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Sexta 9 • Dezembro • 2011

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Jornal do Meio 617

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Tecnologia

Herança digital

Pesquisa britânica mostra que pessoas já se preocupam com o valor de seus bens guardados na nuvem e passam a incluir em testamento coleções de discos, filmes e livros que só existem on-line por LEONARDO LUÍS/Folhapress

Após sobreviver a um acidente de carro, Kelly Harmer, 27, decidiu fazer um testamento. Mas não um testamento comum. Nele, a chef inglesa incluiu bens que só existem on-line, guardados em servidores, via internet. A decisão de Kelly simboliza algo novíssimo no mundo digital: as pessoas começam a se preocupar com seu legado virtual ou seja, quem herdará os vídeos, livros, músicas, fotos, e-mails e documentos armazenados apenas na nuvem. Uma pesquisa recente do Centro para Tecnologias Criativas e Sociais, do Goldsmiths College (Universidade de Londres), mostra que 30% dos britânicos consideram suas posses on-line sua “herança digital” e 5% deles já fizeram como Kelly: definiram legalmente o destino dessa herança. Outros 6% planejam fazê-lo em breve. Segundo Chris Brauer, co-diretor do centro e um dos autores do estudo, isso acontece porque “advogados agora questionam seus clientes se eles têm objetos valiosos on-line, e muitos percebem que a resposta é sim”. Os pesquisadores estimam que, no total, os britânicos tenham o equivalente a R$ 6,2 bilhões guardados na nuvem. Nas contas de Kelly Harmer, seu patrimônio digital, que inclui mais de mil álbuns comprados apenas na rede, vale cerca de R$ 27 mil. No Brasil, o conceito de herança digital ainda é pouco difundido. Os raros casos citados por advogados que a reportagem entrevistou envolvem preocupação com bens digitais de alto valor financeiro. Ivone Zeger, advogada especialista em direito de família, diz que um cliente seu especificou um dos filhos para tomar posse de seus vários domínios de internet. Lei brasileira permite herdar bens digitais Inclusão em testamento de acervos que estão on-line não tem nenhum entrave na legislação, dizem especialistas Advogados divergem sobre o destino de contas de e-mail cujos donos não tiverem determinado herdeiros A legislação brasileira não seria um entrave para a inclusão de bens digitais em testamentos, segundo advogados entrevistados pela reportagem. Ou seja, acervos de músicas, filmes, livros e documentos armazenados na nuvem, em serviços como iCloud, iCloud, Dropbox e Google Docs, podem ser deixados a herdeiros. “Aquilo que não é vedado, a rigor, é permitido. Se você tem uma conta em um site importante para você, e se há permissão dentro do provedor, não há nada que impeça [a inclusão no testamento]”, diz a advogada Ivone Zeger. Para o advogado Renato Ópice Blum, especialista em direito digital, nem restrições do próprio provedor do serviço à inclusão de uma conta como herança seriam um impedimento definitivo. “Um serviço que estivesse sendo objeto da herança poderia ter alguma restrição emnos seus termos de uso uma vedação. Isso teria de ser discutidoSobraria para discussão juriídicamente se essa cláusula se

sustentaria. NMasAcho que, na maioria dos casos, havendo um bem digital relacionado ao interesse de herdeiros, eles têm direito.”

NO CÓDIGO CIVIL SEM TESTAMENTO

Quando não há nada determinado em testamento, o Código Civil prioriza familiares da pessoa que morreu para definir herdeiros. Dessa forma, quem não manifesta a sua vontade em testamento pode ter, por exemplo, dados privados de e-mails acessados por familiares depois de morrer? Para a advogada Fernanda Pascale, especialista em direito digital, em casos como os de e-mails, os serviços “devem manter as contas de seus usuários como pessoais e intransferíveis para proteger a privacidade deles”. “Um usuário morto não necessariamente ia querer que seus e-mails fossem vistos por sua família”, diz ela. Para Ópice Blum, se a pessoa não quer que algo se transmita aos herdeiros, deve tomar medidas para evitar isso. “Você pode até manifestar o desejo de que certos bens não se transmitam a certas pessoas. Se não fizer nada, uma ordem judicial poderá, sim, abrir a caixa.” Jean Gordon Carter, advogada americana especialista em direito de família, defende a importância de definir herdeiros para dados digitais. “Torna tudo mais fácil. Caso contrário, pode haver um conflito no futuro sobre quem será o dono de uma conta e quem poderá apagá-la.” pensar no futuro ALERTA Se você ainda não pensou no que vai acontecer com seus dados digitais depois da sua morte, é bom começar a se importar com o assunto, afirma o arquiteto de informação Evan Carroll. Ele é um dos autores de “Your Digital Afterlife” (algo como “seu pós-vida digital”), co-escrito com John Romano. O livro discute o destino póstumo de nossos bens digitais. “Aos poucos, estamos percebendo que o conteúdo intangível que compartilhamos na internet nos ajuda a lembrar o passado”, diz”, afirma ele. “Muitos de nós vivemos e estamos vivendo a maior parte de nossas vidas digitalmente. Pensar no que acontecerá com nossos bens digitais é cada vez mais importante. Colocá-los em testamento será não uma ideia especial, como hoje, mas algo comum.” (LEONARDO LUÍS) Para essa profecia de Carrol, a legislação brasileira não seria um entrave, segundo advogados entrevistados pela reportagem. Bens digitais já podem entrar em testamentos. “Aquilo que não é vedado, a rigor, é permitido. Se você tem uma conta em um site importante para você, e se há permissão dentro do provedor, não há nada que impeça [a inclusão no testamento]”, diz a advogada Ivone Zeger. Para o advogado Renato Ópice Blum, especialista em direito digital, nem restrições do próprio

