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OPINIÃO
from Jornal de Fato
ESPaÇO JOrNaliSTa MarTiNS DE VaSCONCElOS
organização: ClauDEr arCaNJO
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O idiOta, UM RoMANCE tEAtRAL (parte II)
VEra lúCia DE OliVEira
Escritora, membro da Academia de Letras do Brasil - (Brasília-dF) veraluciaoliveira@hotmail.com
Depois da cena espetacular e teatral de Nastássia com Rogójin e seu bando no meio da noite, fim daquele longo dia, ficamos sabendo que se dirigiram a Moscou. E o príncipe também fora para lá, de onde voltará rico, graças à fortuna recebida por herança, como anunciava a carta em que o general Iepántchin não quis prestar atenção.
Ao retomar a ação, na segunda parte, o narrador já nos coloca novamente em São Petersburgo, onde a história terá continuidade. Seis meses se passaram e nada sabe o leitor desse tempo. (Aliás, começamos a perceber algo estranho no narrador, que se esquiva dos fatos, diz inúmeras vezes que não sabe ou que só ouviu dizer, isentando-se assim da responsabilidade da narração, o que consideramos muito moderno e até divertido.) O príncipe Míchkin, que mudara para melhor, bem-vestido, chega à cidade. Vamos agora para os arredores onde o general, o príncipe e Liébdiev veraneiam em casas de campo. Míchkin aluga uma casa. As reuniões se sucedem, ora na casa de Liébdiev, ora na do general Iepántchin, ora na do príncipe, onde conversam, se desentendem, pois têm pontos de vista diferentes. Não podemos nos esquecer de que a força desse romance, por ser teatral, está nos diálogos. Mais um dia chega ao fim e a noite vai ser longa na casa de Míchkin. Uma longa jornada noite adentro, lembrando a peça de O’Neill. Dessa vez, o centro das atenções é o jovem Ipolit, personagem no qual Dostoiévski carrega nas tintas do elemento dramático. Jovem de 18 anos e já condenado à morte pela tuberculose. Como sabemos, a morte, seja por condenação judicial, assassinato, fome, miséria ou doença é um dos leitmotiv dos romances do autor. Assim, o jovem rebelde, nesses últimos dias de vida, redige um manuscrito, longo, inconformado e cheio de revolta, cuja leitura impõe aos amigos de Míchkin. Vai do desespero à impertinência, a impertinência do desespero. Faz questionamentos desconcertantes sobre a vida, a morte e o direito de matar – outra obsessão de Dostoiévski, tema de Crime e castigo, seu romance mais bem estruturado do ponto de vista da narrativa. Essa cena dramática é um dos momentos importantes da narrativa, pois Dostoiévski faz do seu personagem o exemplo do jovem sem fé religiosa, adepto do niilismo, que ele, Dostoiévski, passara a combater. Mas não seria Míchkin se visse apenas um lado da questão: pois o que há também é a compaixão pelo sofrimento de Ipolit. Com essa extensa e exaustiva leitura, cuja loquacidade de Ipolit é hamletiana, lembramos a paixão de Dostoiévski por Shakespeare. (Observamos que o nome Míchkin lembra Púchkin, o pai da literatura russa moderna e adorado por Dostoiévski, assim como Hamlet lembra Hamnet, o filho de Shakespeare morto ainda criança.) Sobre o autor inglês, disse Dostoiévski: “Shakespeare é um profeta, enviado de Deus, para nos proclamar o mistério do homem e da alma humana.”, cita Steiner. E mais: “Dostoiévski conseguiu, com sua especial manipulação dos modos dramáticos, situações trágicas concretas e graus de percepção das motivações humanas que nos remetem às realizações shakespearianas mais do que às dos outros romancistas.” (Pág. 125) Vários estudiosos da obra do autor afirmam que a leitura de periódicos era não só hábito e prazer, mas sobretudo fonte de inspiração para seus romances dramáticos, em que a vida lhe chegava pelos jornais: crimes, roubos, incêndios, suicídios, todo tipo de sofrimento humano. Anotava tudo e depois transformava em literatura, aí, sim, “espelho da realidade”. No estrangeiro, recebia com dificuldade os diários russos, acompanhando o que se passava na sua terra. Como naquela noite do aniversário de Nastássia Filipóvna, no final da primeira parte, a cena do aniversário do príncipe se passa à noite, na madrugada em que se comemora em sua casa. Todos bebem igualmente champagne. A preferência pela noite é uma característica do gênero dramático, ao contrário do épico, que prefere a luz do sol. Ambas as festas acabam de modo desagradável. A fala de Nastássia e de Ipolit, jovens igualmente inteligentes, orgulhosos, donos de si, estabelece um paralelismo na estrutura do romance ao dar voz a esses dois personagens outsiders que desconstroem o pensamento estabelecido. Outro momento importante do romance é o da discussão sobre religião, que ocorre quando Míchkin visita Rogójin em sua casa labiríntica e sombria e se depara com um quadro, cópia do Cristo morto,de Holbein, cujo original, aliás, Dostoiévski vira em Basel, na Suíça, deixando-o paralisado frente à cena mórbida, quase repulsiva, que nos lembra do Cristo do Aleijadinho. Nessa discussão temos o Dostoiévski cristão ortodoxo, representando a religiosidade profunda dos russos, seus contemporâneos. Cristãos, ainda que capazes de cometer crimes e atrocidades, pondera ele. Eis o drama do romance: religiosidade, crimes, paixões devastadoras, rompantes de fúria, tudo em O idiota é encenação teatral. Porém não poderíamos encerrar sem falar do “duelo” ou “esgrima” verbal entre Nastássia e Aglaia, já no final do romance. As duas jovens, ambas orgulhosas e erotizadas, no sentido freudiano, disputam o príncipe que, como sabemos, não é exatamente deste mundo. Ama as duas, de modos diferentes, cada uma à sua maneira. Para Nastássia, ele é o homem ideal – de Platão, acrescentamos. Ela também é atraída por Rogójin, o verso de Míchkin em todos os sentidos, pois é homem de paixões violentas. Aglaia, mais jovem, mas não menos arrebatada, vê no príncipe a pureza e a humildade que nenhum outro homem possui. Qual delas Míchkin vai escolher? Depois do embate teatral, esse romance extraordinário, de estrutura simples, caminha para o desfecho; romance com temática sem precedentes, pois o herói é chamado de idiota. Um quase Quixote da Rússia. E universal.


RefeRências bibliogRáficas:
DOSTOIÉVSKI, Fiodor M. O idiota. Tradução de Oscar Mendes. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 1976.
FRANK, Joseph. Dostoiévski, um escritor em seu tempo. Tradução de Pedro Maia Soares. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
STEINER, George. Tolstói ou Dostoiévski. São Paulo: Perspectiva, 2006.

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