Jornal De Fato

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2 OPINIÃO

domingo, 3 DE abril de 2022

ESPAÇO JORNALISTA MARTINS DE VASCONCELOS

Organização: clauder arcanjo

O idiota, um romance teatral (Parte I) Ilustração de Oswaldo Goeldi para o livro “O Idiota”, Editora 34

Vera Lúcia de Oliveira

Carol Caminha

Escritora, membro da Academia de Letras do Brasil - (Brasília-DF) veraluciaoliveira@hotmail.com

Dostoiévski gastou 160 páginas para narrar os acontecimentos de um único dia nos dezesseis capítulos da primeira parte de O idiota, seu romance mais comovente, escrito no exterior sob forte pressão financeira e publicado em 1869. A narrativa se inicia com o trem Varsóvia-Petersburgo aproximando-se da cidade de São Petersburgo numa manhã em meio a muita névoa. Num vagão de terceira classe, dois jovens viajantes de vinte e seis ou vinte e sete anos foram colocados pelo acaso um frente ao outro. São eles: Perfien Rogójin e o príncipe desencantado Liev Nikoláievitch Míchkin, o último de sua estirpe que, como o companheiro de viagem, não levava bagagem, portando apenas um embrulhinho com roupa branca. Um príncipe quase mendigo, chamado de idiota dezenas de vezes na narrativa. Como o filho pródigo de Gide, o príncipe só queria riquezas que pudesse carregar... Humano, demasiado humano, era contra a guilhotina e a pena de morte; órfão desde pequeno, doente, com epilepsia, cujos ataques penosíssimos (como os do autor) o tornaram quase um “idiota”, segundo ele mesmo; ingênuo, puro e sem conhecimento das mulheres. Assim como ocorreu com o autor, o príncipe Míchkin nos conta a história de um indivíduo que ia morrer no cadafalso aos vinte e sete anos, sadio e forte, e foi perdoado no último minuto. Nessa longa página, podemos identificar a autenticidade do relato de Dostoiévski, de suas memórias dolorosas do terror vivido naquele instante eterno. Pisou na morte. O príncipe descreve execuções acontecidas à época em vários lugares da Europa, a exemplo de uma em Lyon, terrível, que presenciara com horror e o deixara muito doente. Fica feliz, no entanto, ao saber que a pena de morte fora abolida na Rússia, pois considera essa pena capital um ultraje à alma, porque foi dito: “Não matarás!”. Dostoiévski expõe o seu ponto de vista cristão na fala do príncipe: “Mas porque ele matou, vou matar? Não, isso não é possível.

(...) Matar a quem matou é um castigo incomparavelmente maior que o próprio crime. O assassinato em virtude de uma sentença é mais espantoso que o assassinato cometido por um criminoso.” (Págs. 27, 28). Os dois jovens companheiros de viagem parecem frente e verso do autor Dostoiévski: Rogójin, por sua semelhança física: estatura mediana, olhinhos cinzentos, pequenos, mas cintilantes, nariz largo, fronte alta, rosto pálido, e por ter pai autoritário; e o príncipe, por seus aspectos psicológicos mais a epilepsia. O príncipe Liev Nikoláievitch Míchkin voltava à Rússia depois de quatro anos vivendo na Suíça, numa clínica no campo, devido à necessidade de ar puro por sua enfermidade, a epilepsia. Como se trata do romance mais autobiográfico do autor, pois, ao falar do príncipe Míchkin, fala muito de si mesmo, lembramos que Dostoiévski passou quatro anos em prisão fechada na Sibéria, longe de São Petersburgo, e outros quatro anos em viagem pela Europa. Nessa volta do príncipe, sua vida será uma nova vida. Rogójin também retornava à cidade depois de um tempo no interior. Desse primeiro encontro, o narrador compõe a teia do enredo, ligando personagens conhecidas entre si. Para que a trama se construa de modo verossímil, entra em cena Liébdiev, um tipo vulgar de funcionário falastrão, que conhece tudo, sabe tudo da vida alheia e vai esclarecer sobre os personagens que constituirão o romance, cujos núcleos são construídos como cenas teatrais. Nessa primeira cena, no vagão do trem, o interesse do leitor recai no conhecimento dos três, na volta para casa. Às onze da manhã, o príncipe está batendo à porta do general Iepántchin, homem rico (outrora traficante de aguardente), de cinquenta e seis anos de idade, que vivia com a mulher e as três filhas, três graças de Botticelli, cuja menor, a tirana Aglaia, era uma verdadeira beldade e terá papel importante na história. A generala Lisavieta Iépántchina era também remanescente da família Míchkin, razão da visita do príncipe para conhecê-la. O príncipe ganha a simpatia da família por sua simplicidade, cordialidade e pureza de sentimentos. Sem recursos e sem ter onde se hospedar, aceita a oferta de emprego do general. Traz uma carta, mas o general não ouviu quando a mencionou, carta que mudará o rumo da narrativa mais tarde. Uma verdadeira carta na manga. Nessa casa, há o mesmo recurso teatral de concentrar o diálogo num pequeno grupo de personagens, como nas peças de Tchékhov, por exemplo. Recurso que se repetirá estruturalmente no romance. Da casa do general, a narrativa segue para a casa de Gânia, funcionário do general, que alugará um quarto para o príncipe. Esse é o terceiro espaço físico e o segundo núcleo familiar, também de natureza teatral, sobretudo com a entrada

