a Grã-Bretanha fichegam os migrantes (Itália, Grécia, Bulgária), nancia barreiras de infravermelhos e de arame vão servir para separar aqueles e aquelas que tefarpado que vêm gradear o porto e o acesso ao rão direito a apresentar um pedido de asilo e os túnel da Mancha. outros, os migrantes ditos «económicos», para os Assiste-se à mesma situação que em Ceuta e quais serão criados procedimentos de expulsão Melilha, onde a Europa constrói muros de arame rápidos e de grupo. Enquanto na Bulgária alguns farpado e de gadgets electrónicos mortíferos. Asjá abriram, em Itália estes centros estarão opesiste-se à mesma situação que no Mediterrâneo. racionais a partir deste Outono em edifícios miCada vez mais os migrantes encontram a morte, litares desocupados, readaptados com urgência tentando chegar a Inglaterra: desde o início de para estarem prontos o mais depressa possível. Junho, 11 migrantes morreram afogados, elecNo Mediterrâneo, a União Europeia lança uma trocutados ou esmagados por camiões na região operação militar naval chamada «Navfor Med». de Calais. Em Paris, a 29 de Julho, um migrante Aos polícias e instrumentos de vigilância electrótambém foi electrocutado quando tentava subir nica da agência de vigilância de fronteiras Fronpara o tejadilho do Eurostar na Gare du Nord. tex já presentes no mar, juntam-se navios e subA trilogia «invasão de migranmarinos de guerra, helicópteros tes / traficantes / terroristas» e drones dos exércitos europeus. DESDE HÁ 15 serve desde há anos para justiConcebida a partir do modelo ficar as políticas migratórias da da operação Atalante, que bom- ANOS QUE MAIS DE União Europeia, agitando o esbardeia embarcações e aldeias pantalho de um para reprimir de pescadores, em nome da luta 40.000 PESSOAS o outro. As redes de traficantes contra os piratas somalianos no FORAM MORTAS parecem ser a principal preoOceano Índico, a «Navfor Med» vai cupação dos dirigentes, mas ver os seus meios ofensivos pro- NAS FRONTEIRAS a quem beneficia o reforço do gressivamente aumentados, tendo EUROPEIAS, DAS controlo das fronteiras senão como objectivo final a destruição àqueles? Porque quanto mais dos barcos dos traficantes, antes QUAIS MAIS DE as estradas são longas e perigoque estes se afastem da costa lísas, mais os preços aumentam bia. Decidida após um naufrágio 2.300 DESDE e mais as redes se reforçam, é em Abril que provocou 800 mortos JANEIRO DE 2015. a lei da economia capitalista. ao largo da Líbia, esta operação, Tanto mais que em inúmeros apresentada como uma guerra E TODOS OS DIAS países, Estados e redes mafiocontra os traficantes, inscreve-se sas trabalham de mãos dadas. na realidade na continuação de MORREM MAIS Mais, se na realidade exisoutras já realizadas, visando bar- PESSOAS A CAMINHO tem redes mafiosas, inúmeras rar custe o que custar o caminho pessoas condenadas por serem aos migrantes, seja afundando as DA EUROPA

Desde o início do Verão que milhares de pessoas tentam chegar à Europa. Entre as que conseguiram, muitas estão bloqueadas e cercadas nos quatro cantos do continente: na Grécia, na Macedónia, em Calais, em Ventimiglia

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as fronteiras assassinas da Europa… Nos média, os governantes europeus falam de «situação explosiva» e de «drama humanitário», evocando as inúmeras pessoas que morrem quando tentam a travessia do Mediterrâneo. Agitar o espantalho da invasão e das redes criminosas de traficantes permite aos Estados justificarem as suas políticas migratórias assassinas, revestindo-se de um verniz humanitário. A escalada militar que se pôs em prática nas fronteiras da Europa faz-se com o pretexto de neutralizar os traficantes que seriam responsáveis por milhares de mortos no Mediterrâneo e noutros lugares. Mas, estes milhares de afogados, electrocutados, esmagados, foram mortos pelos Estados europeus que, ao reforçarem ainda mais a vigilância e o bloqueio das fronteiras exteriores da Europa, tornam as estradas de acesso cada vez mais perigosas. Desde há 15 anos que mais de 40.000 pessoas foram mortas nas fronteiras europeias, das quais mais de 2.300 desde Janeiro de 2015. E todos os dias morrem mais pessoas a caminho da Europa. Novos muros erguem-se por todo o lado, polícias e militares deslocam-se para impedirem as pessoas migrantes de entrarem na Europa. A Leste, enquanto a Macedónia decreta o estado de sítio e envia o exército contra os migrantes, a Hungria contzinua a construção do seu muro com cercas e arame farpado, ao longo dos 175 kms da fronteira comum com a Sérvia. Na Bulgária, o Estado envia blindados contra os migrantes. Campos de detenção são erigidos aqui e ali. Chamados «centros de triagem», «centros de identificação», estes lugares de detenção, que se inauguram nos países da União Europeia onde

A 11 DE JUNHO [EM VENTIMIGLIA], VÁRIAS DEZENAS DE MIGRANTES, JUNTAMENTE COM ALGUMAS PESSOAS SOLIDÁRIAS, INSTALARAM UM ACAMPAMENTO SOBRE OS ROCHEDOS À BEIRA MAR, PERTO DO POSTO FRONTEIRIÇO PRINCIPAL.


traficantes são migrantes ou pessoas que quisesoas solidárias organizam-se para lutarem conram ajudar, por solidariedade, e sem ganharem tra estas barreiras: para passar as fronteiras entre com isto: aquele que conduz o barco porque tem os países europeus, resistir ao assédio policial, experiência de navegação marítima, aquela que recusar as impressões digitais obrigatórias, oporabre a sua bagageira na fronteira franco-italiana -se aos ataques de grupos fascistas e quebrar a para apanhar um passageiro, aquele que em Calógica da invisibilidade e do isolamento em que lais fecha as portas do camião atrás dos seus cao poder queria envolver os migrantes. Por todo o maradas de estrada. lado, gerou-se uma forte soA Europa está em guerra lidariedade para contrariar contra os migrantes: está NOS QUATRO CANTOS DA a guerra aos migrantes landisposta a tudo para impeçada em todo o continente, dir aqueles e aquelas que EUROPA, MIGRANTES E com reivindicações simples considera indesejáveis de PESSOAS SOLIDÁRIAS e claras: documentos e aloalcançarem as suas cosjamentos, liberdade de cirtas, de atravessarem o seu ORGANIZAM-SE PARA culação, abertura das fronterritório e de aí se instalateiras, fim da repressão aos LUTAREM CONTRA ESTAS rem. Exemplos disto são as migrantes e das expulsões, recentes reformas que, em BARREIRAS: PARA PASSAR contra a ocupação policial. vários países europeus, resEm Ventimiglia, cidade tringem o direito de asilo e AS FRONTEIRAS ENTRE fronteiriça entra a Itália e a o acesso a um visto de perFrança, se os turistas podem OS PAÍSES EUROPEUS, manência. atravessar tranquilamente a Através dos discursos RESISTIR AO ASSÉDIO fronteira, não é assim para guerreiros e alarmistas que todos. Desde o mês de Junho, empregam, os governantes POLICIAL, RECUSAR AS que um aparato de forças constroem há muito tempo IMPRESSÕES DIGITAIS da polícia francesa e italiana a imagem de um inimigo tenta bloquear a passagem exterior, o migrante, que OBRIGATÓRIAS, OPOR-SE de pessoas migrantes que representaria uma ameaça desejam prosseguir a sua viapara a Europa e lhes permi- AOS ATAQUES DE GRUPOS gem, praticando controlos te justificar o reforço do po- FASCISTAS E QUEBRAR A faciais. der e do controlo, em todo o As barragens nas estradas lado e sobre todos. Não es- LÓGICA DA INVISIBILIDADE e os controlos a bordo dos quecer que esta gestão das frequentemenE DO ISOLAMENTO EM QUE comboios, fronteiras representa igualte com a cumplicidade dos mente um negócio chorudo O PODER QUERIA ENVOLVER controladores da SNCF apee um campo de experiênsar de algumas resistências, cias para os vendedores de OS MIGRANTES são quotidianas e estenarmamento e para os fabridem-se até Nice e Marselha. cantes de gadgets electrónicos de vigilância. Todos os dias, dezenas de migrantes que conseMas a determinação daqueles e daquelas que guem passar a fronteira são presos e reconduziquerem fugir à guerra, à repressão, à miséria, ou dos ao lado italiano pela polícia francesa. Mas, muito simplesmente viajar, será sempre mais forfelizmente, muitos outros conseguem passar e te que os arames farpados e o medo de morrer. podem assim continuar a sua viagem. Do lado italiano, as medidas tomadas contra os resistência e solidariedade migrantes e a liberdade de circulação são múltiMilhares de migrantes presentes no solo europlas: do aparato policial à interdição de distribuir peu lutam todos os dias para continuarem a sua comida, tudo é feito para desencorajar aqueles e viagem e chegarem ao seu destino, atravessando aquelas que querem passar para o outro lado dos o continente. Em todo o lado são confrontados Alpes. E para gerir e seleccionar esta população, com a pressão policial: nos postos fronteiriços, o Estado pode contar com o seu mais fiel colanas cidades, nas gares e nos portos… borador, a Cruz Vermelha. Em Ventimiglia, é esta As fronteiras estão omnipresentes e permitem que gere o centro de acolhimento dos migrantes, ao poder separar, seleccionar e impedir os misituado ao lado da gare, verniz humanitário à pograntes de circularem livremente. Nas ruas, nos lítica repressiva do Estado. transportes, nos organismos da administração, Mas uma parte dos migrantes decidiu não ser se não se tem o bom documento, cada controlo ajudado e recusa deixar-se fechar no centro da de identidade pode conduzir ao bloqueio, à priCruz Vermelha. A 11 de Junho, várias dezenas, são e à expulsão. juntamente com algumas pessoas solidárias, Quer sejam materiais, com os seus muros, arainstalaram um acampamento sobre os rochedos mes farpados e uniformes, ou imateriais, aos balà beira mar, perto do posto fronteiriço princicões do Governo Civil, nos corredores do metro, pal. Pretendem com isto protestar contra o blonos centros de acolhimento, etc., as fronteiras são queio da fronteira e construir um espaço de enpara abater porque são um entrave à liberdade. treajuda, de solidariedade e de luta. Apesar das Nos quatro cantos da Europa, migrantes e pespressões policiais, que ameaçam de expulsão e

procuram impedir outros migrantes de se lhes juntarem, o acampamento, chamado «Presidio Permanente No Borders Ventimiglia» resiste e organiza-se. «Neste acampamento, os europeus e os migrantes construíram um espaço de solidariedade, de cumplicidade e de luta. Em conjunto, cozinhamos e comemos, tornamos real a solidariedade da qual muitos falam, as informações e os conselhos difundem-se, vigiamos a acção das forças policiais italianas e francesas, afirmamos clara e abertamente o nosso desacordo perante o encerramento das fronteiras.» Organizam-se acções de bloqueio e manifestações na cidade ou no posto fronteiriço, aos gritos de «Não voltaremos para trás», bem como tentativas colectivas de passagem da fronteira. A 10 de Agosto, à noite, uma centena de migrantes tentaram atravessar a fronteira, subindo para um comboio. Na gare de Menton, perante a polícia, recusaram-se a descer do comboio. Foram então conduzidos à força para camionetas que os reconduziram ao posto fronteiriço francês de Ponte San Luigi, onde foram fechados em contentores à espera que o pedido de retorno ao território italiano fosse aceite pelas autoridades. Várias pessoas solidárias bloquearam então a estrada para impedirem estas expulsões e uma vintena delas foram presas. Três franceses passaram várias horas guardados à vista e seis italianos estão doravante proibidos de permanecer em Ventimiglia. Cada vez que migrantes são presos pelos bófias do lado francês são fechados em contentores no comissariado da polícia de fronteira de Menton à espera da sua expulsão para Itália. Mas a solidariedade está sempre lá: pessoas solidárias juntam-se à frente do comissariado para impedirem estas expulsões. Várias delas foram também presas e estão doravante proibidas de permanecer na região. Uma vez esta fronteira ultrapassada, o cerco policial e as prisões continuam, mas as solidariedades e as lutas também! Em Paris, a 2 de Junho de 2015, foi evacuado um acampamento de várias centenas de pessoas instaladas desde há meses sob a ponte do metro aéreo de La Chapelle. Enquanto a Câmara apresentava esta operação policial como humanitária e propunha locais de alojamento temporário, várias dezenas de migrantes encontravam-se na rua no dia seguinte. Reuniram-se então com várias pessoas solidárias e decidiram ocupar uma sala associativa para passarem a noite. Nos dias e semanas seguintes, diversos lugares foram ocupados, sempre evacuados pela polícia, seguindo ordens do governo civil e da Câmara. Estes não desejam ver os migrantes juntarem-se e organizarem-se colectivamente. A 8 de Junho, dezenas de bófias evacuam o acampamento do Mercado Pajol e prendem os migrantes, apesar de uma forte resistência que permitiu retardar o seu trabalho sujo e a muitos migrantes escapar.

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de cooperação para reprimir os migrantes: mais controlos, mais barreiras, mais bófias, graças ao financiamento inglês. Na jungle, migrantes e pessoas solidárias organizaram manifestações para o centro da cidade e bloqueios da autoestrada de acesso ao Eurotunel, permitindo a alguns de subir para as traseiras dos camiões. Estas acções multiplicaram-se nestas últimas semanas, dando força colectiva aos migrantes. O local de distribuição de comida no centro Jules Ferry foi também bloqueado para denunciar as condições de vida impostas no bidonville.

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Depois da agressão po- NO MEDITERRÂNEO, A vez de gestão humanitária, licial, a Câmara e o Estado luta, em vez de resignação. mudam de estratégia: assim UNIÃO EUROPEIA LANÇA Uma cantina colectiva para que um novo acampamento UMA OPERAÇÃO MILITAR as refeições, assembleias se organiza e que os migrangerais para tomada de detes se mobilizam, a Câmara, NAVAL CHAMADA «NAVFOR cisões, manifestações para a OFPRA (agência encarreromper com a invisibilidagada da gestão dos pedidos MED». AOS POLÍCIAS de na qual o poder queria de asilo), trabalhadores so- E INSTRUMENTOS DE mergulhar aqueles e aquelas ciais da Emmaüs e vereadoque considera indesejáveis. res vêm logo «vender-lhes» VIGILÂNCIA ELECTRÓNICA Outros acampamentos folugares em centros de acoram igualmente evacuados, DA AGÊNCIA DE VIGILÂNCIA entre os quais o do jardim lhimento. É a fachada humanitária desta guerra aos DE FRONTEIRAS FRONTEX público Jessaint em La Chamigrantes, conduzida pelos pelle. Várias dezenas de miEstados, e uma outra forma JÁ PRESENTES NO MAR, grantes ocupam desde ende violência mais insidiotão o átrio do governo civil JUNTAM-SE NAVIOS E sa que a matraca policial e do 18ème. o arame farpado. Em Paris, SUBMARINOS DE GUERRA, Em Calais, a 2 de Junho, como noutros lados, o poos últimos lugares ocupados der procura desembaraçar- HELICÓPTEROS E DRONES pelos migrantes no centro -se destes migrantes, torná- DOS EXÉRCITOS EUROPEUS da cidade foram evacuados: -los invisíveis e dispersá-los o squat Fort Galloo aberto pelos quatro cantos da região parisiense para em Julho de 2014 no seguimento de uma manievitar que eles e elas se reagrupem e se orgafestação e o acampamento (chamado jungle penizem colectivamente, a fim de obterem o que los migrantes) do Leader Price. Aqueles e aquelas querem: documentos, alojamentos e a liberdade que aí viviam foram assim obrigados a irem para de circulação e de instalação. o bidonville do Estado, situado na periferia da ciNos centros onde várias centenas de migrandade, ao lado do centro de alojamento Jules Fertes são alojados por algumas semanas à medida ry, longe dos pontos de acesso à fronteira para a das expulsões, as condições de vida impostas Inglaterra. Nesta jungle, único lugar onde os mi(horários restritos, refeições impostas, interdigrantes são autorizados a dormir, 3.000 pessoas ção de visitas, inexistência de documentos de sobrevivem em condições muito difíceis. Em Calais, ponto de passagem para numerosas pessoas viagem ) são más e os trâmites administrativos migrantes, estas devem enfrentar as rusgas e a não avançam. Perante esta situação, várias acviolência policial, mas também os ataques fasções de ocupação e de greve de fome foram feicistas, cada vez mais violentos e habituais. tas por aqueles e aquelas que aí estão alojados. Mas, como em Ventimiglia, em Paris e noutros Mas estes centros de acolhimento continuam lados na Europa, migrantes e pessoas solidárias a ser, para o Estado e as associações que os geresistem, tecem laços de solidariedade quotidiarem (Emmaüs, Aurore ), lugares de controlo e de na, tomam a rua e os migrantes auto-organizamtriagem dos que pedem asilo. -se para passarem para Inglaterra, apesar de uma A 25 de Julho, respondendo ao apelo de Venfronteira e uma repressão cada vez mais mortífetimiglia para um fim-de-semana de resistência ra (11 mortos entre Junho e Agosto de 2015). contra as fronteiras, uma manifestação reuniu Durante todo o Verão, tentativas auto-organimais de 150 pessoas. No caminho de retorno ao zadas de subir colectivamente para os camiões acampamento Pajol, os manifestantes fizeram e as navettes do Eurotunel foram violentamente escala na Gare du Nord e, aquando da chegada reprimidas pelos bófias. Grupos de centenas de do Eurostar, desenrolaram uma bandeira aos migrantes passam o arame farpado, param os cagritos de «No border, no nation, stop deportamiões e tentam introduzir-se dentro. Os golpes de tion». Na gare, rebentaram aplausos. matraca e de gás lacrimogéneo chovem e numeA 31 de Julho, na sequência da décima expulrosos migrantes são feridos ou presos. Estas tensão que os migrantes e as pessoas solidárias titativas de passagem, em que alguns conseguem, veram de enfrentar, foi ocupado no 19ème um vão ser utilizadas pelas autoridades para pedirem antigo liceu abandonado e transformado em reforços policiais. Nos média, dos dois lados da Casa dos Refugiados. Mancha, o número de pessoas que tenta entrar Em todos estes ligares ocupados, e apesar das no túnel vai ser voluntariamente exagerado. dificuldades colocadas pelo cerco policial e huUma reunião cimeira, entre ministros britânimanitário, outras práticas tentam surgir: entreacos e franceses, conclui-se com novos acordos juda, em vez de caridade, auto-organização, em

Contra as fronteiras, solidariedade activa com os migrantes! A distinção operada pelo poder, por alguns intelectuais e pelos média entre, de um lado, refugiados políticos, e, do outro, migrantes económicos, é mais uma das inúmeras operações de triagem entre «bons refugiados que poderemos acolher» e «maus migrantes económicos que é preciso expulsar». Para nós, não existe boa política migratória porque o problema é mesmo a existência de fronteiras, utensílio mortífero de controlo e de gestão das populações pelos Estados. Não existe comunidade nacional nem inimigo exterior a combater. Os nossos inimigos são os que pilham em África e na Ásia, os que desencadeiam guerras coloniais e vendem armas aos que melhor pagam, os que militarizam o território, os que pregam o racismo e o ódio ao outro, os que decidem que um pedaço de papel determina quem nós somos e onde podemos ou não ir. Os nossos inimigos são os que nos exploram e nos oprimem, os que entravam a nossa liberdade. Nestes últimos meses, as resistências às fronteiras foram numerosas e fortes. Podemos apoderarmo-nos desta energia e dar-lhe amplitude para a transformar num movimento de solidariedade e de rebelião contra o sistema de fronteiras. Solidarizar-se e organizar-se com os migrantes, lá onde eles resistem contra a guerra que lhes dão os Estados, é contribuir para enfraquecer as fronteiras que se levantam por todo o caminho dos que não têm os bons papéis para circularem e instalarem-se onde querem. Esta solidariedade é o contrário de caridade. A caridade é uma relação de dominação, onde quem dá tem o poder e quem recebe é relegado para o papel da vítima que só pode receber. Pelo contrário, devemos procurar construir relações de partilha e de igualdade, lutas auto-organizadas para quem as quer viver, sem hierarquia nem paternalismo. Podemos agir em todo o lado à nossa volta, em todo o lado onde se levantam fronteiras, e de múltiplas maneiras: trazendo para a rua discursos diferentes dos do poder e dos humanitários, através de panfletos, cartazes, ajuntamentos e manifestações, etc.; contribuindo concretamente à passagem de fronteiras; trocando conselhos e informações práticas para recuperar comida como para partir para outra cidade; partilhando conhecimentos jurídicos, conselhos e técnicas sobre os controlos e as prisões; organizando-se no seu bairro para agir contra as rusgas; etc. Documentos de identidade nos centros de retenção, rusgas nos balcões dos governos civis, abaixo todas as fronteiras! A vida das pessoas não deve depender de pedaços de papel! [Nas páginas 20 e 21 apresentamos um mapa cronológico de diversas notícias aparecidas entre Agosto e Setembro de lutas contra as fronteiras.] SITES DE INFORMAÇÃO SOBRE LUTAS NA EUROPA EM DIVERSAS LINGUAS : Sans Papiers ni Frontières http:// sanspapiersnifrontieres.noblogs.org Marseille Infos Autonomes http://mars-infos.org/+migrations-sans-papiers-+ Presidio No Border Vintimille http://noborders20miglia. noblogs.org Paris Luttes infos https://paris-luttes.info/+-refugie-esde-la-chapelle-+ Calais Migrant Solidarity https://calaismigrantsolidarity. wordpress.com Hurriya (Itália) http://hurriya.noblogs.org Clandestina (Grécia) https://clandestinenglish. wordpress.com Infokiosques.net https://infokiosques.net/immigrations


O QUE SE PASSA NO MAR EGEU?

olhar a brutalidade da Europa a partir das ilhas gregas. MARIA LUZ / MIGUEL CARMO / MANUEL BÍVAR

ainda que têm proposto cortes na dotação orçamental da UE2016 para a operação FRONTEX, de controlo das fronteiras externas da UE com “cao dia 19 de Agosto viajámos da ilha de riz policial e repressivo.” Fomos pesquisar. A 22 Icária para Atenas. O barco que tomáde Junho foi anunciada pelos serviços do Consemos partiu das ilhas norte do mar Egeu, lho Europeu a criação da EUNAVFOR MED1: “O parou na ilha de Samos, e de seguida em Icária. Quando entrámos no barco Conselho lançou hoje a operação naval da UE percebemos que centenas de refugiacontra passadores e traficantes de seres humados sírios e iraquianos ali estavam a caminho de nos no Mediterrâneo. A sua missão é identificar, Atenas. Falámos com alguns jovens sírios, dois capturar e destruir navios e bens utilizados, ou deles fluentes em inglês. Os relatos das travessias sob suspeita de serem utilizados por passadores da costa turca para as ilhas gregas são assustaou traficantes de migrantes.” Logo de seguida, dores. As pessoas com quem falámos pagaram o texto cita a Alta Representante para os Negó1000 dólares pela travessia da costa turca para a cios Estrangeiros e Política de Segurança, Fedeilha de Samos – um estreito de 5 Km – num bote rica Mogherini: “A UE nunca levou tão a sério atulhado com 40 pessoas. Vários fizeram várias como agora a questão das migrações. Com esta tentativas. Ahmet contou-nos que nas suas duas operação, estamos a atacar o modelo de negóprimeiras viagens foram intercetados por um cio daqueles que beneficiam da miséria dos mibarco de guerra não identificado (referido por grantes.” Temos assim as instituições europeias eles como “comandos”), que foram atacados por e seus altos representantes a determinar que os militares com máscara e que falavam alemão, e problemas de imigração se resolvem atacando que lhes furaram o motor e o casco do bote deios passadores e as máfias de transporte, numa xando-os ao largo e à morte. Foram resgatados as fantástica inversão: não são os milhões de refuduas vezes pela polícia turca. Dizia também que giados e migrantes e as fronteiras fechadas que são comuns os roubos, que esses mesmos miligeram economias de passagem, mas são estes tares sacam com desfaçatez os telemóveis, iphointeresses que geram a oportunidade de salto2. nes, e maços de dólares a quem vai nos botes. Não foi com inversões deste calibre que os racisNo porto de Icária, conhecemos um profesmos europeus discursaram durante um século, sor universitário turco nomeadamente o nazi? que dá aulas em Ancara. Na torrente de reportaContou-nos que visitou OS RELATOS DAS TRAVESSIAS gens que acompanham a seus pais em Bodrum, crise dos refugiados, ouDA COSTA TURCA PARA na costa mediterrânica. vimos que os pagamentos Que do alto da colina AS ILHAS GREGAS SÃO para entrada ilegal na Euonde seus pais têm casa ropa desceram a pique nos e donde se avista o porto ASSUSTADORES. AS PESSOAS dias em que a Alemanha e o mar, são correntes os COM QUEM FALÁMOS manteve as fronteiras aberbandos abundantes de tas. A segunda interrogaaves marinhas fazendo PAGARAM 1000 DÓLARES ção que salta à vista é como círculos em alto mar. Em pensa a EU atacar as redes Bodrum todos sabem o PELA TRAVESSIA DA COSTA de transportes sem atacar que as aves comportan- TURCA PARA A ILHA DE migrantes. O observatório do-se assim significam – Statewach3 disponibiliza mais o afundamento de SAMOS – UM ESTREITO DE 5 um dossier imenso em perum bote. Os tais botes de manente atualização sobre KM – NUM BOTE ATULHADO 40 pessoas, 1000 dólares a “EU refugee crisis”, onde a cabeça. Mulheres com COM 40 PESSOAS revela um documento da miúdos ao colo. Tudo Comissão Europeia, no qual mar adentro a chorar e até sempre. Viva a Eurose admite «o alto risco de danos colaterais inpa! cluindo a perda de vidas» de uma operação que Nesse dia 19 tomámos contacto com uma contará com «amplos meios marítimos, de terra realidade que começava a ser noticiada intene ar», incluindo unidades de forças especiais. samente nos telejornais e imprensa. Pudemos Inês Zuber relata que, numa visita aos centros assistir na semana seguinte, já em Lisboa, ao de acolhimento de Pozzallo e Lampedusa (Itália) avanço dia a dia entre fronteiras que nos tinha onde falou com pessoas detidas, bem como com sido descrito com pormenor pelos sírios: Porto organizações de apoio aos migrantes, foi-lhe dito de Pireu, norte da Grécia, Macedónia, Sérvia, que muitas vezes os barcos que transportam os Hungria, Áustria e Alemanha. Alguns deles quemigrantes não levam qualquer traficante, uma riam seguir para a Bélgica. Duas semanas depois, vez que são os próprios migrantes obrigados a a foto de uma criança afogada a levar com ondas pilotar os barcos. E, ainda, que em várias situano areal e de seguida a ser recolhida pela polícia ções, migrantes e refugiados, muitas vezes perseturca espanta o mundo. Era na costa de Bodrum guidos políticos, são submetidos, de forma abude que nos falava o professor de Ancara. O que siva, a constantes interrogatórios4/5. No passado surpreende na produção de notícia é não existir dia 14 de Setembro, a EUNAVFOR MED entrou qualquer interrogação sobre as causas materiais na sua segunda fase que possibilita que “a operade tantos naufrágios num mar que, nesta altura ção naval da UE contra os passadores e traficando ano, é um espelho de água, sem ondas e ventes de seres humanos no Mediterrâneo proceda to. Entre Bodrum e Kos, para onde se dirigia o à subida a bordo, busca, confisco e desvio em barco, não há sequer 5 Km de mar. alto mar de navios suspeitos de serem utilizaCom estes relatos, decidimos interpelar os dedos na introdução clandestina de migrantes.”6 putados portugueses no parlamento europeu do O uso repetido da palavra “suspeitos” nos textos BE e do PCP em busca de mais informação e de oficiais parece evidenciar o carácter meta-legal um eventual pedido de esclarecimento à Comisdestas missões militares. são Europeia. Respondeu-nos pelo PCP, Inês ZuPara abrir o quadro é necessário olhar para a ber, explicando que em Junho passado foi aproAgenda Europeia para a Migração 2015 apresenvada uma operação militar contra as travessias tada em Maio de 2015, onde se prevê, em suma, a do mediterrâneo por migrantes, através de uma multiplicação de fundos para operações militares missão da EUNAVFOR MED, por decisão da Coe policiais, como o programa FRONTEX (onde se missão Europeia e do Conselho Europeu. Refere inclui a operação Tritão), o reforço da coopera-

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ção de instituições policiais, como o Eurojust e a Interpol, com a política de asilo da UE, de forma a facilitar a identificação de migrantes e os processos de repatriamento, e o prosseguimento de uma política de seleção de força de trabalho qualificada de acordo com as necessidades das empresas da UE. Em nenhum lugar se concebe ali a criação de canais seguros para acolhimento de pessoas que se dirijam à Europa em condições precárias e procurem, por exemplo, agrupamento familiar. A UE considera, enquanto tranquila banalidade, que o movimento de pessoas através das fronteiras do espaço Schengen é uma questão policial, de solução repressiva, e uma questão de mercado. Bastará escutar as declarações “chocadas” do Alto Comissário para os Refugiados da ONU para acedermos rapidamente ao essencial da política europeia para a migração. Voltemos às ilhas gregas. Que pensar do relato de “comandos” de cara tapada a atacar botes cheios de pessoas, deixando-as à deriva e à morte, e que falam alemão? Quem é esta gente? A plataforma Watch the Med, a trabalhar desde 2012, tem monitorizado e mapeado on line as mortes e violações dos direitos dos emigrantes nas fronteiras marítimas da UE no mediterrâneo. O seu objetivo é documentar a violência no mar “enquanto resultado estrutural da militarização da fronteira sul europeia”7. Têm como atividade principal um centro de informação que recolhe, a partir de um número de telefone, pedidos de auxílio no mar, seja naufrágio, ataques ou desvio ilegais para o país de partida (pushbacks). Esta organização identificou cerca de 20 situações semelhantes à que nos foi relatada pelos Sírios e na mesma área (ilhas gregas-Turquia)8/9. O modus operandi é o mesmo: unidades especiais armadas e de cara tapada; danificação do motor e perfuração do casco; abandono das pessoas à deriva. A informação recolhida aponta para ações da guarda costeira grega, em colaboração com elementos e embarcações do FRONTEX. Pelo que podemos ler, estas práticas são usuais na fronteira marítima entre a Grécia e Turquia, abrandaram a partir de Janeiro de 2015 com a eleição do governo Syriza, e estão a recrudescer desde Julho passado. É necessário notar que no geral os refugiados estão ser a bem recebidos na Grécia, já foram fretados vários ferries para o transporte massivo para Atenas e os Sírios que conhecemos traziam um salvo-conduto de dois meses para atravessar o país. Em Samos conhecemos duas irmãs jovens de uma família que resistiu com armas à ocupação nazi da ilha. Perguntámos a Izmin como estava a situação dos refugiados em Lesbos, onde vive. Contou-nos que todos os dias várias centenas desembarcam na ilha e que a ideia mais forte que lhe ocorre é que eles, os gregos, poderão ser os próximos a meter-se em botes a caminho de algum lugar. O mediterrâneo já foi um território, diz Fernand Braudel, agora é atravessado por uma fronteira que o corta de nascente a poente e que, contra todos os esforços da UE para a fixar no meio do mar, parece estar a deslocar-se para latitudes mais a norte: os migrantes querem chegar à Alemanha e ao norte e estão pouco interessados nos países do sul da Europa empobrecidos sob austeridade. Essa fronteira da morte exangue e invisível no meio do mar, que dispensa arame farpado e tropa de choque, chegou a terra e está a fixar-se na Europa central. “Como habitualmente, o traçar de fronteiras será mais difícil para o historiador que para o geógrafo. «Europa é uma noção confusa», escreveu já Henri Hauser. É um mundo duplo, se não mesmo triplo, formado por seres e espaços diversamente trabalhados pela história. E o Mediterrâneo, que influencia fortemente o Sul do continente, contrariou bastante a unidade da Europa, que procurou atrair para a sua esfera de influência, provocando movimentos de diversão que lhe fossem favoráveis.”10 Contra uma Europa brutal, um mar território. /// NOTAS: 1 comunicado do Conselho Europeu: http://goo.gl/7LkRWR 2 Sobre a equiparação entre passadores de migrantes e tráfico huma­no: http://goo.gl/l1e1cT 3 Statewatch: http://goo.gl/65RJwu 4 Jornal Avante: http://goo.gl/IQGEba 5 Parlamento Europeu: http://goo.gl/0iHm9g 6 http://goo.gl/tPnGaj 7 Acerca de Watch the Med: http://goo.gl/gMCAFE 8 Watch the Med: http://goo.gl/wif0Ci 9 Watch the Med: http://goo.gl/XPlWYq 10 Fernand Braudel, O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrâneo, vol. I, Dom Quixote, 1995 [1979], pp. 213.

