2 OPINIÃO
domingo, 17 DE outubro de 2021
ESPAÇO JORNALISTA MARTINS DE VASCONCELOS
Organização: clauder arcanjo
Apontamentos sobre Memórias Póstumas de Brás Cubas (Parte I) Vera Lúcia de Oliveira
Carol Caminha
Escritora, membro da Academia de Letras do Brasil - (Brasília-DF) veraluciaoliveira@hotmail.com
Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), de Machado de Assis (1839-1908), está completando 140 anos. É um livro escrito com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, como diz o narrador e personagem-protagonista Brás Cubas. Mas, em exame mais acurado, atrás da galhofa está a melancolia, que subjaz a toda a narrativa. A galhofa é uma máscara, uma defesa do eu para encobrir a melancolia – de natureza passiva, amiga da morte. Freud diz que na melancolia o sujeito não sabe o que perdeu. É uma perda difusa, sem objeto. Nesse livro intrigante, cujo narrador é um defunto, melhor, um “defunto-autor”, como faz questão de esclarecer, o espanto do leitor começa na dedicatória ao verme que primeiro lhe corroer a carne. Em seguida, diz que foi levado ao túmulo por onze amigos! Não fosse a exclamação,talvez não apresentasse ambiguidade: é muito ou pouco ter onze amigos? No navio em que foi jogado pelo pai para ir para a Europa, havia onze passageiros. Nas duas viagens, portanto, teve a companhia de onze pessoas.Nesta,para começar a vida aos dezessete anos, e naquela, para encerrá-la aos sessenta e quatro. E no meio, na viagem da vida, ou da ponte que liga as duas margens do nada, onze contos de réis foram gastos com a linda Marcela,moça amiga de rapazes e joias
caras. Ainda sobre algarismos: foi o treze que fez Lobo Neves, marido de Virgília, sua amante, desistir da viagem ao norte onde seria presidente de uma província, o que o prejudicou enormemente. Tinha horror a esse algarismo fatídico, que reputava de má sorte; mas a ironia foi que, não viajando, caiu em desgraça com o governo. A superstição foi o tiro que saiu pela culatra. Machado nessa obra ri de tudo: das crendices e superstições, da crença débil dos religiosos, da tolice humana e, sobretudo, do poder do dinheiro, cujas ocorrências permeiam o romance. Sem contar os excessos com Marcela, paixão de juventude, Brás Cubas é avaro nas demais situações; por exemplo, quando foi salvo de ferir-se gravemente ou de morrer pela queda de um cavalo, momento em que um almocreve deteve o animal, Brás Cubas pensou em recompensá-lo com cinco moedas de ouro, depois duas e, por fim, ressignificou o fato tirando-lhe a importância, deu-lhe um vintém de cobre. É que o mundo existia para servi-lo. Seguiu adiante sem remorsos. Certa vez, encontrou uma moeda de ouro,que devolveu com estardalhaço colocando anúncio no jornal à procura do dono; o que não fez quando encontrou um pacote com cinco contos de reis, uma pequena fortuna. Guardou-o sigilosamente. Deu-o mais tarde em agradecimento à dona Plácida, cúmplice de seus amores com Virgília, como se fosse dinheiro de sua propriedade. Fez caridade com o dinheiro alheio, o que lhe deu duplo gozo: tornou-se benfeitor e nada despendeu. Sempre avaro, deu uma nota, a menos limpa da carteira,como forma também de desprezo,ao amigo Quincas Borba, que apareceu na condição de mendigo e pedira ajuda para comer. Teve nessas ocasiões o gozo do senhor perante o escravo, como disse Hegel. Depois Quincas reaparece rico, herdeiro de imensa fortuna, e apresenta a sua filosofia do Humanitismo a Brás Cubas. O curioso é que o nome Quincas Borba (foneticamente) contém o nome Brás Cubas. Pa-
rece tratar-se de seu duplo. Tudo nesse romance surpreende o leitor: a ordem não-linear dos acontecimentos do enredo, que permite que o tempo da ação e o da narração fiquem ao sabor do vai-e-vem da memória e do capricho da nova condição de morto de Brás Cubas. Assim, é como se chacoalhasse suas lembranças e as relatasse à medida em que essas fossem emergindo. O que melhor explica esse chacoalhar é o capítulo do delírio, o mais longo e dos mais interessantes do romance, em que Brás Cubas se vê em formas diferentes, até de livro, e faz uma viagem no tempo nas costas de um hipopótamo, como fizera na infância nas costas do escravo Prudêncio, seu “cavalo de todos os dias”. No delírio, a personagem mais importante é Pandora, que diz ser sua “mãe” e “inimiga”: é, na verdade, a morte que vem resgatá-lo de volta à terra. A mãe de Brás Cubas deu-lhe o nascimento, Virgília deu-lhe o amor, e a Natureza/Pandora deulhe a morte. A mãe, sem nome (o que é muito curioso), tem importância revelada e aumentada por
