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OPINIÃO
from Jornal de Fato
ESPAÇo JorNALiSTA MArTiNS DE vASCoNCELoS
organização: CLAuDEr ArCANJo
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a MeMÓrIa VIVa de leYla PerrONe-MOISÉS
vErA LúCiA DE oLivEirA
Escritora, membro da Academia de Letras do Brasil - (Brasília-dF) veraluciaoliveira@hotmail.com
Leyla Perrone-Moisés (1936 - ) merece uma condecoração pelos serviços prestados à inteligência brasileira. Como escritora é indiscutivelmente uma grande estrela, representante do país, pois desde a juventude vem criando laços e pontes com os mais célebres escritores internacionais, referências do pensamento ocidental.
Estudiosa da língua francesa desde a infância, professora doutora e autora de dezenas livros e artigos, crítica literária, palestrante nas principais universidades do Brasil e do mundo e, sobretudo, amiga de seus amigos intelectuais, como Haroldo de Campos, Antonio Candido, Benedito Nunes, Osman Lins, Paulo Leminski, José Saramago, Roland Barthes, Julio Cortázar, Lévi-Strauss, Jacques Derrida e muitos; muitos outros a ela devotados por sua delicadeza, inteligência e cultura. Uma perfeita “embaixadora” do Brasil na França e nos Estados Unidos, onde passou pelas melhores universidades: Sorbonne e Yale, para citar somente duas de ponta.
Leyla conta sua trajetória intelectual no livro Vivos na memória (SP: Companhia das Letras, 2021) – uma das melhores publicações do ano –, desde a menina estudiosa, passando pela adolescente aprendiz de arte moderna, aluna de pintura de Samson Flexor, no Atelier Abstração, de 1952 a 1960, de quem guardaria a influência e o gosto pela arte moderna, moderníssima, até a consolidação da carreira de professora e ensaísta. Teve algum sucesso e reconhecimento como pintora, mas logo descobriria uma nova paixão, a literatura de vanguarda. Não resta dúvida de que o aprendizado da arte abstrata foi uma “planta” para a “casa” da nova literatura. Essa é a sua distinção: no momento em que a nova escrita, o nouveau roman despontava na França, Leyla já apresentava Michel Butor, Claude Simon, Nathalie Sarraute, RobbeGrillet aos leitores brasileiros em seus artigos nos jornais paulistas em análise fina, elegante e linguagem acessível. Assim, ainda na casa dos vinte anos, assume a responsabilidade de articulista em excelentes colunas de opinião em que brilha e conquista a admiração e o respeito da intelectualidade brasileira.
Ler Vivos na memória é um prazer imenso pela leitura fácil e riqueza dos textos. Embora afirme modestamente que não tem nada para contar a seu respeito, mas muito para contar das pessoas que conheceu, o que vemos no livro são depoimentos de toda uma vida em que conciliou, entre livros e mamadeiras, os papéis de escritora, professora e mãe de duas filhas. Não dá para imaginar quantas fibras e fraldas desdobrou... Nessa obra enciclopédica ela fala dos amigos e mestres que foram referências, das viagens quixotescas mundo afora, sempre estudando e trabalhando a palavra e o pensamento. Com tese de doutorado sobre Lautréamont, da lista dos malditos, encantou-se exatamente por ser o autor franco-uruguaio, autor de Os cantos de Maldoror, um ponto fora da curva. Longe dela qualquer tipo de preconceito, pois não se assusta com nada. Isto é, assustou-se com o atrevimento e a falta de compostura de um autor gaúcho (por elegância ela não cita o nome) que, destemperado, causou transtorno e constrangimento enorme, na presença de Saramago, homenageado num congresso em Alberta, Canadá, onde este seu amigo era o convidado de honra. Fora esse incidente lamentável, que deixou Saramago tremendo de raiva, o que ela nos conta é do respeito com que foi tratada. Isso por sua competência, talento nato e fina educação.
Leyla conviveu com dezenas de autores e tem muita história para contar, como daquela vez em que chegou a um pallazo italiano luxuosíssimo com as botas sujas acompanhando o querido e incansável amigo Haroldo de Campos, onde este seria homenageado. Foi também ele que a apresentou a Tzvetan Todorov, de quem se tornaria amiga oferecendo até um jantar de feijoada em seu pequeno apartamento (alugado) em Paris, jantar que quase acabou mal pelo desentendimento de Roland Barthes e Philippe Solers, outra celebridade da intelectualidade francesa. Acompanhou Haroldo ainda a Londres onde visitaram Caetano, Dedé e Gil no exílio. Conta-nos também do dia em que Cortázar não pôde comer o vatapá em sua casa em Sampa, pois precisou ir às pressas para o aeroporto fugindo da polícia da ditadura brasileira. Tomou chá com o amigo Barthes, já mergulhado em profunda depressão pela perda da mãe. Contanos também do dia em que a grande dama italiana Luciana Stegagno se recusava a sair do hotel em Lisboa, e se apresentar onde era aguardada, porque havia esquecido a maquiagem em casa, o que Leyla providenciou e resolveu, salvando a beleza da amiga.
Participou de inúmeros congressos e elevou o nome do país em muitas universidades e cidades. Especialista em Fernando Pessoa, escreveu tese inovadora sobre o gênio, encantando os colegas portugueses, a exemplo de Eduardo Lourenço, conhecedor profundo do poeta, que a admirou por seu livro Fernando Pessoa: Aquém do eu, além do outro, e tornou-se seu amigo. Aliás, em Portugal, onde esteve inúmeras vezes, encantou-se com o artista e provocador Almada Negreiros, conheceu Vergílio Ferreira, Ferreira de Castro, Adolfo Casais Monteiro, a bela poetisa e ativista Natália Correia, que mais tarde seria condenada a três anos de prisão pela publicação de uma antologia e ainda seria processada pela edição da obra feminista Novas Cartas Portuguesas, voz que o salazarismo, no entanto, não conseguiu calar.
São muitas as aventuras dessa viajante intrépida que soube como ninguém defender seus pontos de vista com análises perspicazes, batendo forte quando necessário, nesse livro que tem o mérito de registrar uma época de ouro da vida intelectual do Brasil e do mundo. Leyla, mulher bemhumorada, generosa, árvore frondosa que tem espalhado seus frutos saborosos para todos – suas obras maravilhosas –, merece uma estátua na Universidade de São Paulo. Mas, talvez, não concorde com esse tipo de homenagem, pois jamais ficou quieta. Estrelas mudam de lugar.



dI reçÃO geral: César Santos dIretOr de redaçÃO: César Santos gereN te ad MINIS tra tIVa: Ângela Karina deP. de aSSINatUraS: Alvanir Carlos Um produto da Santos Editora de Jornais Ltda.. Fundado em 28 de agosto de 2000, por César Santos e Carlos Santos.
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