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OPINIÃO

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POLÍTICA

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MarCOS reY, da CaFetINaaO gIgOlÔ

edMíLSon CaMinha

escritor, membro da academia de Letras do brasil edmilson.caminha@gmail.com

Romancista, contista, cronista, roteirista, Marcos Rey era bom em tudo que escrevia. Com uma capacidade impressionante de trabalho, não deixou que a doença lhe roubasse os sonhos e a alegria de viver. Sem concluir sequer o curso ginasial, fez-se escritor consagrado: a história de O enterro da cafetina (1967) virou filme com mais de um milhão e meio de espectadores; seu romance Memórias de um gigolô (1968) tem mais de 20 edições no Brasil, foi levado para a televisão e publicado na Espanha, Argentina, Estados Unidos, Canadá, Alemanha e até na Finlândia. Livros como O mistério do cinco estrelas (1981) e O rapto do garoto de ouro (1982) despertaram no público infantojuvenil o interesse pela boa literatura. Grande contador de histórias, Marcos Rey lembra algumas por ele próprio vividas em O caso do filho do encadernador (São Paulo : Atual, 1997), a que se juntam outras narradas por Carlos Maranhão na biografia Maldição e glória (São Paulo : Companhia das Letras, 2004).

As primeiras lembranças já fazem antever o destino do pequeno Edmundo Donato, depois Marcos Rey, pseudônimo com que se tornaria famoso:

Sempre havia em casa uma montanha de papel picado, porque meu pai era encadernador. Ele e seus empregados, usando uma guilhotina, aparavam as páginas de centenas de livros, na primeira etapa da encadernação. Eu gostava de afundar e dormir nas aparas. Passava parte do dia sobre elas. No Brasil não cai neve, mas eu tinha algo parecido para brincar.

Meu pai também costumava se deitar nas aparas. Quando não encadernava livros, lia-os. Foi com quem aprendi a gostar de ler. (...) Lembro-me do dia em que proclamei: eu sei ler. Saí pelas ruas lendo os dizeres comerciais fixados nos empórios. (...) No dia seguinte, a grande emoção. Seria capaz de ler livros? Os primeiros foram os de Lobato. Estavam ainda cheirando a papel e tinta, como todos os livros antigos. Foi mais fácil do que eu imaginava.

Por volta dos dez anos, Edmundo contrai hanseníase, a medonha lepra, que os egípcios há milênios consideravam “a morte antes da morte”, maldição de Deus, segundo a Bíblia. Não bastassem o sofrimento psicológico e as dores físicas, superstições e preconceitos condenavam os leprosos ao abandono ou ao isolamento em colônias, como as de Antônio Diogo e Antônio Justa, em Fortaleza. Havia quem dissesse que um hanseniano ficaria bom se transmitisse a doença para sete pessoas, razão suficiente para mantê-los distantes, à espera de um Jesus que os curasse ou de um Francisco de Assis que lhes estendesse a mão.

Marcos Rey passou três anos e sete meses internado no Sanatório Padre Bento, em Guarulhos, de onde fugirá para o Rio de Janeiro em 1945, ansioso por recuperar a juventude que perdera. Na então capital federal, e depois em São Paulo, será o boêmio entregue à bebida e às aventuras amorosas: “Noite é para a gente se esconder”, dizia, sem revelar exatamente de que ou de quem. No íntimo, devia saber que se escondia de si mesmo, da doença que lhe deixara as mãos em garra, feridas na planta dos pés, problemas de visão e a facies leonina, comuns aos vitimados pelo bacilo de Hansen. A esbórnia era tamanha que certa madrugada, em Salvador, convenceu uma prostituta a acompanhálo ao Museu Nina Rodrigues, onde roubaria nada menos que a cabeça embalsamada do cangaceiro Lampião... Só não o fez, conta o biógrafo, porque a mulher ouviu passos e o alertou a tempo:

Era um funcionário que se aproximava. Marcos então caiu em si e desistiu do plano. Mas ganhou uma boa história para seu repertório. Sabia contá-la com graça e arrancava gargalhadas dos ouvintes. Ele adorava esse tipo de conversa. Adorava igualmente as noitadas que não terminavam antes da uma ou das duas horas da madrugada. “O homem só mostra sua verdadeira face após o horário comercial”, costumava dizer.

Não obstante os problemas de saúde, Marcos era o centro das atenções de muitas admiradoras, segundo Carlos Maranhão:

“Conheci Marcos já gordinho, rechonchudo, sempre cheiroso, bem vestido, cabelos curtinhos, barba bem-feita”, lembraria uma de suas amigas, a escritora Fanny Abramovich. “Era uma graça de homem.” A também escritora Stella Carr costumava acompanhálo em lançamentos de livros e eventos literários: “Que impressionante o assédio feminino em cima dele! Mal chegávamos à Livraria Brasiliense ou à Livraria Teixeira, moças e senhoras aproximavam-se, iam-se encostando, vinham lhe trazer bebida e lhe davam salgadinhos na boca.” — Marcos, você deve ter mel! – Stella lhe dizia.

