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ESPAÇo joRNAlISTA MARTINS DE VASCoNCEloS
from Jornal de Fato
NOS 120 ANOS DE NAVA, O PROUST BRASILEIRO
Vale como prova da admiração de quem teve a honra de conhecê-lo e o privilégio de ler a obra que o manterá para sempre vivo, pelo primor literário e pela riqueza humana com que engrandece o memorialismo brasileiro.
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Poucos homens compreenderam tão profundamente a vida quanto Pedro Nava, cujos 120 anos do nascimento se completam em 2023. Para ele, o estar no mundo transcendia a circunstância pessoal para se fazer história de uma família, recordação de um lugar, testemunho de uma época. Talvez, por isso, a bala com que pôs termo à própria existência, no dia 13 de maio de 1984: aos 81 anos incompletos, transfiguravase em memória, silencioso personagem da procissão que lentamente caminha pelos milhares de páginas do Baú de ossos, Balão cativo, Chão de ferro, Beira-mar, Galo das trevas, O círio perfeito e o inacabado Cera das almas. Mais do que apenas grandes livros, são, pela beleza, pela força e pela importância que neles se reconhecem, verdadeiras joias literárias, com a monumentalidade de À la recherche du temps perdu , de Marcel Proust.
No pequeno mas vigoroso artigo que dedicou a Pedro Nava na Folha de S. Paulo, dois dias depois do suicídio do escritor, o jornalista Tarso de Castro foi corajoso o suficiente para “entregar” os insaciáveis oportunistas de plantão que pululam na literatura ‒ na nossa e na de todo o mundo, que a natureza humana é a mesma. São espécimes ridículos que, mal se enterra o autor, saem de cartas em punho a propagar nos jornais uma velha amizade que simplesmente não houve. Pobres elementos esses, para quem o morto vale na exata medida dos dividendos que lhes possa render (num futuro não muito distante, se possível). O defunto, esse estará convenientemente enterrado, garantindo o “sujo prazer da intimidade”, como diz Tarso: “Pior, Nava, do que a morte deve ser o uso da morte, essa imensa e infantil impossibilidade de dizer não”.
Posto isso, fique claro que este artigo não se propõe o milagre de nos tornar, a mim e a Nava, amigos de infância, mesmo porque 50 longos anos nos separam as idades. Recordo, apenas, o homem que entrevistei uma vez e de quem recebi umas poucas e pequenas cartas, nada mais.
Em 1978, embalado pela vaidade do primeiro livro, mandei alguns exemplares para escritores da minha admiração, Pedro Nava entre eles. De quem a generosidade e a doçura de caráter teriam feito, com certeza, um péssimo crítico literário: o memorialista não poupa elogios a poemas que hoje renego totalmente, do primeiro ao último. Depois de aludir à nota biográfica aposta ao volume, observa o autor do Balão cativo, com o critério que lhe nortearia a obra toda: “Na referida segunda capa há referência a Rodolfo Teófilo (conheci pessoalmente esse amigo de meu tio Antônio Sales), onde se diz que ele era médico.
Creio que há engano. Apesar de ter exercido ao seu tempo uma medicina filantrópica, preparando e inoculando vacina antivariólica, ao que eu saiba ele era apenas farmacêutico.
Verifique bem.”
Nava simplesmente não deixava carta sem resposta, fosse de quem fosse. A ponto de matéria de jornal elegêlo um dos mais assíduos clientes da empresa dos correios. Recebia de tudo: fotos, livros, recortes ou simplesmente impressões de leitura, numa comovente prova da admiração que lhe reservavam os milhares de leitores.
Em correspondência de 7 de abril de 1981 fala novamente em Antônio Sales, o tio afim por quem nutria verdadeira devoção: “Recebi sua carta de 22 de março com o excelente artigo do Sânzio de Azevedo sobre meu tio Antônio Sales. Fico gratíssimo pelo seu interesse de me pôr a par dessa publicação e pelo que mostra pelo meu livro a sair. O Galo-das-trevas está andando devagar na José Olympio. Já passou pela parte técnica de revisão da linguagem e da diagramação e tenho provas prometidas para o meio deste mês, ou seja, para daqui a dias. Vamos ver se tudo isto é cumprido ou se teremos motivo para temer um atraso. Como o livro foi programado para maio, já era tempo de ter passado pela revisão. Em todo caso espero que pelo menos até fins de junho o galo esteja cantando ou cacarejando.”


No Baú de ossos Nava evoca carinhosamente sua avó paterna, D. Cândida Pamplona da Silva Nava, cearense de Aracati, cujo doce de caju jamais lhe sairia da lembrança. Num bilhete que me fez em 1981, agradece o escritor algumas publicações que lhe havia remetido, entre elas o Museu Jaguaribano, que, segundo ele, “dá orgulho a quem tem sangue do Aracati”. De fato, Nava punha na mais alta conta suas raízes cearenses. Em carta de 15 de novembro de 1981, esclarece: “A minha proporção de cearense é de 75 por cento, e não a de
85 que você me dá”. E prova, num bem cuidado diagrama: avô maranhense ‒ avó cearense ‒ pai cearense; avô cearense ‒ avó mineira ‒ mãe mineira. Sabedor dessa sua estima pelo Ceará, presenteei-o certa vez com o delicioso doce de caju produzido na Chácara São João Gualberto, em Aracati, por minha tia Zuleica Porto. O agradecimento veio proustiano e caloroso: “Recebi o doce de caju que Você me mandou. É sem tirar nem pôr o mesmo de minha avó: obrigado pela onda de infância e de recordações da doce velha que veio de suas mãos ‒ cada vez que eu o saboreava era aquele mergulho no passado. Economizei o mais possível, mas infelizmente acabou.” E concluiu: “Muito grato por sua impressão do meu Galo-das-trevas. Felizmente o livro tem feito boa carreira. Antes de quinze dias de saído entrava em segunda edição, e antes de ter um mês, na terceira. Posso dizer sem vaidade besta (os números não mentem) que bati um record. Quanto ao seu pedido de mais um volume ‒tem que ser devagarinho. Vou escrevendo o sexto de minhas memórias, mas muito lentamente.”