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DETENÇÃO NOS CIE E REVOLTA ANDREA STAID

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os últimos 8 anos, para além do meu ativismo libertário, tentei aprofundar através de um trabalho etnográfico, as viagens dos migrantes, ou seja, a dura experiência que leva milhares de pessoas à fortaleza europeia em direção ao Ocidente, em busca de trabalho ou de uma nova vida. Ao chegar a Itália, com um pouco de sorte, conseguem fugir, evitando a detenção por parte da polícia. Mas nos tempos que correm, com o reforçar da guarda costeira, isso é praticamente impossível. O protocolo a seguir será então o do primeiro-socorro, realizado ainda em mar, pois são poucos os que conseguem chegar directamente às praias. Seguidamente serão identificados e registados através das impressões digitais, enviados para um dos centros de primeiro acolhimento e, consequentemente, para um dos CIE presentes na Península. Isso tudo por serem considerados clandestinos, seres humanos ilegais e portanto, fechados em Centros de Identificação e Expulsão. A política de imigração italiana concretiza-se numa série de centros predispostos a um falso acolhimento e na detenção dos migrantes até à decisão sobre um destino definitivo. Os centros distinguem-se entre eles segundo o seu próprio objetivo. Existem principalmente três tipologias: CDA: Centros De Acolhimento; CARA: Centros de Acolhimento aos Requerentes de Asilo; CIE: Centros de Identificação e Expulsão; São os CIE a representar o famoso “punho de ferro” exigido pelo governo. São os antigos CPT (Centros de Permanência Temporária), inventados pelo governo de esquerda através da famo-

no hospital ou na prisão, acusados de agressão aos serviços de ordem. ‘’Depois de tudo o que tinha feito para chegar a Itália, não me podia render na prisão, por isso encontrei a força de fugir e arriscar. No fundo, o que eu tinha a perder? Talvez fosse melhor encontrar-me no deserto e morrer à fome e à sede’’ (S. Mali) Para viver com dignidade na sociedade capitalista, uma mulher ou um homem precisa de um trabalho e de uma perspectiva de vida. Para o fazer precisa de ser livre de se mover e procurar o seu lugar no mundo. Liberdade e dignidade, essa e triste lei Turco-Napolitano, que instituiu os sas nas quais os migrantes acreditam até ao fim, campos de concentração do novo milénio. até ao ponto de comprometerem as suas vidas Apesar do destino de quem chega aos CIE pono mar e nas quais continuam a acreditar quander, por si, parecer bastante mau, é importante do se decidem revoltar contra a máquina das exrelembrar o destino bem pior de muitas outras pulsões, queimando e destruindo as estruturas pessoas. Falo de todos aqueles homens, mulhedos CIE ou então destruindo o próprio corpo, res e crianças que nem a terra chegam a pisar. cortando as veias, engolindo vidros e pedaços São os ‘’invisíveis”, que desaparecem debaixo de ferro, para acabar no hospital e evitar serem de uma cruel superfície marítima que os acolhe repatriados. para nunca mais soltá-los. O número de mortos é Os políticos condenam a ‘’violência’’ física enorme e levou muitos investigadores a falar do usada pelos detidos contra as forças de ordem e mediterrâneo como um verdadeiro cemitério ao ar livre. No interior dos CIE, as greves de fome, contra as estruturas prisionais dos CIE e temos os atos de autoflagelo, os incêndios, as evasões e que a comparar à violência institucional de toda as verdadeiras revoltas são bastante frequentes. a máquina de expulsões. A violência dos acordos Depois das longas viagens e das grandes exentre governos que deixam morrer no deserto, pectativas, estas pessoas não nas prisões e no mar centenas conseguem aceitar o facto de de pessoas e que acha normal estarem atrás de grades. Não (...) PORQUE, PARA fechar numa cela, durante um se querem render à impossibiano e meio, rapazes e rapaQUEM É ITALIANO, lidade de que seja reconhecido rigas culpados de não terem o seu direito a viajar e encon- ESPANHOL OU ALEMÃO documentos. Culpados de tetrar um trabalho para melhorem nascido no lado errado do rar as suas vidas, pelo menos BASTA APANHAR mundo. de um ponto de vista econóPorque, para quem é italiaUM AVIÃO LOW mico. Por isso decidem reconno, espanhol ou alemão, basquistar os seus direitos com COST E EM POUCAS ta apanhar um avião low cost a única arma de que ainda e em poucas horas se chega dispõem: os próprios corpos. HORAS SE CHEGA confortavelmente a Tanger ou Os mesmos corpos que foram CONFORTAVELMENTE A Tunis. Mas assim não é se foexpostos às balas da polícia do res tunisino ou marroquino. regime do qual estão a fugir, às TÂNGER OU TUNIS Não vivemos num mundo de cacetadas vindas dos militadireitos iguais mas sim num res que os roubavam no deserto ou às torturas mundo globalizado, onde mobilidade é poder. E nas prisões Líbias. São os corpos de jovens, musó os cidadãos dos Estados mais ricos têm plelheres e homens que atravessaram o mar e com no acesso a ela. Quem tem o passaporte errado os quais agora tentam atravessar as gaiolas nas não pode viajar pelo mundo, a menos que decida quais foram fechados, com o risco de acabarem revoltar-se contra as fronteiras e ganhar coragem


para encarar a viagem com destino à Europa. Temos que pensar profundamente sobre quão absurdas são as fronteiras e apoiar a liberdade de movimento para todos, até ao dia em que se poderá circular livremente entre as duas margens do mediterrâneo. Em Itália, foram muitas as revoltas contra os CIE, nos últimos anos. Os protestos invadiram todos os centros, em particular entre os meses de agosto e setembro de 2011, quando o governo italiano aprovou a lei que aumentou de 6 a 18 meses o limite de detenção. Se nos basearmos apenas nas notícias recolhidas pela Fortress Europe, o número de evadidos em 2011 é pelo menos de 580 pessoas. Um número sem precedentes, ao qual terá que se acrescentar dezenas de feridos e detidos. Acerca dos danos causados nas estruturas de detenção durante as revoltas, não existem estimativas oficiais, mas é fácil imaginar que estejam na ordem de milhões de euros, considerando que inteiras secções foram destruídas e queimadas durante as revoltas de Torino, Roma, Milano, Gradisca, Brindisi, Bologna. Isto sem contar que um pavilhão inteiro do centro de acolhimento de Lampedusa foi inteiramente destruído pelas chamas. Do CIE de Roma conseguiram sair 191 detidos durante os meses de Agosto e Setembro. Do CIE de Brindisi fugiram 140, em Trapani 79, entre o CIE de Milo e Vulpetta, Torino 59, Modena 35, Bologna 20 e Cagliari 2. 54 Tunisinos conseguiram fugir do hangar do porto de Pozzallo, em Ragusa, lugar de detenção ilegal. Mesmo sendo muitos, 580 evadidos parece pouco se compararmos com os números da máquina de expulsões. Considerando o total de 3.600 cidadãos tunisinos repatriados em 2011, cada ano uma média de 11.000 pessoas transitam pelos CIE e destes, 4.500 são efectivamente repatriados à força. A absurdidade dos repatriamentos é o resultado das políticas de segurança da Europa Fortaleza, culpada por milhares de mortos no mar mediterrâneo. Não podemos esperar por soluções vindas de políticos de profissão. As soluções podemos e devemos encontrá-las em conjunto com quem se evade e se revolta contra as fronteiras impostas pelos Estados. Porque somos todos humanos para além das aparências étnicas e as fronteiras são uma absurda ilusão capitalista.

EVASÃO DE NATAL DO CIE DE TORINO No centro, cada dia é um caos com a bófia. Como se costuma dizer, nós atiramos-lhes de tudo, da massa até à fruta. Ficamos sem comê-la alguns dias, escondemo-la, deixamo-la bem apodrecer e depois atiramos-lhes à cara, contra os bófias, os militares e todos os guardas. Desde que saí e que fugi sinto-me muito bem, estou demasiado feliz. É diferente sair assim, não porque acabou o tempo máximo, mas porque és tu que decides fugir. Organizas-te com os teus companheiros e sais. É a segunda vez que queimamos as fronteiras. Aliás, para mim é a terceira. Fugir do CIE é uma escolha, que tem que ser bem feita porque não é fácil. Por isso nós fugimos no Natal. Escolhemos um bom momento e sabíamos que no dia de natal os guardas estão todos bêbedos e por isso há menos controlo, menos segurança…e conseguimos. Saímos na hora exata em que tínhamos decidido. Calculámos tudo, preparámos tudo com calma e precisão. Organizámos tudo durante a noite, falávamos numa das secções de quartos e tentávamos de considerar tudo e ali percebemos que o momento melhor iria ser o Natal. Espontaneamente falamos uns com os outros todos os dias mas aqui tratava-se de organizar a fuga. Então era preciso concentração. Dentro do centro nunca nos aborrecemos. Trabalhamos o dia todo ou pelo menos fazemos trabalhar os polícias. Não os deixamos dormir e fazemos com que façam o trabalho deles, ou seja, levar com coisas em cima. Depois, durante a noite trabalhava-se para a fuga. Foi uma semana de preparativos e depois no Natal BUM. Saímos. Nos não tomamos aquelas merdas que nos dão, sabemos que as terapias deles te adormecem e não te deixam fazer nada. Dentro do centro existem também os cabrões, os que falam com os polícias e vivem em isolamento. Quando apanhámos um desses, sem o aleijar, cuspimos-lhe na cara e expulsámo-lo do quarto com o colchão dele. Eu passei um mês e meio lá dentro. As revoltas foram muitas, mas esta de Natal permitiu a muitos fugir e não foi um acaso mas sim a preparação da fuga que nos premiou. Depois havia

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muito poucos polícias, uma dezena no máximo e nós eramos muitos. Então eles não avançaram. Fizemos um bom trabalho e por isso correu bem. Os polícias estavam todos bêbados por terem feito festa e nós abrimos as portas todas dos quartos e saímos em grande número. Por isso eles fugiram e não podiam fazer nada. Os primeiros que saíram abriram aos outros, nós não conseguimos abrir as portas das mulheres, queríamos deixá-las passar primeiro mas não conseguimos. As mulheres insultavam os polícias como nós e estavam felizes por nós, mesmo que não conseguissem fugir. Naquela noite tínhamos calculado tudo. Uma só área sai e abre a de todos os outros. Um de nós até pegou no extintor e lavou um polícia como eles faziam sempre connosco. A polícia fugiu, eramos demasiados e deviam esperar os reforços. Demoraram pelo menos 30 minutos para se organizarem. Todos os homens participaram na evasão e estamos a falar de cerca de 100 pessoas. Agora, dos que fugiram estão lá fora 46 mas os outros foram apanhados. Alguns rapazes voltaram sozinhos porque tinham medo, têm filhos lá fora, as mulheres, os documentos para arranjarem. Depois havia quem, no início, não queria fugir e depois quando viu os outros sentiu o cheiro da liberdade. Sabes, a liberdade tem um cheiro demasiado forte, muito bom, e então juntaram-se a nós e fugiram. Lá fora havia Italianos que ajudavam os polícias e outros que nos ajudaram a nós e diziam-nos onde nos podiam esconder. Não temos medo porque eles é que têm medo, somos mais que eles e devem sempre esperar os reforços. Se preparamos bem as revoltas, têm medo da nossa determinação. Depois os jornais dizem sempre o que quiserem. Para a nossa evasão nenhum polícia foi ferido. Nenhum. Também porque fugiram logo e nem houve o tempo para o confronto. Mas os que foram apanhados pelos guardas foram espancados e metidos em isolamento ou pior ainda repatriados diretamente. 1 Entrevista com três fugitivos em 25 de dezembro para a rádio Blackout de Turim, transcritas por mim com alguma simplificação linguística menor.

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EM ITÁLIA, FORAM MUITAS AS REVOLTAS CONTRA OS CIE, NOS ÚLTIMOS ANOS. OS PROTESTOS INVADIRAM TODOS OS CENTROS, EM PARTICULAR ENTRE OS MESES DE AGOSTO E SETEMBRO DE 2011, QUANDO O GOVERNO ITALIANO APROVOU A LEI QUE AUMENTOU DE 6 A 18 MESES O LIMITE DE DETENÇÃO.


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A GUERRA NA SÍRIA: AS SUAS RAZÕES E QUEM A ALIMENTA GUILHOTINA.INFO @GUILHOTINAINFO

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uando a vaga de levantamentos populares que ficou conhecida como a Primavera Árabe varreu o Médio Oriente, a partir de 2010, a Síria foi um dos países afectados. Movimentos populares exigiram reformas do governo dictatorial de Bassar Al-Ashad, mas desde o primeiro momento a situação não foi simples, pois também houve grandes manifestações de massas a favor do governo. Legitimizado por estas manifestações de apoio, seguiram-se então brutais repressões por parte do regime, incluindo famosamente o “desaparecimento” de grupos de jovens que grafitavam slogans anti-regime. A resistência armada surgiu rapidamente (ao contrário de algumas narrativas nos media, que insistiam que o movimento contra o governo foi pacífico até bastante tarde), com contra-ataques contra forças militares e policiais por vários grupos armados. Este foi talvez o ponto alto do que viria a ser conhecido pelo FSA, Free Syrian Army ou Exército Livre Sírio, grupos de resistência locais vagamente afiliados entre si. A sua natureza fragmentada, incapacidade de lutar coordenadamente fora das suas bases de poder e ideias díspares viriam a expor a sua incapacidade de levar a cabo uma luta consequente, com os anos que se seguiram a ver diferentes facções do FSA a serem absorvidas por grupos jihadis, curdos ou pró-governo, como estratégia de sobrevivência.

Oriente pelos partidos nacionalistas árabes Baathistas, deixou os alauitas em boa posição para assumir controlo do Estado. Apesar da natureza sectária do governo, a República Árabe Síria era um Estado secular, onde conviviam diversas denominações, incluindo cristãos e judeus. A maioria da população é muçulmana sunita (72-74%) mas existem outros factores importantes a considerar em relação a este bloco: alguns são árabes, outros curdos, etc. Daí que existam não apenas alauitas a lutar pelo governo, mas também sunitas, supostamente a base de apoio dos jihadis. Excepto que um jihadi irá provavelmente ver um curdo sunita primeiro como curdo e só depois (talvez) como sunita. Tendo em conta que se o curdo perder a batalha semântica que se seguirá ao encontro, acabará massacrado, há De notar que os Estados Unidos continuam a famuitos curdos que preferem lutar do lado do golar no FSA como uma força “moderada” coesa, a verno, sunitas ou não. Este é apenas um exemplo quem devem ser entregues armas e mantimende como as questões étnicas na região não são tos, como forma de obscurecer a realidade de preto no branco. De facto, a selvajaria jihadi tem estarem a entregar tais armas e mantimentos a sido tal, que várias forças inicialmente adverságrupos jihadis anti-governo tais como o Jabhat rias de Assad se passaram para o lado do governo. al-Nusra e o Ahrar al-Sham. São estas raízes sectárias e a falta de prepaPara perceber a natureza sectária do conflito ração dos revoltosos iniciais, que levou a que o na Síria é preciso perceber algumas questões soconflito rapidamente degenerasse numa guerra bre o país. O actual governo Sírio é o resultado civil, sem qualquer saída progressista, e cheia de de políticas coloniais francesas que, tal como massacres contra civis só poroutras potências coloniais, que pertencem a determinausaram uma política de divi- O ACTUAL GOVERNO do grupo demográfico. Para dir para conquistar contra os dentro deste caldo de velhas locais, fomentando grupos SÍRIO É O RESULTADO DE disputas mal resolvidas, enminoritários para servirem tram forças externas que amde caciques contra a maioria. POLÍTICAS COLONIAIS pliam a dimensão do conflito Isto significa que os grupos FRANCESAS QUE, TAL e o mantêm com injecções de minoritários, para manterem os seus privilégios contra a COMO OUTRAS POTÊNCIAS armas, soldados e dinheiro. maioria, necessitavam de Do lado do governo, o Irão, a COLONIAIS, USARAM manter a lealdade ao coloniRússia e o Hezbollah prestam zador. UMA POLÍTICA DE DIVIDIR o seu apoio. Do lado das forComo parte destas tácticas ças jihadis, que rapidamente divisionistas, os alauitas (gru- PARA CONQUISTAR se tornaram o elemento dopo dentro do Islão xiita) fominante da oposição, estão CONTRA OS LOCAIS, ram incentivados a juntar-se os EUA, NATO, Israel, Turquia e formar o grupo dominan- FOMENTANDO GRUPOS e os Estados do Golfo Pérsite dentro do exército, o que co (encabeçados pela Arábia mais tarde, após os conflitos MINORITÁRIOS PARA Saudita). derivados da conquista da in- SERVIREM DE CACIQUES Os Estados Unidos têm a Sídependência e a estabilização ria na mira porque é um dos do cenário político no Médio CONTRA A MAIORIA estados locais que não se sub-


tos e decapitações. juga completamente ao poder do império ameriO wahhabismo serve funções externas e intercano e opera em aliança com o Irão contra a innas à Arábia Saudita. Internamente, para além fluência dos seus caciques locais (Estados do Golfo de ferramenta de controlo social, funciona como e Israel). Tudo isto faz parte do projecto originário uma espécie de Bula Papal, versão monarquia do dos elementos neoconservadores do aparelho de petróleo. A família real e os seus príncipes poestado Norte-Americano, que vivem obcecados dem esconder os seus excessos, comprando os em conter, isolar e destruir o Irão, a principal poclérigos com avultados donativos para as suas tência regional que se opõe à influência dos EUA. Reservado para Síria está o mesmo destino do Iramissões, que irão assim disseminar boa publique e da Líbia: subjugação ou destruição. Como cidade sobre os visados. “Sim, talvez o príncipe parte do apoio às forças de oposição ao governo seja um sodomita, mas vejam este dinheiro todo Sírio, não têm faltado entregas de armas às forças que doou às madraças indonésias! É claramente fundamentalistas e bombardeamentos, supostaum bom muçulmano.” Externamente, o wahhamente em apoio aos curdos em combate com o bismo torna-se uma ferramenta de poder diploISIS, mas que muitas vezes miram as forças prómático. Tal como a União Europeia usa acordos -governo. O orçamento de comércio e os Estados da CIA dedicado a operaas suas forças miliQUANTO À SÍRIA EM SI, É HOJE Unidos ções especiais na Síria é tares, a Arábia Saudita usa de mil milhões de dólares UM PAÍS COMPLETAMENTE a religião para aumentar a anuais, que compraram o sua influência. treino e equipamento de DEVASTADO, COM CIDADES São os pais da Al-Qaemais de 10.000 comba- REDUZIDAS A PÓ, CUJA da, da Al-Nusra, do ISIS tentes anti-Assad. e de toda essa escumalha Nos seus objectivos ex- PRODUÇÃO DIZIMADA É sanguinária. Não receplícitos, estes esforços de bem refugiados porque treinar e armar a oposição INCAPAZ DE SUSTENTAR OS sentem que já têm escra“moderada” são um com- SEUS HABITANTES, ONDE PELO vos suficientes e porque pleto fracasso. Quando as estes poderiam destabitropas assim criadas são MENOS 3% DA POPULAÇÃO lizar a sua sociedade cuienviadas para o terreno, dadosamente gerida, mas MORREU OU FOI FERIDA NO ou viram bandidos ou também porque foram imediatamente passam CONFLITO, ONDE METADE as monarquias do Golfo para o lado dos jihadis, que em primeiro lugar como aconteceu recen- DOS HABITANTES VIVE exportaram assassinos temente com 30 “modefundamentalistas para a EM POBREZA EXTREMA, A rados” acabadinhos de Síria - é óbvio que se estão treinar pelos EUA. Mas MAIORIA DAS CRIANÇAS JÁ borrifando para o destino isto já é sabido há imendos sírios. De facto, tiveso tempo. Os EUA não NÃO VAI À ESCOLA E 45% DOS ram uma resposta à criquerem realmente saber SEUS HOSPITAIS PÚBLICOS se que é uma boa síntese quem está a lutar contra das suas prioridades: não o governo sírio, desde que ESTÃO FECHADOS receberam sírios mas ofelutem, tal como não os inreceram-se para construir comodou criar os talibãs e tantas outras forças 200 mesquitas na Alemanha, para onde os sírios reaccionárias pelo mundo fora. Os objectivos estão a fugir. reais estão a ser cumpridos. Para o espectador Se existe um vilão indiscutível no Médio atento do conflito, há contornos hilariantes na Oriente, são as monarquias do Golfo. É o coração forma como agora protestam contra os bombarnegro de onde emana a versão do Islão “burkas e deamentos russos dos seus jihadis “moderados”. decapitações”. Até o próprio termo “moderados” é absurdo Quanto à Turquia e Israel, são duas potências quando aplicado à realidade da região. Foi escoregionais que, como os EUA, secretamente adolhido por motivos de marketing às sensibilidades ram o ISIS porque lhes dão cobertura para avanocidentais, como se dentro de cada combatente çarem as suas agendas. Do lado da Turquia, onde sírio estivesse um democrata que anseia a demoexiste uma virulenta corrente nacionalista, a luta cracia representativa e franchises do McDonalds. contra o ISIS foi a cobertura de fumo perfeito A verdade é que enquanto o petróleo e a ripara bombardear os curdos independentistas queza mineral do Médio Oriente e de África não que… têm lutado contra o ISIS. Já antes disso esforem propriedade exclusiva dos EUA, estes não tavam a dar apoio médico, logístico e material ao descansarão nas suas campanhas de destruição. ISIS, que combatia contra os curdos. De facto, a Aliados aos EUA na guerra contra a Síria, esTurquia é o local de referência para os jihadistas tão os Estados do Golfo, com a Arábia Saudita vindos de fora (Europa, Tunísia, etc.) que pretenà cabeça, junto com o Qatar e Emirados Árabes dem entrar no conflito, porque sabem que o goUnidos. Os reinos do petróleo vivem ou morrem verno turco lhes estende a passadeira vermelha pelo fluir do petróleo. Este é o garante de manter na fronteira para a Síria (enquanto a fecha aos rea população pacificada para que as monarquias forços e mantimentos curdos). O governo turco, do Golfo e os seus milhares de pequenos prínciliderado pelo inenarrável Tayyip Erdoğan, gostapes vivam à larga com as suas riquezas mal ganria de se ver livre da Síria enquanto nação orgahas. Isto é conseguido por várias vias. nizada, infernizar a vida aos curdos e quem sabe Primeiro, o trabalho é facultativo para a popuficar com um naco do norte do país destroçado. lação nativa, que recebe todo o tipo de transfeDo lado de Israel também têm sido lançados rências às custas do dinheiro do petróleo. Quem ataques aéreos contra tropas do governo Sírio, o trabalha é uma população migrante desesperaque beneficia directamente as forças fundamenda, de países pobres, que sofre condições atrozes talistas na oposição. Contra o ISIS, nada. Novapraticamente indiferenciadas do esclavagismo (é mente, porque a Síria é um dos aliados do Irão, ver o número de mortos e as condições de trabapartilhando Israel a vontade dos EUA de ver o lho nas construções do Mundial do Qatar ou os Irão destruído e ver a Síria estilhaçada e incapaz abusos sistemáticos das trabalhadoras domésde qualquer acção concertada e eficaz. ticas, cujos passaportes são roubados e que são E porque ignoram o ISIS? Não é o ISIS o exérsujeitas a espancamentos e violações). cito mais temível desde o tempo das hordas de Segundo, a Arábia Saudita e companhia têm Gengis Khan, a julgar pelo que dizem as notícias? mais duas exportações para além do petróleo: A verdade é que tanto a Turquia como Israel, amjovens e wahhabismo. As duas coisas trabalham bos com exércitos convencionais competentes em conjunto. Jovens de cabeça quente (e vazia) e bem armados, não têm nada senão desprezo são enchidos de noções religiosas e enviados pelo ISIS, que vêem como um bando de imbecis, para fora do país para combater quem quer carne para canhão que se vai acabar por autoque seja que tenha sido denominado o infiel do -consumir e que seriam facilmente esmagados momento. Se estão lá fora a combater, não esmilitarmente. Mas enquanto durarem, são os tão no interior dos seus países de origem a criar idiotas úteis perfeitos para avançar os seus inteproblemas ao governo. Ao mesmo tempo são resses geopolíticos. vectores para a disseminação do wahhabismo Quanto ao outro lado da barricada, tanto o Irão (também chamado de salafismo), a seita ultracomo a Rússia são ambos países rodeados de ba-fundamentalista do Islão onde tudo é proibido ses militares norte-americanas e sujeitos a bloe tudo o que é proibido dá direito a apedrejaqueios económicos. Apoiar o governo sírio é uma mentos, chicotadas, amputações, enforcamenforma de atirar areia para a engrenagem dos EUA

- e enquanto estes estiverem ocupados e com as atenções viradas para a Síria, menos pressão colocam sobre o Irão e Rússia. O Irão também partilha com os alauitas do governo sírio, o facto de ser maioritariamente muçulmano xiita. A Rússia está igualmente desejosa de conter qualquer ameaça jihadi que possa vir a dar-lhe problemas mais tarde. A Síria está perigosamente próxima da fronteira sul da Rússia entre o Mar Negro e o Mar Cáspio, onde se travou o longo conflito na Tchechénia. Uma vez que muitos combatentes tchechenos estão agora a operar como mercenários na miríade de conflitos no Médio Oriente, a Rússia deve ter considerado que esta é a melhor altura para lhes largar bombas em cima, em vez de esperar que voltem para dentro do seu território e causem novos problemas. Quanto à Síria em si, é hoje um país completamente devastado, com cidades reduzidas a pó, cuja produção dizimada é incapaz de sustentar os seus habitantes, onde pelo menos 3% da população morreu ou foi ferida no conflito, onde metade dos habitantes vive em pobreza extrema, a maioria das crianças já não vai à escola e 45% dos seus hospitais públicos estão fechados. Para muitos, os salários pagos pelo governo ou as operações militares são a única fonte de rendimento, tendo-se desenvolvido uma economia de guerra, alimentada pelas diversas potências, sem as quais a guerra não se teria prolongado até ao dia de hoje. Batem-se num jogo de xadrez, onde as vidas dos sírios são os peões. Perante este pesadelo, milhões de famílias fogem em desespero, procurando salvar os seus da morte e da miséria. Abandonam tudo o que conhecem e possuem, percorrem milhares de quilómetros por terra e mar, sofrem às mãos de todo o tipo de predadores da desgraça alheia e muitos morrem pelo caminho, como o pequeno Aylan e a sua família. E nem por isso está terminado o seu calvário: terão agora que enfrentar os cobardes racistas e xenófobos que preferem espezinhar quem está ainda pior para se sentirem superiores, ao invés de enfrentarem os poderes capitalistas que os acorrentam a uma vida de exploração e que lançam guerras no Médio Oriente. Finalmente, os refugiados terão de enfrentar também o aproveitamento político que deles tentarão fazer os senhores do mundo, cujas histórias sobre armas químicas já não convencem ninguém a ir para a guerra. Desta vez, levantarão o corpo afogado de Aylan sobre as suas cabeças e proclamarão: “O problema dos refugiados de guerra só será resolvido com mais guerra.” /// LINKS:: https://www.nsfwcorp.com/dispatch/syria-fractal/ https://www.nsfwcorp.com/dispatch/war-nerd-syriahome-videos/ https://www.nsfwcorp.com/dispatch/i-heart-syria/ https://www.nsfwcorp.com/dispatch/kerry-s-chemspeech-old-school-empire/ https://www.nsfwcorp.com/dispatch/yup-abu-bakr-smoved-to-syria-like-i-said-he-would/ https://www.nsfwcorp.com/dispatch/syria-how-to-opena-kurdish-front/ https://www.jacobinmag.com/2015/08/turkey-nato-isishdp-kpp-suruc/ https://www.jacobinmag.com/2013/11/syria-therevolution-that-never-was/ https://www.jacobinmag.com/2015/07/assad-free-syrianarmy-united-states/ https://www.jacobinmag.com/2015/08/syria-civil-warnato-military-intervention/ https://pando.com/2013/12/19/the-war-nerd-saudis-syriaand-blowback/ https://pando.com/2014/09/28/the-war-nerd-lets-putislamic-states-menacing-advance-into-perspective-bylooking-at-a-map/ https://pando.com/2014/10/02/the-war-nerd-islamicstate-is-sulking-on-the-edge-of-baghdad/ https://pando.com/2015/02/12/the-war-nerd-islamicstate-and-american-narcissism/ https://pando.com/2015/05/23/the-war-nerd-doing-themath-on-alawite-casualty-numbers/ https://pando.com/2015/07/29/war-nerd-dont-be-fooledits-kurds-turkey-attacking/ https://pando.com/2015/08/21/war-nerd-ok-whorocketed/ https://en.wikipedia.org/wiki/French_Mandate_for_Syria_ and_the_Lebanon#State_of_Alawites https://en.wikipedia.org/wiki/Demographics_of_Syria https://consortiumnews.com/2015/09/28/the-power-offalse-narrative/ https://consortiumnews.com/2015/09/30/obamasludicrous-barrel-bomb-theme/ http://www.ibtimes.com/amid-muslim-refugeecrisis-saudi-arabia-vows-build-200-mosquesgermany-2090905 http://www.ibtimes.com/idlib-airport-seized-al-qaedasyria-affiliate-al-nusra-front-wins-control-last-2088669 http://www.telegraph.co.uk/news/worldnews/ middleeast/syria/11882195/US-trained-Division-30-rebelsbetrayed-US-and-hand-weapons-over-to-al-Qaedasaffiliate-in-Syria.html

