conto
josÉ NIcoDemos*
Um presente da chuva
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A
quilo vivo, molhado, acomodando-se ao corpo dele. Era um vira-lata abrigando-se do frio da chuva. O mendigo, conhecido por Bilé, viu que era um filhote de vira-lata, desses jogados na rua, e teve-lhe pena. Eram iguais. Agasalhou-o na sobra de sua manta quase em farrapos. Grossa de sujo. Desde há muitos anos Bile dormia ali na porta principal da igreja, abrindo para debaixo da torre. Sozinho. Até que lhe apareceu, correndo da chuva, aquele cachorrinho, que não o largou mais. Andavam, comiam e dormiam juntos. Moradores da rua. E desde então passaram a se entender, humanamente. Bilé deu-lhe o nome de Ferrugem, pela semelhança da cor. Sem ser amestrador de cães, não teve dificuldade em ensinar-lhe muitas coisas, entre as quais o ficar de pé sobre as pernas traseiras, estendendo uma das patas da frente às pessoas a quem estendia a mão rogando a esmola pelo amor de Deus. Foi o bastante para chamar a atenção das pessoas, admiradas com o cachorrinho imitando o gesto humilde de Bile – “Uma esmola pelo amor de Deus”. E ninguém lhe negava o ato de caridade. Uma espécie assim de paga pelo gesto sabido de Ferrugem. De olhar humano. As pessoas – até – o procuravam, a
Desde há muitos anos Bile dormia ali na porta principal da igreja, abrindo para debaixo da torre. Sozinho.
Bile, para dar-lhe um trocado, divertiamse com Ferrugem. Fazia tudo o que o dono mandava, como por exemplo, ir buscar-lhe um toco de cigarro à vista. Qualquer coisa. Antes de Ferrugem, Bilé era um homem tristemente fechado em si mesmo, nunca se lhe viu nos beiços caídos e nos olhos carrancudos a mais ligeira expressão de um sorriso. Dele, só se ouvia – Uma esmola pelo amor de Deus. Depois do cachorrinho, que a chuva lhe trouxera, passou a sorrir, falar, até brincar com as pessoas que lhe pareciam mais acessíveis. Era um outro homem. Como que Ferrugem lhe devolvera a condição humana. O interesse pela vida.
E esse novo jeito de ser fez com que Bilé, antes evitado pelo mau cheiro e pelo ar de bicho feroz, se tornasse, por assim dizer, um vivente humano. Digno de compaixão, em vez daquele desprezo de narizes mais sensíveis e de olhos olhando de banda. Já no extremo da idade canil, ou já passando disso, de repente Ferrugem fechou os olhos, e não os abriu mais. Foi isso numa de manhã. Bilé chorava como choraria se lhe tivesse morrido um filho. Choro alto, comovido e comovente. E quando foi de tarde, o mendigo também fechou os olhos para sempre. Foi-se com o presente que um dia lhe trouxera a chuva. O único amigo. O companheiro fiel.
Jornal de Fato | DOMINGO, 16 de junho de 2013
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