Jornal De Fato

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2 OPINIÃO

TERçA-FEIRA, 21 de junho 2022

ESPAÇO JORNALISTA MARTINS DE VASCONCELOS

Organização: clauder arcanjo

COVID XI RAIMUNDO ANTONIO DE SOUZA LOPES

é escritor e jornalista rsouzalopes@hotmail.com

Já passava das dezenove horas quando tomei o corticoide. Resolvi que só voltaria para o computador (que havia mandado instalar no quarto) para atualizar o site da Sarau, lá pelas vinte e duas horas. Enquanto o tempo para isso não chegava, fui ler um pouco de Brás Cubas. Machado dá um nó com sua desenvoltura literária. Brinca com as palavras, leva o leitor a ter estima e raiva ao personagem, ora admira, ora detesta; porém não é possível deixar de se maravilhar com a figura instável de um narrador que passa a contar sua história a partir de sua morte. Memórias póstumas de Brás Cubas inaugura, segundo os especialistas em literatura, o período realista no Brasil. Concentrei-me o máximo que pude para apreciar melhor o linguajar literário de Machado de Assis. O tempo voou. Só dei por ele quando ouvi batidas na porta. Depois do ritual de fechar as janelas, colocar a máscara, para só depois abrir a porta, vi, numa bandeja, um prato fumegante de sopa de frango com legumes. O cheiro estava bom e a fome, embora algo estivesse me incomodando além da dor de cabeça -, estava em alta. Enquanto comia e me deliciava com os temperos, legumes e a carne branca da sopa, além do caldinho, fiquei pensando em como a vida pode (e deve) ser vivida de forma simples. E contradizendo, ou até corroborando, com o filósofo Epicuro, a busca pelo prazer está em pequenos detalhes, gestos, gostos, amizades… Aquela sopa traduzia bem o prazer que estava sen-

Ilustrativa

tindo. Mesmo passando por uma provação, mesmo não podendo partilhar de momentos prazerosos com os meus familiares - em razão da doença -, mesmo assim o simples ato de saborear uma comida líquida, e pastosa, enchia-me de uma sensação agradável, que satisfazia (e saciava) o desejo de uma vontade ligada à necessidade do meu organismo. Seria então a felicidade pequenos (e breves) momentos de prazer? Lembro-me de que, quando adolescente, receber uma carta da “namorada”, que morava em outra cidade, era motivo de um ritual de prazer. Abrir delicadamente, para não rasgar o envelope, constituía um ato prazeroso, quase divinal. Ler então cada linha, bem devagar, indo e voltando, beirava o êxtase. E quando, no final da missiva, vinham as frases “estou morrendo de saudade”, “eu te amo” e “preciso lhe ver” completava-se o tão esperado ciclo (espera, chegada e leitura) do prazer total. Seria, portanto, a felicidade o início e o fechamento do prazer? Não sei dizer. Só sei que a cada colherada dada, mastigada e engolida, o meu corpo correspondia com um infinito desejo de "quero mais”. Isso me fez pensar sobre os casais, suas relações, seus amores. O desejo, associado ao prazer, num ato carnal, é, sem sombra de dúvida, um momento feliz e independe se será somente uma vez ou se o ato se repetirá por muitas e muitas vezes. Quando terminei de comer aquele prato de sopa, estava saciado física e mentalmente. E se estava pleno, então isso significava que o prazer de começar e terminar aquela tarefa havia me trazido felicidade para aquele instante. Mas não só isso. O simples fato de comer, com vontade, podia-se traduzir que o corpo estava reagindo e a cabeça estava pensando positivo, deixando de lado o pessimismo que toda e qualquer doença traz. E para finalizar esses pensamentos tão rasos sobre o que é prazer, desejo e felicidade, a brisa vinda do Leste, entrando pelas janelas do quarto e batendo no meu rosto, deu-me uma sensação maravilhosa de bem-estar. Coisa simples, que não é preciso comprar, pois nada custa e é encontrada, por