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NENHUMA BÓIA PODERIA TER IMPEDIDO O TITANIC DE SE AFUNDAR! UN SINGE EN HIVER

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esde o final do mês de agosto, centenas daqueles a que pudicamente chamamos de «migrantes» ocupam o parque Maximilien, no centro de Bruxelas. Este parque fica em frente da Agência dos Estrangeiros (l’Office des Etrangers), a administração belga encarregue de receber e recusar os pedidos de residência, assim como de encarcerar e de expulsar os requerentes recusados. E esta mesma administração, que se diz incapaz de tratar de tantos casos ao mesmo tempo, deixa os requerentes dormir diante da sua porta. Em tempos «normais» eles são pouco numerosos, e encontram refúgio na vizinha Gare du Nord, mas neste momento são tantos que acampam no meio do parque, à falta de outro alojamento possível. Perante esta situação dramática, o mundo político mantém-se impassível: Yvan Mayeur, o presidente socialista (PS) da Câmara de Bruxelas, fala de evacuar este «caos», e Theo Francken, o ministro do asilo e da imigração, membro do NVA, um partido de direita populista e regionalista flamengo, publicou na internet a seguinte questão : «devemos nós pagar-lhes o hotel?». A única proposta concreta foi a de aumentar o número de lugares nos «centros de detenção» e de abrir a Agência dos Estrangeiros nos fins de semana, para reduzir o tempo de espera. Um edifício público (devo-

“SOMOS IGUAIS PORQUE SOMOS DIFERENTES. CONTRA AS POLÍTICAS MIGRATÓRIAS+ECONÓMICAS JUNTA-TE À LUTA DOS SEM-PAPÉIS

Por detrás deste desastre humanitário, para o qual a única resposta é a urgência, é necessário olhar uma história mais longínqua, feita de múltiplas histórias (ainda a serem escritas). Como outros países europeus, a Bélgica enriqueceu à custa da colonização (no seu caso, do Congo) e, mais tarde, da imigração. Depois da Segunda Guerra Mundial, havia falta de mão-deobra nas minas de carvão e na indústria metalúrgica, necessárias para relançar a economia do país. Por conseguinte, em 1946 o governo assinou uma convenção bilateral com a Itália para facilitar a emigração de trabalhadores e das suas famílias. Concretamente, comboios especiais partiram da estação de Milão directamente para as regiões mineiras, principalmente para a região da Valónia. Dez anos mais tarde, um acidente fatal no qual 262 pessoas morreram (das quais mais de metade eram italianas) acabou com este acordo. Outras luto há alguns anos), no convenções do mesmo género mesmo bairro, foi aberto A VIDA NO PARQUE assinadas com a Espanha para acolhimento, mas ORGANIZA-SE EM TORNO foram em 1956, com a Grécia em 1957, não há camas que bastem com Marrocos e com a Turquia para todos, não dispõe de DUMA «PLATAFORMA em 1964, com a Tunísia em 1969, casas de banho e mane com a Argélia e a Jugoslávia em tém-se fechado durante CÍVICA» QUE RECEBE E 1970. O texto destacado na página o dia. Entretanto, a vida DISTRIBUI AS DOAÇÕES, seguinte (ver imagem) é um panno parque organiza-se fleto publicado pelo Ministério do em torno duma «plata- COORDENA O TRABALHO Trabalho em 1964, convidando forma cívica» que recebe os trabalhadores e famílias dos e distribui as doações, DAS ORGANIZAÇÕES, países mediterrânicos a emigrar coordena o trabalho das DOS VOLUNTÁRIOS E para a Bélgica. organizações, dos volunPorém, com as crises petrolíferas tários e dos «migrantes». DOS «MIGRANTES». dos anos setenta e o início da esOrganiza actividades para ORGANIZA ACTIVIDADES tagnação económica, a lei para a pequenos e graúdos, um imigração de trabalho é revista: espaço médico e uma PARA PEQUENOS E desde então, é necessario um concozinha com refeições trato de trabalho antes de entrar diárias. Para além desta GRAÚDOS, UM ESPAÇO belga. vertente social, também MÉDICO E UMA COZINHA emÉ território interessante notar que estas preparou a manifestação medidas aparecem ao mesmo de dia 27 de setembro, COM REFEIÇÕES DIÁRIAS tempo que as primeiras discrimique juntou mais de 20.000 nações contra os desempregados. É também inpessoas nas ruas de Bruxelas. Esta «plataforma teressante destacar que nesse momento, os tracívica» surgiu de uma situação crítica, e não tem balhadores com e sem documentos, com e sem como vocação existir ad eternum, nem tornar-se sindicatos (o peso destas estruturas é muito forte involuntariamente numa solução fácil para o govna Bélgica) opuseram-se a este tipo de medidas, erno. Após cerca de um mês no parque, decidiu parentes das políticas de austeridade que condesmontar o acampamento e continuar a sua hecemos actualmente. Durante anos, os modos acção através de outros meios.


«Trabalhadores, sejam bem-vindos à Bélgica! Pensam vir trabalhar na Bélgica ? Já tomaram talvez «a grande decisão» ? Nós, belgas, estamos felizes que venham trazer ao nosso país a ajuda das vossas forças e da vossa inteligência. Mas desejamos que esta nova vida contribua para a vossa felicidade também. Para o conseguir, isto é o que vos propomos: tentaremos neste folheto informar-vos das condições de vida e de trabalho que esperam por vós na Bélgica. Assim tomarão a «grande decisao» com total conhecimento de facto. Emigrar para um país que é que necessariamente diferente do vosso coloca alguns problemas de adaptação. Estas dificuldades serão mais facilmente superadas se levarem uma vida normal ou seja, uma vida familiar. A Bélgica é um país onde o trabalho é bem remunerado, onde o conforto é elevado, especialmente para os que vivem em família. Encontrarão no nosso país um espírito internacional. De resto, 258 organizações internacionais têm a sua sede principal na Bélgica e muitos homens, políticos, técnicos, homens de negócios e estudantes de outros países, vivem no nosso solo. Já há trabalhadores do vosso país no nosso. Venham ter com eles se crêem que a vossa situação pode melhorar. Mas, para o saber, leiam atentamente as páginas que se seguem. Em todo caso, repetimos: os trabalhadores mediterrânicos são bem-vindos entre nós, na Bélgica.»

mais comuns de obter os documentos foram o reagrupamento familiar, o pedido de asilo (político, é certo!), e a imigração para efeitos de estudos mas, com o tempo, estas três formas de legalização foram sendo restringidas. Em 1988, o primeiro «centro de detenção» abriu as suas portas e deram-se as primeiras expulsões. A palavra «sans-papiers» (sem papéis, em português) tornou-se uma expressão de uso corrente, e há estudos que consideram que são mais de 100.000 os «sans-papiers», numa população total de cerca de onze milhões de pessoas. Se esta estimativa já parecia aquém dos números reais, hoje está completamente ultrapassada. Em 2013, após alguns anos mais calmos, um grupo de afegãos começou a fazer-se ouvir. Estas 450 pessoas são originárias de um país obviamente em guerra e onde o exército belga continua presente. Porém, o Secretariado Geral dos Refugiados e dos Apátridas, uma secção da Agência dos Estrangeiros, não pensou que fosse uma boa ideia atribuir-lhes o estatuto de refugiado. Para a administração, alguns não vêm das regiões em guerra, outros não podem provar que as suas vidas estão ameaçadas se retornarem ao país. Esta última condição é obviamente impossível de provar. Após anos de processos judiciais sem sucesso, tornaram-se «sans-papier», com a única perspectiva de serem explorados durante anos, antes de ser-

político belga - das associações aos media, dos em expulsos pelas autoridades belgas. Em consequência, este partidos aos sindicatos - ela tornou-se rapidamgrupo começou a ocupar edifíente um interlocutor inevitável. Presentemente, a cios e a fazer manifestações e única solução para a regularização dos «sans-paacções políticas, seguidas de expiers» ou para uma mudança radical das políticas pulsões e de repressão policial. migratórias só pode vir deste mundo. E a existênNo entanto, bem organizados e cia desta «coordenação» é o indício da falência determinados, continuaram a dele. fazer acções públicas. Por último, e talvez este seja o ponto mais imOutras pessoas sem documenportante, este grupo dá-lhes a possibilidade de tos de várias origens (na maior criar um discurso político próprio e claro, e de parte do Maghreb, América Lasair da atmosfera muda na qual estão encerratina e África subsariana), juntados. Deixam assim de ser as vítimas silenciosas ram-se a eles, ao mesmo tempo de um sistema invisível, tornando-se um grupo que o apoio de alguns «comem luta com histórias e perspectivas. Por exemdocumentos» se manifestava. plo, apoiaram o campo no parque Maximilien e O movimento cresceu e as ruas organizaram também a manifestação do 27 de bruxelenses vêem-nos desfilansetembro. Fizeram causa comum com os refudo semanalmente desde há dois giados e recordaram os ex-requerentes de asilo. anos para cá. Opuseram-se igualmente ao fim deste campo e à No dia 3 de maio do ano pasdecisão da «plataforma civíca». sado, éramos mais de 2.000 Este último ponto é muito interessante porque na rua em Bruxelas (um feito os «sans-papiers» estão reduzidos muitas vezes para a Bélgica), para pedir a serem «sans-papiers», e apenas «sans-papiers». documentos para os residenMesmo as pessoas ou grupos que os defendem tes estrangeiros que não têm ou apoiam, fecham-nos nessa situação. Este espapéis e contra as fronteiras e tatuto tornou-se quase numa identidade, sem a política migratória europeia. passado nem futuro. Assim, a solução não passa Esta manifestação teve lugar por nós, com «documentos», substituirmo-nos pouco tempo depois dos naufrágios mortais e aos «sem documentos» ou fazermos como eles. mediáticos desta primavera. Toda a cena política Trata-se, antes, de deixar que tomem o espaço crítica ou radical estava presente: dos anarquispara terem um rosto e uma palavra na cena polítas aos comunistas com ou sem tica e encontrá-los então nas ocupartido, das associações cívicas pações e manifestações. Trata-se a pessoas de todas as tendên- EM 2013, APÓS também de assumir divergências cias. Mais do que isto, a manide pontos de vista com eles. ALGUNS ANOS festação tinha sido organizada Num mundo de crises, ou talvez por um conjunto de 5 grupos de MAIS CALMOS, UM fosse melhor dizer, construído pessoas sem documentos. Esta sobre crises, à custa de fluxos “coordenação dos sem docu- GRUPO DE AFEGÃOS migratórios e mais localmente mentos” é uma coisa nova na «sans-papiers», podemos (e COMEÇOU A FAZER- dos cena bruxelense, e propõe nodevemos) colocar questões sobre vos possíveis. as fronteiras e as identidades e, na SE OUVIR. ESTAS Em primeiro lugar, ela afirma prática, sobre o nosso apoio e ena autonomia dos “indocumen- 450 PESSOAS SÃO volvimento com estes movimentados” na luta e a independência ORIGINÁRIAS DE UM tos. Esta posição ética pede assim destes em relação aos partidos e para reinventarmos os meios e os a outras organizações políticas. PAÍS OBVIAMENTE espaços de luta constantemente. Aconteceu no passado que estas De qualquer maneira, as grandes últimas - consciente ou incon- EM GUERRA E ONDE soluções que a União Europeia scientemente – os tenham uti- O EXÉRCITO BELGA nos propõe para «resolver o problizado para interesses próprios lema», representam apenas um ou tenham decidido por eles a CONTINUA PRESENTE penso numa perna partida . Nenestratégia a adoptar, como por huma bóia poderia ter impedido exemplo a greve de fome (abstendo-se evidenteo Titanic de se afundar. mente de a fazer). Em segundo lugar, a «coordeNão esqueçamos os amigos em Vintimiglia, nação» permite fazer acções com mais meios e Calais e nos outros lugares onde a luta é a mesma: com um alcance maior. Para o pequeno mundo «Papiers pour tous ou tous sans-papiers. »

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RASANDE TYSKAR

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REPRESSÃO COM FRONTEIRAS

deportados (a estimativa é incompleta por falta de registo em países como Alemanha e Grécia). A deportação dos migrantes é também um negócio que rende a empresas de voos comerciais, tais como a Air Europe, muitos milhões de euros anualmente. Estes voos, que começaram nos anos 90, são hoje em dia coordenados pela agência Frontex, mas envolvem muitos outros agentes para além das companhias aéreas, entre os quais pelo menos dois países europeus, as autoridades aeroportuárias e os consulados dos países terceiros que, na falta de passaporte dos migrantes, procedem ao reconhecimento da nacionalidade e autorizam a deportação. Estes voos custaram a vida a vários migrantes transparência bem como pela ausência de uma no passado, vitimas dos maus tratos policiais larmonitorização independente sobre as operações gamente permitidos enquanto medidas repressidesta agência europeia. Desde 2013, a militarivas, consideradas “técnicas”, já que são necessázação das fronteiras coordenada pela Frontex rias à segurança e eficiência das operações. serve-se do Eurosur, o sistema de vigilância que Na sequência duma destas mortes, um juiz usa drones, aviões de reconhecimento, sensores espanhol condenou polícias ao pagamento de offshore e detecção remota por satélite, para o uma multa de 600 euros por terem desrespeitado controlo do território, e conta com a colaboração o protocolo já que o individuo, mal tratado pelos da European Maritime Safety Agency (EMSA) and agentes, não deveria ter morrido. (1) Mordaças the EU Satellite Centre (SatCen). , camisas de contenção e capacetes são, neste A gestão das fronteiras e dos fluxos de migrancontexto, elementos normais de gestão destas tes deixou de ser tarefa de um centro político macabras viagens com destiúnico, o Estado-Nação, para no aos mesmo países que sise tornar um dispositivo em A GESTÃO DAS multaneamente são exploraque as instituições públicas, dos como atracção turística. privadas, civis, paramilitares FRONTEIRAS E DOS Colectivos espanhóis assoe militares interagem à esciados na Ruta contra’l racala local, nacional e sobre- FLUXOS DE MIGRANTES cismu y la represion têm do-nacional. Neste contexto, DEIXOU DE SER TAREFA cumentado estas situações e as fronteiras já não repredeixam claro que existe uma sentam a marca geográfica DE UM CENTRO POLÍTICO relação temporal e causal dos limites em que vigora a entre as rusgas racistas consoberania de uma nação, já ÚNICO, O ESTADOtra indivíduos de uma nacioque deixaram de correspon- NAÇÃO, PARA SE TORNAR nalidade específica e a ocorder aos confins territoriais, mas seguem antes linhas de UM DISPOSITIVO EM rência de voos para os seus força que evidenciam a mapaíses de origem. A relação neira de se exercer do gover- QUE AS INSTITUIÇÕES é de tal ordem evidente, que no neo-liberal: o estado de PÚBLICAS, PRIVADAS, se registam detenções arbiexcepção. trárias de indivíduos dessas Por um lado, presencia- CIVIS, PARAMILITARES E nacionalidades na eventualimos a implementação do de se verificarem lugaMILITARES INTERAGEM À dade dispositivo jurídico dos acorres vagos nos voos, de forma dos bilaterais com países ter- ESCALA LOCAL, NACIONAL a encher os aviões. ceiros, ou seja, assistimos à Externalizar as fronteiras é extensão da soberania para E SOBRE-NACIONAL semelhante a externalizar os além do território nacional, custos na produção indusa chamada externalização das fronteiras. Através trial e a gestão dos fluxos migratórios é semedeste mecanismo, a EU ou qualquer um dos seus lhante à gestão de um qualquer negócio. Com os Estados-membro, pode negociar com países fora acordos bilaterais, a Europa Fortaleza deslocalida Europa o repatriamento dos migrantes, tratazou os campos de detenção para países em que dos como mercadoria humana. Segundo dados os custos sociais e políticos da sua permanente do Eurostat em 2012, foram mais de 160.000 os violação dos direitos humanos sejam menores.

As fronteiras como tecnologia de repressão pós colonial κοινωνία

E

m 1985, com os acordos de Schengen e após cerca de 30 anos da constituição da Comunidade Económica Europeia (CEE -1957), cujo intuito programático era colocar em prática o princípio da cooperação económica e da livre circulação de capitais, bens e serviços, cinco estados membros da UE (chegando a ser 26, uns dos quais não pertencentes à UE) constituíram-se como um “espaço de liberdade, segurança e justiça” no qual os cidadãos podiam circular livremente. Mas como está escrito no sítio oficial da Frontex (European Agency for the Management of Operational Cooperation at the External Borders of the Member States of the European Union), agência criada em 2004, foi preciso desenvolver uma série de medidas compensatórias com o objectivo de manter o precário equilíbrio entre estes dourados valores. Começa, desde então, o rebordering, a reestruturação da governação das fronteiras e das políticas de inclusão, exclusão e confinamento de migrantes. A imposição destas medidas aos países que aderiram mais tarde à UE, foi acompanhada da atribuição de financiamento para a construção de campos de detenção, a militarização das fronteiras e a coordenação das unidades de polícia das fronteiras através do Sistema de Informação Schengen (SIS, e mais tarde SIS II). A agência Frontex, com sede em Varsóvia, tem como principais tarefas a formação de guardas de fronteiras dos Estados-membros, o patrulhamento das fronteiras terrestres e costeiras e o apoio aos repatriamentos. Desde que foi constituída, tem levado a cabo centenas de missões. Associações como o European Council for Refugees and Exiled (Ecre) ou o British Refugee Council denunciaram a Frontex pelas suas faltas de respeito perante os direitos humanos e dos requerentes de asilo. Além disso, expressaram uma geral preocupação pela falta de


empresas de segurança, prestadores privados Assim, Espanha delegou o controlo e a repressão dos migrantes a Marrocos e a Itália à Tunísia, ao para a gestão de vistos, ou toda uma série de opeEgipto e à Líbia. O facto de estes países serem radores institucionais envolvidos na implemenregimes ditatoriais não constituiu, de forma tação de políticas de migração e asilo. (3) nenhuma, um obstáculo ético, mas antes uma O próprio apoio aos refugiados, se não for feito vantagem estratégica para as democracias eurode forma a combater a gestão autoritária e viopeias. Se nos últimos 15 anos o Mediterrâneo se lenta dos indivíduos migrantes, tem como efeito tornou uma vala comum para 25000 pessoas, a o reforço dessa gestão e portanto deve ser desmemória histórica dificilmente poderá contabimistificado e atacado. Nos casos em que a orgalizar os mortos nos campos de detenção espalhanização e fornecimento da assistência mantenha dos pelo deserto do Norte de Africa. A Migreuos migrantes numa postura de passividade e surop, uma rede de associações de países europeus bordinação, ou seja, sempre que esta seja patroe africanos que trabalha no âmbito dos direitos cinada e supervisionada, desempenha um papel humanos dos migrantes publica, desde 2009, Les cúmplice na inferiorização racial imposta pela frontières assassines de l’Europe, um “Relatório ordem neocolonial. anual sobre as violações dos direitos humanos Foi em 1990, com a Convenção de Dublin, que nas fronteiras”. Graças a esta e a outras associaa UE estabeleceu os seus critérios para a atrições, que denunciam o estado de excepção que buição de asilo. Embora conserve a definição de permite que migrantes sejam mortos sem que “refugiado político” contida na Convenção de isto constitua um crime de assassínio, ninguém Genebra de 1951, a Convenção de Dublin é mais poderá dizer que não sabia. restritiva, impedindo que um indivíduo cujo peAtrás da cortina de hipocrisia dos chamados dido de asilo tenha sido rejeitado por um país da projectos de cooperação para o desenvolvimenUE, possa apresentar o mesmo a um outro Esto, esconde-se a cínica chantagem neocolonial tado membro. Segundo os acordos de Schengen, que, em troca de manobras comerciais, finanum migrante classificado como irregular num ciamentos institucionais e tecnologias, obriga país é-o também nos outros. Na mesma linha, à colaboração na gestão dos fluxos de migrane no âmbito dos acordos de Dublin, a recusa de tes, tratados como alíneas asilo político por parte de de um orçamento e como um governo torna-se uma EM AS ORIGENS DO mercadoria humana. Quer negação automática e geneos acordos euro-mediterrâ- TOTALITARISMO, HANNAH ralizada à inteira UE. Aquilo nicos ou os assinados com que acontece na realidaos países do leste, quer a ARENDT IDENTIFICOU, NA de é uma armadilha ainda Convenção de Cotonou em mais kafkiana: os pedidos CRIAÇÃO DE APÓLIDAS, 2000, entre Europa e a ACP de asilo passam a estar su(coligação nascida com a UNS DOS FACTORES bordinados aos acordos biConvenção de Lomé em laterais estabelecidos entre 1975 e que desde 2012 conta QUE VIABILIZARAM O a U.E e países considerados com 48 países da África sub- HOLOCAUSTO. COMO NO seguros. Isto é válido messaariana, 16 das Caraíbas e mo quando estes países são 15 do Pacifico), impõem CASO DAS LEIS ANTIapenas países de passagem, cláusulas que vinculam os ou seja, estabelece-se que signatários, em troca de SEMITAS OU RELATIVAS “os requerentes de asilo proauxílio, à readmissão de mi- ÀS MINORIAS ÉTNICAS, AS venientes de um país do qual grantes expulsos da Europa. não são cidadãos e onde eles Os destinos destes infames ATUAIS LEIS DE CIDADANIA, estavam a salvo de todas as voos são a Nigéria, Senegal, formas de perseguição, poNÃO RECONHECENDO Equador, Colômbia, Repúdem ser reenviados de volta blica Dominicana, Servia, OS MIGRANTES COMO ao mesmo país, sem prejuízo Albânia, Macedónia, Geórdo princípio de não repulgia, Ucrânia, Paquistão, en- CIDADÃOS, FACULTAM são” (o principio de non-retre outros. foulement constitui o art. 33 PRÁTICAS COERCIVAS Por outro lado, deparada Convenção de Genebra e mo-nos com a implemen- AUTOMATIZADAS, ISTO o art. 3 da Convenção contra tação de campos de detena tortura). ção administrativos, zonas É, SEM ACUSAÇÃO NEM Esta fórmula foi aplicada sujeitas a uma regulação DEFESA, NUM PROCESSO de forma tão laxista que um normativa alheia ao estado pais ditatorial como a Líbia, de direito supostamente vi- EM TRIBUNAL que nunca aderiu a Convengente no território europeu, ção de Genebra e que ainda cuja existência acentua a fragmentação do terrimantém a pena de morte, foi tratado como país tório em áreas juridicamente heterogéneas, corterceiro seguro. respondendo ao tipo de intervenção biopolítica O suporte tecnológico de todas estas maquinaque se pretende impor à população nele situada ções regulamentais foi o EURODAC, uma agênou coercivamente confinada. Este dispositivo cia que recolhe em forma telemática as impresrepressivo, que poderemos chamar internalizasões digitais de todos os requerentes de asilo na ção das fronteiras, materializa-se num confinaEuropa, assinala a situação do pedido, referindo mento interno forçado dos migrantes que espeo estado de rejeição ou de atribuição de um dos ram um repatriamento que os conduzirá a um diversos estatutos da protecção internacional. confinamento externo. Os campos de detenção Mediante o governo das fronteiras, geopolítica são mais um sintoma da deriva autoritária ace biopolítica coligam-se, instaurando um regime tual no âmbito da qual a polícia se militariza e internacional de gestão das populações, quer exo exército entra na esfera civil. Esta deriva é, em ternas quer internas às próprias fronteiras. Disgrande parte, viabilizada pelas retóricas da crise positivos físicos tais como as cercas militarizadas e da emergência e convoca-nos a todos para um que delimitam as fronteiras são a projecção, no estado de sítio permanente. (2) espaço, de dispositivos como as leis de cidadania Devido às frequentes operações policiais cone os acordos bilaterais, engrenagens na maquitra migrantes, criminalizados por serem pobres nação totalitária da exploração neocolonial. O e terem que desempenhar trabalhos irregulares quadricular do espaço corresponde ao enqua(pelos quais são condenados pelas leis que exidramento da população numa inclusão hierárgem um contrato de trabalho para autorizar a quica e selectiva, onde os direitos se mostram emissão de um visto de residência e inversamenprivilégios. A suposta área de liberdade, segurante, um visto de residência para obter um contraça e justiça é na realidade construída na permato de trabalho), estes sofrem um triplo castigo: o nente pilhagem e consequente criação de áreas encarceramento, a detenção administrativa e a de marginalidade e precariedade. A sua manudeportação. Nos três casos, o sofrimento humatenção, pelo terror e pela violência, continua a no é uma fonte de lucro pelos múltiplos agentes ser a única receita ao dispor dos exploradores, tal da Europa Fortaleza. como nos regimes esclavagistas e coloniais. Pense-se nos lucros das indústrias do armaAs leis de cidadania e a acusação de um crimento, de outras tecnologias de segurança, das me de clandestinidade representam técnicas de empresas construtoras, gestoras e auxiliares na discriminação jurídica que facilitam a existência manutenção das fronteiras bem como do amplo de uma mão de obra explorável nas mais deploleque de serviços associados em matéria de acoráveis condições, sem direitos laborais, tutelas lhimento, alojamento, companhias de seguros, cívicas, garantias ou dignidade. Fundamental-

mente, alguns indivíduos, considerados de alto valor como capital humano, gozam de direitos de cidadania em vários contextos nacionais, enquanto os outros, completamente desprovidos de direitos, estão permanentemente à beira do arbítrio, chantagem e brutalidade de patrões, capatazes, militares e mafiosos. Além disso, a clandestinização e consequente sujeição dos migrantes, a contínua garra securitária e autoritária da governação neocolonial das migrações são as enzimas que reactivam continuamente a reacção racista. As exigências do mercado e da propriedade encontram na xenofobia um cómodo e atávico aliado na organização de uma sociedade baseada na exploração do trabalho. A condição destas enormes massas de indivíduos tem um inquietante precedente histórico. Em As origens do totalitarismo, Hannah Arendt identificou, na criação de apólidas, uns dos factores que viabilizaram o holocausto. Como no caso das leis anti-semitas ou relativas às minorias étnicas, as atuais leis de cidadania, não reconhecendo os migrantes como cidadãos, facultam práticas coercivas automatizadas, isto é, sem acusação nem defesa, num processo em tribunal. Os migrantes detidos em Centros de Detenção não são considerados nem tratados como pessoas, mas como corpos reificados, vida nua banida das normas que regulam a convivência civil. Os espancamentos, também de noite nas camas, a falta de água, comida, medicamentos, cobertores, casas de banho são o estado de excepção sem excepção destes lugares. Os campos de detenção administrativa não podem ser visitados nem por representantes de associações humanitárias ou da sociedade civil, nem sequer por parlamentares: são, portanto, verdadeiras instituições totalitárias. A ausência do direito à defesa legal é um buraco negro, que arrisca atrair para o seu campo gravitacional o universo inteiro da convivência civil, abrindo as portas à administração burocrática da morte. Nas ultimas décadas, os cidadãos europeus, aceitando a existência dos campos de detenção para migrantes, habituaram-se a virar a cara e fechar os olhos, habituaram-se a andar na corda bamba em cima do abismo. A discriminação implícita no crime de clandestinidade é uma condenação à morte cívica, antecâmara da morte física. Por isto, a distinção entre refugiados e migrantes económicos (irregulares, ilegais) é perniciosa, visando deixar imutado um regime discriminatório cuja gravidade histórica não difere em muito da escravatura ou das condições que possibilitaram o genocídio perpetrado pelos nazis ou os genocídios coloniais. Os migrantes económicos são o fluxo humano de deserdados que esguicha das veias abertas dos lugares colonizados. As massas migrantes são os condenados da terra e, portanto, são uma força histórica que poderia desempenhar um papel revolucionário, desde que se reconheçam, e desde que os reconheçamos como tal. Para não nos condenarmos a uma existência de infame cumplicidade, atiçemos a solidariedade anti racista. /// NOTAS 1 http://goo.gl/7g9z9v 2 A este respeito ver artigo “Repressão sem fronteiras” na edição nº10 do jornal MAPA 3 Em francês, “O negócio da emigração”: http://goo.gl/qQPSkC

CADERNO CENTRAL MIGRANTES, REFUGIADOS E SOLIDARIEDADE SEM FRONTEIRAS NO VELHO CONTINENTE.

