2 OPINIÃO
sábado, 9 de julho de 2022
ESPAÇO JORNALISTA MARTINS DE VASCONCELOS
Organização: clauder arcanjo
A linguagem escrita não é natural Aécio Cândido
professor da UERN, aposentado. Autor da obra Tempos do verbo aeciocandidocuite@gmail.com
A linguagem oral é a linguagem natural do homem. Ainda assim, ela veio devagar, levando milhares de anos para se moldar, para se firmar e dizer, por fim, aqui estou. Um grito aqui, uma interjeição ali e a língua se punha em marcha. Um arroubo, um encantamento, uma satisfação, expressos por uma interjeição, cada um desses sentimentos, porque a alma é uma só, tem vida própria e independente, não porque sobreviva ao corpo ou esteja desligada dele, mas porque a espécie se une pela vontade de botar pra fora, na forma de sons, os que estavam à mão, à boca, melhor dizendo, o que vai nela. E assim se foi criando a linguagem, interjeições, em primeiro lugar. Um “ui” aqui, um “oh!” acolá, da dor ao espanto e à admiração, a viagem é rápida, um abrir e fechar de boca, o ar expelido com mais ou menos força, por curto ou mais dilatado tempo, enfim, uma linguagem interjeitiva era tudo o que saía no início de tudo. Sons naturais, monossilábicos, partilhados com o grupo tribal. Depois, o substantivo. A articulação de dois ou mais sons para designar algo como “animal”, genericamente, ou como “elefante”, especificamente, exercitando a capacidade natural de construir sistemas de classificação, de estabelecer uma divisão e organização das coisas, uma ao lado da outra, parecido junto de parecidos, grupos maiores e grupos menores, mais abrangente e mais restritos. E o apontar do dedo, para reforçar o que o som pretendia dizer. O dedo ajudou. E os mais próximos entraram no
jogo, aceitando aquele som como representante da coisa, até se firmar essa relação, sem mais a necessidade do dedo apontando. Prosseguia seu caminho a formação da primeira língua. Já com sua primeira grande qualidade: libertar a comunicação das amarras do espaço e do tempo. Pela palavra, sem necessidade da presença do objeto, libertam-se os interlocutores do aqui e do agora. Eles precisam estar presentes, o objeto, não. O começo oral se impôs por dezenas de milhares de anos. Fácil, natural: só o ouvido e algumas áreas do cérebro eram mobilizadas para a ação. E aí estavam a linguagem e a comunicação. Que se modificava, pela infinita possibilidade de emissão do aparelho fonador: um “e” muito fechado aqui, mais aberto acolá. Pronúncias diferentes tornam a mesma palavra irreconhecível ao ouvido. Era o que ocorria quando um grupo se apartava de outro. E se as primeiras gerações, depois da separação do grupo, ainda reproduziam com razoável fidelidade os sons adotados pelo grupo-tronco, quem vinha atrás
não tinha o mesmo cuidado e por enfado ou pelo prazer da novidade ia mudando sons, um pouquinho no começo da palavra, outro pouquinho no fim ou no meio, e lá se tinha um jeito novo de dizer “árvore”, “mata” e “rio”. Está aqui uma ideia bonita, pelo engenho criativo que possui, a da Torre de Babel, para explicar a diversidade de línguas, mas, mais uma vez, está o homem jogando na conta de Deus o que ele mesmo criou, por necessidade do grupo ou prazer do indivíduo e, incomodado pela vastidão do tempo, atribuindo a uma centelha dele o que levou milhares e milhares de anos para lentamente se tecer. A religião convive mal com a ideia de tempo. Nela, tudo é feito e concluído numa ínfima fração dele. O milagre age antes que aja o tempo. Esses mitos encontram eco hoje em dia no pensamento da militância identitária, que acha que uma língua nasce por decreto, e assim decreta o “todes” como uma forma neutra de gênero e censura palavras em que o sentido censurado simplesmente estava fora das intenções do interlocutor (como esclarecer,
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denegrir, mulato, etc). O Homo sapiens tem na boca e na laringe, na língua e no diafragma, no conjunto de órgãos que os especialistas em anatomia chamam de aparelho fonador, um arsenal quase infinito de sons. De sons que passam pelo nariz e de sons que não passam; dos que exigem, para serem emitidos, a língua na frente, tocando nos dentes; de outros que fazem cerrar os lábios e que saem quase numa explosão; de sons longos e breves, graves e agudos, roucos e límpidos. A boca do homem, jogando com o ar que entra e sai, é uma orquestra com partitura infinita. Só depois de muito exercício, por dezenas de milhares de anos, sem fazer mais esforço do que o que a boca permite, e aprendendo naturalmente, só por ouvir, só depois desse exercício longo passou pela cabeça de alguém que o som e as palavras poderiam ser representadas por riscos em alguma superfície. Riscos retos e curvos. Se assim fosse, a presença física do emissor seria dispensada na ação de comunicação. Um passo a mais: se a comunicação oral dispensava a presença do
objeto, na comunicação escrita nem o objeto nem os interlocutores precisavam estar presentes. A escrita foi uma revolução recentíssima, não tem mais do que 6 mil anos. Para se impor, exigiu adesão, dedicação, persistência para dominar seus meios. Foi uma luta do homem consigo mesmo. Era mais interessante ir à caça, dar um passeio à toa, mergulhar no lago, brincar de sexo até esgotar a vontade e exaurir as forças, em vez de ficar parado, concentrado, experimentando fazer com perfeição sinais representativos de sons. Era preciso um treino mais intenso, uma disposição maior. Treino enfadonho, exigente: parar, concentrar-se, tentar, tentar e tentar. Não era natural. Natural era a dança, o canto, o lúdico, enfim. Escrever dá mais trabalho do que falar. Porque escrever é um trabalho e trabalho é embate contra a natureza humana. Não é sem razão que é mais fácil, e divertido, para a grande maioria, mandar uma mensagem de áudio no WhatsApp do que escrever uma mensagem.
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