incrível que possa parecer, de graça na natureza. Como me fez bem! Depois de lavar os apetrechos com detergente, água sanitária e uma bucha com sabão líquido, depois que a água toda escorreu, eu abri a porta e deixei tudo no outro lado da porta, em cima de uma cadeira colocada ali para isso. Antes, porém, uma borrifada de álcool por todos os objetos que dali a pouco dona Dora levaria para a cozinha. Escovei os dentes e, em seguida, fui atualizar o site da Sarau. A crônica era de Flávia Arruda e trazia o título: Não é sobre preconceito, machismo e misoginia… é sobre respeito. O conteúdo excelente. A autora conseguiu dar vários tapas, com luvas de pelica, na intolerância, no culto ao corpo ditado pelas normas sociais; enfim, como ela escreve de uma forma que a sua mensagem é bem absorvida, a repercussão, a análise e as discussões com certeza seriam inúmeras. Fiquei me lembrando de como só é preciso um incentivo, um apoio, uma mão amiga e a força de vontade para mudar uma realidade. No caso, a dela. Quem a conhece, e conhece sua história, sabe o quanto esses temas são importantes para sua autoestima. Tarefa cumprida, preparei-me para dormir. Os últimos oito dias foram longos demais. O tempo é incrivelmente brincalhão quando ele quer ser. As

di­re­ção ge­ral: Cé­sar San­tos diretor de redação: César Santos Ge­ren­te AD­MI­NIS­TRA­TI­VA: Ân­ge­la Ka­ri­na DEP. DE ASSINATURAS: Alvanir Carlos

horas, no meu caso, arrastavam-se, eram demoradas para pular de uma para outra. Acho que o tempo existe na nossa mente para fazer com que, dependendo de nosso estado de saúde (principalmente), ele corra ou apenas caminhe durante as vinte e quatro horas. Antes de deitar-me, descalcei os sapatos. A sensação de alívio, no local da parte inferior dos membros, especificamente nos pés, foi imediata. Senti um prazer só comparado ao prato de sopa que havia comido horas atrás. Felicidade pura. E num ato simples, quase infantil. O homem procura nas coisas complexas a sua felicidade; quando, na verdade, ela se encontra ao alcance de todos, nas formas mais simples, pensei. Dormi, ato contínuo, como das vezes anteriores: levantando-me quase de hora em hora.

9º Dia Sábado, dia 6 de novembro, acordei por volta das sete da manhã com as marteladas vindas do Bar do Gordo. Com certeza, pensei, estão começando a “cercar” o espaço para o evento de amanhã. O ser humano é, em muitas ocasiões, inacreditavelmente confuso, para não dizer que ele é dotado de total inépcia. Ficar “guardado” dos demais, mesmo que por grades de madeira, lhe dá a impressão de privilégio, de algum tipo de poder.

Pagar para entrar lhe confere o status de ser diferente, de estar acima, ser distinto de quem não pode pagar ou não quer pagar para entrar no “cercado”. Levantei-me com uma certa dificuldade. O corpo estava esquisito e a dorzinha de cabeça persistia. Felizmente, a tosse havia dado uma trégua e somente em intervalos cada vez maiores ela dava o ar de sua graça, assim como a febre (tinha hora que dava a impressão de que o corpo estava febril, no entanto, quando colocava o termômetro, ficava abaixo de 37º). Lembrei que era o último dia de tomar o corticoide. Amanhã, quando acordar, vou levantar-me “zerado”, praticamente curado. Estava no nono dia. Fiz o ritual de praxe, culminando com o banho e fiquei esperando o desjejum. Como sempre, a dona Dora caprichou. Mas quando fui tomar café, o gosto me pareceu meio esquisito. Mesmo assim, tomei. Depois que lavei todo o material utilizado, deixei no banquinho do lado de fora da porta do quarto e tratei de calçar os sapatos para amaciá-los mais ainda. Olha, a cena - e quem me conhece sabe - não era das mais bonitas, confesso. Eu de calção de pijama, as canelas finas, meias pretas até a metade delas e um par de sapatos sociais enfiado nos pés. Dantesco!

Um produto da Santos Editora de Jornais Ltda.. Fundado em 28 de agosto de 2000, por César Santos e Carlos Santos.

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