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CADERNO CENTRAL MIGRANTES, REFUGIADOS E SOLIDARIEDADE SEM FRONTEIRAS NO VELHO CONTINENTE.

ENTREVISTA A MAMADOU BA

“A Europa é uma prisão a céu aberto, tal como as suas fronteiras são cemitérios a céu aberto para quem a procura”

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RITA ALVES

À

conversa com Mamadou Ba, activista do Movimento SOS Racismo, procurámos perceber as lógicas históricas que conduziram à génese e persistência da Europa como Fortaleza. A fronteira, sempre vigiada e tantas vezes intransponível está assente, de acordo com Mamadou, “nos limites da capacidade geo-estratégica da Europa” e, como tal, é isso que “temos que interrogar, que não pode existir!” R. Alves – Há um genocídio em curso às portas da Europa. Podes dizer-nos como é que tudo isto começou, fazendo uma espécie de arqueologia da Europa Fortaleza? Mamadou Ba – Eu acho que nós podemos dizer, de uma forma genérica, que as fronteiras da Europa - fictícias, políticas e geográficas - se tornaram cemitérios a partir do momento em que a Europa se instalou numa situação de revanche histórica contra os países periféricos, nomeadamente as suas antigas colónias. Já havia mortes na década de setenta, eram poucas e não eram muito publicitadas, porque eram mais ou menos aventureiros que tentavam chegar à Europa através do Estreito de Gibraltar. Na altura, havia uma política de recrutamento de trabalhadores, ou seja, o acerto entre o que deveria haver de relação colonial entre a Europa e o resto do mundo era feito indo buscar trabalhadores em massa para trazer para alguns países da Europa, logo a seguir aos Trinta Gloriosos [período entre 1945 a 1975] e onde houve uma industrialização forte (i.e. França, Itália, Bélgica, Alemanha). A Europa reciclou a sua forma de trabalho escravo indo buscar, através de acordos bilaterais, trabalhadores em massa. Hoje, a ideia que nós temos é essa narrativa de que as pessoas vêm em massa porque decidiram vir em massa. Não! Alguém criou essa ideia de que havia uma possibilidade de as pessoas virem. Eu sei que para alguns esta comparação é muito forçada, mas ela tem alguma lógica histórica: o que a Europa fez logo a seguir às independências foi o que o faziam os navios negreiros quando iam buscar escravos. Portanto,

a lógica da economia da morte, que resulta dessa massificação da imigração, foi uma coisa planeada e planificada por uma necessidade económica capitalista. Depois, quando a Europa começa a entrar numa fase de algum refluxo económico e, sobretudo, quando começou a perceber que já não havia possibilidade de controlar essas “manadas” - tal como no tempo colonial, ou no tempo da escravatura -, que as pessoas podiam ter alguma mobilidade dentro da prisão que era o seu estatuto e a sua condição de imigrantes, isso começou a criar problemas. Em finais de setenta, início de oitenta, depois de ter desarticulado também as economias dos países de origem, através das políticas de ajustamento estruturais, decidiu: “Olha, nós vamos também, tal como liberalizamos a economia, vamos liberalizar a mobilidade”, o que implica fazer o quê? Nós criamos mecanismos de filtro, deixamos entrar quando quisermos, como quisermos para fazer duas pressões ao mesmo tempo: pressionar os países de origem - na gestão das saídas e entradas dos seus cidadãos - e pressionar a nossa classe trabalhadora. Deixando sempre entreaberta a hipótese de que pode vir uma ameaça de fora e, claro, que a Europa também está instalada na sua genética atitude imperialista. Ela acha que a única forma de poder ter acesso a recursos para alimentar a sua máquina económica é perturbar e destabilizar os países mais periféricos e a partir daí temos a Europa a fazer guerras por procuração no Continente Africano, no Médio Oriente e também no Extremo Oriente, coisa que não se fala muito nas narrativas. Tirando a Inglaterra, não temos nenhuma discussão sobre o que acontece, por exemplo, no Extremo Oriente (Malásia, Singapura). E há ali fluxos danados de imigrantes que resultam da herança da política imperialista britânica, tal como no Corno de África e no Próximo ou no Médio Oriente (Somália, Líbano). A própria conivência da Europa com o Estado de apartheid de Israel também cria fluxos migratórios forçados porque cria tensões em que as pessoas se vêem obrigadas a fugir para se salvarem. Depois, por um ajuste histórico de posição, logo a seguir à queda do muro de Berlim assistimos à implosão de parte importante dos países que eram limítrofes da Europa dita Ocidental. Com

a guerra dos Balcãs isso foi uma forma que a Europa encontrou de arranjar uma desculpa para dizer: “Nós a partir de agora não podemos receber toda a gente”. Depois a Europa, do ponto de vista cultural, massificou uma forma de estar no mundo, ou seja, criou uma certa hegemonia civilizacional e cultural através da massificação da televisão e contou nisso com a conivência dos seus vassalos. Os poderes políticos desses países - que foram instalados, a maior parte das vezes, pela Europa ou por interesses europeus - tudo fizeram para criar uma condição de necessidade permanente das populações para aspirarem a ter uma coisa, um modelo de sociedade que não é o delas. E onde é que podem ir buscá-lo? É na Europa. Tal como a Europa fez quando empreendeu o imperialismo e o colonialismo, criou-se a ideia do El Dourado ao contrário. O que é que achas que tem de colonial esta relação? A continuidade colonial está patente, primeiro, na própria gestão das relações bilaterais entre a Europa, ou seja, a forma como a Europa decide expandir e retrair a fronteira a seu bel-prazer, consoante o xadrez geopolítico. A Europa decide, às tantas, que pode ter políticas ou programas de gestão das suas fronteiras que vão além fronteira: os acordos bilaterais de admissão passiva de imigrantes, a externalização dos centros de detenção, a militarização e os dispositivos militares que a Europa usa são disso uma prova cabal. Por exemplo, o Mare Nostrum, um resquício fascista que tinha a pretensão de que a Europa podia controlar toda a sua fronteira marítima e decidia quem era nosso e quem não era nosso, quem era susceptível de ser ou não salvo. Isto é um instrumento de gestão geopolítica da fronteira. Quando a Europa decidiu que já não queria fazer nem a montante nem a jusante esta vigilância fronteiriça acabou com o Mare Nostrum e criou o Triton, que o que diz, basicamente, é: “Os nossos vizinhos são quase os nossos inimigos, portanto nós não queremos que vocês venham morrer cá, morram lá! O que vamos fazer é: vamos utilizar esses instrumentos para fazer com que as mortes sejam menos visíveis aqui às portas da Europa e que sejam mais escondidas”. De quando é que datam estes programas? A Cimeira de Sevilha (2001) legitimou a ideia de que a imigração já não era um direito mas uma mercadoria. Um Estado podia decidir, quando lhe apetecesse, aceitar ou não o embrulho. Essa era a filosofia. E para dar corpo a isso, inseres um instrumento repressivo e então criou-se a Frontex (2004). Depois tinhas que dar um programa político à Frontex, porque a Frontex é um instrumento militar mas o seu programa político era o Mare Nostrum (2006/2007). Depois da tragédia de Lampedusa (2013), a Europa disse: “Não! Isto é demasiado impactante na nossa opinião pública” - os cadáveres a boiarem às portas da Europa – “Isto agora tem que acabar! Eles que morram, morram em alto mar... ou morram lá antes de


chegarem cá!”. Então criou o Triton, uma forma de simplesmente evitar que as mortes sejam visíveis aqui na Europa. O Mare Nostrum tinha uma componente repressiva mas tinha uma componente de salvamento porque era inspirado no direito marinho medieval em que os pescadores deviam, por um código de conduta, salvar pessoas que estivessem em perigo em alto mar, independentemente da sua nacionalidade. Tudo isso tem um fundo imperialista sabemo-lo, mas também tem uma parte de valor. Perante o perigo, salvar a vida, depois acertar contas. O Triton é o contrário: quanto menos for visível a desgraça, mais podemos tranquilizar as nossas consciências e, sobretudo, as consciências da nossa opinião pública. Aliás, reduziram os meios de salvamento, aumentaram os meios de vigilância, mas à distância, e introduziram uma coisa: o Triton tem previsto nos seus enquadramentos gerais, por exemplo, a possibilidade de haver bombardeamentos de barcos em países de origem dos imigrantes, usando não apenas a Frontex mas também a NATO. Isto chama-se colonialismo belicista. Foi assim que a Europa conquistou e dominou o mundo, com acções de razia e de guerra e esse é o conceito que a Europa vai buscar de novo para aplicar na questão da gestão da imigração. Depois, logicamente, há a questão da escravatura. Transformar os imigrantes em números é tal e qual o que se fazia com os escravos nas caves dos barcos, que eram “gado”, eram coisas, objectos, não eram pessoas. E aqui nós transmutamos um bocadinho a sofisticação da negação da humanidade, numerizando, quantificando e retirando completamente a hipótese de podermos dizer que essa pessoa é uma pessoa, que tinha um nome e uma história. Por que é que achas que só agora este fenómeno atingiu visibilidade mediática? Achas que tal marca uma ruptura real no debate público? Creio que não marca. Eu acho que a Europa tem fases no debate sobre a imigração mas o único denominador comum da alteração táctica do debate é aquela que se inscreve sempre numa dimensão colonial, sempre. O que mudou, por exemplo - estou a fazer uma extrapolação que não tem nada a ver com isto, mas para mim está interligado. Quando se fala muito da questão da violência policial nos Estados Unidos as pessoas esquecem-se de uma coisa: a violência policial não aumentou, aumentou a capacidade de visibilidade da violência policial. O que aumentou, o que mudou na Europa é... as pessoas parece que não têm memória. Há dez anos atrás um livro pequenino foi escrito chamado O livro negro de Ceuta e Melilla. Na altura, todos os dias havia na televisão imagens aterradoras de pessoas encalhadas nas rochas do Estreito de Gibraltar porque morriam. Ainda continuam a morrer mas a Europa tinha, na altura, necessidade de reconfigurar a sua relação geoestratégica, sobretudo a sua relação Euro-Atlântica, ou seja, com o centro do capital, com os Estados Unidos e por isso preocupou-se muito com a sua fronteira sul. O primeiro muro que nós tivemos na década de 90 foi precisamente Ceuta e Melilla. Fez-se o muro e a história foi-se repetindo aos poucos. Eu acho que este truque político de gestão da retórica pública sobre as migrações tem a ver com isto mesmo: como é que a Europa sempre tenta reciclar o seu discurso perante o outro, como é que tenta justificar ou legitimar a sua dominação? Como é que controla, como é que tem que controlar outros povos? Aí o discurso sobre imigração, precisamente, acompanha essa táctica de retórica política. Consoante os momentos, consoante o debate interno que se trava - se a Europa guina um bocadinho mais à direita ou um bocadinho mais à esquerda, se a Europa se põe, ela própria, em confronto com as contradições internas que tem - o que é que isso representa depois perante a vinda de outras pessoas ou o confronto com outras culturas? Então a Europa vai automaticamente inventar um novo discurso sobre os outros que chegam aqui e eu acho que isto tudo se cruza com a dita “crise”, agora, de refugiados. Todas as pessoas dizem uma frase que é das mais cínicas que há: “O que está a acontecer é uma tragédia, não podemos ficar indiferentes! Mas cuidado, nós temos que ser generosos e muito cuidadosos! Temos que ser muito, muito cautelosos porque nós não sabemos o tempo que isso vai levar! Não sabemos quanti-

fundo era basicamente fazer o quê? Comprar as ficar o número de pessoas que nos vão procurar. lideranças na fronteira do Mediterrâneo com a Portanto, não sabemos temporalmente nem espaEuropa para eles próprios exercerem a repressão cialmente a dimensão desse fenómeno. O que isso sobre a imigração. representa, por exemplo, para o nosso modelo soEra um fundo que visava a externalização das cial. Porque se for longo, a ameaça é maior porque fronteiras? pode ter a hipótese de contágio social, cultural Exacto. Mas era, sobretudo, para apetrechar a e civilizacional”. Agora, o medo deles é exactaEuropa de material de vigilância e de políticas remente esse: “quanto tempo é que isso vai demopressivas. E a partir daí o que é que a Europa derar? E quantas são as pessoas que virão aqui?”. cide? Aquela ideia de que nós podemos transforPedia-te agora que escolhesses dois ou três mar o imigrante num objecto: “a gente apanhamomentos marcantes para se pensar a forma -te nesta fronteira, levamos-te para não sei onde”. como a Europa olha para estas questões e tem E aí os gajos aumentaram o orçamento para os agido sobre elas ao longo do tempo. Eu acho que nós podíamos escolher três moCentros de Detenção na Europa, legitimaram as mentos, na minha opinião, muito significativos novas tecnologias para os novos Centros de Depara a mudança de paradigma das políticas mitenções, nomeadamente Málaga, que era um dos gratórias e fazer a sua ligação com a política ecomaiores. Tudo isto aconteceu nessa Cimeira de nómica e com o capitalismo. Eu escolheria a Ci2001 e foi uma mudança brutal no paradigma. E meira de Sevilha (2001), a Cimeira Europa-África ali fizeram uma coisa nova que não se fazia desde de Lisboa (2007) e depois o momento actual, ou os Anos 50, na Suíça, que foi sazonalizar o estaseja, a Cimeira de Bruxelas, tuto jurídico dos imigrantes, logo a seguir à tragédia de DEPOIS DA TRAGÉDIA DE que é dizer: “Meu amigo tu Lampedusa, a última. estás cá enquanto houver Eu acho que são três mo- LAMPEDUSA (2013), A job. São dois meses, são dois mentos que estão interligameses. São três, são três. Tu... dos. A Cimeira de Sevilha foi EUROPA DISSE: “NÃO! ISTO amanha-te!”. E começaram logo a seguir aos atentados É DEMASIADO IMPACTANTE com dois países a fazer isso: de 11 de Setembro e tem Estónia e Portugal. Em Porque ver com dois momen- NA NOSSA OPINIÃO tugal nós tivemos as Autoritos importantes de debate de Permanência (AP). PÚBLICA” - OS CADÁVERES zações ideológico. Tinham saíComeçaram assim e depois do dois grandes livros (no A BOIAREM ÀS PORTAS DA foram crescendo outras coisentido da polémica), o de sas, até termos a famosa CiFukuyama, o Fim da Histó- EUROPA – “ISTO AGORA meira da Haia (2004), onde ria, e o de Samuel Huntingnasce então a Frontex. Já haTEM QUE ACABAR! ELES ton, O Choque das Civilizavia umas coisinhas tenebroções, e em que ambos, de QUE MORRAM, MORRAM sas sobre a Frontex como, por uma forma distinta (emboexemplo, a Fast-track - que ra ambas neoconservado- EM ALTO MAR... OU era um dispositivo de vários ras), tinham uma grande MORRAM LÁ ANTES DE inspectores e militares que necessidade de fazer uma faziam patrulhas com meios revanche histórica sobre a CHEGAREM CÁ!” da NATO, de vez em quanMãe, a Europa. Porque, sedo e ainda não tínhamos a gundo os autores, a Europa que tinha criado a Frontex como a conhecemos hoje. Tinhas e tens ideia de Ocidente estava falida e eles acharam a EUROPOL (Serviço Europeu de Polícia), o SIS que os atentados foram a prova de que a Eu(Sistema integrado de Informação de Schengen), ropa não tinha conseguido resolver, de todo, a o EURODAC (Base de Dados Biométricos e ouquestão do Universalismo porque os jovens que tros), o VIS (Sistema de Informação de Visas), enfizeram os atentados formaram-se e viviam na tre outros. Europa. Ganharam uma certa modernidade mas A Cimeira Europa-África de Lisboa (2007) foi que não serviu para “proteger os valores mais saum momento estruturante na definição das polígrados” do Ocidente. Então, era óbvio que, mais ticas migratórias. Porquê? Eles alteraram os eixos do que o imperialismo económico, era preciso que definiam as políticas migratórias entre Euroum imperialismo cultural. Entre isto qual era um pa e África e alguns dos eixos. Para além da quesdos eixos mais importantes de controlar para o tão económica e das matérias primas eles coloOcidente? Era a questão migratória. Como é que caram a imigração dentro dos eixos estratégicos se geria o contacto das pessoas que eram difepara a consolidação dos projectos de cooperação rentes culturalmente do Ocidente? E eles, cada bilateral. Na minha opinião eles conseguiram um tinha a sua solução, e a Europa também disuma coisa que durante muito tempo tentaram se, pressionada pelos Estados Unidos: “Espera fazer e não tinham conseguido, que era convenaí! Nós estamos em perigo do ponto de vista de cer os países africanos, os países ditos emissores identidade. O que é que representa isto? É a mode imigrantes, de que era importante mudar o bilidade das pessoas... essas pessoas diferentes que conceito e o entendimento de que a mobilidade vêm cá, como já não se conseguem fazer ser iguais era um direito. E ganharam essa batalha, porque a nós, temos que arranjar forma de endurecer, de eles conseguiram dizer a esses países: “a única os pôr na linha”. Na sequência da Cimeira de forma que nós temos de garantir que vamos ter Sevilha criou-se um fundo através da Estratégia uma cooperação sã, frutífera e aceitável para nós de Barcelona. Um fundo de 500 mil milhões que era vocês resolverem um dos maiores problemas era para gerir a imigração. E então a gestão desse que nós temos nesse momento de vizinhança, é

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serem vocês a controlar as nossas fronteiras a partir dos vossos países”. Isto implicava então nós fazermos acordos, por exemplo, de importação de mão-de-obra. O que eu chamo, para além de mercantilização, uma coisificação dos migrantes. Os imigrantes passam a ser mercadoria para importar ou exportar consoante der jeito aos círculos económicos ou políticos e África podia, tal como vende amendoins e cacau, disponibilizar um número pedido dos seus cidadãos, ou não, à Europa para virem trabalhar sazonalmente. Isso é uma mudança de paradigma brutal. E passou a determinar claramente que um dos capítulos dos APE (Acordos de Parceria Económica) era o controlo dos fluxos migratórios. E na minha opinião, o que determinará dali para a frente toda a política migratória será exactamente este acordo. A partir daí a Europa passa a ter um poder que nunca tinha tido antes: definir a montante e a jusante a natureza política do sujeito emigrante, não é? Que não era um sujeito portador de direitos inerentes à sua condição de ser humano mas simplesmente um produto a que a Europa podia atribuir, ou não, um estatuto. A maior parte das vezes era um estatuto precário, simplesmente. Isto foi uma derrota dos países e foi uma derrota da ideia da liberdade de circulação porque ela sai da esfera dos direitos e vai para a esfera da economia. Isto é uma mudança estru-

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tural para as políticas migratórias e daí é que se vê claramente que tudo aquilo que se seguiu de então para cá estava numa lógica economicista. Mesmo quando a Europa, por exemplo, criou os tais programas (Haia e Estocolmo) e todos os programas que se seguiram, estavam todos numa lógica economicista, todos eles. Isto mais tarde traduz-se também no conhecido Pacto Sarkozy, em que há duas coisas que decididamente morreram. Por um lado, os processos de regularização extraordinária de imigrantes. A Europa decidiu que jamais os imigrantes podem ter uma condição regular ou um estatuto jurídico regular e foi proibido aos Estados procederem a regularizações. Porquê? Porque, tal como se tinha visto com a Cimeira de Lisboa, as regularizações eram um chamariz e, portanto, o que era importante era regularizar a relação da Europa com os países emissores de imigrantes. Volto a dizer, é a expressão que está nos documentos, isso diz tudo: os imigrantes eram emitidos, eram coisas, não eram pessoas. Os países emissores de imigrantes é que deviam decidir com a Europa quantas pessoas podiam vir para a Europa na base de um estatuto regular. Não eram os emigrantes, eles próprios sujeitos independentes e livres de ter uma relação jurídica estável e regular com um Estado qualquer em que escolhessem viver. Este pacto não só gorou qualquer hipótese de haver uma

iniciativa pública de se responder aos problemas com que se confrontam os imigrantes, nomeadamente, terem uma relação jurídica com o Estado onde vivem. Além do mais, fez uma outra coisa que é um retrocesso civilizacional comparável somente com aquilo que foi a Alemanha nazi do ponto de vista jurídico, que é haver a hipótese de expulsões em massa, legalmente previstas, a chamada Directiva do Retorno (2008). A Directiva do Retorno é fazer aquilo que a Gestapo fazia aos judeus. É olhar para as pessoas e, pelas suas características, pegar nelas e determinar que elas por serem aquilo que são, na condição em que se encontram não podem estar ali onde estão. Têm que estar noutro sítio onde alguém decida que têm que estar. E é terrível porque depois, na minha opinião, é isto que justifica todo o cinismo e hipocrisia logo a seguir à tragédia de Lampedusa, na Cimeira de 2013. Houve um cinismo atroz. Toda a gente foi lá chorar. O Papa foi lá, toda a gente foi lá. Mas a verdade é que um ano depois eles acabaram com o único dispositivo de socorro e salvamento que era capaz de responder mais ou menos à tragédia e fizeram uma coisa muito mais regressiva e retrógrada - em termos de conceito e de filosofia política - que o próprio Pacto Sarkozy, o Mos Maiorum. Em Outubro de 2014 a Europa emitiu um documento confidencial, que filtrou para fora, a lançar uma operação policial de perseguição aos imigrantes. Estava preto no branco que tinha dois objectivos: assustar e dissuadir os imigrantes de procurarem a Europa; e assustar e dissuadir os imigrantes que estão no espaço europeu em situação irregular para irem embora. O objectivo do controlo e de combate ao tráfico humano era um objectivo completamente lateral ao centro da operação. Só a definição da expressão Mos Maiorum diz tudo, em latim quer dizer “nós e os outros”. Com esta operação o que a Europa faz é transformar o imigrante num bárbaro, tal como na Idade Média. Isto vai continuando, ganhando dimensão política e vai, sobretudo, ganhando consistência programática na gestão da política migratória até que a Europa decide definitivamente acabar com o Mare Nostrum e instalar o Triton. Esse dia é um dos dias mais sinistros da nossa história contemporânea. O dia em que a Europa decidiu que as pessoas que a procuram, por todos os motivos, de sobrevivência, de querer, de sonhar ter melhores condições de vida são nossas inimigas e nós vamos utilizar os métodos convencionais dos conflitos internacionais, a guerra, contra essas pessoas. Isto é uma coisa de uma gravidade tremenda. E parece que passou assim pelos pingos da chuva, as pessoas acharam uma ideia fantasmagórica e portanto não valia a pena indignarem-se com isso. É da maior indignidade possível usar práticas, ainda por cima colonialistas e imperialistas. É a Europa sem mandato. E não se pode desvalorizar isto, não podemos desvalorizar isto. É uma das coisas mais graves que alguma vez a Europa pensou fazer, depois da conferência de Berlim. Temos assistido muito a um discurso que parece tentar legitimar as operações militares centrando-se na ideia de combate ao tráfico humano. Simultaneamente, parece haver também uma fomentação da empatia na qual tens alguns discursos mais politizados mas, na sua maioria, muito são caritativos e paternalistas.

EM OUTUBRO DE 2014 A EUROPA EMITIU UM DOCUMENTO CONFIDENCIAL, QUE FILTROU PARA FORA, A LANÇAR UMA OPERAÇÃO POLICIAL DE PERSEGUIÇÃO AOS IMIGRANTES. ESTAVA PRETO NO BRANCO QUE TINHA DOIS OBJECTIVOS: ASSUSTAR E DISSUADIR OS EMIGRANTES DE PROCURAREM A EUROPA; E, ASSUSTAR E DISSUADIR OS EMIGRANTES QUE ESTÃO NO ESPAÇO EUROPEU EM SITUAÇÃO IRREGULAR PARA IREM EMBORA


como critério universal são europeus. Ou seja, Parece que há uma incapacidade de, uma vez remeter outra vez, culpar as vítimas de barbarimais, repensar qual é a génese de muitos desdades e dizer que nós estamos aqui para vos saltes movimentos que estamos a assistir hoje e as var, tal como o empreendimento evangélico na responsabilidades do Ocidente. altura da colonização. Claro, basta ver quem é que se mobilizou Em que medida é que certo tipo de retórica agora e o que é que disse. O Rui Marques (Altonão acaba por reificar uma ideia de centrali-Comissário para a Imigração e as Minorias Étdade da Europa no mundo, quando há tantos nicas entre 2005 e 2008) dizia que nós temos que outros destinos que são escolhidos pelas pesmostrar que a Europa é sempre melhor. Os seus soas ou que acabam por valores são inquestionavelacontecer nas suas vidas. Em mente universais e, por isso, perante qualquer tragédia O COMANDO OPERACIONAL particular, na questão dos refugiados, lembro-me que da humanidade a Europa Portugal tinha uma quota pode dar uma lição de moral DA FRONTEX, QUE É A ao resto da humanidade. Ele FACETRACK, TEM MUITOS de recepção completamente irrisória, acho que era o país dizia que era preciso acolher no espaço europeu que meas pessoas que estão aflitas MILITARES DA GNR QUE nos recebia, proporcionalmas não podemos cair na SÃO DESTACADOS DA mente. ilusão de que temos de abrir Era e é. Eu acho que isso as nossas fronteiras de forma NATO E FAZEM PARTE nos leva ao início da nossa escancarada. Ou seja, é uma conversa. A Europa tentou abertura fechada esta do DESSE DISPOSITIVO E criar uma geografia política acolhimento dos refugiados. NÓS, DURANTE MUITO que correspondesse a uma Aliás, o Rui Marques diz que concepção geopolítica e esas nossas forças de seguran- TEMPO, NÓS USÁMOS tratégica da sua utilidade ença são das mais bem prepaquanto conjunto geográfico, radas da Europa para lidar MEIOS MILITARES que é a ideia do Ocidente. A com esta questão. Isto tam- DA MARINHA PARA ideia do Ocidente já não é só bém nos diz tudo sobre a miuma coisa geográfica, é uma litarização, a criminalizacão OPERAÇÕES DA FRONTEX coisa mais ideológica, mais da imigração, sobre a própria cultural. E continua a achar-se, tal como quando fortaleza ideológica em que a sociedade eurodecidiu ir colonizar o resto do mundo, realmente peia se instalou nesta questão. Claro que isso nos o centro do mundo. E achar-se sempre dona do leva, outra vez, ao colonialismo porque quando mundo e dona das ideias sobre o mundo. E isto, ele diz que isto é um desafio para a Europa, o que que é onde reside uma parte substancial da tranos diz dentro daquela retórica, é que a Europa gédia da humanidade, hoje em dia e no passado. continua a alimentar o seu complexo de superioE portanto não interessava a realidade, interesridade civilizacional em relação ao resto do munsava a realidade que ela queria construir e que do. Isto é um trauma histórico da Europa, é a queria projectar. A realidade, na verdade, é que conferência de Berlim em 2015 mas agora para o a Europa construiu-se numa fortaleza o que faz Médio Oriente. Isto é a Europa, é o Ocidente encom que esteja em negação e em contradição quanto espaço geopolítico na sua origem. E isto quando diz que está a ser a mais procurada poré o que também determina toda a mobilização. que as pessoas não procuram fortalezas. PortanNão é inocente toda esta comoção colectiva da to há já ali uma contradição ontológica: um esEuropa face à situação dos refugiados enquanpaço fechado não é o mais procurado, lamento. to olha com indiferença a situação de racismo, Ao contrário do que a Europa diz, onde há mais precariedade e exclusão social e económica de gente a deslocar-se é noutras partes do mundo, cerca de 22 milhões de cidadãos imigrantes que no dito Hemisfério Sul. E há dados mais simples. vivem no seu território. Esta comoção colectiva O Líbano é um país pequenino, recebe cinco miremete para o cinismo e hipocrisia da manifeslhões de refugiados neste momento. O Líbano tação de generosidade e solidariedade por parte é um país com um milhão de habitantes e tem dos dirigentes europeus que, enquanto persecinco milhões de refugiados neste momento. A guem e maltratam cidadãos imigrantes que vivem na Europa, fingem-se comovidos pela situação dos refugiados que nos procuram. Há aqui alguma coisa que não bate certo. E é a mesma coisa que em Portugal, termos um país em que o próprio Estado diz afligir-se de saber que no seu seio, no seio das suas forças de segurança, brota a ideologia nazi; em que há preocupação pela infiltração de extrema-direita no Estado, como se isso fosse segredo, mas em que o racismo institucional continua a ser naturalizado e invisibilzado. Nesse mesmo país em que continuamos a ter pessoas a serem desalojadas sem nenhuma alternativa; em que a violência policial e as mortes que dela resultam não têm nenhuma consequência jurídica, nem política. Este é o país que diz que está disposto a receber pessoas que não conhece de lado nenhum, ou seja, um assombro de humanidade quando desumaniza pessoas com quem convive desde sempre no seu próprio território. Há algo de cínico e hipócrita nesta mobilização. Ela é de louvar! Sempre que as pessoas se comovem e se mobilizem, se solidarizem com a desgraça humana, é sempre de saudar. Aliás, o que não é compreensível é que esta onda de solidariedade não se sinta quotidianamente em território nacional para com quem está em circunstâncias de merecer a nossa solidariedade. Mas isso mostra claramente o cinismo que está por trás destas conversas sobre imigração. A Europa tem uma questão cínica na sua opinião pública. Quando sente que a indignação pode atingir proporções maiores porque estamos quase no limite da indecência - porque a indiferença é uma indecência, a indiferença perante a solidariedade ao sofrimento é uma indecência - quando a Europa começa a perceber isso, os seus dirigentes desencantam soluções de engenharia social mais ou menos para dizer: “Não!”. Como disse o Rui Marques isto é um desafio à Europa para mostrarmos que somos bons e generosos e que a generosidade e a bondade

