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OPINIÃO

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CÉSAR SANTOS

CÉSAR SANTOS

ESPAÇo joRNAlISTA MARTINS DE VASCoNCEloS

organização: ClAuDER ARCANjo

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O SOrrISO detXaI

EDMílSoN CAMINhA

Escritor, membro da Academia de Letras do Brasil edmilson.caminha@gmail.com

Na praia de Guajiru, a 140 quilômetros de Fortaleza, a Pousada Rede Beach decora as paredes do restaurante com óleos sobre tela do artista Moisés. Chama-me a atenção o de uma indiazinha dos seus dez anos, cabelos negros como a asa da graúna, três linhas pintadas com urucum que delineiam os olhos, a posar para o pintor com um macaquinho nos braços. E o sorriso, ou melhor, o esboço de sorriso: a boca fechada, as comissuras dos lábios a dizer mais do que o riso solto. Expressão cheia de significados, flechas de silêncio a nos acusar: “Não pensem que me enganam, eu sei o que vocês fazem contra nós há mais de 500 anos...” Doulhe um nome: Txai, em homenagem à jovem brasileira da etnia suruí que discursou para o mundo na 26ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, em Glasgow.

Digo “brasileira” só pelo orgulho de sabê-la do nosso país, pois os povos como o dela são índios muito antes de ser “brasileiros”, depois da chegada das caravelas de Cabral. E assim devem ser tidos, em sinal de respeito à história, à cultura, à milenar sabedoria com que vivem – e à resistência heroica com que hoje sobrevivem à indiferença, ao abandono, às agressões, a políticas genocidas de governos, a interesses econômicos que lhes queimam as matas, arruínam as terras e poluem as águas.

Decisões palacianas, ataques explícitos a que se juntam pensamentos e conceitos em que nós próprios não reparamos, porque interiorizados desde sempre. Para surpresa de muitos, além do português oficial, há 274 línguas indígenas com falantes no território brasileiro, de acordo com dados do IBGE. Diversidade já percebida, no século XVII, pelo padre Antônio Vieira:

Na antiga Babel houve setenta e duas línguas: na Babel do rio das Amazonas já se conhecem mais de cento e cinquenta, tão diversas entre si como a nossa e a grega; e assim, quando lá chegamos, todos nós somos mudos, e todos eles surdos. Vede, agora, quanto estudo e quanto trabalho será necessário, para que estes mudos falem e estes surdos ouçam.

Idiomas ágrafos, mas tão ricos que, para o povo kaxinawá, o nome Txai quer dizer “mais que amigo, mais que irmão, a metade de mim que existe em você e a metade de você que há em mim”. Em que língua, considerada “culta”, um nome tão pequeno pode significar tanto? Importa que se reconheçam, se preservem, se respeitem esses patrimônios antropológicos da cultura e da história do Brasil, a par da relevante preeminência do português como língua nacional, enriquecida por milhares de vocábulos que nos deram os índios. Só os de procedência tupi chegam a dez mil. Do total que nomeia plantas e animais, 80% são indígenas, como tucano e seriema, jatobá e copaíba. A que se juntam nomes de pessoas (Moacir, Jaciara), de lugares (Guaramiranga, Jericoacoara), de comidas (moqueca, pipoca) e até verbos, como cutucar.