provedor do serviço à inclusão de uma conta como herança seriam um impedimento definitivo. “Um serviço que estivesse sendo objeto da herança poderia ter nos seus termos de uso uma vedação. Sobraria para discussão jurídica se essa cláusula se sustentaria. Acho que, na maioria dos casos, havendo um bem digital relacionado ao interesse de herdeiros, eles têm direito.”

SEM TESTAMENTO

Quando não há nada determinado em testamento, o Código Civil prioriza familiares da pessoa que morreu para definir herdeiros. Dessa forma, quem não manifesta a sua vontade em testamento pode ter, por exemplo, dados privados de e-mails acessados por familiares depois de morrer? Para a advogada Fernanda Pascale, especialista em direito digital, em casos como os de e-mails, os serviços “devem manter as contas de seus usuários como pessoais e intransferíveis para proteger a privacidade deles”. “Um usuário morto não necessariamente ia querer que seus e-mails fossem vistos por sua família”, diz ela. Para Blum, se a pessoa não quer que algo se transmita aos herdeiros, deve tomar medidas para evitar isso. “Você pode até manifestar o desejo de que certos bens não se transmitam a certas pessoas. Se não fizer nada, uma ordem judicial poderá, sim, abrir a caixa.” Jean Gordon Carter, advogada americana especialista em direito de família, defende a importância de definir herdeiros para dados digitais. “Torna tudo muito mais fácil. Caso contrário, pode haver um conflito no futuro sobre quem será o dono de uma conta, quem vai gerenciá-la e quem poderá apagá-la.” Sites ajudam a planejar destino das informações Serviços on-line permitem fazer um planejamento não oficial do destino de propriedades digitais depois da morte de alguém.

Funcionam, em geral, da seguinte forma: o usuário escolhe os bens e serviços digitais que quer que sejam preservados, armazena senhas e informações para acessá-los e determina quem terá o direito de fazer isso, além de indicar alguém para notificar o serviço quando ele morrer. O brasileiro Brevitas, que existe desde março, é um exemplo. Luiz Gigante, seu fundador, afirma que o serviço tem cerca de 500 usuários, com idade média de 32 anos. A publicitária Júlia Éboli, 25 anos, tem conta no site. Ela diz que guardou nele seus dados de e-mail, Facebook e Twitter e até sua senha de banco. Aldo Silva, especialista em segurança da informação, afirma que os certificados do Brevitas são seguros. “Para um hacker invadir, é muito difícil.” Ele lembra, no entanto, que a segurança do site não basta. Um hacker pode ter acesso aos dados aproveitando a suscetibilidade do computador do próprio usuário. A ideia de se registrar no Brevitas surgiu quando Júlia voltou ao Brasil após uma temporada nos EUA. “Onde fiquei, era muito difícil o contato com o Brasil. Eu tinha acesso muito restrito a telefone, internet... Eu me perguntava: ‘se acontecer alguma coisa comigo, como vai ser?’” O americano Entrustet, outro serviço do tipo, tem 5.000 usuários, incluindo brasileiros, segundo seu cofundador Nathan Lustig. Sue Kruskopf, criadora do My Wonderful Life, afirma que o serviço tem quase 10 mil usuários, entre os quais muitas mulheres que têm de 50 a 65 anos. E que garantias os sites dão a usuários de que os serviços serão mantidos? O Brevitas promete manter as informações por cinco anos após a última renovação de contrato. O Entrustet diz ter uma reserva de caixa para durar mais três anos caso for fechar as portas. Isso daria aos usuários tempo para mover seus dados. (LL) foto: folhapress


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