Europa tem 200 e tal milhões de habitantes e tem 280.000 refugiados. Portanto esta retórica da invasão é só para reificar a ideia da centralidade: as pessoas procuram-nos porque somos o centro do mundo. Não se esqueçam de uma coisa, foram o centro do mundo porque tornaram periférico o resto do mundo. Empobreceram e isolaram o resto do mundo e depois mantiveram-se no centro do mundo, mas esquecem-se disso. A Europa é estruturalmente colonialista e jamais conseguiremos responder ao problema da imigração se não sairmos deste paradigma. E é por isso que toda a esquizofrenia sobre, por exemplo, esta ideia de que nós podemos ser acolhedores mas temos de ser vigilantes porque há uma ameaça à nossa cultura?! Como se a cultura europeia fosse uma coisa homogénea, como se a cultura de um país fosse homogénea e completamente estática e não o resultado de várias dinâmicas. Tudo isto mostra-nos que são tempos difíceis que estão aí a avizinharem-se. Ou a Europa faz aquilo que eu chamo a sua catarse histórica relativa ao seu lugar no mundo, ou então vamos continuar a ter o crescimento da extrema-direita como estamos a ter e as pessoas não se perguntam porquê, porque eu não papo, mas de todo, a conversa de que a extrema-direita é por causa da crise económica, eu não compro essa conversa. Acho que isso é uma forma de desresponsabilizar a narrativa sobre a identidade europeia e a sua responsabilidade histórica sobre a solução colonial com o resto do mundo. Porque, que eu saiba, na Áustria, Dinamarca, Suécia, Noruega e na Finlândia não estamos a passar momentos de austeridade e são os países na Europa onde há maior crescimento da extrema-direita. Não me venham com a história da crise, podem inventar outras retóricas, esta não cola. A Suécia foi o país que foi dito um dos mais multiculturais, um dos mais acolhedores de Imigrantes na Europa, nos últimos 40 anos. Será que de repente, os suecos acordaram fascistas? Para mim, se nós queremos realmente olhar para a Europa, olhar para as dinâmicas, a questão da pertença e a questão da identidade, a Noruega, a Suécia e a Finlândia são barómetros para nós percebermos isso e para nós, de uma vez por todas, rebentarmos com a ideia de que realmente nós somos os melhores dos melhores, porque não somos, não é? Quem se constrói como a Europa se construiu, se não fizer a sua catarse histórica continua a ter esse fantasma a ensombrar o seu presente. É o que está a acontecer, a Europa, nesse momento, está a ser assombrada

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pelos fantasmas do seu passado e a forma como lida com a imigração é exactamente essa: são os fantasmas do passado que neste momento perseguem o seu presente e, ou há essa ruptura, ou então nada feito. Porque eu pergunto, as pessoas por que é que vêm? Pois é, mas a pergunta é exactamente esta, por que é que vêm? Porque o que eles têm está aqui! O que eles têm está aqui! Eles vêm buscar o que têm, o que é deles e as pessoas não percebem isto! Basta nós olharmos os fluxos. Eu, muitas vezes, fico chocado com a ignorância organizada. Nós vemos, por exemplo, os fluxos de capitais: o dinheiro que vai de sul para norte é maior do que o dinheiro que vai de norte para sul, em proporções gigantescas; as matérias essenciais de todos nós enquanto humanos: o que sai de sul para norte é maior do que o que sai do norte para o sul. Como é que querem que, no modelo em que foi criado, em que as pessoas têm que viver de dinheiro e de consumo, em que o dinheiro e o consumo está concentrado de um lado da barricada, que as pessoas não vão à procura disso? Expliquem-me como é que querem fazer! Não dá! Ou o modelo económico muda, absolutamente, este modelo desenvolvimentista... porque esta ideia de que nós, o que temos de fazer agora é criar as condições para haver crescimento económico, é continuar a permitir à Europa manter exactamente a mesma política em relação ao resto do mundo. A questão da mobilidade, se é possível falar nesses termos, não é uma questão económica, é uma questão política! Porque é uma questão de escolhas! Até então temos vindo a falar da Europa como espaço geopolítico. Qual tem sido o papel do Estado português nestes processos? Primeiro, dizer que Portugal parece protegido, do ponto de vista da sua opinião pública, em relação a isto porque não está no sul ou na primeira porta de entrada da Europa. Há duas coisas que nós podemos dizer que podem desmentir esta ideia de que Portugal não está envolvido. Primeiro, o seu papel institucional na formulação estratégica dessa política: Portugal está na Direcção da Frontex, o antigo Diretor-geral do SEF era Director-adjunto da Frontex; depois, em 2001, instaurou as AP, que são laboratório para a Europa. As AP são a legalização da precariedade do ponto de vista da relação institucional e jurídica. Como nós não vemos a fronteira, a ideia que se dá é que: “pronto, nós estamos longe disto, não é aqui”, mas não é verdade. Na prática legislativa tu tens exemplos concretos que Portugal é uma vanguarda no experimentalismo jurídico sobre a gestão dos fluxos migratórios e também, por exemplo, nas estruturas mais de vigilância e de repressão. O comando operacional da Frontex, que é a Fast-track, tem muitos militares da GNR que são destacados da NATO e fazem parte desse dispositivo e nós, durante muito tempo, usámos meios militares da marinha para operações da Frontex. As corvetas da armada fazem muito patrulhamento, por exemplo, na costa Atlântica e, muitas vezes, esses meios são utilizados também nas operações mais concertadas da União Europeia, quando há operações entre a NATO e a Frontex. Os meios estão estacionados em Oeiras,

Nota Biográfica: Mamadou Ba nasceu em Kolda, em 1974, e vive em Lisboa desde 1997. É licenciado em Língua e Cultura Portuguesa e membro do Movimento SOS Racismo.

aqui na base da NATO, corvetas e helicópteros rias” e imigrantes nas prisões como nos cenque são usados para fazer a vigilância da Zona tros de detenção? Sul (Malta, Chipre, Grécia, fronteira com a Líbia, Eu acho que nós podemos juntar isso a uma Tunísia e Turquia). Temos um papel determinanideia que é uma permanente reclusão identitáte nesta história por mais que as pessoas achem ria. A Europa tem uma política de confinamento, que não. sempre teve essa relação com o resto do mundo. Para além do regime colaboracionista e de Não é por acaso que se acha o centro, não é por algum protagonismo do Estado português no acaso que tem essa história da Europa Fortaleza. policiamento das fronteiras e nas agências de A ideia de confinamento... a Europa sempre gosvigilância há também uma racionalidade do tou disto e isso traduz-se na sua política quotidiaEstado português que depois se aplica dentro na, contemporânea. O confinamento obriga ou das ditas fronteiras do Estado-Nação. Neste conduz à reclusão e a Europa é isso. Tu pões uma sentido, há um conjunto de coisas, todas elas série de gente reclusa num determinado espaço, produzidas como situações de violência de Esseja pela organização que tu fazes do espaço pútado que seria interessante discutir. blico, da cidade e da própria divisão económica. Portugal é um país colonialista e os países Tu pões essas pessoas em reclusão e os imigrancolonialistas têm uma cultura de indigenato na tes são o melhor exemplo do que significa isso. É sua relação com as pessoas que são diferentes. cíclica a reclusão dos imigrantes: eles ficam feAssim, toda a sua produção legislativa e jurídichados em determinados espaços, na área, por co-administrativa arreiga-se claramente neste exemplo, laboral. Não sei se tu sabes mas em postulado de que há gente e há indigente! E isto França há profissões que não podem ser desemvê-se através da sua organização urbana e terripenhadas por estrangeiros, está escrito na Lei, na torial, através da sua organização política e atraConstituição. Em Portugal só as profissões ditas vés da sua organização ecode soberania, basicamente do nómica. Se nós pegarmos Estado, é que estão clarificana organização territorial, O QUE A EUROPA FEZ das. Isto põe as pessoas em rehá uma continuidade histó- LOGO A SEGUIR ÀS clusão porque estão confinarica na forma como sempre das num determinado espaço se criaram espaços urbanos INDEPENDÊNCIAS, FOI O e não podem sair dele. Há um guetizados entre o sujeito e o certo determinismo sociolóindigenato, não é? E depois, QUE O FAZIAM OS NAVIOS gico e um tanto determinisdo ponto de vista político, NEGREIROS QUANDO IAM mo político, ou seja, a política de como a organização do decide que tu, por estares na Estado está feita, só é da- BUSCAR ESCRAVOS condição de imigrante, só poqui quem é lusitano, não é? des trabalhar na construção Quem não é lusitano, na sua acepção mais retrócivil, na restauração, não podes fazer mais nada; grada do termo, não é português. Pode ter nascie não é só por seres imigrante, é também por do aqui, pode vivido aqui. Mais uma vez, a nação seres diferente, por seres negro, por seres árabe. é maior que a cidadania e esse é o chapéu que Depois, por isso, com esse confinamento, tu está basicamente sustenta toda esta lógica de dismais sujeito à vigilância social e à repressão. Encriminação a que os imigrantes e os seus filhos tão como é que o Estado faz para garantir que te são sujeitos em Portugal. A ideia de que eles, sim confinou em determinada identidade e num desenhora, podem ser cidadãos mas são menores, terminado espaço, como é que te vigia? Pondo-te porque não são nacionais, ou seja, gente contra em prisão, detendo-te, guardando-te, evitando indigente. Não temos nenhuma visibilidade, neque tu possas fazer parte do resto da sociedade e nhuma hipótese de confronto político que dê aí é que tu vês! Por exemplo, a presença de jovens visibilidade às comunidades negras e ciganas no negros ou de origem estrangeira nas prisões é expaís, não temos. É estrutural. A ciganofobia e a ponencialmente maior que o resto da sociedade, negrofobia são estruturais nas instituições porem proporção. Isto, tem duas funções: a função tuguesas, são estruturais e é por isso que há uma de controlo e confinamento mas também a funnecessidade que as instituições sentem de invição de estigmatização. Porque a prisão não é um sibilizar exactamente isto. Portanto, se nós nos sítio de redenção de uma falha social, é um sítio mantivermos assim, numa paz podre, em que de castigo por uma desadequação social. Porconseguimos controlar e manietar a hipótese tanto o que se quer transmitir é que vocês são de haver este levantamento das periferias e conpropensos... continuam num registo de bom seltinuando a periferizar e a criar essas fronteiras vagem, são não-cumpridores do contrato social internas, de quem faz parte e quem não faz parportanto merecem ser castigados. E as pessoas te... porque, como te disse uma vez, para mim que merecem ser castigadas não merecem cona ideia da Europa é esta, podemos resumir isso fiança e as pessoas que não merecem confiança numa frase: fazer ou não parte. É simples. E para não têm lugar na sociedade. É tudo uma cadeia, mim, quando fui a Lampedusa, foi o que me fié uma cadência e isto é através da história colocou e ficará para sempre. Eu fui ao cemitério e nial, a história esclavagista da Europa. Tudo, ou percebi tudo. Os imigrantes não fazem - mesmo seja, nada é por acaso, outra vez, voltamos a isto. mortos - parte da humanidade. É simples. Na Tudo isto tem uma explicação concreta. A ideia Europa é simples e essa é a ideia que está, que de confinamento é uma ideia que foi aceite porvigora, no dia-a-dia dos imigrantes. Eu sei que que estratifica as relações sociais e culturais, poristo é violento. As pessoas não gostam de ouvir que usa a indiferença para gerir a diferença e, por este tipo de coisas porque parece hiper-exageisso mesmo, não se fala disso, isso não existe. rado mas, para mim é simples, é isso: fazer ou Sobre o encarceramento - a nível da arquitecnão parte da humanidade e, para a Europa, há tura jurídica nacional – meramente por transgrespessoas que não fazem parte da humanidade e são do espaço de pertença, ou seja, geográfico, por esta ideia não é nova, ela parte da escravatura. parte dos imigrantes, não se fala, porque a ideia é Quando a Europa decidiu que podia pegar em exactamente esta: “eles não são acomodáveis nos pessoas e fazer delas burros de carga, retirouregistos da normalidade social que nós queremos, -lhes humanidade. A Europa continua a ter no por isso, têm que ser fechados” e fechamo-los pelo seu subconsciente político esta ideia de que há que eu disse há pouco. Essa cadeia é terrível porgente e indigente e isso vê-se com o aumento que ela continuará sempre a manter confinadas da violência policial e a sua impunidade; com as pessoas que são diferentes do resto da sociea indiferença e o alheamento do Estado na sua dade e a mantê-las excluídas e marginalizadas, regulação através da justiça; com a conivência sempre. Depois isto cria uma certa legitimidade da justiça com a violência policial e a violência social de que são perigosas, de que não são capade Estado; com a legitimação social do racismo zes de fazer parte da sociedade, de que não têm institucional através da culpabilização, sempre, competência social para pertencer à nossa comudas vítima; e, com a marginalização económica, nidade e por isso ou têm que ser reclusas ou têm cultural e política das ditas minorias étnicas no que ser confinadas. Portanto, a ideia de centros país. É terrível olhar amanhã para a Assembleia de detenção interliga-se muito com isto e isto é da República, depois de uma eleição, e constatar trágico. Quando olhamos para o caso de menores que a branquitude continua a gerar normalidanão acompanhados nós percebemos isto, aí todo de num país que é diverso. Algo não bate bem. É o discurso humanista cai por terra. Essa hipocrisia o que vamos ver nos próximos dias, para percede que os Europeus “somos bons”... essas circunsber - para quem anda distraído - que a branquitâncias mostram realmente: “Não, eles são maus!”, tude é a normalidade num país diverso. a Europa é má. A Europa é uma prisão a céu aberSerá que podias falar, por último, sobre a to, tal como as suas fronteiras são cemitérios a céu questão do encarceramento das ditas “minoaberto para quem a procura.


MAPA / JORNAL DE INFORMAÇÃO CRÍTICA / OUTUBRO-DEZEMBRO’15

LATITUDES 27

Do genocídio à resistência: as mulheres Yazidi ripostam DILAR DIRIK *, 21 DE AGOSTO DE 2015 TRADUÇÃO: TEÓFILO FAGUNDES TEOFILOFAGUNDES@JORNALMAPA.PT

Amara, combatente da resistência de Shengal. Fotografia de Joey L. um fotógrafo americano que em 2015 viajou ao Curdistão para retratar as diversas guerrilhas curdas que resistem na guerra civil síria. www.joeyl.com

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endo sofrido um genocídio traumático, as mulheres Yazidi no Monte Sinjar organizam a sua resistência autónoma, armada e política, de acordo com os princípios da filosofia do PKK. O velho ditado curdo que diz que “os nosso únicos amigos são as montanhas” tornou-se mais relevante do que nunca quando, a 3 de Agosto de 2014, o criminoso Estado Islâmico (EI) lançou o que é referido como o 73º massacre sobre os Yazidis, atacando a cidade de Sinjar (ou, em curdo, Shengal), massacrando milhares de pessoas e violando e raptando mulheres para as venderem como escravas sexuais. Cerca de 10,000 Yazidis fugiram para as montanhas de Shengal, numa marcha mortal em que muitos, especialmente crianças, morreram de forme, sede e exaustão. Este ano, no mesmo dia, os Yazidis marcharam de novo para as montanhas de Shengal. Mas, desta vez, em protesto para garantirem que nunca nada será como dantes. No ano passado, os peshmerga curdos iraquianos do Partido Democrático do Curdistão (PDK) prometeram manter Shengal em segurança, mas fugiram sem avisar quando o EI atacou, sem sequer deixarem armas para as pessoas se defenderem. Ao invés, foi a guerrilha do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), assim como as Unidades de Defesa Popular Curdas (YPG) e a brigada feminina (YPJ) de Rojava que – apesar de só terem Kalashnikovs e de serem meia dúzia de combatentes – abriram um corredor para Rojava, salvando 10,000 pessoas. Durante todo um ano, as mulheres Yazidi foram retratados pelos media como vítimas indefesas de violação. Inumeráveis entrevistas perguntavam repetidamente quantas vezes tinham sido violadas e vendidas, fazendo-as cruelmente reviver o trauma a bem do jornalismo sensacionalista. As mulheres Yazidi eram apresentadas como a personificação do choro, mulheres que se rendiam passivamente, a vítima definitiva do grupo Estado Islâmico, a bandeira branca feminina perante o patriarcado. Além disso, as mais bizarras descrições do oriente reduziam grotescamente uma das mais antigas religiões do mundo a um novo campo exótico por explorar. Ignora-se o facto de as mulheres Yazidi se terem armado e de, agora, se mobilizarem ideológica, social, política e militarmente de acordo com as linhas traçadas por Abdullah Öçalan, líder do PKK.

Em Janeiro, o Conselho Fundador de Shengal foi estabelecido por delegados Yazidi, da montanha e dos campos de refugiados, exigindo um sistema de autonomia independente do governo central iraquiano e do governo regional curdo (KRG ou HHK). Vários comités para a educação, a cultura, a saúde, a defesa, as mulheres, a juventude e a economia organizam os assuntos do dia-a-dia. O conselho é baseado na autonomia democrática, tal como articulada por Öçalan, e tem enfrentado uma oposição agressiva por parte do PDK, o mesmo partido que fugiu de Shengal sem dar luta. As recém-formadas YBS (Unidades de Resistência de Shengal), o exército de mulheres YPJ-Shengal e o PKK estão a construir uma linha da frente contra o grupo Estado Islâmico, sem receberem qualquer parte das armas fornecidas aos peshmerga pelas forças da coligação internacional. Alguns

membros das YBS e do conselho chegaram mesmo a ser presos no Curdistão iraquiano. A 29 de Julho, mulheres de todas as idades fizeram história ao fundarem o Conselho Autónomo de Mulheres de Shengal, prometendo que “a organização das mulheres Yazidi será a vingança por todos os massacres”. As mulheres decidiram que as famílias não devem intervir quando as raparigas querem participar em qualquer parte da luta e comprometeram-se a democratizar e transformar internamente as suas próprias comunidades. Não querem apenas “recomprar” as mulheres raptadas, mas libertá-las através da mobilização activa, estabelecendo uma auto-defesa, não só física mas também filosófica, contra todas as formas de violência. O sistema internacional despolitiza insidiosamente as pessoas afectadas pela guerra, especialmente refugiados, através dum discurso que os torna sem von-

Durante todo um ano, as mulheres Yazidi foram retratados pelos media como vítimas indefesas de violação. Inumeráveis entrevistas perguntavam repetidamente quantas vezes tinham sido violadas e vendidas, fazendo-as cruelmente reviver o trauma a bem do jornalismo sensacionalista.

tade, conhecimento, consciência e política. No entanto, os refugiados Yazidi nas montanhas e no campo Newroz, em Dêrîk (al-Malikiyah), que foi construído em Rojava logo a seguir ao ataque, insistem na sua agenda. Apesar de, neste momento, algumas organizações internacionais fornecerem uma ajuda limitada, durante anos quase foi impossível que algum tipo de ajuda passasse para Rojava, como resultado do embargo imposto pelo KRG. As pessoas do campo Newroz disseram-me que, apesar das tentativas do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados de moldarem o campo e o seu sistema educativo de acordo com a sua visão de cima para baixo, a assembleia do campo resistiu, obrigando uma das maiores instituições internacionais a respeitar o seu próprio sistema autónomo. Neste momento, a educação em alfabetização, arte, teatro, cultura, linguagem, história e ideologia é feita de forma intergeracional, ao mesmo tempo que unidades semelhantes a comunas organizam os assuntos quotidianos em Dêrîk e Shengal. “Com todos estes conselhos, protestos e reuniões, a resistência pode parecer normal. Mas tudo isto emergiu apenas há um ano e, para Shengal, isto é uma revolução”, disse um combatente Yazidi do PKK. “A atmosfera de Rojava chegou a Shengal”. Hedar Resît, uma comandante do PKK de Rojava que ensina a sociologia de Shengal antes e depois do último genocídio, estava entre as sete pessoas que combateram o Estado Islâmico no início do massacre e foi ferida ao abrir o corredor para Rojava. A presença de mulheres como ela de quatro partes do Curdistão tem um impacto enorme na sociedade de Shengal. “Pela primeira vez na nossa história, pegámos em armas, porque, com o último massacre, percebemos que ninguém nos irá proteger; temos que ser nós a fazê-lo”, disse-me uma jovem combatente das YPJ-Shengal, que alterou o seu nome para Arîn Mîrkan, uma heroína mártir da resistência de Kobane. Explicou como as raparigas como ela nunca se atreveram a ter sonhos e se limitavam a estar sentadas em casa até casarem. Mas, como ela, centenas juntaram-se à luta, como a jovem que cortou o cabelo, pendurou a trança na campa do seu marido e se juntou à resistência.

O genocídio físico pode ter acabado, mas as mulheres estão conscientes dum genocídio “branco, ou sem sangue, numa altura em que os governos da UE –especialmente a Alemanha– tentam atrair as mulheres Yazidi, tirando-as das suas casas sagradas e instrumentalizando-as para as suas próprias agendas. Xensê, membro do conselho de mulheres, beija o seu neto e explica: “Recebemos treino com armas, mas a educação ideológica é bem mais importante para percebermos porque é que o massacre aconteceu e que estimativas as pessoas podem fazer por si próprias. Essa é a nossa verdadeira auto-defesa. Agora sabemos que éramos tão vulneráveis porque não estávamos organizadas. Mas Shengal nunca mais voltará a ser a mesma. Graças a Apo [Abdullah Öçalan]”. Sozdar Avesta, ela própria uma Yazidi, membro do conselho de presidência da União das Comunidades do Curdistão (KCK) e comandante do PKK, afirma: “Não é uma coincidência que o grupo Estado Islâmico tenha atacado um das mais antigas comunidades do mundo. O seu objectivo é destruir todos os valores éticos e culturas do Médio Oriente. Atacando os Yazidis, tentaram apagar a nossa história. O grupo Estado Islâmico organiza-se explicitamente contra a filosofia de Öçalan, contra a libertação das mulheres, contra a unidade de todas as comunidades. Portanto, derrotar este grupo implica uma leitura histórico-sociológica correcta. Para além de os destruir fisicamente, também temos que retirar a ideologia do EI mentalmente, uma vez que persiste na actual ordem mundial.” Há um ano, o mundo assistiu ao inesquecível genocídio dos Yazidis. Hoje, as mesmas pessoas que – quando todos fugiam – salvaram os Yazidis, estão a ser bombardeadas pelo estado turco que apoia o EI, com a aprovação da NATO. Quando os estados que contribuíram para o crescimento do EI prometem derrotá-lo e, no caminho, destruir a malha social do Médio Oriente, a única opção de sobrevivência é o estabelecimento de uma auto-defesa autónoma e uma democracia de base. À medida que se conduz pelas montanhas de Shengal, o mais belo indicador das mudanças que atingiram este local ferido no espaço de um ano são as crianças nas ruas que, ao verem passar os “camaradas” de carro, cantam: “Viva a resistência de Shengal! Viva o PKK! Viva APO!”. Graças à autonomia democrática, as mesmas crianças que estendiam as suas pequenas mãos e pediam dinheiro quando os combatentes peshmerga passavam agora levantam as mesmas mãos em forma de punho e sinais de vitória. * Dilar Dirik faz parte do movimento

curdo de mulheres. É escritora e doutoranda no Departamento de Sociologia da Universidade de Cambridge.


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28 LATITUDES

Os exércitos vigiam fronteiras de classe O movimento anti-militarista cipriota organiza pelo sexto ano consecutivo um concerto em Nicósia contra a militarização da ilha, contra os nacionalismos e pela coexistência das comunidades grego-cipriota e turco-cipriota. TIAGO ALFAIATE E GIAKOUMIS NEKTA

N

icósia, Chipre. Catorze de Agosto de 2015. Mostramos a documentação, atravessamos o checkpoint da Rua Lidras e dirigimos-nos à Praça de Selimiye, na parte norte da cidade. Apesar dos esforços recentes por renovar as fachadas dos prédios abandonados do centro histórico, a presença latente duma cicatriz marca caladamente a cidade: barricadas construídas com barris, estrados de cama, arame farpado, grades e outros materiais improvisados são, desde 1963, o muro desta Berlim mediterrânea. No sul, os exércitos grego-cipriota e grego; no norte, os exércitos turco-cipriota e turco; no meio, tropas das Nações Unidas. Chegamos à praça enquanto se põe o tórrido sol cipriota. As provas de som do concerto misturam-se com o chamamento à oração do muezim de Santa Sofia, a catedral gótica construída pelos cruzados e reconvertida em mesquita no ano 1571, após a conquista otomana. No cenário, um grande cartaz com a silhueta de um soldado armado com uma guitarra, que ironiza com as placas omnipresentes de proibição de acesso às zonas militares da parte norte da ilha. Em turco, grego e inglês pode-se ler: “Operação Pacífica Anti-militarista”. O nome do concerto faz referência à denominação que a Turquia deu à invasão militar de 1974 –orwellianamente chamada “operação pacífica”- que culminou com a autoproclamação da República Turca do Norte do Chipre nove anos depois. Organizado pelo movimento anti-militarista turco-cipriota, e apoiado por organizações de esquerda como o partido anticapitalista e municipalista Yeni Kibris1, o concerto tem como objectivo lutar pela coexistência num país “completamente independente, com um sistema igualitário, sem arame farpado e sem a hegemonia duma mentalidade imperialista”2. A história geopolítica de Chipre está marcada por ter sido moeda de cambio dos diferentes imperialismos que lutaram pelo controle do Mediterrâneo oriental. Depois de ser administrada pelo Império Otomano durante trezentos anos, Chipre passou a ser um protectorado inglês em 1878. Durante a Primeira Guerra Mundial, o Império Britânico anexou-se a ilha com status de colónia. Em 1960, Grã-Bretanha cedeu o seu domínio depois duma campanha de atentados do grupo armado EOKA (1955-1959), uma organização nacionalista de direita,

anti-comunista e ligada à Igreja Católica que lutava pela enosi (união com a Grécia). No início, Chipre teve uma independência tutelada, com a presencia militar da Grécia, Turquia e Inglaterra (este pais ainda tem duas grandes bases militares com campos de futebol e pólo de relva verde no meio da paisagem árida). A fundação da nova arquitectura institucional -que atribuía quotas governamentais por comunidadesera de barro. Surgiram as tensões entre os nacionalistas pro-enosis do governo do arcebispo Makarios e os sectores hegemónicos da comunidade turco-cipriota pro-taksim (divisão da ilha). Expulsaram-se os membros turco-cipriotas do governo e começaram as lutas inter-étnicas. Dispersaram-se as forças da ONU e dividiu-se Nicósia pela chamada “linha verde”.

A situação explodiu no verão de 1974. Com a ideia da enosi, os fascistas grego-cipriotas executaram um golpe de estado apoiado pela Junta Militar dos coronéis da Grécia. Amparada no seu direito de tutela, a Turquia invadiu a parte norte da ilha provocando milhares de mortos e a segregação étnica com uma migração de 200.000 gregos-cipriotas e 60.000 turco-cipriotas. A fronteira que divide a ilha esteve fechada com cadeado até 2003, e abriu com a entrada de Chipre na União Europeia. As novas jazidas de gás nas águas cipriotas tem intensificado as negociações numa economia baseada no turismo que foi “resgatada” pela troika no 2013 quando o Partido Comunista AKEL governava. E nas ruas a gente fala da possível devolução duma parte de Famagusta,

Num contexto tão marcado pelas narrativas nacionalistas do conflito, o movimento anti-militarista cipriota consegue não só denunciar as bases socio-económicas da militarização, mas também criar espaços comuns de acção além dos limites estabelecidos pelo relato hegemónico.

uma “cidade morta” onde parece que o tempo parou em 1974. Hoje, esse cenário apocalíptico de altos hotéis destroçados pela guerra é o pano de fundo para os turistas estrangeiros que desfrutam das aguas cristalinas. Um grupo de manifestantes turco-cipriotas e grego-cipriotas (estes a desafiar a proibição de se manifestar na parte Norte) chegam juntos à Praça Selimiye. Há dezenas de policias -de uniforme ou à paisana-, alguns sentados nos cafés. Este ano, pela primeira vez, um colectivo grego-cipriota participa activamente na organização, o grupo libertário Sispirosi Atakton3, que pendura um cartaz com o lema “Os exércitos vigiam fronteiras de classe”. Os contactos entre os activistas das duas partes da ilha tem crescido desde a abertura dos primeiros checkpoints depois de 30 anos de isolamento. Um momento importante neste processo foi o acampamento Occuppy Buffer Zone no outono de 2011, quando foi tomada a zona “morta” do centro da cidade4. Num contexto tão marcado pelas narrativas nacionalistas do conflito, o movimento anti-militarista cipriota consegue não só denunciar as bases socio-económicas da militarização, mas também criar espaços comuns de acção além dos limites estabelecidos pelo relato hegemónico.

Na praça Selimiye, o ato começa com um manifesto, em grego e em turco, que invita à revolta contra “os exércitos, os representantes e o dinheiro”, denunciando o negócio do militarismo por “destruir o meio ambiente e as condições para a vida” e por impor um modelo nocivo de masculinidade. Assim foi também denunciado pelo colectivo FAQ (Feminista, Anarquista, Queer) na Marcha por uma Nicósia Desmilitarizada deste ano com o lema “Não encaixamos no vosso binarismo! Abandonem as vossas fronteiras e exércitos!”5. Depois das piruetas impossíveis do colectivo de breakdance Studio 21, começa um recital com poemas de autores cipriotas e também de Bertolt Brecht, Nazim Hikmet ou Eduardo Galeano. Segue a intervenção de Davita Gunbay, que torna pública a sua objeção de consciência (a décima oitava que se torna pública desde 1993)6. Chegada de Istambul, a banda Bandista cantam o seu repertório e versões em turco do cancioneiro revolucionário da Guerra Civil espanhola. Um coro de mulheres turco-cipriotas soube ao cenário. Entre todas as canções da noite, há uma que se ouve duas vezes, em grego e em turco: “As rodas dos moinhos vão girar outra vez e a gente pobre vai voltar a sorrir / Já não podemos suportar este sofrimento, já não vamos obedecer mais”. É uma peça tradicional cipriota, recolhida pela banda Monsieur Doumani, que fala da revolta popular de 1835 na que participaram juntos camponeses grego-cipriotas e turco-cipriotas7. Na praça de Selimiye, a mensagem é clara: “A todos os exércitos que tentam capturar às nossas vidas com aramo farpado, dizemos-lhes: vai embora já com as vossas botas e canhões!”8. /// NOTAS 1 Website do partido, em turco: http://www.ykp. org.cy/. 2 O manifesto dos organizadores pode ser consultado na página de 35-33 Independent Media, um colectivo de comunicação crítica trilingue, inter-comunal e assembleiario que da voz às lutas de base no Chipre: http://www.3533.com/6th-anti-militarist-peace-operationcoverage-media/. 3 Para mais informação e contacto, podem-se consultar as páginas do colectivo Sispirosi Atakton (https://syspirosiotherlanguages. wordpress.com/), do jornal Entropia que eles publicam (http://www.en-tropi.org/) e do espaço social autogerido Kaymakkin (http:// kaymakkin.org/). 4 Para um relato audiovisual do movimento Occupy Buffer Zone: http://www.35-33.com/ occupy-buffer-zone-movie-is-online/. 5 Pode-se ler a intervenção inteira na página do colectivo FAQ: http://faqcyp.espivblogs. net/2015/03/01/demilitarised-nicosia-2015-wewont-fit-into-your-binaries-so-let-go-of-yourborders-and-armies/. 6 Para mais informação sobre o movimento de objeção de consciência: http://www.35-33.com/ category/pacifism-conscientious-objection/. 7 A canção pode-se ouvir aqui: https://www. youtube.com/watch?v=IDmYXmfws1A. No fim do vídeo ouve-se o lema “fascistas nem aqui nem em lugar nenhum”, voz em off das centenas de manifestantes que em Janeiro de 2013 impediram uma manifestação do grupo neonazi ELAM pelo bairro de Faneromeni, em Nicósia. 8 Ver nota 2.