apoteótica da belíssima Nastássia Filipóvna na casa, mostrando e antecipando a sua força como personagem protagonista. É uma entrada em cena digna da Carmem de Bizet. Vai tripudiar, reinar sobre todos da casa. É preciso, para compreender a indomada Nastássia, conhecer o seu passado de menina pobre, ultrajada, órfã de pai, mãe e irmã. Fora levada ainda pequena para a propriedade de um homem rico, no campo, Tótsi, que se tornara seu protetor. Alguns anos depois, ao visitá-la, pois vivia em São Petersburgo, ficou impressionado com a beleza fora do comum da mocinha de catorze anos; resolveu, então, dar-lhe educação esmerada. Assim, Nastássia Filípovna desabrochou. Tornou-se uma bela moça, de forte caráter. Seguiu intempestivamente para Petersburgo, onde foi instalada por Tótsi com todo o conforto. Começa a segunda etapa de uma vida solitária, triste, de situação indefinida socialmente. Para desembaraçar-se dela (pois tinha interesse em casar-se com uma moça de família respeitável, no caso, uma das filhas do general Iepántchin, seu amigo), Tótsi, depois de tratar com o general, oferece a ela setenta e cinco mil rublos de indenização. Nastássia, que era muito altiva e ciente de si, finge aceitar, e até agradece a oferta do dinheiro. Aqui, Dostoiévski dá à narrativa o movimento da onda que, com certeza, voltará como um tsunami. Nastássia aceita tão prontamente a oferta que gera no leitor a desconfiança de que ela trama algo, um bote para a hora certa. Tudo nessa jovem de dezenove anos é sedutor: sua beleza, sua inteligência, seu saber feito de estudos e observação da vida. Estimada pelos amigos simples, revela sua bondade e pureza d’alma. É uma personagem de força extraordinária. Inesquecível. Vive um conflito interno, aceitando uma vida que a humilha, pois não vê perspectiva de mudança. É sozinha no mundo. Uma fera ferida: orgulhosa, ofendida no seu amorpróprio, sente o gosto amargo das perdas familiares e do sentimento de não pertencimento; não tinha nada que estimasse, a nada se ape-

di­re­ção ge­ral: Cé­sar San­tos diretor de redação: César Santos Ge­ren­te AD­MI­NIS­TRA­TI­VA: Ân­ge­la Ka­ri­na DEP. DE ASSINATURAS: Alvanir Carlos

