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MOSSORÓ E SEUS ABANDONOS
from Jornal De Fato
Sueldo Câ MARA
Mossoró é uma cidade que, ao longo do tempo, demonstrou sérias dificuldades em preservar alguns espaços representativos da sua história e de sua cultura. A antiga estação ferroviária levou décadas para receber algum projeto que transformasse o equipamento em um espaço para manifestações artísticas, assim como o Corredor Cultural da Rio Branco, “puxado” pela proximidade com a Igreja São Vicente, símbolo da resistência ao ataque do Bando de Lampião.
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O Museu Municipal peregrinou por muito tempo de um lugar a outro até que ocupou a antiga cadeia pública no centro da cidade, mas outros espaços representativos continuam esquecidos e parecem não somente marginalizados e abandonados, mas também que são alvos do poder público (quando falo poder público, não me refiro a nenhum mandato de A ou B nem a nenhum partido político específico, refiro-me ao poder constituído de uma forma geral) para destruí-los e torná-los excluídos de qualquer projeto que tenha, em seu escopo, a preservação cultural.
O Alto do Louvor é uma dessas vítimas do abandono. O local, estigmatizado por ter sido o epicentro do baixo e do alto meretrício na cidade nos anos 50 e 60, sofre com a falta de cuidados da municipalidade. Encravada em uma região central da cidade, a localidade mescla um pouco de desenvolvimento urbano com a presença de condomínios residenciais, templos religiosos e alguns negócios com atraso social e infraestrutura precária. Em sua maioria, as ruas que abrigaram as antigas boates, cafés e casas de show, que foram palcos da mais glamourosa boêmia da próspera cidade do sal na década de 50, hoje vivem um cenário desolador... casebres sem o mínimo do charme da art nouveau, que deu origem ao nome da localidade, se agrupam nas ruas sem asfalto, tomadas pelo mato, pela pouca limpeza e pela falta de cuidado. Os canteiros que a prefeitura enfeita com flores e belas árvores na Nova Betânia nem de longe se comparam com os espaços separados pelo meio fio coberto pelo capim e pelo calçamento velho e irregular dos becos e veredas esquecidas do Alto do Louvor. A noite não tem mais o brilho das fachadas reluzentes dos cabarés, e o dinheiro arrecadado com a taxa de iluminação pública não conhece o caminho da Nilo Peçanha, prefere alumiar os bares e restaurantes sofisticados da João da Escócia.

Muitos evitam trafegar a noite por suas vielas, se esquivam do mau cheiro dos bueiros da rede de esgoto sem manutenção, e muitas mulheres do Alto hoje não mais exalam a fragrância do Paco Rabanne dos tempos dourados. Algumas pessoas têm medo de certos homens que geralmente povoam suas adjacências. “Eles não usam Blacktie” nem ostentam sobrenome tradicional no mundo da política ou empresarial que ilustravam as noites regadas a whisky escocês no verde lodo das mesas dos cassinos de outrora. Os novos frequentadores são privados de tudo que o “papel bordado” pode prover ou proporcionar, são acolhidos à noite apenas pelas calçadas frias das ruas e suas penumbras e não empunham copo de whisky ou conhaque, taça de espumante ou charuto cubano, mas, sim, lata, pedra e cachimbo.
A sociedade e o poder público desprezam e isolam o Alto do Louvor por pura hipocrisia e preconceito para com o seu passado, marcado pela prostituição, e não empreendem nenhuma ação de transformação do lugar e de melhoria da qualidade de vida de parte dos seus moradores e frequentadores, desconhecendo, assim, que o espaço, em seu passado, não foi somente de prostituição, no entanto também de arte e expressão cultural.
Alguns que o condenam são descendentes daqueles que se deleitaram nas alcovas do bairro e financiaram os seus ofícios.
Achados de estudos acadêmicos apontam que o Alto do Louvor era frequentado também por homens e mulheres da chamada alta sociedade, bem como por turistas de outros Estados e até estrangeiros. Foi palco de apresentações de artistas renomados, como Núbia Lafayete. Existia uma atmosfera cosmopolita no bairro boêmio, e a prova disso eram os nomes dos principais estabelecimentos: Copacabana, Coimbra, Casablanca, Las Vegas, Cabaré Louvre, Lanchonete Art Nouveau , Bar Brahma e até mesmo o "Paraibana”, indicando que o local reunia culturas regionais, nacionais e internacionais.