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CRÓNICA 29

O exílio portuense das ‘Safos Galegas’ por Carlos C. Varela

Entretanto, cá fora, organiza-se a solidariedade. O senhor Nogueira, proprietário do Café Lisbonense, oferece-se para pagar a fiança, mas as detidas são levadas para a Cadeia da Relação. Os jornais abrem subscrições populares para arrecadar dinheiro para as galegas, para as quais doarão, sobretudo, as mulheres portuenses. O Jornal de Notícias juntará 18.000 reis, O Norte 1.000, O Primeiro de Janeiro 1.500… Também no Café Lisbonense onde, aliás, recolhem roupa de luto para Elisa, cuja tia acabava de falecer em Santiago de Compostela. O fotógrafo José Rodrigues entrega-lhes 17.000 reis que obtivera de vender um retrato que lhes tirara na prisão. Em 29 de Agosto, dão-lhes a liberdade e, segundo e crónica do Jornal de Notícias, uma multidão recebe as safos galegas na rua com um “caloroso viva às duas mulheres”. Serão detidas de novo, transladadas para o Aljube e libertadas definitivamente à tarde pela rua de Bainharia, para evitar aglomerações. Sabe-se que, por alturas dos Reis de 1902, Marcela tem uma menina e, pouco depois, partem para Buenos Aires.

“O crego que che casou devia de estar borracho porque não che perguntou se eras fêmea ou macho” Cantiga popular da Ria de Arouça (Bouza-Brey, 1982 (1931): 109)

N

o Verão de 1901, Mário e Marcela, um jovem casal galego, chegava ao Porto para encetar uma nova vida; primeiro estabelecer-se-ão na pousada A Mesquita, na rua do Bonjardim e, depois, noutra da praça da Batalha. Marcela começará a trabalhar no Café Lisbonense, cujos proprietários a apreciam muito, correndo tudo bem para o casal até que um espanhol os delata à polícia: Mário, na realidade, era Elisa, uma mulher. A partir daí, os seus genitais tornar-se-ão um campo de batalha: entre o amor lésbico e o heteropatriarcado, mas também entre projectos nacionais divergentes. E a luta de Elisa e Marcela, minuciosamente reconstruída por Narcisco de Gabriel (2008) – e divulgada pelo recentemente falecido Eduardo Galeano (2012) – merece um posto de destaque na história queer de Portugal. Elisa Sánchez nasce na Corunha em 1862, cinco anos antes de Marcela Gracia. Conhecem-se na Escola Normal de Mulheres, onde Elisa trabalhava e Marcela estudava. Depressa nasce uma forte amizade entre elas, julgada como excessiva pela família de Marcela, que tenta esfriar a relação enviando a filha para Madrid. Porém, sendo já as duas professoras – uma profissão que permitia certa autonomia às mulheres – encontram-se na comarca de Bergantinhos, com Elisa à frente da escola rural de Couso e Marcela da de Traba, estabelecendo-se finalmente a primeira em Calo (Vimianço) e a segunda em Dumbria. Com independência económica e longe do controlo familiar, as duas companheiras podem fazer a sua vida. Todas as noites Elisa percorria sozinha com o seu revólver – como era costume dos moços de então - os onze quilómetros que distavam até à morada de Marcela. Mas o seu forte carácter – a vizinhança chamava-lhe ‘o Civil’, em alusão à Guarda Civil - faz com que se envolva em pelejas com os pretendentes que Marcela tinha na aldeia, e chegará mesmo a tentar suicidar-se. Com o convívio muito rareado, Elisa volta à Corunha. Após este primeiro fracasso, traçam uma nova estratégia, muito mais audaz e arriscada, para conseguir uma vida própria: Elisa propaga a falsa notícia de que vai embarcar para Havana, enquanto Marcela diz que vai casar com um tal Mário. Já na Corunha, a primeira começa a transformação: veste roupa de homem, deixa crescer bigode, fuma… Elisa transforma-se em Mário Sánchez Loriga, um emigrante recém-chegado de Londres para casar com a sua prometida Marcela. Fazendo-se passar por protestante, tem que se batizar como católico para poder casar e vai, assim, oficializando a sua nova identidade. Em 8 de Junho de 1901, às sete e meia de manhã, o

ETNOGRAFIA LÉSBICA Como em toda a Europa camponesa, na Galiza tradicional o lesbianismo esteve marcado pelo paradoxo das mulheres padecerem e, ao mesmo tempo, beneficiarem da sua invisibilidade: o patriarcado era incapaz de conceber a possibilidade de uma sexualidade “sem homem”, sendo o imaginário sexual dominado por esta carência masculina. As próprias cantigas eróticas da lírica medieval galego-portuguesa são um exemplo disto (v. Callón, 2011), como quando Fernando Esquio oferece a uma abadessa “quatro caralhos fran-

A GREVE DA CORUNHA sacerdote Víctor Cortiella tornar-se-á, sem o saber, no primeiro clérigo a casar duas mulheres. Apenas a mãe de Marcela dará conta da verdadeira identidade do noivo. A cerimónia tem lugar na igreja de São Jurjo, com uns padrinhos de bodas muito respeitáveis, convite de chocolate e passeio pela Corunha.

EXÍLIO E ENCARCERAMENTO Pouco durará a felicidade do novo casal corunhês: começa a haver dúvidas acerca do género de Mário, e isto torna-se assunto público. Na diligência a caminho de Dumbria, os vizinhos de Vimianço, onde fizeram uma paragem, deram conta de que Mário não é senão a mestra Elisa. Em Dumbria submetê-la-ão a uma chocalhada, expressão máxima de sanção moral popular (para a Galiza vid. Castro, 2007) – sobre a qual E. P. Thompson (1995: 532 e ss.) tem advertido que não se deve idealizá-la,

pois muito amiúde mostra continuidade com os castigos da Igreja. Aos berros de “Que saia essa! Que saia o marimacho! Que se apresente ‘o Civil’!”, a multidão pretende examinar os genitais de Mário, que foge para o Porto. O assunto salta para as capas dos jornais, e o burguês La Voz de Galicia chama-lhe “matrimónio sem homem”. A 1 de Julho, o juiz da Corunha, Pedro Calvo, emite uma ordem de busca e captura, que é recebida pelo comandante da Guarda Civil de Vigo e pela polícia portuguesa, mas não será antes de 16 de Agosto que as detêm na praça da Batalha. Após interrogar as galegas, o comissário Adriano Acácio de Moraes envia-as para a prisão do Aljube. Havia tal expectativa perante uma possível extradição que as pessoas se concentram nas estações do comboio de Valença do Minho, Tui e Corunha para as ver passar. Comparecerão perante o Tribunal no dia 21, imputando-lhes o juiz Margarido Pacheco os delitos de indocumentação, falsificação e travestismo, no caso de Elisa, e o de cumplicidade, no de Marcela.

Tudo isto acontecerá num contexto de excepção que pôs a cidade em estado de guerra: a greve acordada entre o forte movimento operário da cidade e o agrarismo da periferia rural. A 29 de Maio, os 140 guardas de consumos declararam-se em greve, confrontando-se com a Guarda Civil no dia a seguir, com o resultado de um morto. A 1 de Junho, o exército espanhol entra a reprimir a greve causando uma matança: dez pessoas foram assassinadas sob o fogo das carabinas máuser, incluindo três camareiras do Gran Hotel de Francia que observavam a batalha por trás das janelas. Três anos depois, as serventas e camareiras do hotel, as mesmas que enterraram as suas companheiras assassinadas, declaram-se em greve contra os patrões. O diário La Gaceta de Galicia saudou o protesto com indissimulado machismo: “A greve, pelo sexo e a ocupação das interessadas, é curiosa e talvez seja o primeiro caso que se regista no nosso país.”


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30 CRÓNICA ceses,/ e dous aa prioresa/ (…)/ quatro caralhos asnais/ enmangados en corais,/ con que calhedes a man”. Alguns tribunais da Inquisição, no mesmo sentido, não condenavam as práticas lésbicas, salvo se se demonstrasse que usavam algum instrumento fálico. Na cultura popular, entende-se que o lesbianismo nasce da carência de homem. Ainda na Galiza de hoje se canta isso de que “A velha a falta de macho / meteu pola cona o mango do sacho”, completada com uma moral mais bem libertária: “E se fijo (fez), fijo bem, / n acona da velha não manda ninguém.” No mundo dos mouros – seres da mitologia popular galega que moram em castros e monumentos megalíticos – muitas vezes aparecem relatos de camponeses que tentam desencantar uma atractiva e perigosa moura através de práticas rituais que não são senão metáforas de desvirginamento: mijar nela, bater-lhe com um pau e fazer-lhe sangue, tirar-lhe uma flor da boca… Simbolismo que se mantém exactamente igual quando quem realiza o desencantamento é uma mulher: “a cultura popular galega não contempla o lesbianismo como possibilidade”, conclui a etnóloga Mar Llinares (1990: 147).

imputa Elisa por travestismo. As próprias crónicas da imprensa compadeciam-se de Marcela ao mesmo tempo que carregavam contra Elisa. Para além do mundus inversus do Entrudo, não há muitos casos de travestismo na cultura popular. Travestiam-se de homens as ceifeiras galegas do século XVIII que emigravam para Castilha, mas apenas porque não se permitiam mulheres, do mesmo modo que a intelectual Concepción Arenal assistia travestida às

atacava o imaginário galego projectando a imagem dumas camponesas galegas promíscuas e pouco respeitáveis, ao mesmo tempo que o movimento nacional galego defendia a honra das suas mulheres. As diferentes recensões do caso de Elisa e Marcela na imprensa lusa, galega e espanhola, podem analisar-se a partir desta óptica, e mais em concreto no contexto do que Elias Torres Feijó (1996) chama “o perigo português”: o temor do Estado es-

BIBLIOGRAFIA CITADA: Bouza-Brey, F. 1982 (1931). “Cantigas populares de Arousa”. Etnografía y Folclore de Galicia, (t. 2). Vigo: Xerais.

(...) ENQUANTO GALEGAS, A IMPRENSA ESPANHOLA DENIGRE MARCELA E ELISA MAS, ENQUANTO ESPANHOLAS, QUALIFICA-AS DE CASO ESTRANHO; A IMPRENSA LUSA, PERMITE-SE UM TOM MAIS RELAXADO PORQUE NÃO ESTÁ EM JOGO A SUA HONRA NACIONAL. Mas, como assinalam Vázquez García e Moreno Mengíbar (1997:213), a hermafrodita é o “antepassado genealógico do homossexual”, e é aí que se encontram as chaves interpretativas do que sucedeu às valentes safos galegas. A cantiga que encabeça este artigo, compilada por Fermín Bouza-Brey antes da Guerra Civil espanhola, poderia fazer referência ao caso de Marcela e Elisa. Nela não se faz escárnio do impensável lesbianismo, mas da confusão de géneros, do mesmo jeito que a chocalhada de Dumbria ia só contra Elisa, ou que o juiz Margarido Pachecho apenas

AS SAIAS DOS MINHOTOS A vestimenta atribuída a homens e mulheres varia no espaço e no tempo, de maneira que o que agora não é “próprio de homens”, pode tê-lo sido no passado e vice-versa. Em 1730, as autoridades lusas proibiram que os homens de Nabais trabalhassem com saia (Soares, 1985:267-273), prática que, ao que parece, continuou vigente mais tempo (Veiga de Oliveira et al., 1975) e, sem poder considerar-se travestismo – pois era uma peça masculina –, a sua recordação pode vir ajudar na desconstrução das actuais ideologias de género.

lógica nacional-patriarcal produz leituras divergentes: enquanto galegas, a imprensa espanhola denigre Marcela e Elisa mas, enquanto espanholas, qualifica-as de caso estranho; a imprensa lusa, permite-se um tom mais relaxado porque não está em jogo a sua honra nacional. No momento culminante, a Revista Gallega da Corunha, publicação dos sectores galeguistas, aproveita a ocasião para pôr em relevo a diferença de atitudes entre os portugueses, que socorreram as duas galegas e solicitaram o seu indulto, e a reacção intolerante da imprensa espanhola, que pedia o linchamento. Os galeguistas falarão da “lição” de cultura que deram os “bons lusitanos” e, apenas uns meses depois, o embaixador espanhol em Lisboa informará o seu ministro sobre a situação do “perigo português”, destacando a excessiva confraternidade que mostrava o jornal lisboeta O Século, “no qual se reproduzem escritos da Revista Gallega da Corunha, preconizando a ‘união-luso-galaica’ nos termos mais claros e transparentes”.

Callón, C. 2011. Amigos e sodomitas. Configuración da homosexualidade na Idade Media. Santiago de Compostela: Sotelo Blanco. Castro, X. 2007. “Ars amandi na vellez: a chocallada”, Historia da vida cotiá en Galicia. Séculos XIX e XX. Vigo: Nigratrea Gabriel, Narciso de. 2008. Elisa e Marcela. Alén dos homes. Vigo: Nigratrea. Galeano, E. 2012. “Sacrílegas”. Los hijos de los días. Madrid: Siglo XXI. Llinares, M. 1990. Mouros, ánimas, demonios. El imaginario popular gallego. Madrid: Akal. Mariño Ferro, X. R. 2014. “Aquiles, Martuxiña, as amazonas e os roles de xénero”, A Trabe de Ouro nº 100. Miguélez-Carballeira, H. 2014. Galiza, um povo sentimental? Género, política e cultura no imaginário nacional galego. Santiago de Compostela: Através Editora. aulas da Faculdade de Direito na década de 1840, apertando os peitos com um corpete duplo. Há, porém, um interessante romance popular, cuja versão galega foi escutada por Said Armesto (1997: 145-146) em Lousame à fiadora Dolores Mato Castro, em 1902, que narra como Martuxinha se transformou em homem para participar na guerra por amor ao seu pai. Estudou-a como caso de género o antropólogo Xosé Mariño Ferro (2014).

A DISPUTA NACIONALPATRIARCAL Num magnífico ensaio que está a abalar a cultura galega, a investigadora Helena Miguélez-Carballeira (2014) desconstrói a lógica sexual patriarcal em que se construíram os imaginários nacionais galego e espanhol. Através de um percurso pelas estratégias discursivas do confronto entre o projecto nacionalista espanhol e a resistência galega ao mesmo, Miguélez-Carballeira demonstra como esta disputa se deu amiúde no campo sexual: o espanholismo

panhol de que o estreitamento de laços entre a Galiza e Portugal pudesse impulsionar o secessionismo galego. Embora as leituras sejam múltiplas, pode-se detectar na imprensa espanhola uma corrente que aproveita para reproduzir os estereótipos coloniais sobre o povo galego, como fez o jornal madrileno La Patria (28-6-1901): “duas histéricas que na Galiza quebraram a monotonia da vida pacífica dos galegos”; ou o corunhês, embora espanholista, La Voz de Galicia (24-6-1901), que pedia a psiquiatrização das duas mulheres, como o tinha feito com inimigos políticos, ao mesmo tempo que defendia a rectitude das ‘províncias’: “consideramos que tanto Mário-Elisa como Marcela são duas doentes, cuja neuropatia não é castigada pelos Códigos, mas que têm um departamento a ocupar no manicómio de Conxo, onde quiçá não consigam ser curadas, mas sim estudadas pelo sábio Sánchez Freire e pelo menos ali reclusas evitaremos que se espalhe a sua doença, que costuma ser contagiosa pelo exemplo, e (…) que por fortuna nas nossas províncias galegas não só não abunda, senão que é raríssima.” A mesma

Said Armesto, V. 1997. Poesía popular gallega. Corunha: Fundación Barrié. Soares, F. N. 1985. “Costumes e actividades das populações marítimas do concelho de Esposende”. Actas do Colóquio “Santos Júnior” de Etnografía Marítima, T. III. Póvoa de Varzim. Thompson, E. P. 1995. “La cencerrada” (Rough Music), Costumbres en común. Barcelona: Crítica. Torres Feijó, E. J. 1996. A Galiza em Portugal, Portugal em Galiza através das revistas literárias (1900-1936). Tese de Doutoramento, Universidade de Santiago de Compostela. Vázquez García, F. e A. Moreno Mengíbar. 1997. Sexo y razón. Madrid: Akal. Veiga de Oliveira, E. et al. 1975. Actividades agro-marítimas em Portugal. Lisboa: Instituto de Alta Cultura, Centro de Estudos de Etnografia.


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CRÓNICA 31

Felizmente continua a haver luar!

Jorge Valadas / Setembro 2015

P

assámos Monchique, para trás fica a Serra da Brejeira, a aldeia da Santa Bárbara e, finalmente, entramos em São Teotónio. Odemira fica mais a norte, a uns quinze quilómetros. Viemos à «Feira Antiga», animação, artesanato, jogos tradicionais, baile. «Participe à moda antiga com trajes e acessórios», diz o cartaz. Ao lado está anunciado o «Jurassic World» no cinema de Odemira, com os dinossauros... São Teotónio é uma aldeia vazia, triste, pobre, casas por acabar, outras abandonadas. A «Feira Antiga» é no largo da Igreja, uns reformados alentejanos com os trajes, mesas e comidas, música, cafés abertos à volta. Não se pode dizer que o ambiente seja Woodstook ou mesmo Jazz no Rio. Mais no estilo da especialidade portuguesa da festa dos tristes. Damos uma volta ao largo e rapidamente começamos a sentir que es-

tamos num lugar estranho, um lugar que é mais do que alentejano. Há casas velhas que parecem servir de dormitórios de gente com tipo físico mais oriental do que os habitantes tradicionais. Imigrantes, claro, imigrantes aos montes, que não fazem parte da Festa. Os búlgaros parecem os mais pobres e desgastados, no café que parece ser-lhes reservado alcoolizam-se a ver o futebol – o que já é um nítido sinal de integração –, os bengalis deambulam como se andassem à procura de trabalho, por vezes há um casal com crianças, os tailandeses têm ar mais enérgico, e os nepaleses, jovens, concentram-se no outro lado da praça, num café que parece também fazer ofício de dormitório. Há também brasileiros, vietnamitas, romenos e por aí fora... Os alentejanos da Festa parecem não reparar nesta presença exótica, ou fingem não reparar. Um ambiente estranho… Duas lojas despertam a atenção. Uma empresa de transporte faz carreiras entre São Teotónio, a Bulgária e a Roménia. A outra é uma agência de trabalho temporário, tudo escrito em inglês, que


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32 CRÓNICA propõe «jobs» nos campos para gente de passagem. Chegámos a São Teotónio e encontrámos a globalização no meio do velho e pobre Alentejo. Voltamos à estrada, direção Zambujeira do Mar. Poucos quilómetros depois de São Teotónio o mistério desvenda-se: quilómetros e quilómetros de estufas a perder de vista, na zona haverá cerca de 1100 hectares. À entrada de uma minúscula povoação está o Café Benthai; tailandeses e vietnamitas bebem umas Sagres, sentados à porta. Há prato do dia tailandês. A imprensa chama a isto o sucesso das culturas no litoral alentejano. Resta saber se é sucesso ou crime. São culturas que necessitam de bom ar, boa água e bom tempo e muita mão-de-obra. A terra não é necessária, tudo é cultivado em substrato, com a ajuda da química. Mas como infelizmente também há terra, em breve ela estará, como a água, poluída. Seis mil toneladas de frutos vermelhos são produzidos por ano na zona de Odemira, dos quais 90% são exportados. O negócio está nas mãos, ou nos bolsos, da multinacional americana que domina o mercado, a Driscoll’s [Todos os dados e citações foram retirados do artigo de Carlos Dias publicado no Público de 30 de Junho 2015], dirigida em Portugal pelo Sr. Arnold Heeren, a qual criou, com capitais americanos, outras empresas para produzir, a Lusomorango por exemplo, que é dirigida pelo mesmo senhor que parece ser um personagem central do filme de horror. O Sr. Santos Andrade é o vice-presidente e está feliz. Como não havia de estar? A faturação da sociedade passou de cinco milhões de euros em 2005 para 36,8 milhões em 2014. «Odemira é uma zona estratégica para os pequenos frutos», diz o homem que fala como um coronel da guerra colonial. Também feliz, está o Sr. Gil Oliveira, que com orgulho patriótico diz: «Sou o maior produtor português deste fruto e detenho o recorde mundial com 24 toneladas por hectare». E ainda há gente que não acredita nas virtudes capitalistas da burguesia lusitana? Depois, a comercialização é feita pela Discroll’s. Que os americanos, mesmo no sul, não perdem o norte.

À entrada de uma minúscula povoação está o Café Benthai; tailandeses e vietnamitas bebem umas Sagres, sentados à porta. Há prato do dia tailandês. A imprensa chama a isto o sucesso das culturas no litoral alentejano. Resta saber se é sucesso ou crime. O «sucesso» deve-se aos clientes do café Banthai, do café búlgaro e do café nepalês. Este tipo de cultura precisa em média de 12 pessoas por hectare. Num Alentejo vazio, entre velhos e emigrados há umas mulheres disponíveis para vender a sua força de trabalho, mas elas não querem trabalhar ao domingo?! Uma arrogância subversiva que deve vir do 25 Abril. O Sr. Gil prefere o novo proletariado, diz que os imigrantes apanham 4,5 quilos por hora e por pessoa em média. Fico a pensar o que isto quer dizer concretamente ao fim do dia, em que estado estariam os braços e os corpos do Arnold, do Andrade, do Gil e outros, se a tal suplício fossem submetidos? Há mulheres búlgaras a apanharem 7 quilos, por mil euros «limpos», acrescenta um dos exploradores. Porque os salários são, evidentemente, em função da apanha. Nesta fase do campeonato intervém o Sr. Arnold para dizer umas palavras humanistas bem sentidas sobre as más condições de trabalho e de vida dos trabalhadores. Que procura evitar «as situações degradantes e as máfias». O indivíduo é um brincalhão. E o que faz para o evitar? Está claro que não faz nada, basta uma rápida passagem na zona para o saber. O Sr. Arnold mente como respira. Como é que estas centenas, milhares, de emigrantes chegam do Nepal e do Bangladeche até São Teotónio? E em que condições chegam? E a que preço chegam? A GNR não deve saber de nada. Quem poderia dar uns palpites sobre o assunto é

o feio gajo da agência de trabalho temporário ou a loura empregada da agência de viagens. Mas, para ser franco, não indaguei… Esta mão-de-obra internacional, vivendo em condições miseráveis a milhares de quilómetros dos países de origem, é uma resposta provisória à questão da paz social. O gangue da Driscoll’s deve ter aprendido a lição com as revoltas nas estufas de Andaluzia, no princípio de 2000, quando os trabalhadores norte-africanos explorados nas dezenas de milhares de hectares de estufas de El Ejido (Almeria) se revoltaram obrigando o governo espanhol a intervir, criar melhores condições de habitação e impor melhores salários aos empresários. Neste canto perdido do Alentejo o cálculo frio dos criminosos da economia consiste em dar tempo ao tempo, explorar o máximo, destruir as terras e as águas, antes que se crie uma comunidade de classe entre trabalhadores que, por agora, nem entre eles se entendem. Mas o capitalismo, pelas condições de exploração que impõe, acaba por unificar esta gente, e o que vier depois será outra história, que não está escrita mas que é previsível. Os alentejanos, que tiveram uma história social violenta e rica estão anestesiados, os jovens emigraram ou suicidaram-se e os velhos andam a beber uns copos em «Festas Antigas». O grande partido do proletariado, o PCP, administra a região desde o 25 de Abril e parece brilhar pela ausência… Os nepaleses não votam e sabe-se lá se alguns até não serão maoistas, o que seria um abuso de confiança! Os funcionários reconhecem que a região está a afundar-se, com velhos com reformas cada vez mais baixas, com mais pobres com RSI mais baixos, com mais desempregados. Como por todo lado a desertificação avança. De 2010 a 2014, a população do país diminuiu de 200 000 almas penadas e, em 3 anos, só no Baixo Alentejo, evaporaram-se umas 5 000 pessoas. Hoje a Questão Agrária que estudava o Álvaro Cunhal mudou de forma. Como na Andaluzia, os grandes proprietários já não são os latifundiários, são as grandes multinacionais da agroalimentar, muitas vezes também ligadas à grande distribuição. Bicharada que exige outro tipo de luta. Mas quem é que fala de luta? O PCP e a sua CGTP queixam-se, gritam suavemente, apelam à mobilização eleitoral, falam de uma política «patriótica», mas, face a estes mastodontes, não existem. Fazem ainda menos que os sindicalistas espanhóis. Ajudar os imigrantes a organizarem-se? Que aventureirismo! O Sr. Arnold da Driscoll’s até é capaz de ser pessoa civilizada, aceitar umas sugestões razoáveis e prometer umas coisinhas. Resta-nos imaginar a revolta que tal concentração proletária e tais condições de exploração tornam possível. A propósito de modernidade, vem à baila dizer também algo sobre a família Chiyu Lyu, o Alfeizerão e a luta política no seio da classe dirigente chinesa. Na New York Review of Books, («China: The Superpower of Mr. Xi», NY, Agosto 2015), Roderick MacFarquhar escreve um bom artigo sobre as fragilidades desta classe e os riscos da campanha de anticorrupção e de moralização da vida política do presidente Xi Jinping. Com o sorriso frio e cínico que se lhe conhece, o Sr. Xi apregoa: «a pureza moral é essencial para que os partidos marxistas continuem puros, e a integridade moral deve ser um traço fundamental para que os funcionários continuem limpos, honestos e íntegros». R. MacFarquhar começa por fazer uns cálculos simples. O partido tem 80 milhões de membros, e o próprio órgão de controlo do partido calcula que, no mínimo, 10% dos quadros de base são corruptos, o que representará uns oito milhões de funcionários. Se juntarmos a estes os milhões de esposas, filhos, familiares e parentes próximos, chega-se a uns 40 milhões de pessoas suscetíveis de serem perseguidas. Conclusão: abanar este gigantesco edifício corrupto significa deitar abaixo o partido, a estrutura de base do Estado da segunda potência mundial. Mais do que perigosa, a tarefa do camarada Xi é praticamente impossível. A natureza da burguesia vermelha chinesa assenta em valores que tem origem na sua formação recente: a desigualdade assumida, a agressividade e a arrogância, o poder do mais forte, a violência nua e crua. Num recente livro sobre as tendências rebeldes esmagadas por Mao durante a Grande Revolução Cultural, Yichung Wu (The Cultural Revolution

at the Margins, Harvard University Press, 2014) mostra que a «Teoria da linha do sangue vermelho», esteve na origem da GRC, e a sua defesa justificou a terrível repressão das tendências radicais que a criticavam. A «teoria» atribuía «qualidades» particulares aos membros da elite partidária, as quais depois se «transformavam» em «características» quase naturais e transmissíveis de pais para filhos. Uma ideologia que serviu para reproduzir e consolidar a nova classe dirigente, que governa pela repressão aberta, não pela negociação ou pelo consenso interclassista. O que explica Tiananmen e hoje as respostas violentas aos movimentos de greve e de camponeses espoliados. A corrupção, que é apenas um dos aspetos desta especificidade de classe, foi depois reforçada pela força do desenvolvimento capitalista. Para R. MacFarquhar, o camarada Xi tem poucas opções e terá de contemporizar para evitar uma reação do aparelho. Nada melhor do que a aventura nacionalista para ocultar as dificuldades sem perder a face e mobilizar o povo. E assim a resposta à catástrofe de Tianjin – de que foi responsável direta a corrupção – acabou por ser um desfile militar mostrando a potência da China no mundo…

O capitalismo chinês entra numa grave crise de rentabilidade, o investimento reduz-se e os capitais orientam-se para o campo especulativo com as consequências que se sabe sobre o agravamento da recessão global. Mas a crise do político é também o resultado da crise da economia. O capitalismo chinês entra numa grave crise de rentabilidade, o investimento reduz-se e os capitais orientam-se para o campo especulativo com as consequências que se sabe sobre o agravamento da recessão global. À espera de clarificação política, insegura, a burguesia vermelha procura pôr o cacau especulativo em sítios mais tranquilos(1). Aparecem assim os Vistos Gold, na Inglaterra, no Canadá, em Espanha e em Portugal. Num país que está à venda, o Chico esperto dos submarinos procura captar umas centenas de milhares de euros dos capitais especulativos. A isso ele chama: «dinamizar a economia». Como dizia o surrealista belga Camille Goemans, «Uma boa mentira vale mais do que um grande discurso!» E é assim que as ondas de choque deste tremor de terra chegaram a Alfeizerão. O Sr. Chiyu Lyu, membro da burguesia vermelha, tinha uma irmã que estudava na Alemanha e que se apaixonou por um imigrante, vindo a casar em Alfeizerão. Só que, na globalização, as histórias de amor acabam de maneira tenebrosa. O Chiyu Lyu veio à boda, gostou da Ginja de Alcobaça e decidiu comprar ali mesmo uns 7 hectares para construir uma colónia chinesa, 57 moradias de luxo, hotel, piscina, ténis, e mesmo uma escola de mandarim, tudo muito ecológico e segundo os princípios harmoniosos do Feng Shui. Que é a última obsessão da burguesia chinesa, que depois de ter criado um desastre ecológico sem precedente gosta de viver em redutos protegidos com ar puro. Só que os terrenos pertencem à Reserva Agrícola Nacional e há quem se ofusque. O Chyiu Lyu está furioso. Como assim, o que é isso da RAN? A China é a segunda potência mundial e estes camponeses estão a levantar obstáculos ao meu desejo pessoal? Campo de trabalho para esta gente, já! «Vamos andando», suspira o vizinho. «Levados, levados sim», cantava o hino fascista. E nisto estamos, entre a Driscoll’s e o Feng Shui de Alfeizerão. Entregues aos bichos! O que, obviamente, é inaceitável e não aceitamos. Como aconselhavam os anarquistas de 1920, deixemos o pessimismo para tempos melhores. O tempo trará outros possíveis. /// NOTAS 1 Na recente caída das bolsas chinesas, só em julho de 2015, evaporaram-se fundos equivalentes a seis vezes a dívida grega.


