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OPINIÃO

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CÉSAR SANTOS

CÉSAR SANTOS

EsPAÇo JorNALIstA mArtINs DE VAsCoNCELos

organização: CLAuDEr ArCANJo

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O CINEMA SHAKESPEARIANO DE ORSON WELLES

EDmíLsoN CAmINhA

Escritor, membro da Academia de Letras do Brasil edmilson.caminha@gmail.com

Em 1941, um jovem, com apenas 26 anos de idade, escreveu, produziu, dirigiu e protagonizou Cidadão Kane, considerado, por muitos, o mais importante filme de todos os tempos. Antes, em 1938, fizera uma adaptação para o rádio de A guerra dos mundos, de H. G. Wells, que, apresentada nos Estados Unidos pela CBS, levou ao pânico milhares de ouvintes. Falamos, é claro, de Orson Welles (1915-1985), um dos maiores atores e diretores da história do cinema. Em 1942, já consagrado pela crítica, veio ao Brasil para filmar uma história de jangadeiros cearenses e a grande festa do carnaval carioca, partes do que viria a ser o filme It’s all true, cujos originais, perdidos, foram encontrados 40 anos depois.

Mais do que um cineasta shakespeariano, era um ser shakespeariano, pelos sentimentos e pela paixão que o ligavam ao dramaturgo, por ele tido como o maior homem que já houvera (mais importante, pois, do que Jesus Cristo, Isaac Newton, Michelangelo, Leonardo da Vinci e outros gênios). Aos 14 anos, já o adaptava para encenações na Todd School; aos 19 publicou, com Roger Hill, Shakespeare para todos, “editado para leitura e adaptado para o teatro”; aos 21 encenou em New York, no Harlem, o Macbeth vodu, com a ousadia de um elenco totalmente negro, a representar a tragédia que se passa não na Escócia, mas no Haiti. Tamanha era a devoção ao mestre inglês que, artista respeitado, submeteu-se a papéis pequenos em troca do dinheiro que lhe financiaria os sonhos de diretor.

Não surpreendem, assim, as peças de Shakespeare que transformou em admiráveis obras cinematográficas, como Macbeth, em 1948, quando não passara dos 33 anos; Othello, em 1952, com 37 anos, e Falstaff, em 1965, aos 50 anos (este, uma composição de partes de Henrique IV, Henrique V e As alegres comadres de Windsor). Para a televisão fez, em 1969, O mercador de Veneza, em que desempenha o papel de Shylock. O cancelamento do projeto de Rei Lear, para a tevê da França, abalou-o de tal maneira que deve ter contribuído para a sua morte, em 1985, aos 70 anos.

São primores do cinema em que se fazem sentir, sempre, a força do teatro, os recursos e os limites de histórias que se contam sobre um palco (cenários, iluminação, o alegórico teatral contraposto à realidade ilusória de filmes) ‒ não, esclareça-se, “teatro filmado”, produções monótonas e enfadonhas de quem se perde entre um e outro ofício, mas como se nos alertasse o diretor: “Vocês assistem a uma projeção, mas isto aqui também é teatro, principalmente teatro, talvez!” Daí a beleza plástica de cenas antológicas, como a das varas com o símbolo céltico, em Macbeth. Maior homenagem não poderia prestar Welles a Shakespeare, sabedor de que as criações do mago de Stratford-uponAvon são demasiadamente grandes para caber em qualquer outra arte.

Profundo conhecedor do universo shakespeariano, concedia-se o direito e a liberdade de não lhe ser fiel ao cânone: eliminava cenas e diálogos, transpunha falas de um personagem para outro, fazia colagens. No Macbeth que filmou vê-se, por exemplo, um padre que não se encontra na peça. Intervinha tão fortemente nos originais que atores do Mercury Theatre, grupo fundado por ele, respondiam, a quem perguntasse quando encenariam o Júlio César de Shakespeare: “Quando o diretor Welles acabar de escrevê-lo...”

Assim, o que adaptou do dramaturgo para o teatro e para as telas é shakespeariano na essência, mas com as digitais, o selo inconfundível, a marca pessoal de quem, pelo roteiro inovador e pela direção peculiar se torna, quase, coautor. Admira que trabalhos tão bons se fizessem, às vezes, com baixo orçamento: Macbeth ‒ filmado em três semanas nos estúdios da Republic, companhia mais voltada para produções de faroeste ‒ tem uma sequência famosa, a tomada de longos dez minutos em que acontece o homicídio do rei, com atores a moverse em diferentes profundidades, a câmera a segui-los em planos que se abrem e que se fecham, tudo magistralmente dirigido.