Considere-se o trumai, com falantes nativos no território indígena do Xingu, em Mato Grosso. Nele, há elementos morfológicos e sintáticos misteriosamente semelhantes aos que se encontram em línguas clássicas, mas não, por exemplo, no português e no espanhol. Cito-os de propósito, para fazer alusão aos colonizadores vindos de Portugal e da Espanha, que enxergaram, nos habitantes do que viria a chamar-se América, não homens e mulheres detentores de luminosas culturas, mas bárbaros a ser mortos sem clemência, como intrusos na terra que a eles pertencia, em uma risível, não fosse trágica, inversão de papéis. No que viria a ser México e Peru, a violência foi pavorosamente maior, com Cortés a massacrar astecas e Pizarro a trucidar incas, horrores que estão entre os maiores crimes contra a humanidade, em todos os tempos. Séculos depois, esses povos continuam a ser tidos como arremedos de gente, pouco mais que bichos. No livro Grande e estranho é o mundo, o romancista peruano Ciro Alegría vê pelos olhos de um personagem o humilhante sofrimento imposto a miseráveis como ele: Rosendo Maqui não conseguia entender claramente a lei. Ela lhe parecia uma manobra obscura e condenável. Um dia, sem se saber por que nem como, tinha saído a lei de contribuição indígena, segundo a qual os índios, pelo simples fato de serem índios, tinham que pagar uma soma anual. Um tal de Castilla a tinha suprimido junto com a escravidão de uns pobres homens de pele negra a quem ninguém de Rumi jamais havia visto, porém essa lei foi outra vez imposta após a guerra. Os comuneiros e colonos diziam: “Que culpa tem alguém de ser índio? Por acaso não é homem também?” Afinal, era um imposto ao homem.

Termos cometido menos atrocidades não nos desculpa do que fizemos contra os índios, sob a fúria de bandeirantes como Domingos Jorge Velho, de militares como João do Rego Castelo Branco, “El Matador”, condenado à danação eterna pelos versos do piauiense H. Dobal:

Não matador de touros toureador da morte vencedor dos verões. Matador de índios. Sua glória triste pesa sobre nós. Sobre a sua memória pesa a morte inglória das nações tapuias.

A gente assim, contrapõem-se brasileiros como o marechal Rondon, os irmãos Villas-Bôas, os indigenistas Sidney Possuelo e Bruno Pereira (este, brutalmente assassinado, com o jornalista inglês Dom Phillips, na terra de bandidos em que se transformou a Amazônia brasileira), o médico Noel Nutels, o casal de antropólogos Berta e Darcy Ribeiro, o escritor Antonio Callado, o jornalista Lúcio Flávio Pinto, os fotógrafos Sebastião Salgado e Ricardo Stuckert, os ambientalistas Chico Mendes, Dorothy Stang, Ailton Krenak, Txai Suruí e Samela Sateré Mawé, a pintora Thaís Kokama.

Ao empossar-se na Academia Brasileira de Letras, afirmou Darcy Ribeiro:

Somos uma nação etnicamente unificada e coesa, sem qualquer contingente oprimido a disputar autodeterminação. É verdade que uns quantos povos indígenas, para nossa vergonha, ainda estão reclamando a propriedade dos territórios em que viveram desde sempre e o direito de continuarem vivendo dentro de sua própria Cultura. Eles são tão poucos, e o que pedem é tão insignificante, que a dignidade nacional não há de negar-lhes. Isso seria fatal, hoje, já não para o nosso destino, mas para a nossa honra.

Primeiro índio feito Doutor Honoris Causa pela Universidade de Brasília, declarou Krenak a um repórter:

Talvez a gente esteja vivendo, hoje, um dos piores momentos da nossa história social. Não apenas para o povo indígena, mas de intolerância e violência racial como um todo. Na última quinta-feira, eu escutei de uma mãe, me contando que a filha dela, de 6 anos, surpreendeu a todos quando, na escola, foi liberada pela professora de usar o uniforme porque, no dia seguinte, poderia ir “fantasiada de índio”. E a estudante então perguntou: “Índio é uma fantasia?” A minha esperança é justamente que a geração dela consiga mudar a maneira ordinária como a sociedade brasileira enxerga os povos indígenas.

Na juventude dos seus 25 anos, Txai é colunista do jornal Folha de S. Paulo, e a primeira suruí a cursar Direito na Universidade Federal de Rondônia:

Meu povo vive na Amazônia há cerca de 6.000 anos. Meu pai me ensinou que nós devemos ouvir as estrelas, a lua, os animais e as árvores. Hoje, o clima está aquecendo, os animais estão desaparecendo, os rios estão morrendo, e nossas plantas não florescem como antes. A Terra está falando, e ela nos diz que não temos mais tempo.