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TETRALOGIA 33

Orgasmo negro: do silencioso grito contestatário à insurreição pulsional (Parte I) MANUEL DIAS

C

om este artigo encerramos a tetralogia dedicada às formas de liberdade individual no relacionamento com o Outro e com a colectividade, esclarecendo questões apresentadas no final do artigo Marx, sedutor e latente despotismo, publicado no número anterior, onde se lia: “Como chegar então à liberdade individual partilhada? Que papel é dado à insurreição? A resposta a estas questões leva-nos a trilhos que conduzem a um silêncio contestatário imunizante da manipulação, acompanhado de uma acção responsável do inconsciente actuante.”

a distância dos sons no tempo O primeiro filósofo a dedicar-se aos desígnios da liberdade individual, contrariando os seus antecessores e afastando-se da preocupação com a verdade e o fundamento de todas as coisas para se debruçar sobre a nossa relação enquanto indivíduos com os outros e com o mundo, tomou como base da sua construção filosófica a inscrição da entrada do templo de Delfos: conhece-te a ti mesmo. Esta importante chamada de atenção que constituiu uma mudança de paradigma na filosofia, aconteceu há cerca de 2500 anos e foi realizada por Sócrates, que encontrava no seu método a possibilidade de autotranscendência. Ao longo dos tempos, muitos filósofos repetiram a necessidade dessa incessante busca do conhecimento de si próprio – em vão, ao que tudo indica – fundamental para nos guiarmos na relação com os outros e, sobretudo, connosco próprios. Só uma tarefa dessa envergadura nos pode levar a falhar melhor; quando não executada, somos induzidos a repetir os mesmos erros em situações e tempos diferentes sem, no entanto, nos apercebermos da mimese, presos a um ignorado momento traumático inicial que nos impossibilita a superação. (Labal afirma que após o quinto mês de gestação, altura em que se completa a formação do sistema nervoso central, o feto está apto a sofrer processos traumáticos, uma vez que adquiriu memória sensorial.) O facto de nos desconhecermos acarreta, naturalmente, avultados prejuízos emocionais, tanto ao próprio como aos outros, fazendo-nos prolongar até à decadência a imaturidade que se encontra na génese de uma sociedade infantilizada

e corrompida: (suponho que não restarão dúvidas de que somos historicamente uma das civilizações em que os cidadãos são mais ignorantes e, no entanto, nunca os meios de comunicação alcançaram tanta eficácia. Paralelamente à evolução do domínio técnico aumenta a dificuldade em se distinguir verdadeiro e falso, representação e realidade, cópia e original: “o sagrado cresce aos olhos dos cidadãos à medida que decresce a verdade e a ilusão aumenta, de modo que para eles o cúmulo da ilusão é também o cúmulo do sagrado” (L. Feuerbach). No centro do ruído informativo somos manietados por agências de comunicação ao serviço dos interesses dominantes, que continuamente invadem o espaço público com slogans e palavras de ordem sobre todas as temáticas. Esta manipuladora estratégia mediática visa, segundo Chomsky, “a distracção”; mantendo o público ocupado com problemas sem importância e inun-

dando-o com informações insignificantes, “criar problemas para depois oferecer soluções”; levando os cidadãos a desejar as medidas que se querem pôr em prática como, por exemplo, estimular a violência para reforçar normas de segurança que inibem a liberdade, “uma estratégia de gradualidade”; que vai eliminando aos poucos os direitos e regalias com o tempo adquiridos: repressão a conta-gotas, que é aceite e racionalizada pelos cidadãos, ao passo que se instituída de uma só vez seria foco de conflitos, “uma estratégia de diferir”; apresentar no presente determinada decisão como “dolorosa e desnecessária”, preparando o terreno para ser aceite num futuro próximo com resignação, “comunicar com o público como se fossem menores de idade”; veja-se no audiovisual o abuso desta máxima com o objectivo de impedir a construção de um discurso crítico e fazendo o espectador emancipado sentir-se

débil mental, “utilizar o aspecto emocional mais do que a reflexão”; instaurando de forma dissimulada medos ou desejos e induzindo comportamentos, “manter o público na ignorância e estimulá-lo a ser complacente com a mediocridade”; espreitem-se os programas de televisão pomposamente designados reality shows, onde a estupidez é banalizada e incentivada, “reforçar a autoculpabilidade”; acusando os cidadãos de responsabilidade numa crise por terem vivido acima das suas possibilidades, por exemplo, “conhecer os indivíduos melhor do que eles se conhecem”; que resulta da ocultação do saber adquirido ao longo dos últimos anos pela ciência, especialmente da investigação relacionada com o desenvolvimento das tecnologias, que permite ao sistema adquirir um poder sobre os cidadãos maior do que eles têm sobre si próprios. O que está em jogo nesta estratégia de dominação é o controlo e a autoridade exercidos de modo dissimulado sobre os indivíduos, fazendo-os sentir, ilusoriamente, que vivem em liberdade sendo donos das suas opções.. Um poder disciplinador que se generalizou de forma panóptica nas actuais cidades-prisão de regime aberto voltado para o exterior, onde os comportamentos são vídeo-vigiados; numa palavra, o terror. “Acho que devíamos organizar grupos para destruir as câmaras e organizar técnicos que interrompam esse mecanismo. James Buckley propôs, imagine-se, uma espécie de projeto-lei que definia uma categoria especial de pessoas às quais se permitiria obter informações de qualquer fonte, no que concerne à vigilância doméstica, e dado que são pessoas muito respeitáveis, podíamos estar seguros de que não fariam nada de mau com essas informações, etc., etc.”, refere ainda o mesmo autor. Talvez só tenha sido possível chegar até aqui porque o eco da voz de Sócrates se foi esvaindo ao longo dos tempos. Ainda assim, no século passado, Freud, um dos mais profícuos apologistas da liberdade individual e do conhecimento de si próprio, insistiu e investiu no assunto, criando a psicanálise como processo terapêutico e auto-analisando-se, com a “intenção de tornar o Eu mais independente do Super-Eu, de alargar o seu campo de percepção de forma a que possa apropriar-se de novos pedaços do Isso (inconsciente). Lá, onde estava o Isso deve aparecer o Eu. Trata-se de um trabalho civilizacional”. Só conhecendo-se, o indivíduo pode pretender conduzir a sua vida participando na modi-


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34 TETRALOGIA ficação das condições reais que lhe impedem a realização das pulsões, em busca de um equilíbrio orgânico homeostático. Essa atitude implica tomadas de posição – actos de liberdade – sem as quais o processo se revelaria inócuo. “Vivemos para manter a nossa estrutura biológica; razão de ser de todas as estruturas vivas. (...) O sistema nervoso responde primeiro às necessidades urgentes, que permitem a manutenção da estrutura de conjunto do organismo, que designamos como pulsões: o principio de prazer” (H. Laborit). Será que estamos aptos a enfrentar o desafio, demonstrando preocupação em cuidar nós como autodefesa, mantendo uma vivência salutar e desfrutando do tempo em harmonia e deleite? Poderá ainda sonhar-se com “um núcleo de homens capazes de imporem esta concepção superior de vida, homens que nos restituirão o equivalente natural e mágico dos dogmas em que já não acreditamos?” (A. Artaud).

a palavra de fogo irrompe na terra Para encontrar a saída do atoleiro a que chegámos é necessário percorrer o caminho inverso, onde desvendaremos a rota inicial. Um parêntesis para referir que Sócrates, afirmando à partida a sua ignorância – “só sei que nada sei” – se recusou a fundar uma escola e a registrar por escrito os seus conhecimentos, optando por conferências públicas na Ágora. Esta opção, de soberba importância, justifica-se com o carácter fixador da escrita que o prenderia a conclusões definitivas, perpetuando, divulgando e expandindo o possível erro, impedindo ainda a evolução do saber, já que o autor tenderia a evitar contradizer-se. No entanto, e apesar disso, a arte de escrever já se tinha afirmado como meio de comunicação: ”foi no final do IV milénio a.c. Mais de um milénio antes de os Hebreus terem escrito a Bíblia encontramos já na Suméria toda uma literatura rica e florescente que compreendia mitos e narrativas epopeicas, hinos e lamentações, e numerosas colecções de provérbios, fábulas e ensaios” (S. Kramer). Em meados do terceiro milénio verificamos a existência em todo o país de várias escolas desta escrita cuneiforme, que “visavam formar os escribas indispensáveis às necessidades económicas e administrativas do país, principalmente as do templo e do palácio”, onde milhares de alunos se dedicavam à sua aprendizagem. Em placas datadas de MM a.C. identificam-se 500 indivíduos na qualidade de escribas e constata-se que todos os seus progenitores tinham frequentado a escola e eram “governadores, embaixadores, administradores de templos, oficiais, capitães de navios, altos funcionários dos impostos, sacerdotes de diferentes categorias...”, o que não é de espantar, uma vez que o ensino, pago, se destinava aos mais ricos. Diga-se, a título de curiosidade, que nem uma só mulher é apontada como escriba. Parece então fácil perceber que os interesses inscritos na intenção de fixar as narrativas orais, estão directamente ligados ao domínio e controlo das populações, por grupos detentores do poder político-administrativo e religioso. Este sistema linguístico revelou ser um eficaz instrumento de comunicação vivo e, simultaneamente, uma forma de ampliar e diversificar as possibilidades de manipulação dos cidadãos, que os Estados e as várias religiões sempre partilharam em gestão associada. Na sequência desse empreendimento surgem livros sagrados de várias crenças, onde se vertem as regras de sociabilidade e castigos a aplicar aos com-

portamentos desviantes, normas éticas e deveres, sacrifícios e recompensas, mistérios e milagres: a lei de Deus. Separam-se eleitos de hereges, estimulam-se nacionalismos, racismo, ódios, e sob a protecção da lei, estadistas e sacerdotes subjugam milhões e milhões de seres, num regime de terror, com a promessa de felicidade lançada para um pós-morte em que a obediência será recompensada: após a vivência no inferno, finalmente, alcançar-se-á o paraíso. Na reformulação da bíblia judaico-cristã, intitulada Alcorão, o profeta Muhammad afirma: “Se aceitarem a minha mensagem terão felicidade e alegria na vida, e glória eterna na vida do Além; se rejeitarem a palavra de Deus, ele decidirá entre vós e eu.” Mas analise-se a versão original, do livro Êxodo, onde a clareza do discurso é bastante mais impactante: “Não terás outros deuses além de mim. Não te prostrarás diante desses deuses e não os servirás, porquanto eu sou um Deus ciumento, que puno a iniquidade dos pais sobre os filhos até à terceira e quarta geração dos que me odeiam.” Assim se dava o mote para o carácter ciumento, possessivo, fanático e castigador, que esteve na base da destruição de todos os cultos pré-existentes, designados como pagãos, justificou invasões, pilhagens, trucidações e genocídios, e continua a suportar preconceitos e estereótipos bem vincados nos comportamentos, conscientes e inconscientes, nomeadamente no que se refere a todos os géneros de violência. (A titulo de curiosidade, sublinhe-se que à semelhança dos anteriores profetas, também Muhammad foi forçado ao exílio com o seu rebanho: êxodo de Meca para Iatrib, que passaria a designar-se Medina-t-Anabi, cidade do profeta. Tudo porque a sua pregação de um só Deus – Allah – entrava em conflito com o comércio dos que viviam dos rendimentos da Caaba, um templo de peregrinação pagã onde se albergavam 360 ídolos em jeito de

representação zodiacal – imagina-se a dimensão do negócio que a concorrência punha em perigo. Reza a lenda que terá sido Abraão, na sua fuga, a mandar construir o templo, por ordem de Deus, (o que ele apregoava, claro), que ali o visitara. Uma palavra ainda para denunciar a forma como em todos os textos ditos sagrados as mulheres são encaradas, ao nível de utensílios – no caso judaico, com origem numa costela do homem –, quando alguns milhares de anos antes eram adoradas e idolatradas enquanto criadoras, sob o culto à Deusa-Mãe. Não é difícil intuir que, com a descoberta da agricultura e a sedentarização, gradualmente se terá evoluído de uma maioria de sociedades do tipo matriarcal para uma organização patriarcal autoritária e hierarquizada, que daria origem aos Estados-nação: “na transição do matriarcado, baseado na lei natural, para o patriarcado, baseado na divisão do trabalho em classes, perdeu-se a unidade entre o culto religioso e o culto sexual. Deixa de existir o culto sexual para dar lugar à subcultura dos bordéis e da sexualidade clandestina. (...) Só esta contradição inerente à excitação religiosa, que é simultaneamente anti-sexual e um substituto da sexualidade, é capaz de explicar a força e persistência das religiões”) (W. Reich). Sobre o mesmo assunto saliente-se a leitura de Pierre Clastres, que apresenta as sociedades primitivas índias como sociedades contra o Estado, onde a visão que venho expondo – em que a palavra brota de um território demoníaco, no qual Deus, inventado à nossa imagem e semelhança, nos seduz e domina, inebriados com o seu poder – adquire mais consistência. Talvez exactamente por isso nos encontremos a nós mesmos quando analisamos Deus. E não deixa de ser curiosa a conclusão de Heisenberg relativamente à investigação científica: “o homem perdeu a objectividade do mundo natural; de modo que, na sua busca da reali-

dade objectiva descobriu subitamente que sempre se confronta apenas consigo próprio.” Mas ouçamos Clastres: “o apelo dos profetas no sentido de se abandonar a terra maldita para aceder à Terra sem Mal, implicava a condenação à morte da estrutura da sociedade primitiva e do seu sistema de normas. Os Karai, profetas Guaranis do séc XV, diziam de aldeia em aldeia que o Uno é o Mal, e as gentes seguiam-nos na procura do Bem, o não-Uno. Nos seus discursos repousava em germe o discurso do poder, sob os traços exaltados do condutor que dita o desejo dos homens dissimulava-se a figura silenciosa do déspota. Teríamos aí o lugar originário do poder, o começo do Estado no Verbo? Profetas conquistadores das almas, antes de serem senhores dos homens?” Esclareça-se que para o autor a relação política de poder precede e funda a relação económica de exploração. A característica essencial das sociedades primitivas seria proibirem a autonomia de qualquer um dos seus sub-conjuntos, mantendo todos os movimentos internos, conscientes e inconscientes, que alimentam a vida social nos limites e direcção desejados pela colectividade. Nesse sentido, a verdadeira revolução na história da humanidade não teria sido a do neolítico – domesticação dos animais, descoberta da agricultura, sedentarização, etc. – já que ela teria a possibilidade de deixar intacta a antiga organização social, mas antes a transformação política, irreversível, mortal para as sociedades primitivas, que conhecemos sob o nome de Estado e fez surgir a autoridade da hierarquia e a sujeição dos homens. Só pela força é que as pessoas trabalham para além das suas necessidades e, precisamente, essa força não existia no mundo primitivo. Portanto, a estrutura da divisão social em classes teria necessariamente precedido a máquina estatal. Não será de sobeja importância, para a intenção que me move, ater-me à ordem dos factores, mas cabe realçar o relevo atribuído ao poder da palavra: teria sido o discurso a dividir os homens, outorgando autoridade a uns e submetendo outros. Consciente desse poder, o apostolo João, retomando o tema da criação do mundo, inicia assim o seu Evangelho: ”no principio era o verbo, e o verbo estava com Deus e o verbo era Deus.” Que raio de verbo seria?, poderia perguntar-se, uma vez que antes da criação não existia o homem. Era a lei; o verbo-acção. Com a fundação de religiões monoteístas sustentadas em fábulas ficcionadas, onde as regras se tornam mais e mais restritas, fecha-se o cerco às liberdades individuais. Estabelece-se o repúdio à diferença exigindo-se fidelidade a cultos e comportamentos uniformes e os homens ficam aptos a iniciar perseguições ao inimigo, a partir de então identificável.

cavando sulcos no deserto À medida que o tempo avança, as construções narrativas sofisticam-se, dissimulam a identidade sob constantes alterações à nomenclatura e mantêm os cidadãos em situação de iliteracia, defendendo acerrimamente as suas crenças que, assumindo várias faces, se foram tornando racionais. “As vitimas dos pioneiros invasores eram descritas como infiéis e pagãs e designadas como selvagens, canibais e primitivas, mas esses termos deixaram de ser diagnósticos de condições a ser remediadas e passaram a sinónimos de não-branco, condição não remediável” (F. Perlman). Estes muros internos, erguidos ao longo de séculos, quer pelos que planearam as estratégias, quer pelos que as levaram à prática, são-nos desde cedo inscritos pela família, língua,


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TETRALOGIA 35 pátria e ambiente social onde crescemos, fazendo-nos sentir a necessidade proteccionista de pertença ao grupo: “o homem é o único animal a conceber uma pátria e a poder amá-la”, ironiza Laborit, enquanto Gide expande o seu grito: “famílias, odeio-vos! Lares herméticos, portas trancadas, possessões ciumentas da felicidade.” Muros que cada um institui dentro de si e o levam a relacionar-se mais com o seu grupo do que com os que lhe não pertencem e, no limite, a desafiar ou hostilizar todos os outros. E é nessas barreiras mórbidas, nessa prisão das sócio-culturas, de grupos e classes sociais arraigadas a preconceitos e estereótipos, que ao tomar como gratificante uma parte, por oposição à ingratidão de outra, florescem nacionalismos, xenofobia, racismo, servindo de alimento a guerras, posteriormente autojustificadas pela propaganda, que dissimulará os reais interesses envolvidos: a gestão política da economia. Compreende-se, portanto, a generalização desses comportamentos e identidades, na necessidade de defender estruturas de organização social caducas: “as religiões patriarcais têm por base a negação da necessidade sexual e são sempre de natureza político-reacionária. Estão ao serviço da classe dominante e, na prática, impedem a abolição da miséria das massas, atribuindo-a à vontade de deus e afastando as reivindicações de felicidade com belas palavras sobre o além” (W. Reich). Estes valores tornados eternos originaram a civilização ocidental, que se desenvolve em movimento circular, evoluindo epistemologicamente de um pensamento estruturado na Teoria das Ideias, com pretensão de estabelecer um corpo teórico unindo de forma coerente conceitos e formas de conhecimento humano, para logo se dissolver na concepção de um espírito que escorre da teosofia materializando-se em fenómenos da consciência e no tempo histórico. Um universo metafísico que justifica as origens de tudo é criado e desenvolvido, para posteriormente se reclamar a materialidade como princípio fundacional e se regressar a novas formulações que impõem a abstração e a representatividade. A igreja tremeu, estrebuchou e resistiu quando Galileu derrubou o geocentrismo substituindo-o pelo heliocentrismo, criando um novo paradigma científico baseado no método: nas ruas cantou-se e dançou-se o que parecia ser a libertação das grilhetas seculares, mas foi sol de pouca dura. Descartes, com a sua dúvida, também metódica, reporia Deus de forma racional. E dessa variante nasceria a ciência apoiada num método que rejeita o pluralismo teórico, a partir de então legitimadora de todos os dogmas sagrados: “o confronto de uma teoria com teorias rivais incompatíveis é bastante mais produtivo do que a verificação a partir dos factos de que uma teoria dispõe. Uma ciência liberta da metafísica tem todas as condições para estar em vias de se tornar uma metafísica dogmática. A ciência é a mais agressiva e dogmática das instituições religiosas” (P. Feyerabend). A mesma crítica apresentada de forma mais cordial, uma crítica outra, portanto, é feita por Heisenberg: “nós escolhemos, ao seleccionar o tipo de observação empregue, quais os aspectos da natureza que serão determinados e quais os que ficarão imprecisos.” E talvez a mais acutilante: ”os jogos de linguagem científica tornaram-se jogos de ricos, onde o mais rico tem mais possibilidades de ter razão. Desenha-se uma equação entre riqueza, eficiência e verdade” (J-F Lyotard). O mesmo de sempre, afinal. Como consequência lógica da superação dos regimes monárquicos de direito divino, em que o rei recebia o poder de deus, surge o Estado de Direito onde cada um é submetido ao respeito da hierarquia das

normas de separação dos poderes executivo, legislativo e judiciário, em que vigora o império da lei. É então tempo de voltar a matar Deus, anunciando-se o homem novo – em versão Super – e a transmutação de todos os valores, que não passou de uma inversão. Novo Messias é anunciado, emergido da realidade prática, e tenta-se impô-lo ao mundo sob a forma de classe: o proletariado. Expectativas uma vez mais defraudadas, a metafísica estilhaçada em formas poéticas – de pendor sistemático algumas, outras caóticas e fluxíveis revelando as múltiplas singularidades individuais com proposta de um método sem método –, retoma o seu reinado. Como se depreende, o saber fez um percurso esférico que fechou vários círculos, sustentando-se no maniqueísmo inicial e rebocado pela ditadura da dialética – que separa o bem do mal, a teoria da prática e o homem de Deus –, onde vencem sempre os tentáculos da manipulação discursiva. Talvez por isso, olhando de fora o percurso humano na Terra, tenhamos a sensação de um curto aperfeiçoamento e sintamos a ausência de falhanços melhores! E pelos mesmos motivos, talvez, nos tenhamos tornado demasiado previsíveis, encerrados em estruturas senescentes do pensamento, permitindo aos nossos carrascos conhecer-nos melhor do que nós mesmos.

longe de alegrias harmónicas É bom lembrar aqui as considerações sobre o seu povo, de um ex-governante democraticamente eleito: “na sua esmagadora maioria, tem uma natureza e atitude tão femininas que os seus pensamentos e acções são determinados muito mais pela emoção

e sentimento do que pelo raciocínio. Não há muitas nuances; há sempre um positivo e um negativo; amor e ódio, certo e errado, verdade ou mentira, e nunca situações intermediárias ou parciais” (A. Hitler). Na verdade, o barro de que fomos moldados continua a ser massa da mesma terra, de maneira que quando Ele nos sopra às narinas, o modelo que ganha vida manifesta poucas variantes: “o fascismo é a atitude emocional básica do homem oprimido da civilização autoritária da máquina, com a sua maneira mística e mecanicista de encarar a vida. É o carácter mecanicista e místico do homem moderno que cria os partidos fascistas, e não o contrário” (W. Reich). Possivelmente porque tinha absoluta consciência dessa realidade generalizada, à pergunta “não achas que um descendente de pessoas oprimidas estaria em melhor situação do que outros para desempenhar o cargo de gerente de um supermercado ou chefe de polícia?”, Perlman, com propriedade, atira outra questão: “que director de um campo de concentração, carrasco ou torturador, não é descendente de pessoas oprimidas?” O grande embaraço está na exigência intrínseca ao imprescindível trabalho de autoconhecimento, fundamental para que se encontre o caminho de acesso às portadas que abrem a liberdade, trilho que atravessa necessariamente a identificação por cada um do monstro que habita em si, para no passo seguinte o assassinar. Os que fogem a esta tarefa assumem conservadorismo e medo, escondendo e camuflando a sua verdadeira essência sob intrincadas artimanhas tecidas de raciocínios lógicos, com a consequente fortificação da estrutura psicológica de carácter que os caracteriza. Assim é a atitude das massas, subjugadas, sedentas de autoridade e revoltadas que, se deixassem cair a máscara das boas maneiras, mostrariam, não a sociabilidade

natural, mas a sua perversidade sádico/ masoquista. Naturalmente, ao longo da História, nem todos os homens, nos vários tempos, foram incapazes de detectar o embuste ou fugiram da natureza. Muitos enfrentaram a tarefa de libertar o impulso vital com vista à construção de uma democracia natural biológica nas relações interpessoais, embora, infelizmente, uma larga minoria. E também aí, no cerne de processos de luta, convulsões, caos, surgem oportunismos manipuladores onde alguns, revelando ao que vão afinal, aproveitam para se insinuar como salvadores, líderes, chefes, mestres, gurus, guias espirituais, ou outras manifestações divinas. Parece impossível ao ser humano a libertação da tendência para manipular e dominar (ou para ser manipulado e dominado, outro modo do mesmo modo), como se tivesse desenvolvido uma síndrome de dependência sintática. É urgente a construção de uma nova ontologia, mas tudo leva a crer que o trabalho de libertação é um processo individual inconciliável, até determinada fase, com a presenta do Outro, como veremos adiante. Em vários momentos históricos foram anunciadas revoluções e conquistas revolucionárias recheadas de vitórias e progressos alcançados; o que impõe as questões: Que reflexo tiveram no homem? Será possível alterar estruturas sociais sem mudar mentalidades? Ou simplesmente, é a revolução possível? “Existem sempre saltos, ínfimas rupturas, suaves deslocações, até pela natural passagem de geração para geração. Mas os historiadores já abandonaram qualquer confiança ingénua na ideia das revoluções” (S. Toulmin). As estruturas desmoronam-se quando a tensão atinge o limite e surge outro sistema de pressupostos que permite a reabsorção dos conflitos, mas paradigmas rivais nunca representam realmente visões alternativas. A necessidade de modificações surge, para usar a linguagem de Merleau-Ponty, de uma consciência perceptiva habitante da nossa instituição primordial, o inconsciente; outros diriam pensamento inconsciente, acrescentando um tom oximoro. A dimensão temporal humana é por natureza conservadora, na sua efemeridade. Para falarmos em revolução, esse dogma sagrado, seria necessário comparar dados com diferenças temporais de milhares de anos e, ainda assim, seríamos assertivos apenas em determinados sectores. “Fazer da análise histórica o discurso do contínuo e da consciência a origem de qualquer devir ou prática, são as duas faces do mesmo sistema de pensamento. Necessário é salvar contra todos os descentramentos, a soberania do sujeito e as figuras gêmeas da antropologia e do humanismo” (M. Foucault). Os revolucionários hoje são conservadores amanhã, com a única diferença de que, para alguns, esse termo é literalmente o dia seguinte, enquanto para outros ele chega semanas, meses, anos ou décadas depois. Todos somos condicionados pelo tempo, o espaço e o corpo, que nos impedem o nomadismo onírico, sem termos necessariamente “o conhecimento do princípio de troca que nos rege, tanto como para falar os indivíduos não têm necessidade de passar pela análise linguística da sua língua. Ela tem-nos mais do que eles a ela.” ( C. Levi-Strauss) Língua; essa cláusula religiosa onde alicerçamos o sentido de orientação, apesar da constatação de Cioran: “no edifício do pensamento não encontrei nenhuma categoria na qual pousar a cabeça. Em contrapartida, que belo travesseiro é o Caos!” Significa então que alguns continuarão a sugar o sangue de outros para sempre? Categoricamente não, é a resposta, que não permite prescindir de um projecto contínuo e activo. (continua)


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36 LIVRO

Aos nossos amigos: a cibernética JÚLIO SILVESTRE JULIOSILVESTRE@JORNALMAPA.PT

“A

os nossos amigos” é o último livro do Comité Invisível, recentemente traduzido pelas edições Antipáticas. O primeiro livro deste grupo de “escrivas” anónimos, publicado em 2007 com o título “A insurreição que vem”, tornou-se popular e chegou mesmo a atrair a atenção dos média. Em parte devido à publicidade que sobreveio quando a polícia francesa tentou utilizar o livro como prova, no caso que ficou conhecido como “os nove de Tarnac”1, atribuindo a sua autoria a um dos acusados2. “Aos nossos amigos” pode ser visto como uma continuação desse primeiro texto, no qual os autores pretendem fazer um diagnóstico total da civilização capitalista actual, partindo dos seus círculos de alienação, bem como uma análise e a prescrição daquilo que, segundo a sua pespectiva, deve ser a luta revolucionária... Ambos os textos discorrem numa linguagem com frases mais ressonantes do que argumentativas, dando a impressão de que o seu entendimento da realidade é evidente, e que o leitor facilmente se identificará com as suas palavras. Daí a repetição de que “toda a gente sabe”, “toda a gente sente”, “toda a gente vê”, os “lugares comuns” ou as “verdades necessárias”. Este tipo de comunicação tem a vantagem de poder saltar argumentos, legitimando-se mais pela força emotiva das ideias do que por uma análise concreta. Desta forma, o comité toma como ponto de partida alguns axiomas, deixando antever o cunho ideológico da sua crítica. Refiro-me, por exemplo, à assunção de que o indivíduo é uma “ficção”, ou que a “liberdade individual” é um grave equívoco... Este “colectivo imaginário” parece no entanto dotado de pouca imaginação, a ver a necessidade que tem em aludir à identidade do “nosso partido”, do “partido da insurreição”. A revalorização do “partido”, ainda que simbólica, deixa transparecer uma estranha nostalgia... A Cibernética Um dos capítulos do livro “Aos nossos amigos” tem por título “Fuck off Google”, e começa por nos dar a novidade de que “não há revoluções no Facebook”. Os primeiros parágrafos exemplificam o recurso a tecnologias de comunicação em manifestações, situações de crise, ou organização de assembleias, para inferir que “a prática de governo se identifica cada vez menos com a soberania estatal”. Em seguida é estabelecido o paralelismo com as redes sociais e as cidades inteligentes, de modo a ilustrar a afirmação feita do capítulo anterior: “o poder já não reside nas insti-