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ocasião da morte. Brás elaborou a sua perda distanciando-se da casa do pai, indo para a chácara da Tijuca, buscando a solidão. Ficou triste, melancólico. É o ponto alto da “tinta da melancolia”, quando começa a brotar a flor amarela da hipocondria. Foi uma das poucas vezes em que falou a sério. (Talvez Machado tenha rememorado a própria orfandade, ainda criança.) Elaborou o luto que, segundo Freud, é um mistério: cada indivíduo o sente a seu modo. O pai, por sua vez, tirou proveito da morte da mulher, pois recebeu uma carta de pêsames de um dos Regentes, a qual levava no bolso e já estava amassada de tanto mostrá-la, numa sede de glória. Mas a morte deste teve a pena da galhofa: “tinha de morrer, morreu.” Nenhum lamento. Talvez, inconscientemente, não tenha dado valor àquele que lhe dera uma educação em tudo viciosa. A mãe, uma santa criatura, de “muito coração”; o pai um trovão que a amedrontava. Vendo-a morta, sentiu o quanto a amava e talvez tenha se comovido com a solidão da senhora discreta, bondosa, que
balançara o chocalho à sua frente para que ele aprendesse a andar mais depressa. Ela que lhe dava dinheiro escondido para gastar com Marcela na adolescência. O que a mãe lhe deu foi sem interesse; o que o pai lhe deu foi cobrado mais tarde: disse que não havia gastado dinheiro com estudos e vida rica na Europa para agora vê-lo enfurnado na Tijuca, ou seja, o próprio pai, Bento, cortou o luto do filho, que foi somente de sete dias. O pai queria vê-lo brilhar na vida pública e na sociedade, engrandecendo o nome dos Cubas. Para isso, deveria casar-se e ser deputado. Acabou convencendo-o, pois o brilho futuro teve o efeito do chocalho da infância, fazendo minguar a flor da melancolia. No entanto o pai morre de desgosto quatro meses depois de Brás perder a cadeira de deputado, como se o próprio pai tivesse fracassado em seu investimento transferencial. Esse pai narcísico é também exemplo do que a psicanálise de Winnicott chama de “falso self ”, uma vez que encobria o passado obscuro, a verdadeira identidade,o verdadeiro eu que lhe desagrada e diminui (descendia na verdade de um tanoeiro fabricante de cubas). Não por acaso, diz Brás Cubas, que na morte pode-se “deitar fora a capa, as lentejoulas”; só na morte pode-se ser o que é. A capa do pai era a nobreza à qual queria pertencer. A do filho, a glória que queria alcançar por meio da invenção do emplastro contra a melancolia, que lhe daria renome na ciência mundial. Aqui temos a pena da galhofa. Outro momento em que Brás Cubas escreve com a tinta da melancolia,disfarçada em ironia cruel e amarga, é quando fala do nascimento de dona Plácida, mulher pobre que veio ao mundo (num momento de simpatia de seus pais) para estragar os olhos na costura, queimar as mãos nos tachos; e, depois, na velhice, ser transformada num monte de ossos disputados na briga da vida contra a morte. Briga que vai ser repetida pelos galos da rinha para deleite dos apostadores,assim como a dos cães que provocou o prazer, o gozo, do filósofo Quincas Borba. Era a demonstração da luta pela vida, do poder do mais forte, como dizia a sua estranha e cínica filosofia.Ainda sobre ossos, sua boa mãe também fora reduzida a eles. E, ainda sobre briga, Brás Cubas disputa a herança do pai com a irmã Sabina e se desentendem sobretudo quanto à baixela de prata. Como os cães, os irmãos brigam por um osso nu, que é o que a baixela representa perante a fortuna que herdaram. (continua)
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