Por deixar a floresta pela cidade grande, aprender português e formar-se doutores, há quem os acuse, por ignorância ou por má-fé, de negar as origens, renderse aos confortos da civilização. Penso em mim, a fazer o percurso contrário: se decidisse viver entre os ianomâmi, para lá carregaria minhas raízes, minha história, minhas experiências, meus princípios. Como um primo de minha mãe, Onélio Porto, de quem fui aluno de educação física no Colégio Cearense, em Fortaleza. Uma vez por ano, o professor largava tudo e ia ao Maranhão, para uma temporada com a tribo canela. Nem por isso voltava de tanga...

Talvez somente quanto aos índios não soe como frase feita a expressão “entre a cruz e a espada”, pois que assim sempre estiveram. Submetidos a missionários que, em nome da fé católica e da ganância de reinos, queriam convencer panteístas de que um certo Jesus era filho de Deus; depois, dominados pelos facões de preadores a que sobreviviam para morrer como escravos. Trezentos anos de opressão e de dor deram lugar, no século XIX, ao indianismo romântico – na literatura, com José de Alencar e Gonçalves Dias, e na pintura, com Victor Meirelles e Rodolfo Amoedo. O índio passa a herói, como símbolo da nacionalidade, da pureza, dos bons sentimentos, da força, do belo, assim vistos e admirados pelo público, à semelhança, hoje, das personagens de telenovelas. Publicado primeiramente no Diário do Rio de Janeiro, o romance O Guarani (1857), de Alencar, levava pessoas à porta do jornal, temerosas de que a edição se esgotasse e não pudessem ler o capítulo do dia... Iracema (1865) e Ubirajara (1874) completam a trilogia indianista do escritor. Nos tempos seguintes à Semana de Arte Moderna, o interesse pelo índio como que voltou (com outra essência, claro), em romances com o peso de Macunaíma (1928), de Mário de Andrade; Quarup (1967), de Antonio Callado; Maíra (1976), de Darcy Ribeiro, autor, também dos ensaios de Uirá sai à procura de Deus (1974); A cachoeira das eras (1979), de Carlos Emílio Corrêa Lima; Viva o povo brasileiro (1984), de João Ubaldo Ribeiro e Um rio sem fim (1998), de Verenilde Pereira.

Eram frequentes, nos corredores da Câmara dos Deputados, índios em busca não de dinheiro, passagens aéreas, emprego para filhos, mas... de exemplares da Constituição, para prova dos direitos que lhes foram garantidos em 1988. Respeitavam a Lei Maior como poucos a valorizam, hoje, a começar pelo presidente da República, que a revogaria se pudesse. Um deles, Bento Xavante, tornou-se meu amigo, tantas as vezes que nos encontrávamos. Passamos, os colegas, a juntar roupas que levava para a aldeia, no Mato Grosso. Um dia, presenteou-me com uma bela borduna de pau-brasil, símbolo da amizade que o fez dar a um sobrinho recém-nascido o nome de Edmílson. Gosto de pensar nesse meu xará, a caminhar pela floresta, a tomar banho de rio, a contar para os curumins histórias do seu povo, lendas da sua mitologia. Que esteja vivo e saudável, na força dos 30 anos, pai de uma cunhãzinha que eu gostaria de ter por afilhada, sob a condição de que lhe pudesse escolher o nome. Seria Txai, mais que amiga, mais que irmã, a metade de mim que existiria nela, a metade dela que haveria em mim.

dI reçÃO geral: César Santos dIretOr de redaçÃO: César Santos gereN te ad MINIS tra tIVa: Ângela Karina deP. de aSSINatUraS: Alvanir Carlos Um produto da Santos Editora de Jornais Ltda.. Fundado em 28 de agosto de 2000, por César Santos e Carlos Santos.

FILIADO À

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