A negligência com a localidade é um grave erro do ponto de vista urbano, social, turístico e cultural da cidade. O “La Boca”, em Buenos Aires, é um bairro periférico com histórico de prostituição na urbe argentina e tinha tudo para ser um lugar marginalizado e esquecido, porém o poder público da capital portenha conseguiu transformar a dificuldade em oportunidade e criou no bairro um espaço cultural, comercial e artístico denominado de “Caminito”. O local é todo caracterizado com aspectos culturais argentinos, abrigando diversos estabelecimentos comerciais e artísticos, bares e charmosos bistrôs, além da gastronomia local, elementos que oferecem ao visitante
Reprodução apresentações de tangos e outros estilos musicais, lojas que vendem souvenirs, artefatos e artesanatos da cultura portenha, ateliês com exposições de artes plásticas, artistas de rua que imitam e representam figuras ilustres da Argentina, locais pitorescos para tirar fotos. No entorno do Caminito, encontram-se também museus, teatros e cafés.
Tudo isso encanta os viajantes e cidadãos portenhos e transformou o sombrio bairro do La Boca em um dos maiores pontos turísticos e espaços culturais da capital, a gerar arte, emprego, renda e dignidade a seus moradores.
A apatia com bens representativos da cultura mossoroense não se limita ao descaso com o Alto do Louvor. Existem outras “vítimas” da nefasta negligência municipal que se consolida sob o olhar cúmplice e permissivo da sociedade (quando cito “sociedade” também me refiro a mim, pois nela estou inserido em suas virtudes e imperfeições), que endeusa figuras forasteiras e estrangeiros e colocam na vala do esquecimento artistas locais que enriqueceram nosso lastro cultural na música, nas artes plásticas ou na literatura. A Capital do Oeste Potiguar, no início dos anos 70, ganhou fama no Estado e até em outras localidades pela capacidade de produzir as chamadas serestas, que se proliferavam pela cidade e região, a animar as noites mossoroenses em diversas casas noturnas, bares, restaurantes e até casas de famílias, criando um clima de romantismo, beleza e encanto por onde os seresteiros se apresentavam.
Um artista local se destacou e ganhou fama pelo seu talento: Francisco de Almeida Lopes, popularmente conhecido como “Co- cota”, irmão do famoso Trio Mossoró, constituído por João Mossoró, Hermelinda Lopes e Carlos André, que fez muito sucesso alémfronteiras, levando o nome de Mossoró para o resto do país. Uma pequena e graciosa praça às margens do Rio Mossoró era o ponto de encontro de seresteiros da cidade e ganhou o nome de “Praça dos Seresteiros”. Cocota era um dos principais frequentadores, e a praça passou a ser um lugar emblemático na história da seresta mossoroense, que Cocota vislumbrava levar para todo o Brasil. Mas o destino foi duplamente cruel com o seresteiro da terra de Santa Luzia. Ele foi brutalmente assassinado no auge da carreira e levou consigo todo o encanto da seresta local, que se perdeu no tempo. A Praça dos Seresteiros foi abandonada e destruída, bem como o sonho de seus familiares e amigos do lugar ser preservado com alguma homenagem à Cocota e ao Trio Mossoró, e ser o eterno ícone de uma manifestação artística que outrora enalteceu a cultura da Capital do Oeste Potiguar. A praça foi esquecida e a arte de Cocota, escondida em seus escombros... lembrada somente nos versos da música de Antônio Barros e Oséas Lopes: “Mossoró ainda chora com saudade do seu cantador, quantas noites de seresta, quantas festas ele animou, Cocota agora está no Céu junto de Noel, não vem mais aqui, na Praça dos Seresteiros Cocota tá, tá lá”.

Um povo se identifica, se respeita, se reconhece como civilização pela cultura que produz, mediante toda expressão criativa que distingue o homem de outras espécies que pautam sua existência somente na busca pela sobrevivência. Nós buscamos a sobrevivência, mas também o viver repleto de paixão, encanto e beleza por meio dos talentos artísticos que Deus nos concede. Esquecer e negligenciar tudo o que representa nossas vocações artísticas é, aos poucos, desumanizar nossa existência, de modo que o sobreviver por si só passa a ser o sentido das nossas vidas.
A música em homenagem à Cocota e os trabalhos acadêmicos que buscam resgatar a cidadania no Alto do Louvor são resquícios dessa ânsia pelo viver artístico. É essa ânsia que não deixa morrer o sonho de que a Praça dos Seresteiros seja a memória vibrante de uma encantadora arte local no lugar de destroços e ruína... e de que as ruas melancólicas do Alto do Louvor sejam veredas de expressões artísticas e inclusão social no lugar de olhares perdidos e tristonhos castigados não somente pelo entorpecer da fumaça do cachimbo e da pedra, mas sobretudo pela aspereza do olhar apático da sociedade.