AOS NOSSOS AMIGOS COMITÉ INVISÍVEL EDIÇÕES ANTIPÁTICAS, 2015

A massificação das redes sociais, o open government, ou o fetiche do Smartphone, é mais um problema de ideologia do que uma conspiração de engenheiros e cientistas. tuições”, mas “nas infraestruturas”. Os autores concluem que a cibernética é a nova arte de governar. Se existe alguma verdade nesta análise, ela perde por ser redutora e confundir os sintomas com as causas. A massificação das redes sociais, o open government, ou o fetiche do Smartphone, é mais um problema de ideologia do que uma conspiração de engenheiros e cientistas. É certo que a internet abriu as portas a novas formas de alienação, e à descentralização do poder, mas isto deve-se mais à ressonância do pensamento único e à uniformização de comportamentos, não exclusivos do mundo virtual, do que à facilidade comunicativa ou à topologia da rede. A vontade em partilhar voluntariamente fotos e vídeos pessoais no Facebook, é semelhante à vontade em participar em reality shows, aparecer na televisão, ou comprar revistas cor-de-rosa. O mesmo para a utopia da “cidadania conectada”: é a crença na democracia o que em primeira

mão fomenta esses movimentos. O que mais me chocou quando vi pela primeira vez um carro da Google a fotografar a rua por onde caminhava, não foi tanto a tecnologia que permite essa cartografia, mas o sentimento de felicidade das pessoas quando se aperceberam que a “sua” rua estava a ser fotografada e apareceria no mapa... A sacanice da Google em ganhar muito dinheiro com as informações pessoais dos seus utilizadores, e saber quase tudo sobre eles, é possível porque a grande maioria se está nas tintas para a privacidade. Antes de considerar os meios, é necessário questionar este fenómeno de tranquilidade generalizada com a vigilância, o orgulho de ter “amigos” virtuais, ou o sentimento de fortuna ao alimentar “grandes reservatórios” de dados. O texto sustenta-se numa observação parcial, ao tentar reduzir a cibernética e as tecnologias de comunicação, à mineração de dados produzidos pela “circula-

ção livre, isto é transparente, isto é controlável” de informação”. Esta é efectivamente a prática comum sobre os milhões de utilizadores da Google, do Facebook ou do Twitter, mas não resume tudo o que se passa na rede. Basta estar atento aos esforços dedicados à privacidade e ao anonimato, bem como às experiências de “redes de guerrilha”, e outras estruturas pensadas para o efeito, na luta contra a censura e a vigilância electrónica. Embora isto esteja longe de contradizer a tendência dominante, traz certamente alguma entropia aos propósitos do controlo e da governação. A visão determinística do comité revela-se quando nos contam detalhes sobre a história da cibernética. Parece ter sido tudo uma conspiração de agentes da CIA, cientistas do MIT, matemáticos pervertidos, empresários doentios, militares obcecados... Mais ninguém interferiu no processo, essas tecnologias apareceram unilateralmente, nunca foram repensadas, reconstruídas, reinventadas... Dissertando sobre a técnica, os autores asseveram que o capitalismo é “a organização rentável, num sistema, das técnicas mais produtivas”. Ironicamente, isto parece mais um elogio do que uma crítica. Historicamente, as técnicas que mais vingaram sob o domínio de capitalismo, foram

aquelas que implicavam maior investimento de capital, apropriação de recursos, e externalização de custos. Isto contradiz o mito da rentabilidade, provando que ela é artificial. Se ao mesmo tempo considerarmos o peso das hierarquias, a burocracia, e o controlo social que implica a existência de uma “classe gestora”, deixaremos de ter dúvidas sobre essa suposta produtividade... Por outro lado, na era da tecnologia, os direitos de “propriedade intelectual” continuam a ser fulcrais à reprodução de capital, e exemplificam até que ponto as técnicas mais eficazes são compatíveis com o capitalismo. Os autores dizem-nos também que “a solidariedade entre capitalismo e socialismo” reside no culto do engenheiro, o “chefe dos expropriadores das técnicas”. Eu diria antes que essa solidariedade reside na necessidade de Estado, e numa hierarquia burocrática de gestores, presente tanto no modelo organizativo das grandes corporações, como nos regimes socialistas... Quase no fim do capítulo, referindo-se aos hackers, o comité vinca um dos seus axiomas, aproximando-se do ridículo: “a liberdade individual não é algo que possamos acenar contra o governo, visto que ela constitui, precisamente, o mecanismo sobre o qual ele se apoia”. E num tom condescendente, avisa que é este fetiche que os “impede de constituir grupos suficientemente fortes, para desencadear a partir daí, uma série de ataques, uma verdadeira estratégia”... Está visto, com doutrina e estratégia, o comité encontrará um novo “sujeito revolucionário”! /// NOTAS 1 A 11 de Novembro de 2008 foram detidas 20 pessoas em Paris, Rouen e Tarnac, acusadas de terem participado em várias acções de sabotagem nas linhas do TGV. Dos detidos, onze foram prontamente libertados, ficando sob custódia nove pessoas, algumas das quais viviam em Tarnac. 2 Julien Coupat, co-fundador do jornal Tiqqun, impresso entre 1999 e 2001.


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IN MEMORIAM 37

Vitor Silva Tavares, Mestre Companheiro

EDUARDO DE SOUSA LETRALIVRE@SAPO.PT

Eu não trabalho: partilho sonhos gratuitos, companheiro e filho que sou de muitos. Púsias, VST

U

ma das características do Vitor era não ser muito dado a receber elogios, muito menos gostava que lhe acariciassem o ego; ficava desconfiado, lá teria as suas razões. No entanto, nunca negou elogios àqueles de quem gostava ou que admirava (embora também fosse acutilante nas suas críticas que não poupavam ninguém, o que lhe valeu algumas rupturas e inimizades). A relação que manteve com o velho Almada Negreiros foi, pela sua descrição, de mestre e aprendiz, e essa foi a relação que tantos de nós viemos a estabelecer, num dado momento, com o Vitor. Na velha tradição dos ofícios, o mestre, que era quem sabia e tinha experiência, ia legando os seus conhecimentos, de modo informal, na relação quotidiana com os aprendizes. Era essa a forma como VST convivia com as novas gerações que se aproximavam dele.

Esse autodidacta da Madragoa era a todos os títulos um mestre, até no sentido que a filosofia clássica e a oriental dão àqueles que se dispõem a, pela palavra e pelo exemplo, transmitirem valores e princípios. Não que o Vitor fosse um pensador, um teórico, sentia até algum desprezo pelos teóricos e académicos, que separavam o pensamento da vida, mas ele não deixou de passar a todos nós, além dos seus conhecimentos, uma forma muito particular de viver, uma ética de liberdade. Desde o dia em que tirando a gravata, como gostava de dizer, deixou a Editora Ulisseia, onde construiu um notável catálogo literário em plena ditadura salazarenta, que incluiu Cesariny, Pacheco, Fanon e Miller, e partiu livremente para a aventura do &etc no Jornal do Fundão, nunca mais o Vitor aceitou submeter-se a lógicas mercantis e ao salariato. Um estranho diria que ele pagou por isso, poderia ter sido um dos mais importantes editores comerciais portugueses, o tal «Gallimard da Rua da Emenda» de que falava Luiz Pacheco, que nunca foi, nem poderia ter sido na sua &etc subterrânea. No entanto, quem o conheceu sabe, ele diria que não perdeu nada com essa ruptura, pois só dei-

xando aquela actividade de editor comercial – apesar da grande liberdade que lhe era concedida pelo proprietário da Ulisseia, que sempre o apoiou contra a Censura nas suas edições destemidas – pôde o Vitor partir para aventuras jornalísticas e editoriais, onde só iria depender de si, dos que lhe eram próximos, e do seu círculo de afinidades. Seja no suplemento do Jornal do Fundão, seja no suplemento literário do Diário de Lisboa, VST deu ao jornalismo cultural uma nova liberdade e voz a muitos dos que não só se opunham à cultura e política rançosa do fascismo de sacristia, como também não estavam dispostos a seguir os cânones literários e políticos do neo-realismo do PCP. O modo como esse plebeu, que se orgulhava das suas origens trabalhadoras e que não esqueceu nunca a sua infância difícil, vem a fazer todo um percurso origi-

nal no jornalismo e no mundo dos livros, mas com incursões no teatro e cinema, só é explicado pela sua grande curiosidade, avidez de conhecimento, e por uma personalidade onde o sentido de autonomia e liberdade eram determinantes. Jovem, insatisfeito com o Portugal que tresandava a naftalina nos anos 50, Vitor parte rumo a Angola para iniciar a sua carreira jornalística, mas de lá regressa ainda mais insatisfeito e revoltado com o sistema colonial que começava a ser desafiado pelo nacionalismo africano. Por cá, descobre, como dizia, o surrealismo no Parque Mayer e desde então criou laços de afinidade com os mais destacados escritores e artistas, de Cesariny a Cruzeiro Seixas, Pedro Oom, Mário-Henrique Leiria, Luiz Pacheco, João César Monteiro. Mas em relação ao surrealismo, como em relação à política, VST não era

Vitor Silva Tavares nunca se dedicou a construir um legado, antes a viver como queria o seu quotidiano, fazendo o que gostava, que tanto podia ser editar livros, gastar horas em amena cavaqueira, ou cozinhando,

dado a partidos e seitas, e sempre evocava aquela frase de Groucho Marx, afirmando que não «entrava para um clube que o aceitasse como sócio». Nesse sentido, o Vitor seria sempre um livre-pensador, não o solitário egoísta stirneano, mas o sociável e afável único, que não cedia ante a cultura hegemónica, o pensamento dominante ou a moda hedonista. Quando, sentindo já o cheiro da decomposição da velha ditadura, cria a revista &etc, que seria a mais importante e emblemática publicação alternativa portuguesa, para usar uma classificação que o próprio detestaria, havia já uma afinidade explícita com uma cultura de tradição radical e libertária onde certamente pesa não só o seu conhecimento do que sucedia pela Europa, e, principalmente, em França no pós-Maio de 68, onde se ia abastecendo de livros e publicações, mas pesavam também as suas relações próximas com uma nova geração de companheiros, e autores, como António José Forte, Manuel João Gomes, Paulo da Costa Domingos, que partilhavam uma contracultura intrinsecamente libertária, já afastada das polémicas passadas em torno do neo-realismo e do vanguardismo surrealismo, que não deixava de ser,


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38 IN MEMORIAM mesmo assim, uma referência. A &etc, folheca cultural, efémera como tantas outras revistas, morreu às mãos do distribuidor comercial e dos acidentes de uma revolução que iria dividir as pessoas em partidos e crenças sectárias. Como escreveu Drummond de Andrade no poema «Nosso Tempo»: «Este é o tempo de partido/tempo de homens partidos. Este é tempo de divisas/tempo de gente cortada». Dificilmente a &etc poderia sobreviver a esse tempo. Porém, Vitor Silva Tavares, um eterno remador contra a corrente, reduziu a escala e a revista virou editora, &etc, Publicações Culturais Engrenagem. Nascia assim aquela que se afirmaria ao longo de mais de quatro décadas como uma editora independente original, com um catálogo que reúne folhetos erótico-satíricos, poetas então desconhecidos, mas que se tornariam nomes destacados do nosso panorama literário, pequenos ensaios e textos pouco conhecidos de autores clássicos. Uma editora que embora nunca deixasse de ser um projecto partilhado, desde logo com os sócios e amigos mais próximos, mas igualmente com os autores, tradutores, artistas, era, acima de tudo, a aventura editorial de VST, os seus gostos, a sua concepção estética, o seu conhecimento da velha arte tipográfica, aprendida com os tipógrafos da antiga geração nos jornais e nas gráficas onde mandava compor e imprimir os seus livros. Vitor Silva Tavares nunca se dedicou a construir um legado, antes a viver como queria o seu quotidiano, fazendo o que gostava, que tanto podia ser editar livros, gastar horas em amena cavaqueira, ou cozinhando, mas a haver legado é essa paixão pelos livros e principalmente a sua ética anti-mercantil de um crítico feroz do poder e dos poderosos. Poderia ter dedicado mais do seu tempo à escrita, apesar disso, o que escreveu tem uma elegância e uma ironia pouco comuns numa literatura portuguesa feita de lugares-comuns e muita seriedade. Porém, como disse sarcasticamente na sua plaquette Para Já, Para Já escrita numa só noite em 1972: «Escrever é trampolinice, maluquice, crassa burrice que chatice, um tipo deixa de cirandar na rua, por aí, deixa de beber cervejolas com amigos e tremoços, deixa de se preocupar com o fim do mês, deixa de ler o jornal sentado na retrete, deixa de namorar a tal do gostinho especial…», e acrescentava com a sua habitual ironia, mas um pouco mais sério, num posfácio recente a esse mesmo texto: «Assim como assado, podemos assentar nisto: no interior da gaiola literária, eu é que não me sinto em casa, não me levo a sério...» VST sempre foi, politicamente, um livre-pensador, um herético, uma ovelha fora do rebanho, as suas afinidades electivas eram profundamente libertárias: «Não sei, nesta instabilidade, se sou anarquista ou um desesperado ou ambas as coisas ou mais ain-

[esq] Capa do número 25 da revista &etc, de Outubro de 1974. Sentindo já o cheiro da decomposição da velha ditadura, Vítor Silva Tavares cria a revista &etc que seria a mais importante e emblemática publicação alternativa portuguesa. [dir] Capa do livro editado pela Letra Livre que celebra os 40 anos da &etc e de todas essas belas edições paridas na Rua da Emenda. [em cima] VST no Gerês.

da, como por exemplo um homem dividido por tantas multiplicações.» Um homem de vida simples, refractário à fama, ao poder, ao mundo das mercadorias e ao espectáculo hoje dominante. Um homem capaz de escrever: «O papelinho do voto não dá sequer para limpar o cu, é áspero…» e que num texto mordaz, resumia assim a origem da propriedade: «Inventou-se um dia a Propriedade. Foi quando um avantajado candidato a bípede rapou da moca e vá de zurzi-la na carola do vizinho a fim de abichar só para ele, sublinhe-se, a fêmea mais mamalhuda, o naco mais suculento e o metro quadrado mais fértil de hortaliças. A carne é fraca, o

exemplo pegou.» Vítor acompanhou as lutas do seu tempo sem, no entanto abdicar da crítica às mitologias políticas fabricadas por um «comunismo» que abria brechas após o desastre estalinista: «Mas contra esta ordem capitalista haveriam de se levantar os povos, ou, se quisermos, as turbas, os pés-descalços lutando por uma nova ordem social, mas nessa luta nasceram os Partidos sociais-democratas, socialistas, maximalistas, comunistas – ficando de fora uns ranhosos muito senhores dos seus narizes que torciam os ditos à ideia de que a Igualdade hierarquizada num Partido como tal ordeiro acabaria por gerar, também

ela, uma data de empregados de escritório mais iguais que outros que tais, seja, camaradas chefes, contra-chefes, capatazes, comissários, controleiros, carreiristas, sem contar com os seguranças necessários à manutenção das Cúpulas e a calar o bico à anarqueirada desobediente civil.» Quem assim escreve, além d e saber manejar a pena, diz também muito de si e do seu pensamento. Num dos seus últimos textos, Vitor resumiu as suas opiniões políticas: «Ao envolvente capitalismo predador (o invocado “de rosto humano”, também dito “popular”, não passa de conto do vigário), pai e mãe da abominação generalizada que redunda sempre

em generalizadas carnificinas, poderá então contrapor a legenda que o poeta surrealista Benjamin Péret fez inscrever, a vermelho, na pedra tumular: “Eu não como desse pão”» Concluindo: «Nos pratos da balança entre “indivíduo” e “sociedade”, pende o fiel para esta última, sempre, ou não triunfasse, sempre, o número, e, com ele, a “democracia”, nossa senhora da aparecida. Há que reter, porém, outra possibilidade: Quem perde, ganha.» Este é o Vitor Silva Tavares que conheci, afável, irónico, inabalável na sua verticalidade, de uma profunda radicalidade libertária, único. Mestre companheiro.


MAPA / JORNAL DE INFORMAÇÃO CRÍTICA / OUTUBRO-DEZEMBRO’15

BALDIO 39

S

eu nome é Maria. Não se encontra na Nazaré, nem tampouco em Belém. Contudo está perto, em Caxias. O que tem esta Maria em comum com aquela que passeou na terra há 2014 anos? Fácil; também esta ficou grávida por graça divina . O “milagre” sucedeu há pouco tempo. Maria, como decido chamá-la em alusão à outra, é reclusa no Hospital Prisional S. João de Deus em Caxias. Decorreram alguns dias desde a explosão escandalosa desta notícia, em vários meios de comunicação social. É mais uma investigação que se inicia no sistema prisional português, enquanto ocorrem simultaneamente, no mesmo estabelecimento, outras respeitantes às duas mortes por enforcamento, com escassas horas de intervalo, desfalques nas cantinas, espancamentos e outros casos. Como cidadão, espero que estes casos não fiquem silenciados e abafados como os de centenas de investigações às mortes suspeitas de reclusos, cujo desenrolar se torna, invariavelmente, indulgente e conivente com estes crimes. Miguel Torga no conto “O Alma Grande” em Novos Contos da Montanha, ex-libris do nosso orgulho literário, faz referência a um procedimento das nossas comunidades judaicas de cristãos novos. Como se sabe, muitos judeus ignominiosamente forçados à prática do catolicismo e ao baptismo, continuavam dissimuladamente a sua prática judaica. Quando um desses cristãos-novos já gemebundo esperava a derradeira visita de um padre ou médico, era abafado por alguém da comunidade, que deste modo garantia que, num desesperado instante de contrição, o acamado não acabasse por ceder, denunciando a sua verdadeira fé, arrastando também nesse torvelinho vertiginoso toda a comunidade. Por conseguinte, tenho para mim que, neste país acagaçado de cristãos-novos e de óbvio subconsciente hebraico, ainda hoje, esta prática subsiste. Maria, há aproximadamente 2014 anos, justificou a sua gravidez com a súbita aparição do Anjo S. Gabriel, anunciando-lhe que iria ser mãe pela força do A ltíssimo . À época, apesar da surpresa, seria a forma mais verosímil de legitimar um ventre prenhe. Presentemente, em plena era do ‘progresso’ temos médicos, enfermeiros, especialistas, investigadores, psicólogos, auxiliares e peritos que questionam e procuram respostas, mas o mistério insiste em persistir. No meio de tanto mediatismo sobre a questão Quem é o pai da criança - como diz a letra da canção - levantada de

forma mordaz por um jornalista da praça, a direcção do hospital veio com a resposta lesta e peremptória que o responsável seria inexorável e indubitavelmente um funcionário. Ora, no hospital prisional só existem duas classes, a dos funcionários e a dos reclusos e os reclusos do sexo masculino estão excluídos desta equação, por estarem hermeticamente segregados da população prisional feminina, sendo qualquer tipo de contacto severamente controlado e sancionado. Evidentemente, e não é preponderante ser descendente directo de Arquimedes ou de Pitágoras para deduzir isto: sobram somente os funcionários. Clarifiquemos a definição de funcionário do hospital. Funcionários são todos os empregados do hospital – contratados pelo Estado ou subcontratados a recibos verdes – isto é, no fundo, qualquer um que exerça ali uma função remunerada. E são muitas e variadas as profissões: o auxiliar das limpezas, o auxiliar médico, o enfermeiro, o médico, os técnicos de saúde, os assistentes sociais ou educadores técnicos superiores de educação - os psicólogos, psiquia-

Na descoberta da natureza e memória das resistências, por entre propostas de percursos pedestres.

Ao salto dos montes:Alvados FILIPE NUNES FILIPENUNES@JORNALMAPA.PT

C

aminhar é sempre um exercício da memória. Há uns meses atrás acompanhei um grupo de habitantes, familiares e amigos da aldeia comunitária dos Aivados em Castro Verde, numa caminhada da aldeia ao Cerro Ruivo, aí descerrando uma placa evocando os 40 anos da reocupação da Herdade dos Aivados realizada no dia 20 de Abril de 1975. Aivados é conhecida precisamente por um secular regime de compropriedade por todos os seus moradores de cerca de 400 hectares, usufruindo anualmente das benesses obtidas nessas terras. Propriedade comunal usurpada no Estado Novo por dois latifundiários vizinhos, nunca se apagou nesses tempos a sua memória, expressa em gestos quotidianos de resistência, como a transmissão oral dos limites originais da terra comum, e pelos quais recordamos caminhado “os terrenos que são de todos e não

são de ninguém em especial”1. Pela terra batida após a planura do vasto pasto que serve ainda hoje o rebanho colectivo da aldeia, toma-se em vista os esventrados solos empoeirados da Pedreira, concessionada pelo “povo dos Aivados”, e na volta do percurso atravessa-se a aldeia da Estação de Ourique, onde o único comboio que ainda aí passa surge carregado do minério das minas de Neves Corvo, o cereal dos nossos dias por estes lados. O transporte de pessoas – e não de mercadorias – pela linha de Beja a

Funcheira foi encerrado em 2011. Já antes havíamos deixado as alturas do Cerro Ruivo onde o montado ainda se avizinha, para aí ter deixado inscrita a placa evocativa da reocupação comunitária de 1975, à sombra e a um canto dos novos depósitos de água inaugurados pelas Águas Públicas do Alentejo em plena ameaça da privatização desse bem comunitário. Tal objectivo lapidar era segundo o Museu da Ruralidade “o primeiro passo num programa museográfico (…) marcando alguns dos episódios e espaços “simbólicos”

tras, os funcionários de secretaria e os guardas carcereiros. Dir-se-ia fácil e conveniente fazer recair as culpas sobre algum ex-funcionário. Como num bom processo à portuguesa, encontrar nos mais fracos um bode expiatório é comum. Numa primeira versão, o pai seria um ex-funcionário da limpeza, mas agora, que o caso transbordou para a comunicação social, a elaboração é mais cuidada e segundo a notícia de dia 11 de setembro no jornal Correio da Manhã, o culpado será um auxiliar médico. Contudo existem outras versões mais verosímeis, como a de G. G é um recluso que nasceu na prisão há sessenta anos. Baixinho, magro e seco, de cabelo sempre curto e barba perfeitamente raspada, fixa-nos com os olhos azuis e atentos, denunciando toda a sua ratice nestes assuntos. Encontra-se a cumprir a quinta pena e conhece deste modo os meandros destas instituições. Intuitivo e com um saber de experiência feito, diz pôr as mãos no fogo em como foi um guarda. Acredito. Faz todo o sentido. Jamais um qualquer funcionário está na presença de um recluso sem a supervisão de um guarda carcereiro. Só estes dispõem de poder para entrar e sair das celas quando o entendem. Nos dias de hoje, e com vontade para isso, parece-me relativamente fácil investigar de modo a apurar a verdade, até porque hoje dispomos de meios não existentes há dois mil anos, nomeadamente os famigerados testes de ADN. Contudo, só nos resta esperar pelas conclusões das investigações. Rezemos então em uníssono uma Avé-Maria para que neste caso a culpa não seja, também ela, filha de pai incógnito, como acontece em tantos casos chocantes de suicídio, homicídio, violação, espancamento, etc. Se a culpa morrer solteira, então assistiremos dentro de nove meses ao inolvidável nascimento do “novo messias”, do r ei-menino e o hospital prisional poderá pedir a canonização da n ova Maria . Escrito ao nono mês de 2014 por Mafarrico Bob, um pseudónimo do Exmo Sr. Dr. Albert Coçaki, doutorado em Línguas, Sedas, Cachimbos de Água e Técnicas Superiores para Relações Internacionais, na prestigiada U.M.M. Universidade do Martim Moniz, cujo texto, eu, Pedro Casto, me limito a fazer chegar às vossas mãos.

da aldeia-comunitária que ajudem a construir a memória do sítio”2. No início de 2015 abrira precisamente o “Núcleo dos Aivados – Aldeia Comunitária”, um dos polos do Museu da Ruralidade de Entradas (Castro Verde) e que contou com a colaboração da antropóloga Inês Fonseca, investigadora essencial nessa memória3. O ponto de partida para este percurso pedestre implica deliberadamente abordar as gentes da aldeia, ainda que possamos sugerir atentar ao mapa patente nesse núcleo museológico, aí apresentado como “um mapa a construir ao longo de tempo e no qual toda a comunidade pode colaborar na sua construção discursiva”4. A memória tem sempre inerente um determinado modo de uso, pelo que finda esta caminhada, assola-se na paisagem natural e humana percorrida um sentimento contraditório que suspeitamos não despontar apenas no caminhante passageiro, mas no povo de Aivados. O seu comunitarismo é peça musealizada, e a sua celebração é hoje mais académica que quotidiana, a sua imagem é mais a marca de uma promoção autárquica e menos de uma construção colectiva viva, pese o acertado discurso museológico. Na verdade o museu cumpre a

sua missão e recorda esse comunitarismo em terras de latifúndio, na justa medida de transmitir a alegria da comunidade sobre a posse da terra, acompanhando a euforia dos outros caminhos que se poderiam ter aberto há 40 anos atrás. Já na comunidade de Aivados, não avessa a essa memorabilia, a vivência comunitária parece estar perante o dilema, não meramente da renovação geracional, mas sobretudo em como sobreviver como uma aldeia comunitária para lá da espécie de comunidade de facebook que se gerou. Inquietações é certo partilhadas quando falamos de todas as comunidades cujo largo da aldeia desapareceu sob o ensurdecedor silêncio da modernidade individualista. Mas inquietações aqui realçadas sobre algo, ainda assim, único que continua a resistir: a possibilidade real de uma posse e usufruto colectivo do território envolvente de uma aldeia. Porque a comunidade é um exercício em comum de memória e de caminhada. /// NOTAS 1 http://bit.ly/1LACQoi 2 http://bit.ly/1WV5Shi 3 Inês Fonseca (2015) “Aivados. Comunitarismo em terras de latifúndio” in Cadernos do Museu, nº 1; e (2006) “Aivados: Posse de Terra, Resistência e Memória no Alentejo”, Edições Dinossauro. 4 http://bit.ly/1LACY7g

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Panem et circenses FILIPE NUNES FILIPENUNES@JORNALMAPA.PT

Q

ue a expressão autoritária reside no âmago da democracia representativa é hoje uma evidência demonstrada na digladiação pelo poder que se assiste em Portugal. Da esquerda à direita há muito que se chegou a um consenso: alcançar a “estabilidade” pela lógica única da maioria ou, trocado por miúdos, da filosofia do quem manda aqui sou eu. Uma exigência acolhida com naturalidade pela acólita direita e pela sacristia de esquerda e agradando aos Mercados e Instâncias Internacionais, que uns apoiam e outros criticam. Inerente a esta ilusão eleitoral está um discurso engajado (sobretudo à direita) no medo, primordial ao poder, e na providência. Já a legitimidade constitucional desse digladiar não está em causa. Mas o que foge à discussão é uma vez mais a “legitimidade” da representatividade democrática. Ou mais correctamente a sua “ética“. Atendendo à numerologia que a linguagem moderna não dispensa, a abstenção era no início da noite eleitoral, contrariada e aclamada de significados por todos os partidos, para ser desprovida de significado quando se revelou precisamente o oposto. Houve vencedores para todos os gostos e a “vontade dos portugueses” rapidamente excluiu o incómodo dos 43,07% da abstenção vencedora, remetidos a caso de estudo, como sintomas de uma tosse convulsa que se avizinha. Fora a miríade de siglas de revolucionários cuja patetice nem sequer conseguiu atingir um nível digno de monty python, o encanto hipster bloquista e o lado

B da cassete comunista, assumiram finalmente que os seus projectos de poder não pretendem conflituar com a estabilidade, ou melhor com o “established”, que soa melhor aos compromissos internacionais e que significa em bom português, não mexer com o estabelecido. As notícias titulam “Patrões pedem estabilidade, CGTP quer estabilização”. Os primeiros para o governo, os segundos para os trabalhadores. Neste jogo de palavras não significa que a esquerda não aporte um freio aos ataques do reboot da crise capitalista sobre os trabalhadores e as margens sociais da pobreza (envergonhada, mas honrada). Mas a verdade é que ambas as palavras e actores contribuem para que não deixe de haver freios, na mesma medida em que um governo parlamentar não se traduz numa verdadeira participação democrática. Isto é, não bastando apenas que este “reflicta” uma escolha a termo irrevogável, mas que possibilite implicar a tal “manifesta vontade dos portugueses” a todo o momento e não a mando discricionário do mandatário. E se nos é dito que vagueamos e nos desviamos do concreto e do real, não vislumbro porquê, quando a tosse convulsa já não vai lá com chazinhos. O jogo da representatividade democrática é hoje palco de uma alargada insatisfação social. Aqui não há lugar a actores principais, mas a um rol de figurantes que envergam as vestes da margina-

lidade ao discurso político. Há por isso cada vez mais lugar no contraponto da representatividade à democracia directa. Evocação obrigatória a qualquer discurso de mudança e pela qual os movimentos sociais têm vindo a ecoar pressupostos anti-autoritários e de horizontalidade. Pese os caminhos diversificados e por vezes contraditórios, a energia que os cria e move é por regra anti-sistema, desaparecendo precisamente quando a opção passa à chancela eleitoralista. O que verdadeiramente destabiliza o estabelecido é esse apelo, traduzido nas palavras abstencionistas do pianista Tiago Sousa «a todos cuja motivação política persegue o objectivo de uma sociedade de indivíduos livres e emancipados para que considerem a subversão deste sistema como objectivo número um». Para «abrir brechas que intensifiquem a tensão social e travem o “business as usual”» (Público, 5.Out) É por isso que a linguagem da destabilização e não da estabilidade resulta na única que verdadeiramente se pretende construtiva. Qualquer poder teme esse momento na multidão e no indivíduo em que se perde o medo, e do providencialismo se passa à acção. É por esse receio que as ditaduras do consenso criminalizam a dissidência. O cansaço da linguagem partidária inerente à abstenção é inexpressiva se não voltar a reverter nas ruas o estado de dormência que nelas paira. Revertendo o protesto enformado que silenciou as pedras da calçada. Recusando o recolhimento caseiro e virtual que tomaram lugar às praças das cidades e aos largos da aldeia. Construindo práticas e alternativas directas e locais, desmantelado o estabelecido e estabelecendo os modos e fins de uma participação directa para todos esses outros dias em que não fomos a votos.

mapa borrado

.PT

MAPA

NÚMERO 11 OUTUBRO-DEZEMBRO 2015 1500 EXEMPLARES

JORNAL

Jornal de Informação Crítica


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