gava, apenas a consciência de que se tornara uma mercadoria, um objeto que, depois de usado, deve ser descartado. Ao receber a proposta do dinheiro para casar-se com um jovem inexpressivo com Gânia, Nastássia viu toda a “bondade” de Tótsi desmascarada, viu a verdadeira face do seu “benfeitor”, a sua verdadeira intenção, viu a verdadeira cara da sociedade manifestar-se. O que pode ou vale uma bela jovem sozinha, sem a referência familiar, numa sociedade conservadora, patriarcal e opressora das mulheres? Não é por acaso que o narrador recorre inúmeras vezes ao romance A dama das camélias (1848), de Alexandre Dumas Filho, num diálogo com essa obra que imortalizou a figura da mulher decaída e discriminada. Embora a personagem Marguerite Gautier tenha um amor romântico, diferentemente de Nastássia, o que, no entanto, aproxima as duas personagens é como elas são vistas pelos olhos dos homens e da sociedade; ou seja, como figurantes descartáveis. Valem muito pouco. A inteligente Nastássia vai dar o troco do dinheiro, os setenta e cinco mil que a fariam calar-se e deixar Tótsi livre. (Poderíamos indagar aqui: por que Tótsi não se apaixonara por ela? A resposta é simples: ele só pensava em si, no seu conforto e bem-estar, egoísta e egocêntrico que era.) Nastássia realiza um sarau para comemorar o aniversário de dezenove anos. Essa é a terceira casa onde os personagens se encontram, em mais uma cena teatral. Cena em que o leitor vai se ver dentro de uma ópera com todos os ingredientes, indo da farsa ao drama, cujo clímax ocorre quando Nastássia atira ao fogo o pacote com cem mil rublos que Rogójin lhe dera. Por que ela fez isso? Fez de caso pensado, para vingar-se do que a vida fizera com ela. Foi numa espécie de embriaguez, de desejo de vingança por ter sido arrastada a uma vida indigna desde os catorze anos. Por que atirou o dinheiro no fogo na lareira e não pela janela para que algum passante tirasse a sorte grande? A preferência pelo fogo pode estar rela-

cionada à lembrança (inconsciente) do incêndio que destruiu a casa da família quando criança pequena. O fogo como recurso mítico no romance. O fogo da purificação e da desobediência, simultaneamente. Quando jogou o dinheiro no fogo, ordenou ao jovem Gânia, com quem se casaria, que se arrastasse para resgatá-lo como um prêmio – como ela fora arrastada, talvez, por Tótsi a uma vida de desonra. Quis castigálo por sua ambição. Mas acabou resgatando, ela mesma, o pacote que, como a Fênix, saiu intacto do fogo, apenas chamuscado, o que fez Gânia desmaiar de tensão. Nessa cena Nastássia ganha contornos de personagem trágica, como as do teatro grego. É uma bacante ou uma Medéia ensandecida. Ou personagem das óperas do Romantismo, como Lucia de Larmemoor em sua loucura, com o mesmo grito, que ela também solta. A metáfora do fogo, que tanto pode ser clarão divino como chama infernal, cria a ambiguidade que tão bem representa a vida de Nastássia, também Madalena pecadora. Essa cena de forte impacto é o clímax da primeira parte do romance, cujo desfecho se dá com a fuga dos personagens no meio da noite. À meia-noite, exatamente. Foi um longo dia, um dia em que o tempo psicológico predomina, em que o tempo é dilatado propositadamente pelo narrador, tempo de conhecimento, de apaixonamento, de discordâncias, de acertos de contas, de encontros e desencontros. Dessa forma também, Dostoiévski estruturou O duplo, um de seus primeiros romances: dos quatro dias que compõem a história, o primeiro é igualmente longo, do amanhecer à meia-noite, em que tudo acontece. E ainda a novela Noites brancas, quatro noites, sendo a mais longa a primeira. Mas a metáfora do fogo diz muito mais da natureza de Nastássia, de sua personalidade, de seu brilho; como um vulcão, ela explode revelando sua chama interior; como o sol, aquece e ilumina todos à sua volta. Nela, como em Prometeu, está o fogo sagrado da desobediência. Esses são traços de seu temperamento, pois fisicamente não era uma mulher solar: era magra e pálida, mas sua presença magnetizava a todos. O que chama atenção no romance é o fato de Nastássia, personagem protagonista – não podemos esquecer – ter mais ausência do que presença na narrativa. Dostoiévski constrói o romance baseado na forte personalidade dela que, mesmo ausente, é, não só lembrada por todos, sobretudo por Aglaia, que a tem por rival perigosa, mas também domina a cena a distância. Certo dia, reaparece em público como um clarão, um raio, chicoteia alguém e depois só volta para dar fecho ao romance, não sem ter impactado novamente com sua força de mulher ultrajada e destemida. Essa é Nastássia Filípovna, a trágica e encantadora personagem, com certeza, a principal heroína de Dostoiévski...

Um produto da Santos Editora de Jornais Ltda.. Fundado em 28 de agosto de 2000, por César Santos e Carlos Santos.

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