O casamento com Palma Bevilacqua deu-lhe a estabilidade e o afeto de que carecia para escrever. Publicitário importante – fez anúncios para Nestlé, Brastemp, General Electric –, pôde enfim dedicar-se à literatura e à criação de roteiros para a televisão: adaptou o Sítio do Picapau Amarelo, A Moreninha e escreveu a novela Cuca Legal. No cinema, surpreendeu como autor de histórias picantes vistas por legiões de adeptos das pornochanchadas, promissoras a começar pelos títulos: As cangaceiras eróticas, As secretárias que fazem de tudo, O Supermanso, A noite das fêmeas, Nem as enfermeiras escapam, Ainda agarro esta vizinha.

Em Melhores crônicas de Marcos Rey (São Paulo : Global, 2010), Anna Maria Martins reúne parte das originalmente publicadas na revista Veja São Paulo. Como “O Rei da BocaLivre”:

— Preste atenção naquele homem.

Tinha pouco mais de 50 anos, altura mediana, atitudes discretas e trajes bem passadinhos. Tipo de pessoa que, mesmo com um guarda-roupa reduzido, não faz feio em reuniões sociais. Um tio meu usou apenas dois ternos a vida inteira. Morreu considerado elegantíssimo. O referido comia delicadamente um bolinho. Na direita segurava um copo de uísque. — Quem é a figura? — O maior frequentador de coquetéis da cidade – informou o acadêmico Geraldo Pinto Rodrigues. — Nome? — Já investiguei. Ninguém sabe. — Ora, quem manda os convites deve saber. — Nunca foi convidado. Lê a notícia dos coquetéis nos jornais. E numa noite de autógrafos ou vernissage quem vai barrar a entrada de prováveis compradores?

Nesse princípio de crônica, percebem-se o despojamento da linguagem, a leveza do estilo, o toque de humor, a maestria de Rey no desenho de personagens e na elaboração dos diálogos. Virtudes que se somam ao talento com que emociona o leitor, como em “O coração roubado”, pequena joia digna de figurar, também, em qualquer seleta do conto brasileiro. Uma criança vê sumir na escola o exemplar do livro O coração, do italiano Edmondo de Amicis, presente que ganhara do pai. Descobre-o entre as coisas de Plínio, primeiro aluno da turma, e o pega de volta. Passam-se 40 anos, o colega a quem publicamente chama de ladrão vira magistrado. Um dia, o acusador abre o volume esquecido na prateleira e não encontra a dedicatória do pai. Vira a página e... O resto da história está na antologia.

Junte-se, à capacidade de comover, o gosto pela maledicência, quando a ela se dava:

O salão de Carmen Dolores concedia um prêmio literário que levava seu nome. José Lins do Rego recebeu o primeiro, Clarice Lispector, o último. Guimarães Rosa também foi um dos premiados. Parecia um pavão ou uma vedete do teatro–revista Carlos Machado descendo uma longa escadaria. Se Faulkner ou Sartre estivessem lá aquela noite, seriam esnobados.

Competente como poucos, podia alertar jovens aspirantes à literatura:

Um erro de crase às vezes arruína uma reputação.

Cada ideia numa linha. Não acumule informações numa única.

Corte sem dó todas as palavras desnecessárias. As que não tiverem função na frase, varra. São lixo que enfeia a leitura. Apodrecem, causam mau cheiro.

Ler muitas vezes algumas páginas, contos e crônicas de grandes autores. Não quantidade, muito pouca coisa. Leia centenas de vezes certas páginas.

Cuidado com a adjetivação. Dizer que fulana é bonita e linda ou que sicrano é rude e grosseiro não pega bem. Um adjetivo precisa ser bem diferente do outro.

Homem da noite, não há personagens fictícios na obra que escreveu: a cafetina Maria Betina, a cartomante Antonieta, a prostituta Guadalupe, a dona de bordel Iara, os gigolôs Mariano e Esmeraldo... todos vieram das ruas, dos becos, dos bares, dos cabarés, onde, a exemplo dele próprio, pessoas buscam esquecer o destino a que se veem condenadas:

Para o tímido, o solitário ou o doente do cotovelo, a boate oferecia solução, em forma de álcool e músicas. Muito mais saudável e talvez mais barato que ir ao psicanalista. O bolero, por exemplo, era o que havia de melhor para desintoxicar as cucas. É um ritmo que, para a mente, tem a eficácia dos anticoncepcionais, pois permite que se viva um grande amor, com começo, meio e fim, mesmo sem a presença das mulheres.

Falecido em 1999, aos 74 anos, a Marcos Rey devemos uma literatura feita a partir do povo, como a de Manuel Antônio de Almeida, Lima Barreto, Nelson Rodrigues, João Antônio e João Ubaldo Ribeiro. A São Paulo que transformou em quase protagonista de muitas histórias recebeu-lhe as cinzas das mãos da viúva Palma, durante um sobrevoo de helicóptero pelo centro da cidade. Justa homenagem ao paulistano sobre quem escreveu o editor Jiro Takahashi:

Se Engels disse que, para conhecer bem a sociedade de Paris, era melhor ler Balzac do que qualquer sociólogo, podese também dizer que, para conhecer bem a São Paulo da segunda metade do século XX, o melhor é percorrê-la acompanhando as memórias de Marcos Rey pela cidade. Poucos escritores captaram a alma das ruas como ele.

dI reçÃO geral: César santos dIretOr de redaçÃO: César santos gereN te ad MINIS tra tIVa: Ângela Karina deP. de aSSINatUraS: alvanir Carlos Um produto da Santos Editora de Jornais Ltda.. Fundado em 28 de agosto de 2000, por César Santos e Carlos Santos.

FILIADO À

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