Conheci pessoalmente Nava em 1981. Numa tarde de janeiro fomos recebidos, Ana Maria e eu, no belo e confortável apartamento no bairro da Glória, no Rio de Janeiro. Ao lado de sua mulher, D. Nieta, deu-nos a impressão de um casal tranquilo e feliz. A conversa variou da literatura à medicina, sempre dominada pela cativante simpatia do anfitrião. Nava era um causeur extraordinário, o que não dIreçÃO geral: César Santos dIretOr de redaçÃO: César Santos gereNte adMINIStratIVa: Ângela Karina deP. de aSSINatUraS: Alvanir Carlos admira em se tratando de mineiro. Nisso residia, sem dúvida, um dos motivos do fascínio que exercia sobre quem dele se acercava.
Voltaríamos à Glória no início de 1984, agora de gravador em punho: combináramos, por telefone, uma entrevista para o “DN Cultura” (“Em busca do tempo vivido”, 1º de abril de 1984). Alegre e bem-disposto, prontificou-se Nava a responder a tudo que lhe fosse perguntado. E o fez sempre com brilho, admiravelmente lúcido e participante nos seus 80 anos. Em razão do espaço, duas perguntas deixaram de constar no texto final da entrevista, incluídas, depois, na versão publicada em livro (Palavra de escritor. Brasília : Thesaurus, 1995). Quando quis saber se o fantasma da poesia deixara de tentá-lo ‒ a ele, que com “O defunto” entrara na Antologia dos poetas brasileiros bissextos contemporâneos , de Manuel Bandeira ‒, respondeu-me:
— Ainda tenta, eu é que não consigo. Acho a minha poesia sem espontaneidade, sem aquele alumbramento que você encontra num Murilo Mendes, num Drummond, num Vinicius, num Bandeira. A gente tem a impressão de que aquilo é uma possessão, um estado de êxtase. Eu nunca senti isso, a não ser em dois poemas que fiz: “O defunto” e “Mestre Aurélio entre as rosas”, que foram escritos de um jato. São poemas longos e quase sem correções. As correções que houve no “Defunto” foram feitas por Manuel Bandeira, que gostava dos versos. Depois eu vi que aquele não era o meu poema. Então voltei ao ruim, tirei o bom do Bandeira pra vestir minha roupa: ele me dera um smocking emprestado, eu peguei meu paletó-saco outra vez...
A outra pergunta foi sobre o Rio que ele tanto amava: como via o problema da violência social que hoje caracteriza nossas grandes cidades?
— Eu acho que essa violência do povo carioca ‒ como de resto do brasileiro, de uma maneira geral ‒ resulta de duas coisas. A primeira é que o brasileiro não se sente dono de sua terra. Temos a impressão de que ainda estamos colonizados, nossa reação é a do colono. Eu, por exemplo, não me sinto dono desta terra de maneira nenhuma: sou uma espécie de posseiro aqui. Somos colonizados por uma pequena casta, uma elite financeiro-militar que nos está governando nos últimos tempos. O outro fator é a profunda crueldade, a profunda maldade com que o governo trata o brasileiro: por qualquer coisa se dá uma solução policial. Isso vem dos nossos hábitos coloniais. Um exemplo: ninguém admira mais o Oswaldo Cruz do que eu. Mas a vacina obrigatória foi uma violência, uma coisa feita com o auxílio da polícia: em vez da persuasão, da educação nas escolas, aquilo se fez de maneira brutal, um ato de benemerência grosseiramente praticado. Assim, nós não opinamos com relação ao Brasil. Eu, amanhã, posso tomar uma surra da polícia, posso me dirigir a um policial e ser desacatado, porque eles têm o rei na barriga, um simples soldado com aquele revólver do lado. Ele está caçando um sujeito pra matar. Acho que o principal fator de violência vem do governo, dos mandantes do Brasil ‒ os atuais e os passados. É uma questão que vem de muito longe, essa da violência de cima pra baixo. A polícia da Inglaterra, desarmada, seria o nosso ideal: tenho a impressão de que se a nossa polícia se desarmasse, espancasse menos e não torturasse, a violência diminuiria. Porque hoje o sujeito que vai para um assalto, para um ato de terrorismo, tem que ser um bravo, ele vai disposto a morrer. O assaltante é um camicase, ele vai porque sabe que morre. Se não morrer na hora pode morrer na prisão, e ser jogado fora no rio Guandu, numa lixeira qualquer aí em roda da cidade.
Estou certo de que a culpa pela violência é menos do povo do que de quem manda nesse povo.
Poucos escritores, em toda a nossa literatura, sentiram e entenderam a vida como Pedro Nava, no que ela tem de mais profundo como fenômeno histórico. Ficou a sua obra, prova definitiva disso. Cumpre lê-la toda, a quem não o fez ainda: é a maior e a mais justa homenagem que se lhe poderá prestar.
BanCo do BrasiL