A história da filmagem de Othello daria, ela mesma, um filme (e Welles o fez, 28 anos depois), tantas as adversidades que a pontuam. Foram quatro anos de produção, em que uma cena rodada no Marrocos, em julho de 1949, teve o contraplano gravado três meses depois, na Itália, a 1.800 quilômetros de distância. Lançado em 1951, conquistou, no ano seguinte, a Palma de Ouro do Festival de Cannes. Por problemas de distribuição, só em 1955 chegou às salas de cinema nos Estados Unidos. Foram 11 os diretores de fotografia, o que não se chega a notar, pelo talento com que Welles alcança a harmonia estética e a unidade plástica que dão grandeza à obra. Espectadores mais argutos reclamarão da sincronia que às vezes não se observa entre imagem e som, como na cena filmada em Veneza, no Palácio dos Doges, quando se ouve a voz de Otelo, embora se encontre ele de boca fechada. Descuido de maus diretores, não de Welles, que assim faz propositadamente, como a dizer, confiante na suspension of disbelieve da plateia, que aquilo é cinema, é teatro, é ficção, por maior que seja o realismo com que seduz e envolve as pessoas.

Joseph McBride, no livro What ever happened to Orson Welles?: a portrait of an independent career, comenta, a propósito de Othello, o homoerotismo na obra do cineasta, ainda hoje um tabu para vários críticos. Atração entre homens que já se perceberia em Cidadão Kane, na relação do protagonista com Jed Leland, feito por Joseph Cotten. Segundo McBride, não por coincidência o diretor escolheu para o papel de Iago o ator inglês Micheál Mac Liammóir, cuja homossexualidade, assumida, permeia a interpretação. “Welles tinha muito interesse na sexualidade masculina, e todo tipo de variação”, declara o escritor em Perspectivas sobre Othello, documentário de Robert Fischer constante em um dos discos de Shakespeare por Welles, digistack com dois DVDs lançado no Brasil pela Versátil Home Video, em 2015.

Falstaff, o toque da meia-noite, é produção hispano-suíça de 1965, e se baseia nas páginas shakespearianas sobre o Rei Henrique IV e as disputas pelo poder, na Inglaterra que via chegar o século XV. O filme transcorre como que em um palco, pela iluminação teatral, pela imponência do cenário, pela grandeza do trono e da câmara real. Welles dirige a si próprio e a John Gielgud, Allan Webb, Fernando Rey, Jeanne Moreau e, curiosamente, à criança Beatrice, filha dele com a terceira e última mulher, a atriz e condessa italiana Paola Mori. Não reunisse elenco tão brilhante, Falstaff valeria por dois momentos: a representação da farsa na taverna e os seis minutos de impressionante guerra, uma das melhores cenas bélicas em toda a história do cinema (a que se podem comparar, entre poucas, a da tomada de Babilônia por Ciro, em Intolerância (1916), de Griffith; a da batalha no gelo, em Alexander Nevsky (1938), de Sergei Eisenstein, e a da batalha de Borodino, em Guerra e paz (1966), de Sergei Bondarchuk, obras monumentais do realizador norte-americano e dos dois importantes diretores russos).

Juntem-se, a elas, mais três bons documentários, pelo menos:

Filming Othello (84 min), dirigido por Orson Welles para a tevê da então Alemanha Ocidental, em 1979; Welles & Shakespeare (13 min), com substanciosa análise de Jean-Pierre Berthomé, crítico de cinema e escritor francês; e Macbeth maudit (25 min), depoimento do ator francês Denis Lavant, sob a direção de Jonas Rosales. Note-se que o segundo e o terceiro títulos acham-se em um dos DVDs de Shakespeare por Welles, que já citamos, e que nos oferece, também, uma pequena joia: O retorno a Glennascaul, de 1951, curta-metragem (26 min) dirigido por Hilton Edwards e Micheál Mac Liammóir, antecedido pela esclarecedora apresentação do cineasta Peter Bogdanovich. Orson Welles interrompe as filmagens de Othello e conta o que lhe teria, certa vez, acontecido na Irlanda, “história extraordinária”, à Edgar Allan Poe, em que faz uma ponta no papel de si mesmo...

Conclui-se, pois, que Shakespeare marcou profunda e inteiramente a vida de Welles, muito além da admiração pessoal, do interesse profissional, como se o diretor e ator não pudesse viver sem ele. Havia, do homem de cinema e de teatro para com o dramaturgo inglês, um sentimento de comunhão espiritual, de afinidade artística, de consonância estética, de harmonia filosófica, quando, a quatro séculos um do outro, empreendem a aventura de descer ao misterioso abismo da natureza humana. A William Shakespeare e a Orson Welles, o respeito e a gratidão que lhes são devidos, pelo engenho e pela arte com que souberam fazer o mundo melhor e a vida mais bela.

DI RE çÃO gE RAL: César Santos DIREtOR DE REDAçÃO: César Santos gE REN tE ADMINIS tRA tIVA: Ângela Karina DEP. DE ASSINAtURAS: Alvanir Carlos Um produto da Santos Editora de Jornais Ltda.. Fundado em 28 de agosto de 2000, por César Santos e Carlos Santos.

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